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Entre o racismo e o ressentimento: o negro na dinâmica da academia Brasileira

RC: 103412
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SILVA, Erivelton Thomaz da [1], JESUS, Fernando Santos de [2], MEDEIROS, Fabrícia Cristina Araújo de Souza [3]

SILVA, Erivelton Thomaz da. JESUS, Fernando Santos de. MEDEIROS, Fabrícia Cristina Araújo de Souza. Entre o racismo e o ressentimento: o negro na dinâmica da academia Brasileira. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 06, Ed. 12, Vol. 06, pp. 05-32. Dezembro de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/entre-o-racismo

RESUMO

Este estudo tem como objetivo geral, analisar em que condições de trabalho estão inseridos os professores universitários negros, tendo como balizamento elementos teóricos já trabalhados e publicados acerca da dinâmica do racismo em um sentido mais amplo. Partimos do pressuposto de que os professores negros são minoria nas universidades brasileiras e mesmo estando em um lugar privilegiado para a construção do conhecimento, eles não deixam de enfrentar situações de racismo na convivência com seus pares, pois esses, possivelmente, dispensam ao negro, elementos imbuídos de saberes construídos em face de estereótipos sobre essa população. A pergunta que se impõe é: A partir de referenciais bibliográficos que traçam a genealogia do racismo e do ressentimento, é possível empreender um olhar sobre as relações de poder estabelecidas no ambiente acadêmico a partir de um investimento teórico, sem que se tenha a necessidade de imersão no campo de pesquisa entrevistando a acompanhando o cotidiano de professores negros? Nesse sentido, os referenciais teóricos que embasam nosso ensaio atravessam os campos de saberes da filosofia, sociologia e da educação para as relações étnico-raciais, uma vez que utilizamos os conceitos de racismo e de ressentimento como orientadores conceituais das análises. Utilizamos a metodologia de análise de conteúdo, que consiste na leitura de livros e artigos acadêmicos, extraindo deles os conteúdos implícitos e explícitos como objeto de análise e reflexão. Este estudo se justifica em face do seu ineditismo e de se tratar de um assunto que extrapola análises quantitativas, pois permeia o campo subjetivo no trato de questões que se apresentam como tabus no meio acadêmico. As nossas conclusões sinalizam para a existência de racismo no espaço universitário já que ele não está desconectado dos acontecimentos da sociedade brasileira, estruturada por meio do racismo e do ressentimento, conceitos presentes na dinâmica cotidiana e institucional do país.

Palavras-Chave: Racismo, Ressentimento, Estereótipo.

1. INTRODUÇÃO

Não são poucos os intelectuais brasileiros, acadêmicos, literatos e ensaístas que produziram diversas obras acerca da população negra, dentro e fora da universidade, tendo como ápice o final do século XIX e início do século XX. Essas produções ainda direcionam e orientam pesquisas atuais feitas em torno dessa temática, por isso podemos afirmar que muitos autores, ao analisar o negro na sociedade brasileira, se veem obrigados a fazer uma revisão de literatura utilizando as fontes sociológicas, históricas e filosóficas lançadas pelos autores que se propuseram a investigar a presença do negro na sociedade, que é o que Alberto Guerreiro Ramos (1957) chama de “Negro tema”, no seu livro “Introdução Crítica a Sociologia Brasileira”[4].

Em um primeiro momento, essas produções de conhecimento acerca do negro brasileiro, sinalizam para a necessidade de compreender as manifestações culturais do negro em terras brasileiras, e como a cultura negra se relaciona com os elementos culturais díspares daquilo que o negro africano construíra em seu território, o africano. Dito de outro modo, se buscou compreender de que maneira o negro africano e seus descendentes constroem saberes em uma atmosfera hostil, povoada pela crueldade do racismo na diáspora, e como esses elementos culturais dialogam com outras vertentes culturais no território brasileiro.

No entanto, há de se chamar a atenção para outra faceta dessa empreitada, que é a busca de enquadramento do negro brasileiro em um formato específico, no qual se possa compreender a sua “totalidade”, onde se firmem bases seguras de conhecimentos apriorísticos, e é justamente daí que surgem os estereótipos clássicos. Cabe ressaltar que o estereótipo cumpre a função de realçar os traços mais expressivos, segundo a ótica do observador, e torná-los uma máxima que visa identificar imediatamente o indivíduo ou grupo que se pretende impingir prévios saberes, o estereótipo também tem como função marginalizar e mexer com o psicológico do estereotipado.

Acontece que os negros nunca estiveram no imobilismo ao qual a academia, tanto na figura dos cientistas, como nas dos ensaístas e literatos, os enquadrou, e isso nos permite afirmar que o negro sempre se inseriu como produtor de conhecimento que oxigena o pensamento social brasileiro, e isso lhes foi conferindo, gradativamente, a entrada no espaço formal da educação superior não só enquanto estudante de alguma cadeira, mas também no papel de docente.

Mas, como esses negros foram recebidos pela academia brasileira? Primeiro é de vital importância saber que com a expansão do ensino superior no Brasil houve grandes intelectuais negros que produziram conhecimento estando na academia e atuando como professores[5]. Igualmente é importante saber que esses negros nunca foram maioria, até mesmo pelo próprio processo histórico de inserção do negro na sociedade após a abolição, mas também que muitos, como Alberto Guerreiro Ramos (1957), não conseguiram acessar esse lugar.

Essas perguntas se desdobram várias outras questões, formando quase uma dízima periódica de algo que nos parece perene, nos levando à sapiência de que os negros que enveredam pela carreira de intelectual acadêmico ainda continuam acometidos aos mesmos mal agouros das décadas anteriores. Essa conjectura não é solta, está conectada com o baixo quantitativo de professores negros nos cursos de graduação e, sobretudo, nas pós-graduações das nas áreas de conhecimento de maior valorização social, dos diversos programas das diversas universidades brasileiras.

Dentro desse panorama, cabe dissertar sobre algumas possibilidades na relação que esses docentes possuem com a comunidade acadêmica, em suas respectivas universidades, avaliando como eles podem perceber o racismo na instituição a qual estão acomodados enquanto professores. Esse ensaio se justifica por ser voltado exclusivamente ao campo das relações étnico-raciais, se tratando de investigar a pressão psicológica sofrida por esses profissionais e quais os possíveis desdobramentos no que concerne à prática educativa.

Cabe então pavimentar um caminho teórico amparado em referenciais bibliográficos que traçam a genealogia do racismo e do ressentimento, e responder à questão: É possível empreender um olhar sobre as relações de poder estabelecidas no ambiente acadêmico a partir de um investimento teórico, sem que se tenha a necessidade de imersão no campo de pesquisa entrevistando a acompanhando o cotidiano de professores negros?

Portanto, este estudo está amparado na justificativa de que ao investigar a presença dos professores negros no ensino superior, contribuiremos de maneira direta para construir novos saberes acerca dos desafios que no campo da docência ainda carece de maiores análises e planos de ação, visto que a universidade é um lugar de grande disputa, justamente por ser o lugar da produção de conhecimento. Além disso, nossa proposta tem afinidade com diversos campos de saberes, reverberando diretamente na qualidade do trabalho, que atravessa o desejo de construção de um sistema de ensino realmente democrático e plural, desejo de grande parte dos cidadãos brasileiros.

2. PRIMEIROS PASSOS: O QUE É ISSO, O RACISMO?

Inicialmente, se faz necessário traçar uma breve conceituação do que se conhece acerca do fenômeno adjetivado como racismo a fim de conjecturar sobre alguns mal-entendidos. E isso também será importante para seguir a sequência lógica na qual o título do texto enseja. Mais adiante, falaremos um pouco de cada tópico de maneira organizada e que permita encadear um pensamento conectivo entre os complexos conceitos que estão abarcados já no título do trabalho.

O que é o racismo? Muitas explicações sobre esse fenômeno foram e são feitas por diversos autores do século XX em resposta às teorias racistas dos séculos anteriores, que se intensificaram no século XIX. Contudo, compreendemos ser de fundamental importância irmos mais longe na história da humanidade para traçar as primeiras conjecturas, baseadas em fortíssimas evidências, para qualificar o nosso debate acerca do tema.

