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Produção cultural negra, mestiça e das bordas: Política e estética transformadora pela alegria da Trupe Liuds

RC: 67208
161
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/producao-cultural

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PINHEIRO, Amálio [1], ANGELINI, Giuliana Dias [2], KLEIN, Paula [3]

PINHEIRO, Amálio. ANGELINI, Giuliana Dias. KLEIN, Paula. Produção cultural negra, mestiça e das bordas: Política e estética transformadora pela alegria da Trupe Liuds. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 12, Vol. 01, pp. 55-72. Dezembro de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/producao-cultural, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/producao-cultural

RESUMO

O artigo aborda as complexidades, em interação, da produção cultural negra e das bordas, compreendendo as tramas presentes na produção da Trupe Liuds através da pesquisa bibliográfica e entrevista com a diretora do grupo. Este teatro circense é composto por palhaços negros, da periferia do Perus na cidade de São Paulo, que objetivam levar cultura e arte para crianças e jovens. O objeto, enquanto produção cultural negra e das bordas, também é contextualizado na cultura popular mestiça em constante ebulição no Brasil, já que, desde a diáspora, os povos da África conversam e conflagram com todos os conjuntos móveis assimétricos correntes no país: subúrbios, classes baixas e médias, índios quase-urbanos, urbanos quase-índios, migrantes e imigrantes de toda parte etc. Além da atenção à riqueza de tal condição, também perpassamos pelos impactos sociais das criações da Trupe Liuds, uma vez que também tratam de problemáticas sociais, raciais, de gênero etc. e que podem facilitar para o rompimento do pensamento autoritário. Todavia, observamos as saídas possíveis da  lógica binária dominante; a produção cultural da qual tratamos compõem seu embate pela alegria, pelas alianças, pela graça, pelo riso, pela cor, pela sonoridade e pelo fluxo dos diversos corpos que são colocados em diálogo com a paisagem cultural, nas suas relações entre natureza e cultura. Assim, enfrentam-se aqui os temas sociais a partir da capacidade dos desvios criativos e das derivações de uma produção cultural lúdica, rítmica e alegre.

Palavras-Chave: produção cultural negra, cultura das bordas, mestiçagem, Trupe Liuds.

INTRODUÇÃO

O artigo aqui desenvolvido buscou percorrer os contextos que envolvem o teatro circense, especificamente o promovido pela Trupe Liuds, observando-a enquanto processo cultural e embrenhando-se por suas formas de criação, mediação e recepção; para, assim, compreender como esta fomenta um regime de sentidos tanto no ambiente popular e das bordas (do qual ela é originário), quanto em outros espaços (nos quais ela foi e é capaz de submergir). O estudo também objetiva compreender este circo-teatro enquanto voz de grupos minoritários[4] – compreendendo as associações político-ideológicas presentes em sua estrutura – e como é capaz de contribuir para a mudança de certos aspectos da sociedade através da arte e da ludicidade.

Para tanto, começaremos por contextos anteriores. Aristóteles (1997, 1252a e 1252a, 13-4; 1253b, 15)[5], desde muito, nos demonstra como o ser humano é um animal social ao ser dependente do outro como um impulso natural. E, junto a essa ideia, também propõe ser a natureza social do homem efervescente a ponto de torná-lo o único animal que desenvolve habilidade linguística. A fala humana tem uma importante função social, ao assegurar ao ser humano uma capacidade, de não só propagar emoções, como também pensamentos, e incitar à produção de cultura. Como apontado por Gouvea (2009, p. 13): “(…) ao produzir e partilhar signos, os homens ultrapassaram o domínio da natureza e fizeram-se produtores de cultura. Fez-se humanidade, e o homem, animal simbólico”. Desse modo, podemos evidenciar que ele é capaz de comunicar-se; e, consequentemente, criar uma prática cultural.

Pode-se então compreender melhor o conceito de “prática cultural”: esta é a combinação mais ou menos coerente, mais ou menos fluida, de elementos cotidianos concretos (menu gastronômico) ou ideológicos (religiosos, políticos), ao mesmo tempo passados por uma tradição (de uma família, de um grupo social) e realizados dia a dia através dos comportamentos que traduzem em uma visibilidade social fragmentos desse dispositivo cultural, da mesma maneira que a enunciação traduz na palavra fragmentos de discurso. “Prático” vem a ser aquilo que é decisivo para a identidade de um usuário ou de um grupo, na medida em que essa identidade lhe permite assumir o seu lugar na rede das relações sociais inscritas no ambiente (CERTEAU, 2005, p. 39)

Acrescido a isso, é importante destacar que as práticas culturais, no contexto latino-americano, são oriundas de uma rede relacional múltipla e isso majora sua complexidade. E acontece dessa maneira porque o Brasil, assim como toda América Latina, passou por um processo de mestiçagem indo-afro-europeu durante sua colonização que excitou em cada indivíduo a criação de seu próprio palimpsesto a partir das imagens, noções e impressões captadas nesse ambiente heterogêneo, justapondo signos de maneira ocasional e não-linear, o que fez com que os conjuntos sociais se desabrochassem para diversas traduções culturais. Assim como Gruzinski (2001) corrobora:

