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A memória do culto pelos olhos de Carybé

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

COSTA, Rosemary Fraga [1]

COSTA, Rosemary Fraga. A memória do culto pelos olhos de Carybé. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04, Ed. 03, Vol. 05, pp. 93-105. Março de 2019. ISSN: 2448-0959.

RESUMO

Este trabalho trata da arte produzida pelo artista Carybé, durante sua vivência dentro do candomblé, especialmente no Ilê Axé Opô Afonjá. São 128 aquarelas, que foram produzidas entre 1930 a 1980, onde o artista registou de memória tudo que viu e viveu dentro dos cultos afro-brasileiros na Bahia. Através de análise iconográfica dessas aquarelas confrontada com a literatura religiosa pesquisada, buscou-se entender em que medida seu envolvimento pessoal com o candomblé, influenciou a sua poética para realização dessa obra

Palavras-chave: Carybé, arte afro-brasileira, candomblé, Ilê Axé Opô Afonjá.

INTRODUÇÃO

Carybé, produziu ao longo de sua trajetória obras que expressam o universo mítico do candomblé. Argentino de nascença e brasileiro naturalizado, foi pintor, escultor, desenhista e também muralista. Ilustrou livros de Jorge Amado e Pierre Verger, onde a temática da religiosidade afro-brasileira esteve sempre presente. Ele não só retratou a vida dos cultos, como também, tornou-se membro de uma das casas de candomblé mais famosas da Bahia na década de 50, o Ilê Axé Opô Afonjá, recebendo em 1957, o cargo de honra de Obá de Xangô. Durante sua permanência nesta casa realizou um dos seus maiores trabalhos, as aquarelas que compõem o livro: Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia. Uma espécie de catálogo, onde representa de maneira ordenada, o universo imagético do candomblé da Bahia.

Hector Julio Paride Bernabó, o baiano Carybé, escolheu a Bahia como fonte de inspiração, a relação foi afetiva, de encantamento pela mistura harmônica existente por lá, algo que oscilava entre o sangrado e o profano. Em 1950 fixa residência na Bahia e passa então a representar à cultura baiana e suas raízes afro-brasileiras, captando como ninguém a essência do povo baiano, o famoso jeito baiano de ser. Desta maneira, é pertinente afirmar que a arte de Carybé contribuiu para que a Bahia se tornasse conhecida e apreciada por muitos pois, “recriou a Bahia em sua verdade completa: a paisagem e o povo. As emoções, os sentimentos, os hábitos, a dor, a mistura. E levou a Bahia mundo afora.” (AMADO, 1986, p.40)

Carybé encontra na Bahia o acervo cultural que tanto buscava para integrar definitivamente artista e obra, dando novos rumos para sua carreira. Embora já fosse um artista reconhecido na Argentina nesse período, e ter realizado muitas exposições e trabalhos, foi na Bahia que seus traços ganharam movimento e ritmo num toque muito pessoal, criando de tal modo seu inconfundível estilo.

Inicialmente seu objetivo era retratar os valores da cultura e os costumes do povo baiano mas, acaba por se redescobrir como artista e pouco a pouco torna-se segundo o amigo Jorge Amado, “o mais baiano de todos os baianos é o pintor Carybé” (AMADO, 1970, p.156).

O CANDOMBLÉ – UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL

A aproximação inicial de Carybé com o candomblé tinha como objetivo apenas documentar e dar visibilidade as manifestações religiosas afro-brasileiras que existiam na Bahia. Com um olhar atento e uma enorme capacidade de registrar através do desenho o que observava, foi pouco a pouco adentrando ao mundo místico dos deuses africanos e dele tornando-se parte. Assim sendo, as festas e as cerimônias do candomblé, realizadas na Bahia apresentavam-se como um rico universo de referências para sua arte.

O amor de Carybé pela religião nasce principalmente por ela possuir forte ligação com natureza de um modo geral, pois os deuses africanos cultuados no candomblé são representados pelo conjunto de elementos do mundo natural, e que disseminam sobretudo o bem estar coletivo e justo para todas as pessoas, ele mesmo relata o porquê de sua escolha: “Entrei para o candomblé porque gosto. Ela é a melhor religião. Não tem inferno e os deuses, em última instância, são os rios, o mar, a floresta, o vento, a chuva. Oxumaré é o arco-íris.” (Apud ARAUJO, 2006, p.298).

