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Os Imigrantes Brasileiros Na Guiana Francesa E Sua Cultura: Entre Adaptação E Reprodução

RC: 23563
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

ROCHA, Leone de Araújo [1]

ROCHA, Leone de Araújo. Os Imigrantes Brasileiros Na Guiana Francesa E Sua Cultura: Entre Adaptação E Reprodução. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 03, Ed. 12, Vol. 02, pp. 59-69. Dezembro de 2018. ISSN:2448-0959

RESUMO

Pretende-se com este artigo elaborar um estudo sobre a cultura dos brasileiros imigrantes na fronteira Amapá-Guiana Francesa. Primeiramente é realizada uma revisão temática envolvendo o conceito de cultura para em seguida adentrar na problemática migratória do brasileiro na Guiana Francesa.

Palavras-Chave: Cultura, Migração, Fronteira, Amapá, Guiana Francesa.

INTRODUÇÃO

O termo “cultura” hoje é parte inconteste do sistema simbólico de nossa sociedade. Até mesmo um Ministério da Cultura existe em nosso país. A cultura atualmente é objeto de valorização. Museus, comidas, danças, festas, obras, enfim, uma infinidade de objetos estão vinculados à cultura nacional e são passíveis de proteção e incentivo.

Mas nem sempre foi dessa forma. A assim chamada “cultura de um povo” esteve antes condicionada a segundo plano. Como será visto no decorrer deste artigo, a Europa Iluminista e a França como seu expoente consideravam a “civilização”, a universalidade do gênero humano como o valor supremo, distinguindo-se dos primitivos. Foi preciso a Alemanha e sua burguesia intelectual se revoltar contra os valores aristocráticos e alçar a “cultura de um povo” e a diversidade das culturas existentes como caráter distintivo do gênero humano. Hoje em dia convivem harmoniosamente as concepções universalistas (vide os direitos humanos) e a particularista da noção de cultura como formulada desde sua origem. Ora mais próxima de um desses termos e ora mais próxima do outro, a noção de “humanidade” se ampliou para abarcar tanto o que nos une quanto o que nos separa.

Este trabalho pretende realizar um levantamento bibliográfico buscando a) fazer um resgate dos debates em torno do conceito de cultura; b) discutir seu conceito na contemporaneidade; e c) realizar um estudo de caso com os imigrantes brasileiros na Guiana Francesa. Este levantamento não pretende ser exaustivo, dada a finalidade deste artigo; mas, sim, minimamente realizar uma introdução ao tema e divulgar a realidade da imigração na fronteira Amapá-Guiana Francesa.

O CONCEITO “CULTURA” E SUA GENEALOGIA

As palavras respondem a certos problemas colocados em períodos históricos e vinculados a algum contexto social. Nas palavras de Cuche (1999, p. 17), “Nomear é ao mesmo tempo colocar o problema e, de certa forma, já resolvê-lo”. Neste sentido as palavras têm uma história e também fazem história, e isso é particularmente válido para o termo “cultura”, uma criação do ocidente, já que a maioria das sociedades que os antropólogos estudam não possui um termo correspondente.

Para compreender o conceito de cultura como é entendido hoje, é preciso levantar sua origem histórica, reconstruir sua genealogia. Segundo Cuche (1999, p. 18), “Não se trata de se entregar aqui a uma análise linguística, mas de evidenciar os laços que existem entre a história da palavra ‘cultura’ e a história das ideias”. Mas existem muitos sentidos aos quais se vincula a palavra “cultura”, como cultura da terra, cultura microbiana, cultura física, etc. Logo é praticamente impossível dar conta em sua totalidade de todos os sentidos da palavra “cultura”.