(…) mesmo multiplicando os desvios, as incompreensões e as situações aproximativas, a realidade imposta pela Conquista não seja de todo estéril e destruidora. Ela estimula capacidades de invenção e improvisação, exigidas pela sobrevivência num contexto extremamente perturbado, heterogêneo (indo-afro-europeu) e sem precedente. Tal limitação molda nos sobreviventes uma receptividade particular, a flexibilidade na prática social, a mobilidade do olhar e da percepção, a aptidão para combinar os fragmentos mais esparsos. (GRUZINSKI, 2001, p. 92)

Por conseguinte, a colisão de diferentes grupos possibilitou aos que aqui estavam a  adaptação e assimilação de universos fraturados e fragmentados, o que demarcou vigorosamente as condições em que se elaboraram as mestiçagens na América Latina – e no Brasil. Nesta cultura plural conexa, é possível, então, represar numa vogal, frase, ritmos, sons “as mais herméticas formas da clausura e as mais dionisíacas descargas populares” (LEZAMA LIMA, 1981, p. 183 apud PINHEIRO, 2013, p. 132). Então, as criações mestiças contêm uma dinâmica própria, que, como indica Gruzinski (2001), deriva em composições imprevisíveis. “É nessa liberdade de combinações que reside provavelmente a fonte da inovação e da criação.” (GRUZINSKI, 2001, p. 223). E, como relembra Lezama Lima (1988, p. 135 apud PINHEIRO, 2013, p. 83), a complexa técnica dos artistas latino-americanos absorve a paisagem com toda essa mestiçagem, conversando com e incorporando todos os conjuntos móveis assimétricos correntes: classes baixas e médias, subúrbios, urbanos quase-índios, índios quase-urbanos, migrantes e imigrantes de toda parte etc. E, enquanto fermentado nesse contexto variado, nosso objeto, como veremos no tópico seguinte, evidencia sua pujança criativa e rítmica ao agregar a paisagem e a conectar com sua potência negro-mestiça e das bordas.

A TRUPE LIUDS E A SAÍDA ALEGRE DAS LÓGICAS BINÁRIAS

Criada em 2006, em Perus, na região noroeste da cidade de São Paulo, a Trupe Liuds é composta por palhaços negros e moradores da periferia, e tem como objetivo levar a arte circense para este espaço; ainda que também interaja com demais ambientes no estado de São Paulo, como a rede SESC, teatros municipais e particulares, rede de bibliotecas, escolas públicas, e algumas comunidades quilombolas do litoral paulista. Portanto, é compreensível elencarmos tal produção cultural como das bordas. A formulação de cultura das bordas foi elaborada por Ferreira (2010), atenta para os universos não canônicos, e conduzindo para o cerne da investigação os segmentos culturais não institucionalizados. A autora também pontua que “bordas” seria como uma saída para alguns impasses e nomenclaturas como “margens”, “marginalidade” ou “cultura periférica”. Assim sendo, o uso de “cultura das bordas” nos auxilia na quebra do maniqueísmo centro versus periferia. “Bordas” seria a opção do equilíbrio por implicar na pertença múltipla, ajudando-nos a considerar e atuar nas situações das fronteiras porosas e móveis:

Quando pensei em bordas, e os achados foram se articulando muito lentamente, mas de modo ativo, foi a partir de uma situação que suscitava explicações, considerando um modo de ser, numa grande diversidade de parâmetros, de confluências e fronteiras a serem franqueadas, do ponto de vista de algumas outras tradições adaptadas ou possíveis. Foi ainda para tentar dizer que, em espaços não consagrados do mundo urbano, se desenrola toda uma cultura que absorve e é absorvida, criando regiões imantadas que nos permitem pensar em temas, autores, textos a pedir sempre novos parâmetros de avaliação, em regime de movimento e descoberta. Quis, portanto, vivenciar a diversidade que se arma intensamente nos espaços da cultura, não aquela legitimada ou considerada a alta cultura, mas a partir da observação de segmentos, das relações e da circulação que acontecem nas camadas mais ou menos espessas e adensadas de uma singular (ainda que múltipla) produção imaginária. (FERREIRA, 2010, p. 12-13)

A proposta de “bordas”, para Ferreira (2010), vai além de um conceito, é uma cosmopolítica, em contínuo fluxo, que nos auxilia na saída das dicotomias e em um não aprisionamento da cultura em determinismos. Em conjunto, Martín-Barbero (2015, p. 49) recorda que o “(…) afã de referir e explicar a diferença cultural pela diferença de classe impedirá de se pensar a especificidade dos conflitos que articula a cultura e dos modos de luta que a partir daí se produzem”. Logo, ao vislumbrar as análises culturais apenas pelas lógicas binárias referentes à luta de classes, entre dominante e dominado, extravia-se a troca que se desenrola em grandes âmbitos sociais não determinados pelas dicotomias.