É desse modo que surge no campo científico internacional o senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986). Esse intelectual africano possui grandes obras, tais como, Precolonial Black Africa (1987) e The African Origin of Civilization: Myth or Reality (1974), nas quais se baseia em evidências, fragmentos e dados antropológicos para defender a tese de que o legado do conhecimento africano foi fundamental para dar origem a outros povos. Além disso, o autor apresenta os argumentos necessários para comprovar que a civilização egípcia era formada por negros:

The ancient Egyptians were Negroes. The moral fruit of their civilization is to be counted among the assets of the Black world. Instead of presenting itself to history as an insolvent debtor, that Black world is the very initiator of the “western” civilization flaunted before our eyes today. Pythagorean mathematics, the theory of the elements of the Thales of Miletus, Epicurean materialism, Platonic idealism, Judaism, Islam and modern science are rooted in Egyptian cosmogony and science. Once needs only to meditate Osiris, the redeemer god, who sacrifices himself, dies, and is resurrected to save mankind, a figure essentially identifiable with Christ. (DIOP, 1974, p. 15)

Diop não se limita a explicar o antigo Egito por meio de conjecturas, ele percorre um caminho histórico e conceitual baseado em grandes autores da literatura “clássica” ocidental. Ele lança mão de passagens em que autores como Diodoro da Sicília (Século I a C) e Heródoto (Século V a C) (supostos pais da História e também da Geografia) revelam as riquezas do antigo continente egípcio em sua plenitude, ou seja, por meio da filosofia, das ciências naturais e dos modos de organização social, que conferiram àquela sociedade riquezas incomensuráveis diversas:

Undoubtedly the basic reason for this is that Herodotus, after relating his eyewitness account informing us that the Egyptians were Blacks, demonstrated, with rare honest (for a Greek), that Greece borrowed from Egypt all the elements of her civilization. Moreover, archeological discoveries continually justify Herodotus against his detractors. Thus, Christiane Desroches-Noblecourt writes about recent excavations in Tanis: “Herodotus had seen the outer buildings of these sepulchers and had described them. [This was the Labyrinth discussed above.] Pierre Montet has just proved once again that “The Father of History did not lie”. (DIOP, 1974, p. 4)

Ao demonstrar, com uma gama enorme de dados e citações que comprova que o Egito antigo era constituído por negros, Diop estaria dando outro passo muito importante para compreendermos o fenômeno do racismo, seus motivos e sua arquitetura. E é por meio das inferências histórico-filosóficas que ele tece uma conjectura mais incisiva. Diop (1974) analisa os períodos mais remotos da vida humana no planeta Terra para caracterizar a existência de dois grandes berços da humanidade, de onde, em realidade, o grande berço seria somente um e que daria origem a outro milhões de anos depois.

Na tese defendida por Diop (1974), as condições climáticas indispensáveis à realização da humanidade no planeta Terra encontraram suas origens no continente africano, e devido ao clima quente e incidência de raios solares, esses seres humanos nasceram negros. Somente depois de milhões de anos é que, com as mudanças climáticas do planeta, as populações negras desse continente se deslocaram lentamente para outras partes do planeta se deparando com outros tipos de temperatura, necessitando, desse modo, de mutações fenotípicas indispensáveis à sobrevivência.

Somente após essas grandes migrações os seres humanos, anteriormente negros, desenvolvem traços fenotípicos brancóides: nariz fino, cabelos lisos, maior estatura e tez clara. Todas essas mutações fenotípicas serviam ao propósito único: a manutenção da vida humana em novos ambientes climáticos. Disso decorre a inexorável assertiva de que aqueles que migraram para esses territórios tiveram que se organizar filosoficamente, tiveram que se equipar, tiveram que criar utensílios, em suma, não seriam capazes de manter a espécie humana viva sem que exercitassem a capacidade criativa e de transformação inerente a todo ser humano[6].

A esse berço, que se erige através da variação do fenótipo africano, Diop (1974)  chama de “Berço Setentrional Leucodérmico” e ao primeiro ele adjetiva de “Berço Meridional Melanodérmico”, e entre os dois berços há características de diferenciação que vão para além dos traços fenotípicos, mas que se conjugam numa correlação de condições climáticas e escassez de recursos naturais que logo agem sobre o plano comportamental e emocional, e essa questão é central para uma análise mais aprofundada acerca do desenvolvimento do racismo, inclusive na contemporaneidade.

O que caracteriza cada berço tem um direcionamento bem orientado para questões práticas de acesso aos recursos naturais indispensáveis à vida como primeiro elemento fundamental. A abundância ou a escassez desses recursos é, portanto, quase que determinante para compreender o escopo sociológico que podemos traçar sobre essas diferentes populações. Carlos Moore (2007) lança mão das teorias de Diop (1974) para compilar sua teoria acerca de cada berço. Vejamos:

A esse “berço” [Meridional Melanodérmico] corresponderiam, de maneira geral, características socioculturais forjadas pela vida comunal e por valores ético-morais enraizados na prática da solidariedade, como base social da cooperação social. Segundo ele [Diop], esse berço “é caracterizado pela família de criação matriarcal e a criação do estado territorial, em contraste com a cidade-Estado ariana” (DIOP, 1988 p.177). Essas estruturas de sociedade se basearam, essencialmente, na concentricidade social horizontal, na policonjugalidade, na matricentricidade e na propriedade comum do solo. Elas são regidas por complexas redes de inter-relação social subordinadas ao conceito de dever-obrigação como base de conduta individual e coletiva. (MOORE, 2007, p. 149-150)

Essa é a definição mais corrente do primeiro berço da humanidade. Seguindo Diop, Moore descreve o berço Setentrional Leucodérmico da seguinte maneira:

Nas estepes euro-asiáticas, explicou Diop, a vida esteve constantemente em perigo em virtude dos rigores do clima; o solo gelado impediu a transição para a agricultura e prolongou a dependência na caça; as temperaturas extremamente baixas constrangeram o homem a morar em lugares fechados e a se vestir abundantemente. Esse berço se erigiu, portanto, em torno de estruturas de competição, de hábitos materialistas, da prática de guerra, da conquista, do militarismo, do culto da propriedade privada e da visão xenófoba. Estamos diante de sociedades profundamente patricêntricas, falocráticas e intolerantes a qualquer forma de alteridade; sociedades que menosprezam o input feminino. (MOORE, 2007, p. 151)

Diante dessas informações, podemos inferir que havia preocupações díspares em cada um desses berços, nos conduzindo a mesma conjectura de Diop (1974), que afirma que essas mudanças comportamentais, devido aos rigores climáticos, foram fundamentais para que as sociedades que compõe o berço Setentrional desenvolvessem uma máquina filosófica de guerra que podemos chamar de ordem sistêmica. Daqui para frente usaremos, recorrentemente, a terminologia “ordem sistêmica” e por esse motivo faremos uma breve explicação do que é uma ordem sistêmica e como ela se conjuga com o racismo.

Ordem sistêmica: o que seria? Como surgiria? Pois bem, até aqui, tratamos de assuntos anteriores aos da própria antiguidade da vida na Terra; dividimos a realização da vida no planeta em dois grandes “berços”, um berço que deriva do outro e sofre modificações devido às novas demandas surgidas em consonância com o que a natureza dispunha. Quando afirmamos tal conjectura (baseado em estudos e evidências), afirmamos também que haja relações baseadas na cotidianidade de cada comunidade estabelecida e nos fluxos psicológicos causados pelo vai e vem das migrações, isto é, nos encontros.

Qual teria sido a primeira reação que esses seres humanos tiveram em face da diferença fenotípica radical? Não temos essa resposta, mas trabalhamos as evidências e o que nos dispõe o material de pesquisa para pavimentar um caminho de possibilidades. Daí surge a primeira inferência, a de que a diferença primeira, ou manifesta, a fenotípica, tenha gerado os primeiros juízos de valor a priori, que arregimentaram uma filosofia baseada na padronização estética e moral que criou elementos de inferiorização acerca daquele conceituado como “diferente”. Essa conceituação não era aleatória, ela serviria a um propósito “maior”.

Com a escassez de recursos naturais em seus territórios, as sociedades do grande berço Setentrional buscaram justificativas que unissem os diversos povos componentes desse berço em torno de um ideal comum: a manutenção da vida. A saída seria, portanto, expandir, conquistar novos territórios que os abastecessem daquilo que faltava em suas respectivas terras. Amiúde, seria preciso unidade, e essa unidade só seria arregimentada através da imposição de saberes construídos para descredenciar “o outro” de razão, impingindo animalidade e, por conseguinte, incapacidade de gerir os recursos naturais existentes em seus territórios. Não obstante, não há possibilidade de essencializar essa questão, encaminhando-a para a insuficiência discursiva de que haveria adesão total de populações inteiras que se estabeleceram antinegras.