Considera-se que a evolução semântica decisiva da palavra “cultura” para o sentido que temos hoje ocorreu na França no século das luzes. Mas o uso dessa palavra remonta aos tempos antigos do século XVI. Nesse período, “cultura” não significava mais um estado apenas, mas uma ação, a ação de cultivar a terrar. No meio do século XVI, “cultura” passou a significar o cultivo de alguma faculdade. Mas esse sentido figurado se tornaria pouco conhecido até a metade do século XVII, quando era ausente dos dicionários e dos círculos acadêmicos. Cuche (1999, p. 19) afirma que,

Até o século XVIII, a evolução do conteúdo semântico da palavra se deve principalmente ao movimento natural da língua e não ao movimento das ideias, que procede por um lado pela metonímia (da cultura como estado à cultura como ação), por outro lado pela metáfora (da cultura da terra à cultura do espírito), imitando nisso seu modelo latino cultura, consagrado pelo latim clássico no sentido figurado.

Então, “cultura”, no sentido figurado, ganha espaço no século XVIII, começando com sua primeira aparição no Dicionário da Academia Francesa (edição de 1718). Nesse momento, o termo ainda vem acompanhado de outro termo que denota sua especificidade, como “cultura das artes”, “cultura das letras”, etc. Progressivamente, “cultura” vai ganhando independência de seus complementos e vai passando a designar um estado, o estado de quem tem cultura. Assim, começam as diferenciações entre um selvagem sem cultura, e o homem instruído, bem educado, ou seja, com cultura. Nas assim a oposição entre “natureza” e cultura, “oposição fundamental para os pensadores do Iluminismo que concebem a cultura como um caráter distintivo da espécie humana” (CUCHE, 1999; p. 21).

“Cultura”, utilizada sempre no singular, se torna uma propriedade do Homem universal, com H maiúsculo; simboliza a educação, a instrução e o progresso, ideias essas que predominam durante o Iluminismo; está muito próxima do termo “civilização”, que denota os avanços do coletivo, enquanto “cultura” está vinculada ao desenvolvimento individual. Complementa Cuche (1999, p. 23),

O uso de “cultura” e de “Civilização no século XVIII marca então o aparecimento de uma nova concepção dessacralizada da história. A filosofia (da história) se liberta da teologia (da história). As ideias otimistas de progresso, inscritas nas noções de “cultura” e “civilização” podem ser consideradas como uma forma de sucedâneo de esperança religiosa. A partir de então, o homem está colocado no centro da reflexão e no centro do universo. Aparece a ideia da possibilidade de uma “ciência do homem”; a expressão é empregada pela primeira vez por Diderot em 1755 (no artigo “Enciclopédia” da Encyclopédie). E, em 1787, Alexandre de Chavannes cria o termo ”etnologia”, que ele define como a disciplina que estuda a “a história do progresso dos povos em direção à civilização”.

No século XVIII aparece o termo Kultur na língua alemã parecendo repetir o mesmo sentido da correlata palavra francesa devido à influência que a França exercia na alta corte alemã; falar francês era sinônimo de distinção na Alemanha de então. Mas Kultur rapidamente evolui para um sentido mais restritivo do que sua homóloga francesa a partir do século XVIII e ganha maior popularidade do que na França. Isso deve pelo fato de que a burguesia intelectual da época escolheu a versão de “cultura” alemã em detrimento do termo “civilização”, então largamente utilizado pela aristocracia alemã devido a já referida influência da França, lugar onde o termo “civilização” era mais utilizado do que o termo “cultura”. Nas palavras de Cuche (1999, p. 24-25),

Estes intelectuais, frequentemente saídos do meio universitário, criticam os príncipes que governam os diferentes Estados alemães, por abandonar as artes e a literatura e consagrar a maior parte de seu tempo ao cerimonial da corte, preocupados demais em imitar as maneiras “civilizadas” da corte francesa. Duas palavras vão lhes permitir definir esta oposição dos dois sistemas de valores: tudo o que é autêntico e que contribui para o enriquecimento intelectual e espiritual será considerado como vindo da cultura; ao contrário, o que é somente aparência brilhante, leviandade, refinamento superficial, pertence à civilização.