É taxativo que os estudos culturais decorram, então, sob a perspectiva das intersecções, e não das limitações duais. Por este motivo, falamos com o olhar de uma cultura das bordas, da produção cultural que é permeada pela transição entre uns e outros, “entre as culturas tradicionais reconhecidas como folclore e a daquelas que detêm maior atualização e prestígio, uma produção que se dirige, por exemplo, a públicos populares de vários tipos, inclusive àqueles das periferias urbanas” (FERREIRA, 2010, p. 30).

Assim, compreendemos, então, a Trupe Liuds, como um produto cultural das periferias e que, em conjunto, também pode apresentar contextos massivos, sem abrir mão de sua complexidade, já que se situa na conjuntura tradutória da cultura das bordas, bem como se embebe das mestiçagens do território brasileiro. Como se apresentasse “uma ligação entre a tradição popular de tipo tradicional e o mundo da edição de massas que se abre e se oferece, criando fronteiras tênues entre o popular tradicional e o massivo” (FERREIRA, 2010, p. 46). À vista disto, compreendemos, que, na América Latina, não há uma contraposição entre o popular e o de massas, e sim escoa-se por acessos graduais entre um e outro, como bem recorda Martín-Barbero (apud FERREIRA, 2010).

Portanto, é admissível também afirmar que na América Latina se dão diálogos de vários “subsistemas culturais de diversa complexidade e capacidade de inovação: enquanto alguns escutam Santana, Sting e Carlos Fuentes, outros preferem Julio Iglesias, Alejandra Guzmán e as telenovelas venezuelanas” (CANCLINI, 2015, p. 69). Consequentemente, não separamos a produção cultural, neste contexto, em hegemônica e subalterna, sendo a primeira supostamente composta pelo moderno e de dominação, e a segunda pelo popular e de embate. Um exemplo deste mesmo axioma é trazido por Martín-Barbero (2015) sobre os circos, de modo geral, nos bairros periféricos de São Paulo.

Um circo perambula permanentemente pelos bairros durante todo o ano – são cerca de 200 atualmente em São Paulo e arredores. E ainda que não tão massivo quanto o cinema e o futebol, o circo já tem, no entanto, a estrutura de uma empresa com sua organização: divisão de tarefas e pesquisas de mercado. Mas a industrialização não roubou do circo seu modo peculiar de conexão com a gente do povo. (…) o que continua a atrair as pessoas dos bairros populares e de que esse circo lhes fala? Mas atenção: essa pergunta não é arqueológica, não se dirige a indagar o que sobrevive do tempo em que o circo era ‘autêntico’, e sim o que faz com que hoje permaneça popular, o que o liga com o hoje da vida das pessoas. Perguntas que não são respondíveis através de análises de conteúdos, por mais sofisticadas que sejam, e sim pela colocação do circo em relação com as matrizes culturais e os usos sociais. (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 313-314)

 é nesta relação com as matrizes culturais e os usos sociais que a Trupe Liuds se dá, misturando cenas circenses e teatrais com os demais contextos da cultura popular; sempre também trazendo à tona, através de uma linguagem lúdica, as questões raciais e recriando a realidade. A Trupe se caracteriza, então, por manter viva e registar a arte do circo-teatro negro no Brasil, contribuindo para que a estética do negro seja fomentada e reconhecida como patrimônio imaterial brasileiro. Isto porque, o grupo acredita que é de extrema relevância o conhecimento sobre a história do negro no Brasil; até mesmo porque, esta é parte essencial na construção da pluralidade da população brasileira. E, dessa forma, eles proporcionam através da arte e da reflexão crítica importantes instrumentos para a saída do consensual na medida em que os sujeitos envolvidos, gradativamente, vão se reconhecendo enquanto agentes socialmente responsáveis na criação e reconstrução do mundo e das suas vidas a partir da reiteração de sua potência cultural em conexão com a paisagem – saindo, então, da lógica do sistema e do pensamento abissal. Sendo que

(…) o pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. O universo ‘deste lado da linha’ só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante: para além da linha há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não dialética. (SANTOS, 2007, p. 2)

Os espetáculos da Trupe procuram fortalecer a quebra dessas linhas e fomentar os diálogos. Até mesmo porque, como vínhamos explicando, falamos de uma produção em uma cultura mestiça e das bordas que abre espaços para a trama. Lotman (2000) também nos relembra que a cultura é entranhada por diálogos, sendo este o conceito gerador da semiosfera. “Para existir, o diálogo pressupõe a diversidade de sistemas e, ao mesmo tempo, certo nível de identidade entre eles; caso contrário, não há comunicação, mas pura entropia” (KIRCHOF, 2010, p. 70). Mais uma vez, então, reiteramos que quanto mais abertas forem as estruturas na cultura, como é o caso da América Latina, maior é o diálogo e a variedade de interconexões entre seus sistemas, tempo e espaço. E a pertença da Trupe a este combinado cultural evidencia o fato de que se dá uma criação de artes complexas, que falam alicerçadas pelo popular (mesmo que venham a fazer parte do entrelaçar de culturas), e que abrangem a vivência, o imaginário, as memórias, etc. do negro brasileiro em conexão do africano, do índio, do caboclo, do árabe, do europeu, do rural, do urbano, entre tantas outras variabilidades de grupos sociais que promovem a cultura nesta região.