Essa aproximação dos deuses com os elementos da natureza é princípio fundamental que rege a religião africana, e se manteve igual em terras brasileiras, mesmo com todas as adaptações que os escravos tiveram que fazer para cultuar seus deuses em solo brasileiro. Os ensinamentos simbólicos do candomblé trazido pelos escravos, sobreviveram a todas as dificuldades e mantiveram-se vivos, sendo até hoje, transmitidos oralmente como forma do mito[2].

Carybé fez de suas pesquisas da religião sua própria vivência e passou a conviver com personalidades religiosas importantes da Bahia, tais como: “Mãe Menininha do Gantois, Dona Olga do Alaketo, Tia Massi da Casa Branca, Mãe Runhó do Bongum. Mas, foi no candomblé da famosa Maria Bibiana do Espirito Santo, Mãe Senhora do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, que foi consagrado para Oxóssi – Deus da caça, pelas mãos sagradas desta filha de Oxum, e foi fiel a ela até a sua morte em 1967.

Figura 1: Mãe Senhora e Carybé no Ilê Axé Opô Afonjá.
Fonte: Livro Carybé – FURRER, Bruno. p.86

Carybé escolheu o candomblé, por ser uma religião que respeita a individualização de cada um, onde o iniciado aprende a se autoconhecer e assumir seus atos com responsabilidade. Não há no candomblé o sentido de punição ou castigo, o que existe é a certeza da justiça divina, para quem vivência e tem fé. Essa opinião era partilhada por pessoas importantes, que se dedicaram não somente a estudar e pesquisar os fundamentos religiosos do candomblé, mas também a experimentá-lo no seu dia a dia. Assim sendo, o misticismo africano contagiou quatro grandes artistas, que embora com trajetórias e personalidades diferentes, tinham um interesse comum, o culto aos deuses africanos e seus mistérios. E foi em torno da temática afro-baiana que, Carybé, Jorge Amado, Pierre Verger e Dorival Caymmi solidificaram uma grande e duradoura amizade, que se arrastou dentro e fora da religião, deixando um grande legado para o candomblé brasileiro, conforme ressalta:

Baianos fundamentais, Carybé, Verger, Caymmi e Jorge não foram fundamentais para o candomblé, mas o candomblé foi fundamental para a amizade e a indiscutível, profunda baianidade deles.

Não à toa, foram escolhidos e consagrados obás, ministros de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá pelas mãos da sempre reverenciada Iyalorixá Mãe Senhora. (BARRETO, 2012, p.11)

O CANDOMBLÉ EM AQUARELAS

A longa dedicação de Carybé para realização das 128 aquarelas do livro “Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia” foi motivada pelo receio de que o candomblé se distanciasse de sua origem e de seus ensinamentos. Mais de trinta anos estão registrados detalhadamente neste livro de preciosa beleza plástica, para que futuras gerações pudessem conhecer o culto dos deuses africanos como ele vivenciou, na raiz das primeiras casas de santo da Bahia.

O livro é um registro de toda a vida do artista numa relação íntima com a religião, possui 261 páginas e traz também introdução de Jorge Amado, descrevendo a importância das aquarelas para o legado da religião e o envolvimento de Carybé pelo Candomblé.

Pesquisa é uma palavra limitada e fria para designar o relacionamento de Carybé com o candomblé baiano, o domínio da verdade dos orixás e de seus ritos obtidos no passar do tempo como resultado de uma intimidade total. Carybé não se limitou a pesquisar; viveu o candomblé, em todos os seus detalhes. Os búzios revelaram-no filho de Oxóssi, ele mergulhou no mistério e a seu serviço, à serviço da memória, a cada dia mais degradada e perdida da Bahia, colocou o talento e a integridade de sua arte […] (ARAUJO, 2006, p.172)

Nele estão registrados as festas, o xirê[3], e os principais ritos do candomblé, bem como, as roupas, as insígnias e as ferramentas dos orixás, é possível observar o cuidado de Carybé em expressar sua arte coerentemente com os ensinamentos religiosos. A ordem de apresentação das aquarelas no livro denota que Carybé observou cada cena e momento retratado, já que “[…] no candomblé nada é dito explicitamente, pois o conhecimento vem da observação das regras e do segredo […]”. (SILVA, 2012, p.16).