Assim, a intelligentsia burguesa alemã, traz para si a missão de unificação de um povo que politicamente ainda não havia se unificado; para isso usa o conceito de cultura buscando encontrar a essência do povo alemão, encontrar as virtudes alemãs. No século XIX o termo “cultura” passará a denotar toda a nação alemã em oposição aos ocidentais e sua “civilização”, “Os traços característicos da classe intelectual, que manifestavam sua cultura, como a sinceridade, a profundidade, a espiritualidade, vão ser a partir de então considerados como especificamente alemães” (CUCHE, 1999, p. 26). A noção alemã de Kultur passa então cada vez mais a denotar a diferença entre as nacionalidades, indo de encontro à noção universalizante de “civilização”. Comenta Cuche (1999, p. 27),

Já em 1774, mas de uma maneira relativamente isolada, Johann Gottfried Herder, em um texto polêmico fundamental, em nome do “gênio nacional” de cada povo (Volksgeist), tomava partido pela diversidade de culturas, riqueza da humanidade e contra o universalismo uniformizante do Iluminismo, que ele considerava empobrecedor.

Herder é responsável então por criar o significado relativista do termo “cultura”, que passa a se referir ao espírito de uma nação, aos seus valores constitutivos e sua unidade e assumindo a diversidade das culturas existentes.

No século XIX o conceito de cultura evolui pouco na Alemanha, vinculando-se ao conceito de “nação”. A nação e sua cultura viriam antes da nação política, pois é quem define o espírito da nação. Já na França o termo perde seu caráter individualista e passa a se referir também ao coletivo de modo similar a “civilização”; possui um caráter universalizante que privilegia o que há de comum em toda a humanidade, a “cultura humana”. Esta diferença de significado para o mesmo termo se estenderá por todo o século XIX e vai até o XX, como ressalta Cuche (1999, p. 31), “O debate franco-alemão do século XVIII ao século XX é arquetípico das duas concepções de cultura, uma particularista, a outra universalista, que estão na base das duas maneiras de definir o conceito de cultura nas ciências sociais contemporâneas”.

DEFINIÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE CULTURA

Escrevendo contra um movimento que existiu na antropologia que revisava o conceito de cultura de forma negativa, como criadora e reprodutora de relações de dominação entre os povos, Marshall Sahlins (p. 41) afirma que “a ‘cultura’ não pode ser abandonada, sob pena de deixarmos de compreender o fenômeno único que ela nomeia e distingue: a organização da experiência e da ação humanas por meios simbólicos”. Assim, o autor procura argumentar que “a ‘cultura’ é aquilo que caracterizava de modo singular um determinado povo (…)” (SAHLINS, 1997, p. 46). Desta maneira, Sahlins defende a relevância do conceito “cultura”, e que este denota justamente a especificidade de um povo, e não uma relação de dominação entre civilizados e selvagens.

Mas a principal contribuição deste texto de Sahlins para o presente trabalho é o relacionamento entre cultura e simbolismo como afirmado acima. O simbolismo está presente na cultura humana até mesmo em atos econômicos considerados formais e seguindo padrões racionais como o capitalismo. Por quê não comemos cachorro, ou cavalos? Por quê as pessoas seguem a moda? Essas questões levam Sahlins (2003, p. 185) afirmar que “O capitalismo não é pura racionalidade. É uma forma definida de ordem cultural”.

Geertz (2014) também considera o aspecto simbólico do conceito “cultura”; sua contribuição está em reduzir a amplitude que estava atrelada ao conceito; “cultura” abarcava muitos significados distintos e era preciso restringir seu alcance heurístico. Para ele a cultura é uma teia de significados que podem ser interpretados pelo estudioso. Geertz, como um expoente da antropologia americana, que teve forte influência alemã vinda de Franz Boas, considera cultura como as formas estruturais de uma sociedade; assim se localiza entre aqueles que percebem a cultura como uma manifestação do espírito de um povo, como os alemães.