Dito isto, se torna patente que uma ordem sistêmica se estabelece já na tenra antiguidade da vida na Terra. Essa ordem surge com o intento de expandir e reter territórios, e a finalidade é a manutenção da espécie, arregimentada por um código comum, o fenotípico, o racial, deferindo saberes sobre os outros que se diferem nos elementos supracitados. Essas construções discursivas se baseiam em torno de desqualificações estéticas e morais. Vejamos o que Carlos Moore (2011), se nutrindo de Diop (1974), afirma:

A pergunta a ser feita deveria ser a seguinte: Neste mundo marcado pelo diverso, haveria uma linha divisória que permitiria que as diferentes espécies de animais (incluindo, naturalmente, os seres humanos) se reconhecessem e/ou se diferenciassem discriminadamente entre si? A esse respeito, e referindo-se apenas aos animais humanos, Diop fez observações de grande importância, identificando o fenótipo como o elemento decisivo na trama relacional dos seres humanos. Não obstante, até o momento, as profundas implicações dessa conjectura diopiana parecem ter sido terrivelmente subestimadas. (MOORE, 2011, p. 6, grifos do autor)

Nesse sentido, Moore (2011), através de Diop, evita que haja confusões em relação à capacidade poiética do ser humano, que não só transforma a natureza das coisas, mas a relação entre si, erigindo critérios e categorias de análises para a construção de um mundo possível, provavelmente mais confortável para si e para os seus descendentes. É por isso que não há como negar as obras de Cheikh Anta Diop, sobretudo as obras anteriormente citadas, como divisoras de águas para pensar a questão racial e o racismo para além, ou para ser mais preciso, anterior à modernidade ocidental.

Mas, e como essa ordem sistêmica perduraria até a atualidade? Afirmamos que ela se sofisticou e ganhou novas roupagens, metamorfoseou diversos conhecimentos que provinham do continente africano, isto é, o que o filósofo sul-africano Mogobe Ramose (2010) chama de “epistemicídio”, ou seja, o saque de teorias, conhecimentos, de um lugar para o outro submetendo a invenção de dados, conceitos e epistemes ao corruptor, e não ao indivíduo ou povo detentor de tal conhecimento. Essa foi uma maneira mordaz de subdesenvolvimento do continente africano pelos europeus “conquistadores”[7].

Uma ordem sistêmica sobrevive até o presente momento porque ela cria vícios, se enraíza no ressentimento, cria bases sólidas que beneficia a uns em função da precarização da vida de outros. A ordem sistêmica operada pelo racismo e é a tônica da acumulação de recursos, é a primeira maneira de se erguer impérios, e os sistemas de manutenção de privilégios são essencialmente racistas por se tratar de sistemas que herdaram os vícios deixados como legado de gerações anteriores, desde o surgimento do berço setentrional leucodérmico:

O racismo seria uma ordem sistêmica de grande profundidade histórica e de ampla cobertura geográfica, que se teria desenvolvido, fundamentalmente, com o objetivo de garantir a separação automática de um determinado segmento humano do usufruto de seus próprios recursos. Em sua gênese, apresenta-se como uma forma de consciência grupal historicamente constituída, da qual proviriam depois construções ideológicas baseadas no “fenótipo/raça”. Sua função central, desde o início, seria regular os modos de acesso aos recursos da sociedade de forma racialmente seletiva, de acordo com o referido “fenótipo/raça”.

Ao longo do tempo, e em regiões sem conexão, o sistema raciológico foi criando necessariamente modos adaptativos específicos, ou tipologias, sob a forma de ideologias, que modulam as relações sociorraciais nos diferentes contextos culturais. São essas ideologias sociorraciais que regem e padronizam, hoje em dia, a vida cotidiana entre todos os segmentos fenotípicos envolvidos em uma experiência de coexistência no contexto de uma sociedade multirracial de desiguais. Nesse contexto, as desigualdades sociais desdobram-se em iniquidades raciais, que, por sua vez, reforçam as diferenças. E, em todos os casos, em se tratando da sociedade hierarquicamente racializada, é o fenótipo que regula esse status individual ou coletivo das pessoas. Até hoje, nenhuma sociedade multirracial escapou desse intrincado sistema de lógicas de dominação/subordinação racializado. (MOORE, 2011, p. 14)

Essa foi a maneira mais resumida possível que encontramos para dar o primeiro passo e seguir para as próximas colocações. Evidente que diversas outras questões poderiam ser colocadas e problematizadas, mas por não se tratar de um texto mais extenso, nos reservaremos o direito de limitar essa análise até aqui e retomar alguns traços dessa proposição em outras seções. Desse modo, a intenção é que fique mais bem compreendido que o racismo é uma ordem sistêmica baseada nas questões fenotípicas como justificativas éticas, estéticas e morais para desqualificar os povos negros africanos, a fim de raptar os seus recursos na história. Esse fenômeno é polimorfo e “cameleão”, que incorpora novas facetas de acordo com as necessidades demandadas pelas sociedades que se ocidentalizaram.

3. SOBRE O RESSENTIMENTO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Muito se fala sobre o ressentimento, porém pouco se explica sobre ele, menor ainda é a conjugação ressentimento/racismo. Geralmente, o ressentimento é tratado como algo desconexo de explicações mais detalhadas do que ele venha a ser, instituindo-o como algo estritamente pessoal e como traço fundamental de sujeitos específicos, mas não como algo ligado a uma psicopatologia social que se adquire no jogo cósmico, na dinâmica do modelo de vida instituído desde a colonialidade, que é o que queremos tratar[8].

Segundo Frantz Fanon (1979; 2008), a colonização dinamiza uma nova composição de forças nas sociedades em que se institui, e esse processo desestrutura todo um sistema anterior inaugurando novas cosmogonias, pois não há como conter os fluxos que pulsam neste encontro. O resultado vem em forma de profundas transformações no seio das sociedades violadas que passam a se defrontar em meio a violência do reordenamento forçado de seus hábitos cotidianos e a reestruturação criativa, que traz a necessidade de renovação, conforme será citado mais adiante usando Sartre (2013) e o próprio Fanon. Antes, vejamos o que Fanon tem a nos dizer sobre esse fato:

O malgaxe não existe mais. O malgaxe existe com o europeu. O branco, chegando a Madagascar, tumultuou os horizontes e os mecanismos psicológicos. Todo mundo já o disse, para o negro a alteridade não é o outro negro, é o branco. Uma ilha como Madagascar, invadida de um dia para o outro pelos “pioneiros da civilização”, mesmo que esses pioneiros tenham se comportado da melhor maneira possível, sofreu uma desestruturação. (FANON, 2008, p. 93)

Essa interessantíssima passagem do psiquiatra martinicano nos permite tomar de empréstimo outro conceito importante, o de “Corpo Sem Órgãos”, dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010), pois nele existe a possibilidade de compreensão das incontingências do esquizo daqueles que se firmam na incapturabilidade das máquinas despóticas que se materializam no plano de imanência das colônias, e também nas metrópoles, mas só após o contato entre colonizadores e nativos[9]. Decerto que os filósofos franceses não tratam diretamente desse assunto, como é o caso do psiquiatra martinicano, mas esse “bate-bola” é possível porque ambos estão pensando os fluxos incontidos, mas que estão encobertos por possibilidades diversas que só o devir poderá nos informar, sem certezas eternas.

A dinâmica de monetarização da vida e de encaminhamento para novos hábitos, prescrevendo aquilo que chamamos de ethos, foi impingida pela colonização, e para sermos mais direto, precarizou a vida dos nativos das colônias e os obrigou a se organizarem de outras maneiras, criando linhas de fuga diante da voracidade inscrita na temporalidade esvoaçante que a modernização dos meios de produção dita. Decorrem daí, as máquinas despóticas que se materializam no sócius, ou seja, a ordem sistêmica cria máquinas edipianas, que estão aqui e acolá sem serem tangenciados, sem serem vistos, sem serem palpáveis. A edipianização da vida é um fenômeno que não aparece, ele somente afeta, e cria valoração das coisas, ele adoece, ele encarna, criando uma nova modalidade de esquizofrenia.