Como exemplo disto, é possível citar a montagem “Mjiba – a boneca guerreira”, que trata especificamente da diáspora da população negra da África para o Brasil, e a consequente interlocução entre esses povos. Este espetáculo fora criado em 2016, inspirados no livro “Zenzele. Uma carta para minha filha” da autora africana Nozipa Maraire (1996) e contava a história de dois palhaços carteiros que se deparam com uma encomenda sem remetente; ao decidirem abrir a caixa se depararam com uma boneca negra, como se vê na imagem abaixo. Assim, o espetáculo levanta o tema da opressão às mulheres negras, em um diálogo com as crianças e jovens presentes na plateia e de forma engraçada, lúdica e circense.

Figura 1 – Mjiba, a boneca guerreira

Fonte: https://www.geledes.org.br/de-perus-a-africa-trupe-liuds-leva-espetaculo-sobre-mulher-negra-para-mocambique/. Gravado em: 03/nov./2020.

É também encenada a travessia do Atlântico e a chegada em São Paulo dessa bonequinha, que saiu da Rodésia (atual Zimbábue) porque sua aldeia foi invadida por estranhas embarcações e, após, lutarem muito, alguns parentes dela tiveram seus braços e pernas amarrados e foram levados mar adentro. Então, sua mãe diante da destruição que se apresentava, prefere colocar Mjiba em uma caixinha aos cuidados de Yemanjá e, assim, ela navega até chegar ao Brasil.

A palavra ‘Yemanjá’ (mesmo sem a personagem aparecer) por vezes provoca uma reação negativa do público, especialmente quando a plateia é composta por muitos evangélicos. Contudo, no momento seguinte do espetáculo em que o riso é provocado, percebemos uma abertura do público novamente. Dessa forma, entendemos como a alegria é uma bela porta de comunicação, de diálogo e da quebra do pensamento abissal durante o decorrer da obra de arte.

Acrescido a isto, em 2019, a boneca e este espetáculo também atravessou o Oceano Atlântico e chegou às crianças de Maputo em Moçambique. De acordo com entrevista ao Geledes[6], os integrantes da Trupe Liuds afirmam que esta viagem simboliza um fechamento de ciclo, em que o grupo inicia novas pesquisa e a personagem encontra suas origens africanas. E, de acordo com a diretora, também uma das autoras deste artigo,

essa viagem foi permeada por anedotas, sensações, sabores e trabalho. A chegada na África e tudo que está acontecendo a partir de então seria diferente se eu não tivesse acordado para a nossa complexidade cultural, nosso ritmo peculiar e se não estivesse com o coração plantado na América Latina. E foi a sagacidade em me ver, mestiça e barroca, ou seja, de me sentir autorizada a usar o múltiplo e disso fazer poesia – vida – trabalho – amor – dor – brinquedo – canção que me libertou para festejar outra cultura, muito próxima, mas diferente, dentro de mim.

Em Maputo aprendi a olhar a natureza gigante, a rotação da terra, a temperatura, os insetos e a correnteza do rio e os micróbios junto com a paisagem humana. Aprendi de modo racional algo que antes era intuitivo, aprendi que são múltiplas as categorias que configuram o processo cultural e aprendi que isso tem imensurável valor. Comecei a prestar atenção à constante troca lúdica que acontece nas ruas, nos mercados, nos ensaios de teatro. Eu já percebia isso, mas nomear, analisar e ter prazer nesse movimento analítico é a novidade.

Outra joia que se manifestou foi a compressão e orgulho da miscigenação cultural brasileira que é linda, única e festiva. O curioso é que o primeiro espetáculo da Trupe Liuds fala da diáspora África-Brasil, mas olhamos para o que foi construído de potente, único e dinâmico desse fato, nos recusamos a sofrer por isso ou semear um campo de lamúrias e lembro muito bem do professor afirmar em uma aula sobre as invasões na América Latina que: ‘Não podemos nos fixar apenas no momento de repressão, é preciso ver o que foi construído ali’, pensamento que cai como uma luva nos procedimentos da Trupe. (KLEIN, 2020)

Consequentemente, é perceptível que a produção cultural da Trupe, mesmo reiterando os temas raciais da sociedade brasileira e, então, buscando uma transformação destes, é capaz de não se fechar no consensual e no embate à lógica dominante, reproduzindo-a pela manutenção da binariedade reciprocamente determinada. Isto porque a Trupe Liuds dialoga sobre o gesto, a história e a variabilidade negra através do lúdico, da alegria, do riso, do ritmo e da união. A imagem a seguir de um dos seus momentos no continente africano mostra toda essa potência em suas cores, instrumentos, fantasias, movimentos e fluxos dos corpos.