Roy Wagner (2010), num tom unificador considera cultura como um conceito que aborda o homem em sua generalidade, como a especificidade das nações, povos, etc. afirma o autor,

Quando eles falam como se houvesse apenas uma cultura, como em “cultura humana”, isso se refere muito amplamente ao fenômeno do homem; por outro lado, quando falam sobre “uma cultura” ou sobre “as culturas da África”, a referência é a tradições geográficas e históricas específicas, caos especiais do fenômeno do homem. Assim, a cultura se tornou uma maneira de falar sobre o homem e sobre casos particulares do homem, quando visto sobre uma determinada perspectiva (WAGNER, 2010, p. 27)

Continuando seguindo o autor, este afirma que o pesquisador da cultura está em pé de igualdade com seu objeto: ambos possuem cultura. Desta maneira, ficam impossibilitadas todas as tentativas de classificação cultural. Portanto, advoga-se um “relativismo cultural”, considerando cada cultura como equivalente a outra.

OS IMIGRANTES BRASILEIROS NA GUIANA FRANCESA E SUA CULTURA

A Guiana Francesa foi durante muito tempo colônia da França. Na década de 1940 a então colônia foi alçada ao status de departamento ultramarino francês (DUF). Desde então, “passa a receber investimentos significativos para a sua integração mais efetiva à metrópole” (AROUCK, 2002, p. 102). A população guianense ainda rarefeita no período pós-Segunda Guerra Mundial passa a receber um grande contingente de migrantes bastante diversos do ponto de vista etnocultural principalmente para sua capital, Caiena. Entre estes estariam os hindustãos, chineses, libaneses, e surinameses. Isso faz com que a Guiana Francesa possua aparentemente como destaques identitários a natureza pluriétnica de sua população e o domínio francês nesta parte do continente sul-americano.

A migração brasileira mais intensa para a Guiana Francesa ocorre a partir de 1964 quando iniciou a construção do centro aeroespacial e cidade de Kourou. As autoridades francesas então organizaram uma imigração de mão-de-obra estrangeira dos países vizinhos, especialmente Colômbia e Brasil. Arouck (2002, p. 102) conta que,

O processo, então, foi sofisticado. Iniciou-se a partir de uma chamada de brasileiros realizada nos jornais de São Paulo. A proposta foi de trabalho temporário com contrato (com data de início e término), alojamento e salário de acordo com a legislação social da França.

Continua afirmando o autor que “essa situação desencadeou uma migração espontânea muito forte, inicialmente de pessoas oriundas principalemnt4e de Macapá e Belém” (AROUK, 2002, p. 103). O atrativo para a imigração eram os altos salários oferecidos, com uma diferença que girava em torno de 600% em relação aos salários ofertados no Brasil levando-se em consideração a conversão de moeda.

No desenrolar do processo, brasileiros regularizados começaram a terceirizar os serviços arregimentando outros brasileiros em situação ilegal e pagando metade do valor que receberiam se fossem regularizados. Apesar dessa redução de salários e benefícios, os brasileiros começaram a atravessar mais e mais a fronteira e a chegar a Caiena. Depois de Kourou, a realização frequente de obras de infraestrutura na Guiana Francesa explica a persistência do fluxo migratório de brasileiros para esse destino.

Em Caiena não existem bairros inteiramente de brasileiros caracterizando uma colônia de imigrantes no local, “Mas existem áreas ocupadas livremente nas franjas do núcleo urbano originário, numa expansão típica das cidades da América Latina” (AROUCK, 2002, p. 115). Existem áreas de brasileiros mais antigas e outras de ocupação recente. Aqueles que possuem documentação e estão legalmente na Guiana Francesa podem conseguir um benefício da Prefeitura Local que lhes garante 50% do aluguel em algum condomínio construído pelo governo. Mas são poucos que conseguem esse benefício, passando a morar nas áreas ilegais disponíveis.