Quando Frantz Fanon afirma sobre a reorganização da vida nas colônias diante dos fluxos incontidos na dinâmica dos encontros, ele está nos alertando sobre os deslizes e os condicionamentos, sobre os quais Deleuze e Guattari afirmam do aprisionamento do que eles chamam de “máquinas desejantes”. Somos “puro desejo”, somos os acoplamentos desejantes, ou seja, o nosso desejo nos move, deles podem decorrer as necessidades, que são os desejos organizados. Antes de qualquer coisa somos desejos, a necessidade vem depois. É por isso que podemos dizer que a intensificação dos meios de produção, ensejados pelo Ocidente, produziu um novo tipo de esquizo, não mais aquele esquizo que está aqui e acolá, um “corpo sem órgãos”, um esquizo sem a necessidade de se organizar em torno de um ideal, e sim um esquizo adoentado pela organização estabelecida pelos dispositivos que o esmaga, tutelado pela ordem sistêmica que os inventa: “[a] esquizofrenia é o produto da máquina capitalista, como a mania depressiva e a paranoia são produtos da máquina despótica, ou como a histeria é o produto da máquina territorial” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 52).

Desse modo, a organização dos desejos, esses enquadramentos, criam necessidades fugazes, que se reinventam numa dinâmica avassaladora dos fluxos causados pelas máquinas despóticas, e isso causa adoecimentos, nos quais podemos enquadrar, dentre eles, o ressentimento. Frantz Fanon não trata sobre o ressentimento de maneira stricto sensu na mesma ordem de autores como Nietzsche, mas atravessa sua obra toda a arquitetura da causação do racismo na estrutura psicológica, que faz ressentir. Há nessa faceta uma estrutura sexualizante, na qual a projeção dos desejos recalcados do branco se transfigura na idealização do negro hiperssexualizado:

Qualquer aquisição intelectual exige uma perda de potência sexual. O branco civilizado conserva a nostalgia irracional de épocas extraordinárias de permissividade sexual, cenas orgiásticas, estupros não sancionados, incestos não reprimidos. Essas fantasias, em certo sentido, respondem ao conceito de instinto vital de Freud. Projetando suas intenções no preto, o branco se comporta “como se” o preto as tivesse realmente. O preto é fixado no genital, ou pelo menos aí foi fixado. Dois domínios: o intelectual e o sexual. O pensador de Rodin em ereção, eis uma imagem que chocaria. Não se pode, decentemente, “bancar o durão” toda hora. O preto representa o perigo biológico. (FANON, 2008, p. 143)

O que podemos conjecturar a partir daí? O branco que projeta no negro um ressentimento sexual pela sua suposta prostração sexual, viabilizado pela apressada visualização de um vigor físico instigante e pela capacidade de compor numerosas famílias, pelo estereótipo do culto a liberdade. Esses imaginários ficam contidos no subconsciente do branco até que se tenha contato com algum negro e a partir do contato esse subconsciente ativo se sobrepõe à faculdade do esquecimento e de maneira imediata sexualiza o negro em torno do estereótipo de máquina sexual ativa, que possui genitália anômala ou animalesca, um perigo para a conservação da moral ocidental, construída sobre as bases judaico-cristãs.

O ressentimento não pode ser enquadrado somente no plano da sexualização, mas é algo materializado em condições topológicas, isto é, ele é caucionado em partes específicas do ser humano. A consciência é consciência de alguma coisa, que faz com que as forças reativas anulem as forças ativas, as impedindo de ação; a ação é paralisada e resguardada, decorrente da subida de traços mnêmicos que não ativa o esquecimento, e é disso que emerge a má consciência. Segundo Deleuze:

O primeiro aspecto do ressentimento é, portanto, topológico. Existe uma topologia das forças reativas: é a sua mudança de lugar, seu deslocamento, que constitui o ressentimento. O que caracteriza o homem do ressentimento é a invasão da consciência pelos traços mnêmicos, a subida da memória para a própria consciência (…). O homem do ressentimento é um cão, uma espécie de cão que só reage aos traços (limiar). Ele só investe traços: como a excitação para ele se confunde localmente para ele como traço, não pode mais acionar sua reação. Mas essa definição topológica deve introduzir-nos a uma “tipologia” do ressentimento, pois quando as forças reativas preponderam sobre as forças ativas por esse desvio, elas próprias formam um tipo (…). Um tipo é, na verdade, uma realidade ao mesmo tempo biológica, psíquica, histórica, social e política. (DELEUZE, 1976, p. 95)

Então, esquadrinhamos os primeiros passos para encaminhar a assertiva de que o ressentimento é o investimento de traços, e já que o homem do ressentimento se investe em traços, Frantz Fanon (2008) identificou no branco o ressentimento localizado nos traços sexuais, pois a memória que invade o consciente e lá se fixa, é a memória de uma projeção estereotipada e generalista, que traz à tona o pavor, a repulsa à primeira vista, mas que também hiperssexualiza e faz emergir a curiosidade turística, o anseio de possessão momentânea sobre o corpo alheio, repleto de saberes que não são saberes, a não ser que sejam desvendados pela vivência prática.

Acontece que nem sempre é possível desvendar esses mistérios, nem de maneira turística, há um medo entranhado nessa projeção, e esse medo, de certo modo, está aprisionado ao que se estabelecia como traço negativo da eugenia[10], que é quando as outras gerações de uma relação inter-racial produzem um ser humano que herdou em maior grau os traços fenotípicos negróides. Esse medo está mais relacionado às possibilidades de constituir família, muito embora grande parte dos homens brancos que engravidam mulheres negras não crie seus filhos. Para as relações turísticas é o gozo que importa, mas o medo traz prescrições, são as prescrições que habitam a consciência como fruto das forças reativas presentes. Conforme Fanon:

O negro tem uma potência sexual alucinante. É este o termo: é preciso que essa potência seja alucinante. Os pesquisadores especialistas logo encontram os mecanismos de qualquer neurose. A intranquilidade sexual predomina. Todas as mulheres negrófobas que conhecemos tinham uma vida sexual anormal. Seus maridos as negligenciavam; eram viúvas e não ousavam substituir o falecido; divorciadas, hesitavam diante de um novo investimento objetal. Todas atribuíram ao preto poderes que os outros (maridos, amantes episódicos) não possuíam. E depois, intervém um elemento de perversidade, persistência da estrutura infantil: Sabe lá Deus como elas fazem amor! Deve ser horrível! (FANON, 2008, p. 138-139)

É possível dizer que os fluxos dos encontros inauguram uma nova cosmogonia que se dinamiza cada vez que há sofisticação nos modos de se relacionar com as novas tecnologias e linguagens, criando uma atmosfera sempre permeada pelo ressentimento, arregimentado pelo racismo, que é a base do ordenamento sistêmico que concede privilégios aos brancos em relação aos negros. Esse ressentimento se materializa através da vingança, já que a força de ação é contida pelo medo do perigo imediato, causado pela crença incondicional dos apriorismos projetados sobre o negro.

E ao negro, o que lhe resta fazer? O negro também adoece nesse processo, mas o seu adoecimento traz o investimento a si próprio ou ao seu grupo racial, jamais um ressentimento que encaminhe um sentimento de ação contra o branco, ademais, não sendo dono dos meios de produção e não ocupando cargos decisivos na dinâmica da organização social, não teria ele força para deflagrar uma ação substancialmente nociva para o branco. Ao negro ressentido, resta querer se tornar branco, como bem observa o sociólogo Guerreiro Ramos:

O processo de europeização do mundo tem abalado os alicerces das culturas que alcança. A superioridade prática e material da cultura ocidental face às culturas não promove, nestas últimas, manifestações patológicas. Existe uma patologia cultural que consiste, precisamente, sobretudo no campo da estética social, na adoção pelos indivíduos de determinada sociedade, de padrão estético exógeno, não induzido diretamente da circunstância natural e historicamente vivida. É, por exemplo, este fenômeno patológico o responsável pela ambivalência de certos nativos na avaliação estética. O desejo de ser branco afeta, fortemente, os nativos governados por europeus. Entre negros, R. R. Morton registrou o emprego do termo “branco” como designativo de excelência e o hábito de dizer-se de um homem bom que tem um coração “branco”. Este “desvio existencial” tem sido observado tecnicamente nos Estados Unidos, no Brasil e em toda parte em que populações negras estão sendo europeizadas. O negro europeizado, via de regra, detesta mesmo referências à sua condição racial. Ele tende a negar-se como negro, e um psicanalista descobriu nos sonhos de negros brasileiros forte tendência para mudar de pele. (RAMOS, 1957, p. 152-153)

Nesse sentido, se evidencia tudo aquilo que está sendo tratado nesse texto. O processo de europeização do mundo não foi uma investida aleatória e nem sequer pacífica. A partir dela as populações mudaram seus rumos, se encaminharam para um novo devir, criaram deslocamentos e sentidos estranhos aos que já se estabelecia no curso da vida cotidiana. É desses fluxos incontidos, dessa nova cosmogonia, que fala Fanon (1979), através da ideia de “homem novo”, trazida no livro “Os Condenados da Terra”, pois nele o autor problematiza, justamente, o que é preciso ser feito para emergir um homem despido das patologias do recalque das forças reativas. Mas, o que é necessário fazer para expurgar essas forças reativas da consciência e fazer emergir um novo homem? Essa é a tarefa proposta pelo psiquiatra martinicano.