Figura 2 – Trupe Liuds na África

Fonte: https://www.geledes.org.br/de-perus-a-africa-trupe-liuds-leva-espetaculo-sobre-mulher-negra-para-mocambique/. Gravado em: 03/nov./2020.

É preciso esclarecer que a ideia de “mestiçagem” aqui utilizada nunca pode ser vista a partir de uma acepção reducionista em que, como explica Silva (1998), por vezes, referenciais culturais africanos são interceptados seguindo padrões ocidentais que aderem à noção de mestiçagem como miscigenação. A proposta é a de elencar as traduções em diálogos das diferentes potências e processos culturais e criativos nas artes do contexto brasileiro. Aliás, o contexto brasileiro, latino-americano e caribenho não é ocidental; e, ademais, os próprios povos africanos provêm de grande mescla entre várias nações afro-árabes: quimbundos, bantos, malês etc. Mestiçagem nunca é apenas miscigenação, ainda que a inclua. Desse modo, ao nos servimos da noção de mestiçagem, vamos além da miscigenação de raças. É, na verdade, uma forma de evidenciar a pluralidade existente em âmbito cultural. E de assegurar como esta produção cultural, vindo do gesto negro já plural, mas fomentada em um espaço culturalmente mestiço, é capaz de proceder a traduções, partindo de combinatórias complexas. A proposta é a de explanar como este teatro negro, presente no ambiente latino-americano, realiza produções culturais em redes plurais e que, fazendo uso disso, apresenta habilidade criativa para quebrar as lógicas binárias e propor a alegria e não o embate a fim de transformar a sociedade.

O CARÁTER TRANSFORMADOR DA TRUPE LIUDS

Como vínhamos pontuando, para a análise das produções culturais brasileiras é necessário procurar o entrelaçamento. Por este viés, Flusser (1998) determina a cultura brasileira como “mista”, por ser uma sociedade também não-histórica – na qual a hierarquia linear do tempo histórico é relegada à vida oficial, mas o espírito do espaço se manifesta nitidamente.  Torna-se então inviável a separação entre a cultura de elite, a de massa e a popular, já que esta opera exclusivamente em sociedades com enfoque historicista dos fenômenos culturais. Com este olhar, podemos designar o contexto como apto para determinar, porém ele não é determinante. Dessa maneira esquiva-se, então, da visão determinística e marxista em que o contexto é, exclusivamente, capaz de circunscrever a cultura,  dividindo-a entre subordinações e resistências.

O mais grave nesta oscilação, como anota García Canclini, é que ‘insistiu-se tanto na contraposição da cultura subalterna e da hegemônica, e na necessidade política de defender a independência da primeira, que ambas foram pensadas como exteriores entre si. Com o pressuposto de que a tarefa da cultura hegemônica é dominar e da cultura subalterna resistir, muitas investigações não parecem fazer outra coisa que não seja pesquisar para além das formas como uma e outra cultura desempenham seus papéis nesta peça’. (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 113)

Com a intenção de escapar desses fechamentos e revelar o imbricamento cultural, dispomos aqui os espetáculos da Trupe Liuds não como um produto cultural unicamente de resistência e luta contra a cultura hegemônica, mas como uma saída do sistema pela alegria, ludicidade e multiplicidade. O anseio é de não “esgotar a complexidade que envolve esses espaços onde acontecem transformações, mediadas pelo sujeito em criação em permanente diálogo com a cultura” (SALLES, 2006, p. 92). E, pelos termos de Morin (1998), quanto maior a efervescência cultural, maior a incitação ao artista – caso levado às últimas consequências na América Latina.

Imerso e sobredeterminado pela sua cultura (que por seu estado de efervescência possibilita o encontro de brechas para a manifestação de desvios inovadores) e dialogando com outras culturas, está o artista em criação. Ele interage com seu entorno, sendo que a obra, esse sistema aberto em construção, age como detentora de uma multiplicidade de conexões. Estamos falando da tendência do processo em seu aspecto social: o percurso criador alimenta-se do outro, visto de modo bastante geral. (SALLES, 2006, p. 40)

Dotados desse universo conceitual, cada vez mais, nos descolocamos, neste estudo, do macro e nos encaminhamos, aos poucos, para o micro: apontamos sobre as relações da cultura e do artista na cultura para ser palpável, assim, o processo criativo do circo-teatro como uma complexa rede em conexão e em construção, nos valendo do termo proposto por Salles (2006). É curioso refletir este processo de trocas de signos entre a criação e o seu entorno com uma visão interpretativa relacional, observando então o pensamento criativo como um meio de conceber nexos. Dessa forma, proviemos das relações culturais para chegarmos ao indivíduo: “da efervescência cultural, àquela do artista em criação, que está visceralmente implicado no processo. O espaço e o tempo sociais da criação estão permanentemente interagindo com a individualidade do artista” (SALLES, 2006, p. 65) – mesmo não sendo determinantes.