Quando chegam em Caiena, rapidamente os imigrantes procuram se informar entre os brasileiros já residentes sobre a disponibilidade de emprego, enquanto realizam biscates em pequenas obras e residências. Em sua maioria, os imigrantes não falam o francês corretamente, mas após aproximadamente 12 meses de estadia na Guiana Francesa começam a falar com relativa fluência. Os imigrantes não realizam esforços para aprender bem o francês, o que dificulta a comunicação na hora de entender os procedimentos para conseguir benefícios que a seguridade social francesa disponibiliza. A exceção são os filhos dos imigrantes que estudam o francês na escola e são bem mais fluentes nessa língua do que seus pais.

Quanto ao processo de assimilação, de modo geral o brasileiro tende a creolização, uma adaptação ao modo de vida guianês-francês. Isso se deve a certas semelhanças entre a cultura créole e a brasileira como “a espontaneidade e uma certa alegria de viver, a camaradagem natural entre conhecidos e o modo de falar sempre sorridente (…)” (AROUCK, 2002, p. 122). Mas ao longo do processo de adaptação são reforçadas tanto as similaridades como as diferenças. Andando pelas ruas de Caiena pode-se perceber bandeiras de times de futebol brasileiros nas casas, bem como a bandeira do Brasil. Música brasileira em alto volume é comum encontrar também. Os brasileiros na Guiana Francesa deram origem a um mercado consumidor de produtos do Brasil como refrigerantes, antenas parabólicas, sucos de fruta congelada, restaurantes com sistema de venda a quilo, churrascarias, entre outros. Esses produtos não são consumidos apenas por brasileiros.

Arouck (2002) identifica quatro categorias de imigrantes brasileiros na Guiana Francesa, a saber: 1) os “recém-chegados pela primeira vez”. Dependem das relações familiares e de amizade que os levaram até Caiena. Por conhecerem pouco a cultura e os hábitos locais, são os que mais reforçam a cultura brasileira. Pensam em trabalhar no máximo dois anos e depois voltar para o Brasil. Pretendem realizar uma poupança independentemente dos sacrifícios que isso custe; 2) A segunda categoria compõe-se dos flutuantes, aqueles que estão num constante vaivém entre Macapá, Belém e Caiena. Muitos já possuem sua documentação e trabalham por temporada em Caiena ou Kourou. Entre os ilegais, alguns esperam serem expatriados para voltar gratuitamente com passagem paga pelo governo francês; 3) A terceira categoria é representada pelos estáveis, os que estão em Caiena há mais de dez anos. Conseguiram abrir seu próprio negócio por meio da economia que realizaram ou possuem emprego regular na Guiana Francesa. São a parcela mais reduzida da população de brasileiros no local. Apesar da situação regular, pretendem, num futuro imprevisto, voltar para o Brasil; 4) A geração jovem é a quarta categoria e são representados pelos filhos dos imigrantes. Eles estudaram ou estudam nas escolas públicas da Guiana Francesa, falam o francês com correção e sentem-se integrados à sociedade local. Muitos nasceram no Brasil enquanto outros na própria Guiana Francesa.

Os imigrantes brasileiros são considerados especialistas hábeis, o que garante a eles a maioria das vagas no setor da construção civil. Como pode-se ver em Arouck (2002, p. 128),

A mão-de-obra brasileira é valorizada na Guiana Francesa, independentemente do status do imigrante. Os brasileiros estão inseridos em diversos setores e segmentos da economia, como na indústria civil, pequenas empresas, serviços, trabalhos gerais. Essas possibilidades, no entanto, distam muito de uma realidade igualitária envolvendo os crioulos e os demais imigrantes. Mas, os brasileiros não têm ficado impunes frente a essa valorização e inserção, pois são vítimas de muitos preconceitos.

Pela lei francesa nenhum estrangeiro pode exercer atividade remunerada em território francês. Mas é imitida aos imigrantes estrangeiros uma licença temporária para trabalho denominada carte de séjour, inicialmente por um período de 12 meses, renovável em seguida por dois, quatro e oitos anos consecutivamente. Somente após esse período o imigrante pode requer a nacionalidade francesa. É o empregador que solicita a carta de permanência temporária. Mas a obtenção dessa carta depende da boa vontade do empregador, pois a regularização do trabalhador requer custos.