É sumamente importante que se fique enegrecido[11], que esse homem novo, de que fala Fanon, não é o homem da superação, não é o homem que abandona sua história a fim de superá-la, como se todo o seu passado não mais valesse de nada. O homem novo de Fanon não é o homem do porvir, muito menos um homem sem memória, mas não é, de modo algum, o homem do ressentimento, não é aquele que ressente e não age, ou age movido pelo ressentimento, por má consciência, o homem novo de Fanon é o corpo sem órgãos.

O homem novo de Fanon cuida de si, não se entrega ao senso comum, mas não deixa de ouvir o lógus. O homem novo de Fanon processa no espírito aquilo que ele apreende na polifonia de vozes que o afeta, no entanto, não se entrega à primeira que lhe parece ser a mais conveniente, idealizando o mundo através de traços que se sobrepõem às questões fundamentais para o bem viver, colocando como linha de frente uma realidade fantasmagórica da qual não se tem noção das possibilidades de se mover no plano.

Essa concepção do homem novo de Fanon se coaduna com a questão do “cuidado de si” introduzida por Foucault (2011), mas que já estava presente na filosofia de matriz africana desde o Egito antigo ou da Etiópia, na vida comunal e na formação para a comunidade, e isso está acessível na bibliografia de História Geral da África organizada pela UNESCO, sobretudo no livro síntese que trata da África pré-colonial. No entanto, é do exemplo dado por Foucault que vamos nos nutrir no momento para ajudar a encaminhar a compreensão.

A vontade do stultus é uma vontade que não é livre. É uma vontade que não é absoluta. É uma vontade que não quer sempre. E o que significa querer livremente? Significa que se quer sem que aquilo que se quer tenha sido determinado por tal ou qual acontecimento, por tal ou qual representação, por tal ou qual inclinação. Querer livremente é querer sem nenhuma determinação, enquanto o stultus é determinado, ao mesmo tempo, pelo que vem do exterior e pelo que vem do interior. Em segundo lugar, querer como convém é querer absolutamente. Isso significa que o stultus quer várias coisas ao mesmo tempo, coisas divergentes sem serem contraditórias. Ele não quer só uma e absolutamente só uma. O stultus quer algo e ao mesmo tempo o lastima. É assim que ele quer a glória e, ao mesmo tempo, lastima por não levar uma vida tranquila, prazerosa e etc. Em terceiro lugar, o stultus é aquele que quer, mas quer com inércia, quer com preguiça, sua vontade se interrompe sem parar, muda de objetivo. Ele não quer sempre. Querer livremente, querer absolutamente, querer sempre: é isso o que caracteriza o estado de oposto à stultitia. Já a stultitia é essa vontade de algum modo limitada, relativa, fragmentária e cambiante. (FOUCAULT, 2011, p. 119-120)[12]

Diante dessa assertiva é possível dizer que o negro que cuida de si faz o movimento de expurgo das forças reativas, ele não ressente, não tem o branco como superior e nem inferior, mas tão somente como outro homem no qual o devir informará sobre suas virtudes e fraquezas, sabe que sua conduta é fruto da moralidade da sociedade na qual se encontra inscrito, e que não é uma conduta eterna por estar atravessada pela torrente de informações e afetos que pairam no cosmo, por isso, o homem novo não se faz valer do ressentimento, toma as melhores atitudes cabíveis e segue em frente. O homem novo, negro, que cuida de si, não está preocupado em dar sentido a tudo, ele conjectura, ele é analítico na medida certa, sem deixar que suas conjecturas habitem permanentemente a sua consciência como uma memória engessada, que impede que haja ação positiva, por isso não é um ressentido.

Existem duas maneiras de trazer à tona novas concepções, novas linguagens, novos códigos. O poder de transformação do homem não é algo congelado na preexistência; se está em suspenso em outro universo, ou se constitui uma ontologia metafísica, não há como seguramente saber, mas diversos autores se debruçaram sobre esse aspecto para inferir, analiticamente, as possibilidades existenciais de fazer emergir o novo. Desse modo, chegamos em Sartre (2013), pois é um autor bem dedicado às explicações minuciosas sobre a realização existencial do ser. Em sua fenomenologia, Sartre abre espaço para a compreensão de como emerge um não existencial, isto é, como se produz algo novo, e para isso ele adverte que é preciso compreender o nada. É daí que decorrem as duas maneiras na quais iniciamos o parágrafo, e são elas: o ressentimento e o devir negro.

Na obra de Sartre, “O Ser e o Nada”, o autor faz uma exaustiva análise que caminha pelo percurso dos não existenciais. Como conhecer aquilo que não existe? O que é o nada? Sartre, ao esmiuçar com exaustão os caminhos sombrios do nada, chega à conclusão de que o homem não precisa se preocupar com uma origem ontológica do nada, isto é, o existencialismo abandonaria a questão ontológica de origem do ser baseado nas concepções topológicas da metafísica platônica. Com isso, o homem não poderia surgir primeiro que o mundo nem o mundo primeiro que o homem, uma vez que pressupondo anterioridades, as provas do mundo externo ficam sujeitas às questões céticas e se chegaria às concepções cartesianas de mundo.

Evitamos prolongar muito essa discussão nesse artigo, mas reconhecemos a sua importância. Pois bem, o que nos interessa nesse debate é a explicação que Sartre defere para o nada, para a criação, pois para ele o nada é tornado existencial pelo próprio homem na medida em que ele cria, logo, ele nadifica, o homem traz à existência os não existenciais.[13] É uma conjugação de traços que se interconectam e torna possível que algo novo surja, mesmo em meio à angústia e ao sofrimento, algo jamais visto pode surgir na infinita expansão criativa do homem novo. Isto nada tem a ver com superação, com aperfeiçoamento de algum existencial. Isso é sumamente importante para pensarmos que o homem que não se ressentiu povoou o mundo de coisas plenamente belas, ou seja, a riqueza da cultura negra é a intensidade da força nadificadora que essa raça tem, na medida em que dão vazão às forças ativas, sem que elas se empedrem na consciência:

A partir do momento em que renunciamos à hipótese dos conteúdos de consciência, devemos admitir que não existe motivo na consciência: existe sim, para a consciência. E, pelo fato de só poder surgir como aparição, o motivo constitui a si como ineficaz. Sem dúvida, não tem a exterioridade da coisa espaço temporal: pertence sempre à subjetividade e é apreendido como meu, mas, por natureza, é transcendência na imanência, e a consciência lhe escapa pelo fato mesmo de designá-lo, pois cabe à consciência, neste momento, conferir-lhe sua significação e importância. Assim, o nada que separa motivo e consciência se caracteriza como transcendência na imanência; ao produzir-se a si como imanência, a consciência nadifica o nada que faz existir para si como transcendência. Mas esse nada, condição de toda negação transcendente, só pode ser elucidado a partir de duas outras nadificações primordiais: 1º) a consciência não é seu próprio motivo, sendo vazia de todo conteúdo, o que nos remete a uma estrutura nadificadora do cogito pré-reflexivo; 2º) a consciência está frente a seu passado e futuro tal como frente a um si-mesmo que ela é à maneira de não sê-lo, e isso nos leva a uma estrutura nadificadora da temporalidade. (SARTRE, 2013, p. 78)

Portanto, essa seção teve o objetivo de demonstrar brevemente algumas características do ressentimento e como se encontram as linhas de fuga para não adoecer diante das máquinas capitalistas surgidas no advento da colonização. Apresentamos primeiramente o ressentimento como um modo peculiar do processo colonial, na organização dos desejos, na “materialização” dos corpos sem órgãos que se dinamizam no sócius. Desse modo, a asserção feita é a de que, de modo geral, o negro tem sido um grande driblador de todo ressentimento projetado sobre ele, conseguindo nadificar novos conhecimentos nas mais variadas áreas da ciência, da cultura e do pensamento, e o maior exemplo disso está na afirmação de que a cultura negra está em todos os meios sociais, mesmo não sendo a cultura dominante, isto é, há África na culinária, no esporte, na saúde, na agricultura, nos diversos cultos religiosos, na linguagem, na metafísica, na lógica, na sociologia etc., por outro lado, o homem do ressentimento não cria nada, ele é um inimigo da vida, é um inimigo de si mesmo.