Esta abordagem do movimento criador, como uma complexa rede de inferências, reforça a contraposição à visão da criação como um revelador e inexplicável insight sem história. A criação como processo de inferências mostra que os elementos aparentemente dispersos estão interligados; já a ação transformadora dos elementos mediadores envolve o modo como um elemento inferido é atado a outro. A criação é, sob esta ótica, um processo de transformação que envolve uma grande diversidade de mediações. (SALLES, 2006, p. 152-153)

Nota-se, dessa forma, que se dá algum descentramento do sujeito. Como demonstrado por Salles (2006), a obra de arte não coincide apenas ao self, há uma pluralidade de diálogos que não deletam o artista enquanto sujeito, mas que contribuem para que este sujeito seja múltiplo. Dentro do contexto do circo-teatro isto quer dizer que muitas cenas relatam os acontecimentos cotidianos daqueles que moram na periferia; e, consequentemente, do dia a dia do próprio palhaço. E, aqui é interessante pontuar que “O cotidiano, tido durante muito tempo como espaço opaco da reprodução e da falta de inventividade, é reinventado, no dizer de Certeau, ‘com mil maneiras de caça não autorizada’” (OLIVEIRA, 2015, p. 12). Assim sendo, tanto para Certeau, quanto para os integrantes da Trupe Liuds, não há conformismo com o cotidiano, este é recodificado na arte do grupo para novos sentidos serem traduzidos à ordem social.

E percebemos esta urgência por transformação social através da retomada de diversas questões sociais, raciais e de gêneros nos espetáculos da Trupe Liuds; afinal, suas criações também se dão como um produto cultural popular e como uma forma de comunicação participativa. E, como colocado por Martín-Barbero (2004), esta forma de comunicação, na América Latina, é uma maneira de mudar o processo normativo da comunicação social a fim de que os grupos minoritários ganhem espaço, ratificando que não há lugar de fala meramente aos elementos canônicos; “(…) por meio de uma forma insistente de aparecer precisamente quando e onde somos apagados que a esfera da aparência se rompe e se abre de novas maneiras” (BUTLER, 2018, p. 44).

Estamos começando a quebrar a imagem, ou melhor, o imaginário de um poder sem fissuras, sem brechas, sem contradições que simultaneamente o dinamizam e o tornam vulnerável. Trata-se, tanto na teoria como na ação política, de um deslocamento estratégico da atenção em direção a zonas de tensão, a fraturas que, já não no abstrato mas na realidade histórica e peculiar de cada formação social, a dominação apresenta. Isso permite além disso começar a valorizar todas e cada uma das lutas que fazem explícitas a pluralização das contradições, desde a ecologia até os movimentos de liberação feminina. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 111)

E, desse modo, entendemos também que a pluralização das lutas também se refere a uma tentativa de extrair o peso da missão de embate contínuo e de uma lógica do dominante versus dominado, de representar uma única e fixa identidade, sem saídas alegres e/ou lúdicas. A consideração disso foi debatida, inclusive, em ensaio da Trupe, como relata a diretora:

Um assunto debatido em ensaio que provocou desconforto, revolta, angústia, tristeza, alegria e vontade de superação foi a questão da “sujeição” de Butler e a discussão da identidade social do sujeito. O fato das pessoas se identificarem com os discursos e o corpo suportar alguns discursos mesmo sem concordar integralmente com eles. A consciência dessa tentativa de hegemonia que o discurso tenta construir provocou uma sensação de incômodo no grupo que superou o artístico e atravessou a vida pessoal de cada um de nós. É quase palpável o desconforto que temos em fazer parte do movimento negro ou feminista ou periférico e do fato de precisarmos nos unir em torno de alguma unidade para conquistar o acesso ao direito de existir, mas o nó na garganta é termos que engolir e endossar premissas que não acreditamos integralmente para uma conquista maior. Vale a pena? Essa seria uma das faces da violência? Embora a gente possa ir se desenredando o despertar para o fato de que sempre somos cooptados por um discurso que vai deixar uma ponta solta na alma é terrível e isso parece nos afastar da ideia de unidade do eu. Dependo de um discurso que não escolhi mas que paradoxalmente sustenta minha agência. Nunca serei um inteiro porque estou surfando numa onda que representa apenas parte de quem sou. (KLEIN, 2020)