Quanto a inserção dos imigrantes brasileiros na cultura local, Arouck (2002, p. 135-136) afirma que,

Os brasileiros imigrantes na Guiana Francesa possuem o que se poderia chamar inserção periférica no quadro social desse Departamento Francês. Não que eles tenham se transformado em uma parcela marginal, visto que muitos participam formalmente do mercado de trabalho e dos benefícios sociais propiciados pelo Estado francês. Contudo, como estrangeiros, estão circunscritos às funções do setor terciário e estão sempre psicologicamente ‘de passagem’. Os brasileiros, talvez pela proximidade com seu país, hesitam em criar raízes nessa Guiana, pois sonham voltar algum dia.

O grupo dos brasileiros bem-sucedidos procura se distanciar dos brasileiros que estão em piores condições, pois alegam que estes últimos denigrem a imagem dos brasileiros na Guiana Francesa. Este grupo melhor localizado na sociedade guianense tende a uma maior creolização, uma maior assimilação na cultura local, o que por vezes leva a um distanciamento da língua portuguesa. Mas ressalta Arouck (2002, p. 137-138) que,

Apesar disso e mesmo que boa parte dos brasileiros residentes na Guiana Francesa esteja bem integrada economicamente à sociedade local, sua posição no quadro social ainda é bastante marginal, o que explicaria, de certa forma, a necessidade de afirmação identitária de parte desses migrantes. A bem da verdade, essa necessidade data de muito anos, pois, desde os anos de 1960, mesmo os imigrantes documentados sentiam a discriminação principalmente por parte dos franceses, que no fundo os viam como meros serviçais. Essa marginalidade muito se justificaria pela modalidade de migração que se realiza do Brasil para essa Guiana.

E continua afirmando que,

Pelo exposto, vê-se que existem muitos pontos de distanciamento e de aproximação entre os brasileiros e a sociedade guianesa-francesa. Os limites são ainda muito grandes, tanto de ordem social, econômica como cultural, com impactos algumas vezes diferenciados nas várias gerações (AROUCK, 2002, p. 139).

Outro autor que se debruçou no estudo da imigração de brasileiros para a Guiana Francesa foi Pinto (2008). Este autor atribui ao fenômeno da globalização os recentes movimentos migratórios ao redor do planeta; na maioria das vezes, esses migrantes procuram melhores condições de vida e fogem da realidade dura de seus países de origem. Quanto aos brasileiros migrantes para a Guiana Francesa, Pinto trabalha com o termo fetiche do emprego, afirmando que,

Neste trabalho, a palavra fetiche está empregada no sentido do fascínio, do arrebatamento que a possibilidade de conquista de um emprego na Guiana Francesa desperta. Esta expressão em nossa pesquisa aproxima-se de uma ideia de ilusão, de deslumbramento, de atração (PINTO, 2008, p. 21-22).

Dando ênfase a condição de migrante ilegal, Pinto (2008) afirma em seu trabalho que muitos trabalhadores brasileiros não são declarados por seus patrões. Muitos brasileiros escolhem permanecer não declarados para não perder benefícios do governo francês. Isso num contexto em que o combate aos imigrantes ilegais na Guiana Francesa possui prioridade maior do que muitos outros problemas locais como o narcotráfico internacional. Neste local o Estado controla a imigração de acordo com seus interesses estratégicos. Para a construção da cidade de Kourou o governo fez “vista grossa”, mas quando perceberam o aumento do número de imigrantes, aumentou o controle e as práticas de deportação se tornaram comuns. Porém, o alto valor das taxas e a documentação exigida desanimam os imigrantes a entrarem legalmente no DUF. Desta maneira, a ocorrência de deportações, muitas vezes de forma violenta, se tornou comum neste Departamento Ultramarino. Mais uma vez, Pinto (2008, p. 124) afirma que,