4. O NEGRO E A ACADEMIA        

Até aqui apresentamos argumentos sólidos para pensarmos a construção das sociedades modernas e contemporâneas sob as bases do racismo e do ressentimento. Os fluxos trazidos pela colonização prescreveram uma nova dinâmica baseada no valor, dele decorreram diversos modos de adoecimentos, uma atmosfera de violência e competição. E foi através da criação de normas jurídicas e da massificação de saberes por eles produzidos que se erigiram as instituições e o estado, todos à base da vingança, do assassinato físico e a da imposição moral.

Michel Foucault (2010), em seu conjunto de aulas no curso de filosofia no Collège de France, entre os anos de 1975 e 1976, que resultou no livro “Em Defesa da Sociedade”, faz um apanhado geral bem interessante sobre a fundação dos estados modernos europeus. Ele se debruça sobre alguns estados europeus, caso de França, Alemanha e Inglaterra, para demonstrar a violência da criação dos estados nacionais, que dependem essencialmente de sanções que organizem as normas da legalidade, nas quais os indivíduos devem se amparar para que possam obter cidadania plena.

Seguindo por essa via, Foucault deixa nítido que os projetos de estado-nação dos países europeus, mesmo que ele não tenha se debruçado sobre todos eles, foram projetos de ordens sistêmicas de imposição de saberes de povos sobre os outros, e ele se utiliza, sobretudo, do exemplo dos francos sobre os gauleses para demonstrar que houve, antes de qualquer coisa, a motivação étnica como pano de fundo para que se empreendesse o controle sobre as riquezas dos territórios que se queriam unificar e tornar uma nação.

A partir do momento em que a guerra do front de batalha é vencida, as instituições são criadas para arraigar o poder do “mais forte”, e isso é feito através do que Foucault chama de sujeição de saberes. Desse modo, as instituições são as responsáveis pela manutenção de uma guerra ininterrupta, maquiada por discursos democráticos de sedição temporária e intensa vigília dos anseios daqueles que estão submetidos aos mandatários de quem detém o controle dos dispositivos legais. A universidade, então, sendo uma instituição, serve a esse propósito, uma vez que é o espaço privilegiado para a construção do conhecimento:

O poder se exerce, nas sociedades modernas, através do e no próprio jogo dessa heterogeneidade entre um direito público da soberania e uma mecânica polimorfa da disciplina. Isto não quer dizer que vocês têm, de um lado, um sistema de direito tagarela e explícito, que seria o da soberania, e depois disciplinas obscuras e mudas que trabalhariam na profundidade, na sombra, e que constituiriam o subsolo silencioso da grande mecânica do poder. De fato, as disciplinas têm seu discurso próprio. Elas mesmas são, pelas razões que eu lhes dizia agora há pouco, criadoras de aparelhos de saber, de saberes de campos múltiplos de conhecimento. Elas são extraordinariamente inventivas na ordem desses aparelhos de formar saber e conhecimentos, e são portadoras de um discurso que não pode ser o discurso do direito, o discurso jurídico. O discurso da disciplina é alheio ao da lei; é alheio ao da regra com efeito de vontade soberana. Portanto, as disciplinas vão trazer um discurso que será o da regra; não o da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra natural, isto é, o da norma. Eles definirão um código que será aquele, não da lei, mas da normalização, e elas se referirão necessariamente a um horizonte teórico que não será o edifício do direito, mas o campo das ciências humanas. E sua jurisprudência, para essas disciplinas, será de um saber clínico. (FOUCAULT, 2010, p. 33).

Essa citação demonstra com maestria o que estamos tratando. O jogo dissimulador do modelo de academia que se estabelece no Ocidente se instaura no mundo colonial e trabalha sobre os mesmos princípios direcionadores de prescrição de saberes através da disciplinarização, ou da massificação de saberes produzidos para dialogar no fluxo da sociedade. A universidade é uma máquina despótica. Ao analisar mais atentamente chegaremos ao ponto chave do ressentimento, que é a vingança. Há vingança quando se busca neutralizar um saber com o medo de perder privilégio a partir da emersão de saberes com potências transformadoras, que marcam o lugar de seus produtores lhes conferindo força, e o sistema jurídico ocidental é justamente uma maneira de fazer com que os sujeitos marginalizados desacreditem da sua força e não contrariem um ordenamento que os disciplinaria.

O meio acadêmico, desse modo, é o lugar do ressentimento, pois nesse lugar é feita a seleção da castração e do triunfo, é de lá que sai o alimento para um mercado editorial que não traduz aquilo que cria tensões ao ethos estabelecido; é de lá que saem os consultores para os veículos de informação, a famosa imprensa; da academia derivam diversos saberes que coadunam e, sobretudo, buscam neutralizar, desconfigurar e desqualificar os saberes construídos no cerne das comunidades tradicionais e nos guetos emergentes da dinâmica de marginalização brutal dos excluídos das “benesses” geradas pelo capital, e a maioria desses marginalizados é composta esmagadoramente de negros.

No entanto, uma parcela desses marginalizados negros, que os sistemas de poder tentam fixar no lugar da subalternidade e da obediência, também demanda pela academia, é quando a ordem sistêmica precisa se reinventar. Durante um longo período da nossa história os movimentos negros lutaram para que a população negra ingressasse com maior contingente nas universidades, acreditando que lá estariam os saberes formais que os “empoderariam”, possibilitando maiores chances de equanimidade social (MUNANGA, 2004). No entanto, não foi o que os negros que conseguiram adentrar o espaço acadêmico experimentaram, pois, conforme a sujeição de saberes, foram disciplinados a toda sorte por saberes monolíticos, europeizados, sem nenhum afeto com sua história e a comunidade da qual fazem parte.

Esse fato acaba por formatar negros ressentidos, embebidos pelo auto ódio, pela negação de sua própria comunidade. Geralmente, o desejo de embranquecer surge do fato de que esses negros anseiam fazer parte dos grupos seletos formados nesses espaços, grupos esses que controlam os mercados editoriais, criam revistas eletrônicas e suas respectivas qualificações para projeção nos planos de carreira, criam os congressos de áreas de conhecimento aprovando ou reprovando trabalhos ao seu bel-prazer. São esses grupos que orientam da graduação à pós-graduação nos níveis de mestrado e doutorado, reservando espaço para a manutenção do seu legado através das próximas gerações de profissionais que eles escolhem formar, e, por isso, também controlam as bancas de concursos para professores, maneira eficaz de não perder o controle de quem pode entrar. E o negro diante disso?[14]

Frantz Fanon (1979) afirmava que o único movimento possível para o descredenciamento de teorias estranhas à comunidade negra, conhecimentos que adoecem e submetem o negro aos mandatários coloniais brancos devem ser estimulados através da ressignificação do olhar e da imagem de si, do próprio negro. Vejamos o que ele dizia:

Em seu monólogo narcisista, a burguesia colonialista, por intermédio de seus universitários, havia de fato inculcado profundamente no espírito do colonizado que as essências permanecem eternas a despeito de todos os erros atribuíveis ao homem. As essências ocidentais, bem entendido. O colonizado aceitava o fundamento dessas ideias, e era possível descobrir uma dobra do seu cérebro, uma sentinela vigilante encarregada de defender o alicerce greco-latino. Ora, acontece que, durante a luta de libertação, no momento em que o colonizado retoma o contato com o seu povo, essa sentinela factícia é pulverizada. Todos os valores mediterrâneos, triunfo da pessoa humana, da clareza do belo, convertem-se em quinquilharias sem vida e sem cor. Todos esses discursos aparecem em agregadores de palavras mortas. Esses valores que parecem enobrecer a alma revelam-se inúteis porque não se referem ao combate concreto no qual o povo está engajado (FANON, 1961, p. 35)