Fruto desse trabalho, a exposição “Cores do Sagrado” apresentou 50 aquarelas cuidadosamente selecionadas pela curadora Solange Bernabó, filha de Carybé, e foi realizada pela Caixa Cultural do Rio de Janeiro, em 29 de outubro a 20 de dezembro de 2015. Em uma única sala estavam obras que sinalizavam a riqueza do candomblé. Que segundo ela: “essa mostra não retrata o lado místico, fruto da imaginação de Carybé. Antes disso, é uma representação da realidade, a partir da observação do que, de fato, acontecia nos terreiros. Ele retratava com respeito e beleza as práticas da religião”, explica Solange[4] em entrevista na abertura da mostra.

UM DIÁLOGO ENTRE A ARTE E O RITO

No candomblé não existe a noção paraíso e inferno, acredita-se na existência de dois planos, o “òrun” e o “àiye”. O “àiye” corresponde ao universo físico palpável, onde estão todas as coisas e todos os seres vivos, animais e vegetais Já o “òrun” é um espaço sobrenatural habitado pelos deuses e pelos antepassados, é um mundo paralelo que coexiste com o mundo concreto, possuindo uma espécie de duplo espiritual de tudo que existe no “àiye”. Desta maneira, entende-se a importância de conhecer o mito dos orixás, pois tudo que acontece no presente, no mundo real é repetição do que já aconteceu no passado, no mito. Deste modo, “conhecer o passado é deter as fórmulas de controle dos acontecimentos da vida dos viventes” (PRANDI, 2001, p.52).

As festas e cerimônias públicas do candomblé tem a finalidade de invocar os deuses para volta à terra, motivados pelos cantos e pelas danças. Esses orixás se manifestam por meio de possessão ritualizada em seus filhos e a preparação para essa possessão requer uma série de ritos propiciatórios[5], desde banho de ervas à oferta de animais e, suas carnes são preparadas pelos membros da casa para servir à todos os presentes.

É na festa com música, dança e comida que os orixás vêm à Terra conviver com seus filhos humanos, reabrindo as portas de comunicação entre o mundo sagrado em que vivem os deuses e espíritos e o mundo dos homens. Diz o mito que um dia a fronteira entre esses mundos foi fechada e só é reaberta por curtos períodos, exatamente durante as celebrações religiosas. E isso porque os deuses gostam de conviver com os humanos e participar de sua festa. Manifestados no corpo dos sacerdotes em transe, eles se confraternizam com os mortais, vestem suas roupas especiais e dançam coreografias que relembram aventuras narradas por seus mitos. (SOUZA, 2007, p.8).

Assim o candomblé é uma religião que encanta visualmente, pois a busca da beleza como forma de agradar os orixás é um dever religioso. Carybé sabia da importância desse mecanismo, e temia que pela oralidade, ele se perdesse com o tempo. Fez de sua fé sua obra, transitou simultaneamente entre a arte e o sangrado, registrou tudo que viu e viveu como filho de santo e Obá de Xangô, e como ele mesmo relata na introdução do livro.

Este trabalho só tem a pretensão de ser um documentário honesto e preciso das coisas do Candomblé. Há desenhos de 1950 até 1980 mostrando festas, trajes, símbolos e cerimônias por mim vistas e vividas nesse mundo prodigioso que os escravos nos trouxeram e depositaram

nas profundas do coração da Bahia. Mundo amorosamente zelado pelas Iyalorixás e pelos Babalorixás, mundo de deuses modestos e humanos que até hoje enfrentam os terríveis e vorazes deuses contemporâneos: o Progresso, a Tecnologia e a Ciência. (CARYBÉ, 1980, p.7)

Na produção das aquarelas sua atenção incidiu sobre o entendimento dos fundamentos básicos da religião afro-brasileira herdada dos escravos, assim como, sua forma de exposição pública, em cerimônias e festas, onde os orixás “vem à terra” dançar e comer com os humanos revivendo assim o mito, que serve sobretudo como forma de ensinamento para os membros da casa. As imagens das aquarelas, são então, associadas a este mito, materializando o valor simbólico nelas contidas.

Carybé dedicou três aquarelas para a orquestra; nas duas primeiras ele apresenta os detalhes dos atabaques, agogôs e do Xekerê. Todo candomblé possui sua orquestra, formada por três atabaques de tamanhos diferentes, denominados “run”, “rumpi” e “lê”, do maior para o menor, uma espécie de sino de percussão chamado agogô e um instrumento enfeitado de contas chamado Xekerê. “Esses atabaques apresentam uma forma cônica e são feitos com uma única pele, fixada e esticada por um sistema de cravelhas ou cunhas.” (VERGER, 2002, p.31).