Talvez um dos temas mais caros à diplomacia brasileira na Guiana Francesa, seja falar das constantes invasões desferidas pelos brasileiros ao território francês, sobretudo na região de fronteira entre Guiana Francesa e o Estado do Amapá. Como a França é um país soberano e com legislação própria, toda a força empregada para combater a garimpagem ilegal não pode ser questionada pelas autoridades consulares brasileiras. O constrangimento diplomático é evidente na fala do Cônsul, já que nestas condições de clandestinidade, muito pouco pode ser feito para minimizar as ações militares do governo francês contra centenas de garimpos ilegais. Apesar de todos esses conflitos serem registrados e enviados à Brasília, através de relatórios mensais, nesses casos de violação territorial a instituição fica de ”mãos-atadas” para ficar do lado dos brasileiros. Talvez seja por isso que muitos brasileiros na Guiana Francesa criticam a forma de atuação do Consulado, alegando que o mesmo é omisso em algumas questões; e que, de forma geral, acaba “virando as costas” para os próprios brasileiros na hora que mais precisam.

Os franceses gostam do trabalho dos brasileiros, mas muitos possuem medo dos imigrantes ilegais pelo alto número desses ilegais no Departamento. Três vezes por semana a França faz a recondução de imigrantes ilegais a seus países de origem. Há um caso de um brasileiro que foi repatriado 11 vezes. Desta maneira, o imigrante ilegal na Guiana Francesa deve tomar precauções, como relata Pinto (2008, p. 129),

A primeira lição que um imigrante ilegal deve aprender ao chegar a Caiena é assumir sua invisibilidade, sua inexistência, seu anonimato. Com anos de experiência no assunto, os policiais franceses facilmente identificam imigrantes e os grupos étnicos aos quais pertencem apenas pelo seu vestuário. Por isso os mais experientes orientam os novatos a não usarem camisas de clubes brasileiros e da seleção; bermudas e sandálias, e outros estilos mais “bizarros” que chamem a atenção dos policiais. A discrição deve ser levada a sério, neste momento inicial, com o risco de serem abordados pela polícia de migração.

Após quarenta anos de migração para a Guiana Francesa, ainda não existe uma infraestrutura adequada para a permanência dos brasileiros no local. “A maioria dos ‘brésiliens’ mora em áreas periféricas e em casas improvisadas, sem planejamento. Além disso, é provável que exista um certo mal-estar entre imigrantes novos e estabelecidos” (PINTO, 2008, p. 133). A busca por moradia é uma tarefa difícil para os brasileiros na Guiana Francesa, pois, ao se identificarem como brasileiros, automaticamente barreiras são criadas para concretização do aluguel ou compra de imóvel.

Quanto ao processo que leva um brasileiro para migrar para Guiana Francesa buscando trabalho, Pinto (2008, p. 172-173) argumenta que,

O primeiro passo para se conseguir um emprego na Guiana Francesa geralmente é dado ainda no Brasil. Pelos depoimentos colhidos, identificamos verdadeiros projetos de vida de pessoas que se deslocaram para o território francês. Tem trabalhador que se submete a qualquer tipo de serviços temporário e informal, ainda no Brasil, com objetivo de guardar certa quantia em dinheiro para custear as despesas da viagem para o território francês. Outra maneira de se chegar à Guiana muito utilizada, é a coleta familiar. Neste caso, todos os membros do grupo contribuem com as despesas da viagem, principalmente os que possuem uma melhor situação financeira. No entanto, em nossa pesquisa, identificamos também as decisões repentinas, tomadas em virtude de determinados fatos inesperados do cotidiano. De maneira geral, os baixos salários, a necessidade de criar os filhos, os endividamentos pessoais, as dificuldades de se conseguir trabalho na região Norte/Nordeste, estão entre as causas imediatas da saída de brasileiros para a Guiana Francesa.