Nesse sentido, Fanon (1961) nos encaminha para a direção inversa ao ressentimento, preconizando para que os saberes eternos que são sujeitados aos negros dentro do espaço acadêmico se tornem desconstruções e se reestabeleça a “inocência do devir”. Contudo, não é fácil se despir das seduções que organizam os desejos criando necessidades materiais que se estabelecem como fetiche, quase que indispensável para a própria sobrevivência. E é assim que muitos negros se entregam aos sistemas brancos, se tornando serviçais nos espaços acadêmicos. Se não fosse assim, teríamos mais negros publicando em revistas acadêmicas com qualis CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) de alto prestígio (A1 a B2), teríamos mais docentes negros no ensino superior – sobretudo nos programas de mestrado e doutorado -, teríamos mais teóricos negros financiados para lançar livros ou com obras traduzidas quando estrangeiros, maior número de linhas de pesquisas sobre a temática racial, mais disciplinas obrigatórias com essa temática em todos os níveis da academia, o que forçaria mais concursos, enfim, uma gama de possibilidades se abriria se a universidade não fosse um projeto engessado de manutenção de poder[15].

Os números não mentem, a população negra compõe a minoria das pessoas matriculadas nas universidades, e mesmo com o sistema de cotas, menor ainda é o número de negros nos programas de pós-graduação[16]. Isso é reflexo de milênios de expropriação e apropriação da cultura negra pela ordem sistêmica branca, que ressentiu alguns negros, mas os lisonjeando, prometendo cargos e os tornando inimigos de seu próprio povo. Mas o traço fundamental dessa dinâmica se estabelece através do ressentimento do homem branco para com o negro, essas ações são a maquinação da vingança, a partir da contenção das forças reativas, que teme a potência criativa do negro e projeta seus medos na sua própria prostração sexual em virtude de uma sexualidade desconhecida, obscura. Segundo Deleuze:

Não devemos nos deixar enganar pela expressão “espírito de vingança”. Espírito não faz da vingança uma intenção, um fim não realizado, mas, ao contrário, dá a vingança um meio. Não compreendemos o ressentimento enquanto nele vemos apenas um desejo de vingança, um desejo de se revoltar e de triunfar. O ressentimento, em seu princípio topológico, acarreta um estado de forças real, o estado das forças reativas que não se deixam mais acionar, que se furtam à ação das forças ativas. Ele dá à vingança um meio: meio de inverter a relação normal das forças ativas e reativas. Por isso, o próprio ressentimento é já uma revolta e o triunfo dessa revolta. O ressentimento é o triunfo do fraco enquanto fraco (…) (DELEUZE, 1976, p. 97)

Várias são as justificativas castradoras em relação ao negro que ameaça o lugar de privilégio dos brancos, ou de outros negros que se sentem inseridos no sistema. Muitos, contrários ao sistema de cotas raciais, chegam a dizer que esse sistema não deveria existir pelo fato de que as mazelas sociais do Brasil seriam responsáveis pelo baixo número de pobres nas universidades, por isso o problema seria social, mas ao afirmarem isso, esses grupos, estariam isolando o racismo como um problema alienígena à sociedade, ou seja, como se o racismo não fosse um problema social, imprudência e estratégia ardil de tentar desmobilizar o debate e desarticular movimentos negros desatentos ou ainda prematuros[17].

Outro caso recorrente é a dificuldade com que os grupos de pesquisas de mestrados e doutorados possuem em lidar com militantes dos movimentos negros. Geralmente, quem milita no movimento negro é estereotipado como sujeito da emoção ou da prática, desorientado de formação acadêmica necessária para compreender as conjecturas que estariam por trás de toda ação perpetrada. Além disso, com muita frequência, os militantes dos movimentos negros que adentram a academia são taxados como essencialistas e a eles são apresentadas teorias que tentam a toda sorte lhes despir daquilo que adjetivaram de “binarismo”, como estratégia de legitimar o lugar do branco, enquanto autorizado a falar sobre e pelos negros. No entanto, “[o]s grupos marginalizados raramente precisam introduzir essa oposição binária na sala de aula, pois em geral ela já está em operação” (HOOKS, 2013, p. 113)[18].

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Haveria muito mais coisas a serem colocadas, mas – novamente – esse texto não é, e nem pretende ser, a palavra final sobre essa temática, por isso encurtamos ao máximo o seu tamanho, sendo o mais didático possível para que esses complexos conceitos não se esvaecessem nas amarras da livre interpretação, uma vez que servem para dissimular o sentido primeiro ao qual nos posicionamos, e esse inclusive tem sido um grande entrave na compreensão de muitos textos estrangeiros, sobretudo quando são traduzidos por tradutores que fazem carreira acadêmica editando essas obras, pois a seleção dos conteúdos escamoteia o que pode ser perigoso para a ampla compreensão.

O nosso objetivo central foi responder à seguinte pergunta: É possível empreender um olhar sobre as relações de poder estabelecidas no ambiente acadêmico a partir de um investimento teórico, sem que se tenha a necessidade de imersão no campo de pesquisa entrevistando e acompanhando o cotidiano de professores negros? Por se tratar de uma tarefa complexa, seguimos os referenciais teóricos trazidos escolhidos, para que o leitor se situe nos conceitos de racismo e de ressentimento, e reflita a partir dos casos concretos que presenciam em seus cotidianos.

Entretanto, podemos afirmar que, ainda existe racismo na sociedade brasileira e a academia não está desconectada dos acontecimentos sociais, nem isenta de análises teóricas que embasam as suas próprias dinâmicas, o ressentimento e o racismo pairam naquele ambiente e gera grande dificuldade de aceitação de professores negros no topo da carreira acadêmica, conforme o exemplo do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos. Nesse sentido, os intelectuais negros que atuam ou tem a pretensão de atuar no espaço acadêmico, não estariam inscritos em uma dimensão de isonomia, já que as relações de poder que estruturam a sociedade se deram historicamente pela via do racismo e do ressentimento.

Portanto, esse é um texto que traz possibilidades importantes para pensarmos a inserção do negro na universidade brasileira e o percurso histórico que pesa sobre suas costas. O subjugo milenar do negro ainda se faz presente diante da mesma arquitetura, só adquire novos mobiliários e adornos que tornam menos agressivos os insultos e humilhações, mas que na prática causam efeitos tenebrosos, que vão desde o adoecimento mental através da transmissão do ressentimento, até a morte física, quando o ressentimento atinge a sua trama máxima. Os ressentidos acadêmicos brasileiros são, de uma vez por todas, aqueles que triunfam sobre os seus iguais, ou sobre si mesmo, uma vez que tentam aprisionar a beleza da potência criadora do ser negro, que (re)existe e segue, por isso seguimos.

REFERÊNCIAS

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______. A Humanidade Contra Si Mesma Para Uma Nova Interpretação Epistemológica do Racismo e de seu Papel Estruturante na História e no Mundo Contemporâneo. In: II Fórum Internacional Afro-colombiano. Bogotá, 18 de maio de 2011. Anais: 1-17.

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APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

4. Temos alguns exemplos clássicos na figura de: Renato Kehl (1889-1974); Gilberto Freyre (1900-1987); Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), dentre tantos outros.

5. Alguns exemplos podem ser citados: Milton Santos, Muniz Sodré, Abdias do Nascimento, Marcelo Paixão e, recentemente, tantos outros, talvez de menor projeção, mas de igual importância.

6. Cabe salientar que se negarmos o fato de que esses seres humanos, negros, que surgiram primeiro no continente africano, eram capazes de transformar o ambiente e desenvolver tecnologias indispensáveis à sobrevivência humana, está-se negando poiesis a esses humanos, ou seja, estaríamos comparando-os aos animais da natureza, incapazes de criar e transformar radicalmente o seu meio em benefício próprio, não detentores daquilo que se chama liberdade.