A diretora da Trupe Luids ao falar de Butler relembra a questão da sujeição e questiona: “De que modo, então, devemos pensar a sujeição e como ela pode se tornar um lugar de alteração? Como o poder exercido sobre o sujeito, a sujeição, não obstante, é um poder assumido pelo sujeito, uma suposição que constitui o instrumento do vir a ser desse sujeito.” (BUTLER, 2019, p. 20). E, ela complementa, quase que em resposta, ainda relatando o momento de conversa no ensaio da Trupe:

A partir dessa discussão nós artistas saímos por alguns minutos da esfera social do trabalho que estávamos realizando e cada um fez um mergulho em si mesmo. Foi curioso mas passamos ao mesmo tempo, ou seja coletivamente, por um movimento individual de escanear e compreender nossa ação discursiva no mundo e observar o mundo ao redor afetado e afetando o eu. Foi transformador. Foi uma epifania. Logo saímos da suspensão e houve um certo alívio quando disse que a arte, a magia, o fantástico e o fora do padrão são uma pausa e um descanso nesse massacre cotidiano que nos sujeitamos de livre e espontânea pressão para sermos quem somos. (KLEIN, 2020)

Por conseguinte, estas produções culturais, como o circo-teatro, devem ser pautadas a partir do complexo emaranhado de elementos que elas simbolizam com seu aspecto cultural mestiço, e toda sua conectividade em criação. Até mesmo porque, ao nos distanciarmos da consideração das pluralidades e da ritmicidade, ou quando enclausuramos em uma única identidade manifestações como as que a Trupe Liuds representa, acabamos por corroborar com o consensual e o fechamento proposto pela hegemonia. E, com isto, o que intentamos esclarecer é que, como já confirmamos, na América Latina, não se dão, exclusivamente, relações puras de dominação na produção cultural, existem brechas – até mesmo as de resistência. Todavia, demarcar certas identidades como fixas e com apelo de combate constante é, também, um modo de reduzir suas complexidades. Este pensamento apenas segue uma segregação entre um grupo hegemônico e outro popular, que, porventura, pode até ter lugar de fala, mas que é incitado, então, a propor um discurso de embate à hegemonia – reforçando esta dualidade e não a modificando.

A política identitária sem um horizonte de transformação do próprio ‘maquinário social’ que produz as identidades sociais gera uma camisa de força que faz com que o ‘sujeito’ negro, mulher, LGBT possa ser, no máximo, uma versão melhorada e menos sofrida daquilo que o mundo historicamente lhe reserva. (HAIDER, 2019, p. 13)

Com esta proposta não estamos negando a necessidade de tratar das problemáticas identitárias urgentes na sociedade e enfrentar os entraves estruturais. Inclusive, é possível ver como a Trupe segue este caminho, uma vez que este é necessário. Contudo, é preciso repensá-lo para não acabar caindo em uma imposição, o que retém a multiplicidade da produção cultural.

O que precisamos assimilar, então, sobre esta conjuntura declarada neste tópico? Como estamos elencando, a multiplicidade existente na cultura latino-americana faz viável a incorporação do popular nos mais diversos contextos, até mesmo, nos massivos e supostamente hegemônicos – principalmente, devido à sua capacidade interpelatória. Em consequência, não há relações plenas de poder na produção cultural brasileira. Entretanto, não é por isso que elas não existam, não é por isso que não seja factível os variados e assíduos problemas sociais presentes. Não temos de estar cegos ao machismo, racismo, homofobia, entre tantas outras problemáticas que urgem por políticas identitárias. Porém, colocar a produção cultural destes grupos identitários em um combate infindável com seus agressores é uma maneira de também enclausurá-los, perdendo sua complexidade, ou, os resumindo à sobrevivência.

O problema da identidade é um problema político urgente, ligado à lógica de reprodução social do capitalismo. Por isso, deve ser tratado de modo crítico, a fim de que possamos lidar com uma ‘realidade contraditória’. Essa realidade contraditória nos leva a pensar que, sim, a representatividade é importante para pessoas negras; ter o direito subjetivo de exigir o reconhecimento estatal de nossa identidade é muito relevante; ter garantido o direito de estudar, de trabalhar, de não ser morto pela polícia por seu um ‘suspeito padrão’ é algo pelo que devemos lutar. E são coisas possíveis porque muitos de nossos ancestrais tiveram seu sangue derramado. Mas, ao mesmo tempo, é necessário assumir que as identidades, inclusive a raça, são socialmente construídas (…). (HAIDER, 2019, p. 19)

E, elas são fomentadas sob um viés capitalista, que como relembra Gilroy (2019), podem também ser aplicadas (ou abdicadas) enquanto categorias sociais e políticas na medida em que as retóricas que as legitimam são institucionalmente poderosas. A fim de fugir deste âmbito consensual, é necessário entender a identidade enquanto decorrência da atividade prática da linguagem, significações corporais, gestos etc., de forma “não essencializantes, menos excludentes, atentas aos efeitos totalizadores da norma e articuladas mais a partir das noções de diferença ou de margem [borda] do que de identidade” (BOURCIER apud PRECIADO, p. 10, 2014). Então, ela deixa de ser considerada como estática e enraizada, ou dada a priori, e tornar-se algo em constante processo de transformação e fluxo.