Como já afirmado, não são somente brasileiros que migram para o DUF, mas diversas outras etnias-nacionalidades. Os diversos grupos étnicos que migraram para a Guiana Francesa o fizeram buscando melhores condições de vida, buscando trabalho. Com o passar do tempo, ocorreu uma especialização étnica, de forma que os vários grupos reunidos na Guiana Francesa são responsáveis por determinada especialidade no mercado de trabalho local. Assim, o comércio está com os chineses; construção civil com os brasileiros; pescaria com os ingleses, hortaliças com os homongs, etc.

O período de renovação da carte de séjour é um momento que pode causar em alguns imigrantes quadros de depressão ou ansiedade. Os imigrantes ficam na dependência do patrão para a renovação, o que nem sempre é algo certo, gerando a dúvida e a situação aflitiva. Existem empresas de fachada que só existem para contratar brasileiros e assim fornecer a carte de séjour pelo período de um ano. Mais esse procedimento custa caro: cerca de três mil euros no ano de 2002.

A partir da década de 1990, as redes migratórias aumentaram sua influência, possibilitando uma aproximação entre os imigrantes brasileiros e o mercado de trabalho guianense. Quando um imigrante chega, nem sempre encontra emprego rápido, devendo esperar duas semanas ou mais para conseguir um vínculo empregatício, auxiliado pelar redes migratórias que o levaram a Guiana Francesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho iniciou com uma genealogia do conceito “cultura”. Passando pela origem na idade média e sua relação com o cultivo da terra, até seu desdobramento no conflito entre França (civilização) x Alemanha (cultura). Neste conflito estão em jogo duas concepções opostas quanto ao fenômeno humano: a cultura, mais próxima de civilização, na França, que remete ao gênero humano de forma universal; e, por outro lado, cultura segundo os alemães, que afirma a particularidade de cada povo, de cada nação. Essas duas concepções irão nortear os estudos sobre cultura dos séculos XIX e XX.

Em seguida foram trabalhados alguns conceitos contemporâneos de cultura. Esses conceitos têm em comum a ideia da cultura como um sistema simbólico, passível de interpretação. Cultura, hoje em dia, diz respeito tanto ao universal quanto o particular no estudo do homem. O simbolismo da cultura atua no plano particular como documento de atuação em determinada sociedade.

Por fim, o artigo finaliza com um estudo da realidade dos imigrantes brasileiros na Guiana Francesa partindo de dois autores, Arouck (2002) e Pinto (2008). Pretende-se por em prática conceitos como assimilação, estado-nação, etnia, enfim, cultura em seus diversos aspectos. Pode-se perceber nesses estudos o embate entre o governo francês que tenta garantir a hegemonia no território guianense, portanto com uma postura universalizante, e as diversas etnias-nacionalidades, especificamente a brasileira, no local. Presencia-se mais uma vez o embate entre civilização e cultura, o universal versus o particular, com o estado-nação procurando afirmar seu domínio e as etnias particulares procurando se afirmar.

Em mundo cada vez mais multicultural, deve ser questão de tempo para que os direitos dos particulares e das minorias sejam respeitados, apesar de que também presenciamos o fenômeno do conservadorismo crescendo cada vez mais, tencionando o debate e ameaçando as conquistas já conseguidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AROUCK, R. Brasileiros na Guiana Francesa: fronteiras e construções de alteridades. Belém: NAEA/UFPA, 2002.

CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2014.

PINTO, M. de J. de S. O fetiche do emprego: um estudo sobre as relações de trabalho de brasileiros na Guiana Frances. Tese (doutorado). Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – NAEA/UFPA, 2008

SAHLINS, M. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um “objeto” em via de extinção (PARTE I). Mana 3(1): 41-73, 1997

__________. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naif, 2010.

[1] Especialista em Ciência Política – IBPEX; Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais – UNIFAP. Mestrando no PPG em Estudos de Fronteira – UNIFAP.

Enviado: Março, 2018

Aprovado: Dezembro, 2018

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Leone de Araújo Rocha

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