Figura 2: Instrumentos musicais. Nanquim e aquarela sobre papel, 48 x 66 cm –
Fonte: catálogo da exposição – As cores do Sagrado – Caixa Cultural 2015/RJ

São preparados com um espécie de batismo, para ter força (axé), tornando-se assim sagrados. “O ritmo dos atabaques chama os Orixás, dando início a um conjunto de coreografias bem determinadas, nas quais cada Orixá ao dançar, encena histórias, relembra feitos […],” (ROCHA, 2000, p.90) revivem seu mito de quando estiveram no “àiye”.

Quem toca esses instrumentos recebe o nome de Alabé, e somente eles tem autorização para tocá-los, são preparados para exercer essa função durante muito tempo. São respeitados por toda a comunidade de santo, pela força que possuem para invocar os deuses e ainda, “durante as cerimônias, eles saúdam, com um ritmo especial, a chegada dos membros mais importantes da seita e estes vêm curvar-se e tocar respeitosamente o chão, em frente da orquestra, antes mesmo de saldar o pai ou mãe-de-santo do terreiro. (VERGER, 2002, p.31). Geralmente os atabaques recebem uma faixa larga de tecido amarradas a eles, nas cores do orixá homenageado ou do primeiro orixá do próprio Alabé.

Figura 3: Alabés – Tocadores de atabaques. Nanquim e aquarela sobre papel 48 x 66 cm.
Fonte: catálogo da exposição – As cores do Sagrado – Caixa Cultural 2015/RJ

A iniciação no candomblé é um rito de passagem longo e complexo, com finalidade de fazer o indivíduo nascer para um vida sagrada e nela encontrar sua identidade, sua personalidade hereditária mítica do orixá, daquele deus que se apresentou como “dono” daquele ser, ou seja, reencontrar o seu deus pessoal e dele ser um espelho. Muitas etapas compõem o processo de inicialização e dentre elas, Carybé representou os “iaôs[6]”, com suas respectivas pinturas corporais na sua primeira “saída de santo”, onde esse iaô é apresentado no barracão para a comunidade religiosa.

Essas pinturas diferem uma das outras, dependendo do orixá que o filho foi consagrado, são círculos, traços e outros desenhos aplicados no corpo e na cabeça, já sem cabelos. Geralmente é pintado com “efum” uma espécie de giz branco e um pó azul denominado “waji” ou vermelho “osum”. Carybé retratou a beleza dessas pinturas em duas de suas aquarelas.

Figura 4: Iaôs. Nanquim e aquarela sobre papel – 48 x 66 cm.
Fonte: catálogo da exposição – As cores do Sagrado – Caixa Cultural 2015/RJ

Nas religiões afro-brasileiras, o corpo ocupa um papel muito importante na ligação “òrun-àiye”, pois é nele que os orixás conseguem se “materializar”, é literalmente tomar corpo, para que sejam visualizados, através de suas danças, que contaram seu mito. De tal modo, vestir-se corretamente com as roupas, cores e insígnias que correspondem ao orixá é um ato religioso importante, pois é a parte visual do candomblé que será presenciada pela comunidade, interna e externa do terreiro. Vestir o orixá é portanto, “dar-lhe uma forma, uma identidade, ligá-lo a uma cor, a um conjunto de insígnias” (SANTOS, 2005, p.40).

“O orixá particular da pessoa é uma ínfima porção do orixá geral cultuado por todos. É o vínculo do ser humano com o divino, o eterno, o passado mítico.” (PRANDI, 2001, p.51). Quando o iniciado morre, essa parcela do orixá pessoal retorna ao “òrun” para junta-se ao orixá que existe desde o princípio dos tempos.

Carybé observou todos os detalhes para pintar cada um dos os orixás e suas ferramentas e ainda retratou suas principais cerimônias. Procurou enfatizar nos seus desenhos as principais características dos deuses, dando ênfase a personalidade mítica deles. Como exemplo, na aquarela dedicada a Iansã, tida com a dona dos ventos e das tempestades, Carybé a representou numa postura ereta “com nariz erguido, vemos a altivez desta rainha, esposa de xangô, senhora dos ventos e das tempestades. Sua coragem e valentia são marcas de seu comportamento associado ao seu poder de sedução” (SILVA, 2012, p.19). Seu culto está ligado também a ancestralidade, é “[…] tida como a mãe de Egun[7], sendo a única mulher que pode lidar com eles” (ROCHA, 2000, p.71).

Figura 5: Iansã e suas ferramentas. Nanquim e aquarela sobre papel 48 x 66 cm.
Fonte: Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia.