7. Essa asserção impõe o questionamento acerca da legitimidade das escolas filosóficas da Grécia antiga, no entanto, como não é o objeto específico desse trabalho adentrar mais firmemente nesse tema, relegaremos a outra ocasião a feitura de um trabalho minucioso sobre isso, mas de antemão adiantamos que é ridículo o fato de ter ainda que se tentar sustentar sobre o milagre grego, ou seja, que a filosofia nasceu na Grécia. Há diversos trabalhos que trazem passagens racistas e de alusões à superioridade das sociedades africanas frente aos sistemas filosóficos gregos, que, como em citação do Diop, tiveram seus expoentes máximos como aprendizes em escolas e universidades egípcias.

8. Importante registrar que colonialismo representa um sistema e colonialidade pensamento, e que o pensamento está dentro do sistema colonialista, mas de acordo com as respectivas territorialidades onde pretende se estabelecer, não havendo, portanto, linearidade nos usos e sentidos criados.

9. Fanon tece críticas à universalização dos conceitos de doenças psíquicas sempre encaminhando para a assertiva de que esses problemas não faziam parte do componente psíquico das populações nativas: “Por que fazer do complexo de inferioridade algo preexistente à colonização? Reconhecemos nisso o mecanismo de explicação que, em psiquiatria, dá no seguinte: existem formas latentes de psicose que se tornam evidentes após um traumatismo. E em cirurgia: o aparecimento de varizes em um indivíduo não se origina de sua obrigação de ficar dez horas em pé, mas de uma fragilidade de constituição da parede venosa; o modo de trabalho não é senão uma condição favorecedora, e o super-expert solicitado decreta que a responsabilidade do empregador é muito limitada”. (FANON, 2008, p. 85)

10. Eugenia é um termo criado em 1883 por Francis Galton (1822-1911) e significa “bem nascido”. A eugenia serviu como apanágio para experimentos e para ideologias de melhoramento da raça humana. Uma das perspectivas de pensar eugenia é a de que como não coube mais, a partir do século XIX, negar humanidade ao negro, seria preciso melhorá-lo com sangue branco, e, desse modo, a eugenia serviria para a mestiçagem como maneira de buscar apagar os traços negróides e produzir um ser humano melhorado, mestiço com os traços brancos, seria a eugenia positiva. A eugenia negativa é o inverso disso, ou seja, quando os traços negros permaneceriam, segundo essa perspectiva, degenerando a raça branca.

11. Importa situar ao leitor que o termo enegrecido é utilizado como medida contra hegemônica para asseverar que o juízo de valor do que é trazido ao entendimento tenha que ser claro, invés de nítido. Enegrecer, não pode carregar mais o estigma de algo ruim, a negatividade de um conceito que detona tornar negro, ao passo que esclarecer significa tornar claro e não lhe é imputado juízo de valor negativo.

12. Stultitia é o análogo a senso comum, esse termo é utilizado àqueles que não cuidam suficientemente do espírito, estando aberto a todos os ventos, são empurrados a afiliações equivocadas de ideologias produzidas pela ordem sistêmica justamente para que não saiam das suas condições de dominados.

13. Este debate pode ser encontrado na parte II da Ética de Baruch, de Spinoza, quando ele trata do problema dos não existenciais (SPINOZA, Baruch. Ética. Autêntica, Rio de Janeiro. 2010).

14. Grande exemplo está no caso do professor Adlène Hicheur na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ no ano de 2013. Este professor, franco-argelino, foi contratado como professor visitante do Departamento de Física desta universidade, sendo o único candidato a concorrer a vaga, que na época pagava R$11 mil de salário para dedicação exclusiva, 40 horas semanais. Os candidatos teriam somente cinco dias úteis para se inscrever e após dois dias de fechar a inscrição o professor Adlèn fora contratado. Fonte: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/01/professor-condenado-por-terrorismo-foi-unico-candidato-em-concurso-da-ufrj.html Acesso em: 20/03/2016.

15. Ocorre que ao invés de investirem em medidas de inclusão de negros nesses espaços do papel de protagonistas, os negros acabam sendo tematizados para a aquisição de recursos de pesquisas e viram objeto de estudos sem qualquer verdadeira inclinação militante a fim de dirimir os problemas do negro brasileiro, conforme afirma o sociólogo Guerreiro Ramos, que adverte da seguinte maneira: “Impõe-se, assim, que entre os que se dedicam ao assunto em pauta, se abra um debate leal e franco. Precisam os sociólogos empreender esta descida aos infernos que consiste em arguir, em pôr em dúvida aquilo que parecia consagrado. Quem não estiver disposto a esse compromisso, arrisca-se a petrificar-se em vida, ou a falar sozinho, ou a permanecer na condição de matéria bruta do acontecer, em vez de tornar-se, como deveria, consciência militante desse acontecer, pela apropriação do seu significado profundo. A sociologia do negro tal como tem sido feita até agora, à luz da perspectiva em que me coloco, é uma forma sutil de agressão aos brasileiros de cor e, como tal, constitui-se num obstáculo para a formação de uma consciência étnica do país” (RAMOS, 1957, p. 158).

16. Os números do Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia – IBGE apontam para exponencial aumento de negros nas universidades nos últimos anos, no entanto, esse crescimento ainda está em defasagem em relação aos jovens brancos dez anos antes das pesquisas do IBGE. Fonte: http://www.valor.com.br/brasil/4342534/ibge-acesso-de-negros-universidade-cresce-maioria-ainda-e-branca acesso em: 18/03/2016. É importante aqui citar o Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) de 2005-2010 e o de 2011-2020, quando os números indicam um crescimento no número de programas de pós-graduações resultando em 2.719 programas com 4101 cursos, divididos entre mestrado e doutorado, 34,7 % e 65,3%, respectivamente. Nesses números não há desmembramento que indique o número de alunos e docentes por cor/raça. No entanto, Marcelo Paixão (2010) afirma, por meio das Pesquisa Nacional Por Amostragem de Domicílios  (PNAD), é possível dizer que o número de negros na pós-graduação cresceu, mas que não atingiu o mesmo número dos brancos, que continuam sendo a maioria. (BRASIL, Plano Nacional de Pós-graduação (PNPG) 2011-2020 Ministério da Educação, Brasília, dez. 2010).

17. A consideração sobre a importância de implementação das cotas raciais está substanciada na votação de 10×0, no Supremo Tribunal Federal – STF, no qual foi decidido a aprovação das cotas raciais nas universidades federais. Fonte: http://noticias.terra.com.br/educacao/com-10-votos-a-0-stf-aprova-cotas-raciais-em-universidades,b8dbdc840f0da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html Acesso em: 20/03/2016. Essa assertiva demonstra que muitos opositores como: Ali Kamel (KAMEL, Ali. Não Somos Racistas. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2006); Demétrio Magnoli  (MAGNOLI, Demétrio. Uma Gota de Sangue. Contexto, São Paulo, 2009); Yvone Maggie  (MAGGIE, Yvone e BARCELOS, Cláudia. Raça como Retórica. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2001), dentre outros, devem rever suas pesquisas e dialogar com outras perspectivas diferenciadas daquilo que preconiza a elite branca.

18. Se de fato houvesse comprometimento pedagógico com a diferença, e não sujeição de saberes a toda sorte, poderíamos experimentar o que a educadora bell hooks preconiza, vejamos: “Se não quero que esses alunos usem a “autoridade da experiência” como meio de afirmar sua voz, posso contornar essa possibilidade levando à sala de aula estratégias pedagógicas que afirmem a presença deles, seu direito de falar de múltiplas maneiras sobre diversos tópicos. Essa estratégia pedagógica se baseia no pressuposto de que todos nós levamos à sala de aula um conhecimento que vem da experiência e de que esse conhecimento pode, de fato, melhorar nossa experiência de aprendizado” (HOOKS, 2013 p.114).

[1] Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares – PPGEduc – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas – PPGECC – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Faculdade de Educação da Baixada Fluminense – UERJ/FEBF. Licenciatura em Matemática pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ.

[2] Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Mestre em Relações Étnico-Raciais pelo Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais – PPRER – CEFET/RJ. Licenciatura em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

[3] Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares – PPGEduc – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Especialista em Administração e Supervisão Escolar – Universidade Cândido Mendes – UCM.  Bacharelado e Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

Enviado: Agosto, 2021.

Aprovado: Dezembro, 2021.

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Fernando Santos de Jesus

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