Neste sentido, o intuito foi demonstrar nesse tópico como nosso objeto perpassa pelas questões identitárias de forma não só combativa, mas sim transformadora; o vislumbrando como: “um complexo emaranhado de tensões e de conflitos, em meio aos quais a dinâmica social é atravessada (…).” (OLIVEIRA, 2015, p. 107), em busca de um modo de exercer a transformação social de modo mais comunitário e em diálogo, dissipando sua complexidade por sua pluralidade, sua ritmicidade, suas matrizes africanas em conexão de seu contexto brasileiro, sua aproximação da natureza em conexão das ruas da cidade etc. Não é possível que fechemos a cultura popular latino-americana, como é o caso da arte que aqui tratamos, em qualquer “caixinha” que seja, uma vez que é complexa e transformadora. Substancialmente, é indispensável entender seu caráter plural e dissociado de amarras.

Ora, o teatro é fora do padrão e dos enclausuramentos; o circo é fantástico, é mágico, é artístico e é plural; o palhaço é a alegria, o riso e a fratura do consenso. E, todas essas linguagens, como recorda Butler (2018), são performativas, tendo o poder de transformação social; a linguagem serve para fazermos coisas com ela. E, o circo-teatro realizado, de Perus para o mundo, é a linguagem da qual o grupo se serve para provocar rupturas no dia a dia e despertar nas pessoas o que elas tem de mais humano: o riso, a graça, a emoção de olhar com interesse para o outro e se permitir ser afetado para sempre por esse gesto. E, através desse gesto alegre de uma produção cultural múltipla em conexão buscar a transformação social e política.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com tudo que aqui fora exposto, é possível concluir que a produção cultural mestiça e das bordas vive no entrelaçamento de potências e não nas amarras; e, como está em conexão da paisagem e dos diferentes conjuntos que fervilham na construção cultural latino-americana geram quebras no pensamento binário, dualístico e abissal. Entendemos também como as problemáticas sociais, de classes, raciais, de gênero etc. urgem por uma luta, a fim de uma conquista de visibilidade, de um multiculturalismo mais democrático e de uma menor sujeição desses corpos. Entretanto, viemos propondo saídas ao embate, a uma luta que não adentre à lógica dominante e que se componha pela alegria, pela união desses diversos corpos em conexão com a paisagem.

Além disso, reiteramos a potência e a variabilidade também desses corpos, negando os fechamentos em identidades dadas a priori e buscando seus movimentos de modo menos supressório e opositivo, e mais pela ideia de tramas. Assim, nos permitimos ver além das identidades de forma binária, com conceitos que compreendem as instâncias de dominação, mas que reforçam o poder dos desvios e derivações com relação ao sistema hétero, branco, ciscentrado, etc. e desmascare, como recorda Bourcier (apud PRECIADO, 2014), os binarismos errôneos que se escondem na oposição, fugindo assim do sistema capitalista e reiterando as pluralidades em fluxo dos corpos.

Para tanto, também se tornou perceptível como a Trupe Liuds é capaz de propor uma arte que trata destas necessárias questões políticas através da alegria, do riso, das cores, dos sons, do movimento dos corpos, dialogando com as crianças e os jovens sobre problemáticas relevantes de modo lúdico e instigando uma produção cultural que apresenta caráter transformador da sociedade ao incentivar o conhecimento e os afetos felizes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BOURCIER, Marie-Hélène. Prefácio. In: PRECIADO, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo, 2014.

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APÊNDICE – REFERÊNCIAS DE NOTA DE RODAPÉ

4. Neste caso, a expressão “grupos minoritários” é aplicada com o “sentido de ser uma minoria numérica, mas de ser compreendido como marcado por uma minoridade social” (BUTLER, 2017, p. 176).

5. Tradução do Mario da Gama Kury em ARISTÓTELES. Política. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. 3ª ed. Brasília: UNB, 1997.

6. Fonte: https://www.geledes.org.br/de-perus-a-africa-trupe-liuds-leva-espetaculo-sobre-mulher-negra-para-mocambique/. Gravado em: 03/nov./2020.

[1] Doutorado em Comunicação e Semiótica. Mestrado em Literatura. Especialização em Literatura Hispano -americana. Graduação em Direito.

[2] Doutorado em andamento em Comunicação e Semiótica. Mestrado em Comunicação e Semiótica. Graduação em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda.

[3] Doutorado em andamento em Comunicação e Semiótica.

Enviado: Novembro, 2020.

Aprovado: Novembro, 2020.

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Giuliana Dias Angelini

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