De suma importância nas cerimônias ligadas a morte, o “axexê”[8], sendo ela a “[…] única mulher autorizada a entrar no Ilê Ibó Aku, a casa dos mortos”. (ROCHA, 2000, p.71). É um orixá guerreiro, considerada por muitos como a versão feminina de Xangô, por isso sua cor é vermelha e alguns tons de marrom, e a ela é atribuída a quentura do fogo de Xangô, conforme conta a lenda, relatada por Agenor Miranda.

Oyá foi encarregada de levar uma encomenda para entregar a Xangô. Não resistindo à curiosidade, abriu e engoliu a encomenda. Quando Xangô abriu a encomenda, não tinha nada dentro. Então mandou chamar Oyá para que ela lhe explicasse o que tinha acontecido. Quando Oyá abriu a boca para falar começou a cuspir fogo! Xangô então ficou sabendo que ela havia roubado a encomenda, que era o próprio fogo. Daí em diante, apesar de ser o dono do fogo, Xangô passou a dividir com Oyá o controle sobre ele. (ROCHA, 2000, p.72).

Os candomblés costumam homenagear Iansã e Xangô numa cerimônia chamada “Ajerê”, que revive esse mito. Prepara-se uma panela cheia de fogo e Xangô dança com ela na cabeça no barracão, ocorre então um disputa entre ele e Oyá pela posse do fogo, como no mito. Carybé eternizou em duas aquarelas esse momento.

Figura 6: Cerimônia de Ajerê. Nanquim e aquarela sobre papel 48 x 66 cm.
Fonte: Foto de exposição Casa França Brasil 2016/RJ

“Águas de Oxalá” é uma cerimônia realizada uma vez por ano nas casas de candomblés. Elas contam o mito da viagem de Oxalá ao reino de Xangô, foi realizada na Bahia pela primeira vez e seu calendário foi estabelecido no século XIX por Mãe Aninha, a fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá e é seguindo assim até os dias de hoje. Elas começam sempre na última quinta-feira do mês de setembro e duram três semanas, períodos que todos os filhos do terreiro vestem branco, em homenagem a Oxalá. Agenor Miranda narra o mito:

Contam os antigos que Oxalá resolveu visitar Xangô. Tendo ido consultar o babalaô foi-lhe dito que não viajasse. Oxalá insistiu e partiu em viagem, sabendo que para chegar ao seu destino, não podia contrariar ninguém ao longo do caminho. Deixou Ifé e foi visitar Xangô, rei de Oyó. Já no primeiro dia um homem lhe pediu para carregar um saco de carvão. Resignado, Oxalá carregou o saco e ficou todo sujo. Mais adiante outro homem lhe pediu que carregasse um barril de azeite de dendê. O barril estava mal vedado e parte do azeite escorreu sobre ele. Resignado, Oxalá seguiu adiante. Alguns dias depois Oxalá encontrou um terceiro homem que lhe pediu para carregar um pote cheio de óleo de amêndoa. O pote quebrou e o óleo escorreu sobre ele.

Já nas terras de Xangô, enquanto acariciava um belo cavalo que encontrou em seu caminho. Oxalá foi preso pelos soldados de Xangô que o levaram para a prisão achando que, sujo como estava devia ser algum mendigo ou ladrão. Deste dia em diante o reino começou a atravessar uma série de dificuldades. As flores desapareceram, os animais não procriaram, as pessoas estavam tristes. Xangô então decidiu consultar o oráculo e ficou sabendo que existia alguém muito importante, preso, por engano nos porões de seu palácio e que era a causa de todos aqueles malefícios. Xangô chamou os empregados do Palácio e perguntou se havia algum inocente preso. […] Xangô mandou que trouxessem o preso até ele. Desarvorado ao reconhecer, por trás das roupas sujas e rasgadas e do rosto maltratado seu querido pai Oxalá. […] Horrorizado com a imagem de seu próprio pai tão maltratado à sua frente, Xangô ordenou que ele fosse banhado com as águas mais limpas e em seguida vestido com as roupas mais ricas e alimentado com as melhores iguarias do reino. Chamou então os demais orixás para que o ajudassem e, enquanto as iabás preparavam as comidas. Oxumaré atravessou o arco-íris para chegar até a mais pura fonte, de onde trouxe a água para banhar Oxalá. (ROCHA, 2000, p.76-78)

Figura 7: Águas de Oxalá – Nanquim e aquarela 48 x 66 cm.
Fonte: catálogo da exposição – As cores do Sagrado – Caixa Cultural 2015/RJ

A obrigação tem dois momentos e Carybé registrou-os em três aquarelas, o primeiro remonta o banho de Oxalá. Em procissão, levando água limpa na cabeça, as filhas mais velhas vão até a casa de Oxalá para banhá-lo. As águas representam o arrependimento de Xangô pelos seus erros. Todos os que carregam água na procissão e se arrependem dos seus erros são também perdoados. Depois da procissão e do banho, conta o mito que Xangô reuniu todos os orixás e acompanhou Oxalá de volta para seu reino, como um cortejo, e ao chegar em seu reino é recebido com festa, e nela é servido inhame pilado (amassado). Essa festa é chamada de “Festa do Pilão”.

Figura 8: Cerimônia para Oxalá – Nanquim e aquarela 48 x 66 cm.
Fonte: catálogo da exposição – As cores do Sagrado – Caixa Cultural 2015/RJ

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O temor de Carybé com a possibilidade de desaparecerem com o tempo e com o progresso os ensinamentos originais da religião, realizados oralmente pelas Iyalorixás e Babalorixás, a longa produção artística realizada por ele enquanto membro da casa, convertida em um grande livro, já mencionado, ficou como uma espécie de documentação para as gerações futuras.

Ainda que, sua intenção inicial fosse apenas de documentar o funcionamento religioso, sua iniciação religiosa lhe abriu uma série de possibilidades e conhecimentos, que não teria estando fora da família de santo. E com o passar do tempo sua produção artística foi se modificando e adquirindo mais detalhes, passou a incluir nas aquarelas apenas o essencial e importante daquele momento, possibilitando uma correta leitura visual no futuro. Sua fé e sua arte dentro do culto já não se separavam mais, e ele passa então a transitar entre o artístico e o sagrado, como numa via de mão dupla. Conforme diz, Emanoel Araújo:

A Obra de Carybé ainda suscitará grandes pesquisas pelo muito que ela significa como contribuição à arte nacional pela inquietação nela contida, por trazer um grande conteúdo antropológico, não como um pintor viajante com o olhar de fora, estrangeiro, mas pelo que ele próprio vivenciou, como espelho de sua vida e de povo que ele elegeu como cronista de muitas verdades, muitos mitos, na tentativa de transcendência, num tempo em que esses valores voltam para nossos dogmas não eurocêntricos, numa volta mais profunda a nós mesmos, às nossas raízes miscigenadas. De suas profundas pesquisas da religião afro-brasileira, sua própria vivência com algumas das mais significativas personalidades religiosas como a Mãe Senhora, do Ilê Axé Opô Afonjá. (ARAUJO, 2006, p.29)

As aquarelas apresentam os deuses, seus adornos, assim como os principais ritos e cerimônias sagradas, está tudo ali representado, sem no entanto, desrespeitar o segredo conservado dentro do candomblé, pela tradição da não escrita, e sim da oralidade, fruto de sua destreza em sintetizar em poucos traços o essencial que pôde vivenciar.

Comprovadamente, todas essas representações simbólicas e míticas do universo africano da Bahia são resultado de sua vivência e sua dedicação. Sua vida e sua arte estiveram sempre na construção desse ideário, dessa oralidade complexa e misteriosa. […]. Carybé viu tudo. E ele faz falta na paisagem dessa terra que chora sua falta, chora por ter perdido seu principal intérprete, seu escriba, seu anotador, seu fotógrafo, seu fiel e fidelíssimo filho. (ARAUJO, 2006, p.32)

Carybé não retratou as cenas que viveu de forma indiferente, com um olhar frio e de fora. Ele fez transparecer em suas aquarelas sua fé e amor pelos deuses negros que a Bahia lhe ofertou, esteve presente em muitas festas e cerimônias, fez arte emaranhar-se com fé, traduziu com linhas e cores, a beleza das danças e das vestimentas dos orixás. Não deixou nada passar despercebido pelo seu olhar. Foi respeitoso ao retratar segredos e ritos privados como o “Axexê”, nas últimas aquarelas do livro. Talvez por isso, faleceu dentro da casa de santo que o acolheu, e lhe consagrou filho de Oxóssi e Obá de Xangô. Carybé teve um infarto dentro do Ilê Axé Opô Afonjá em 01 de outubro de 1997 e seus irmãos sepultaram seu corpo com cânticos em saudação à Oxóssi.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. São Paulo: Editora Martins, 1970.

AMADO, Jorge. O Capeta Carybé. 1ªed. São Paulo: Berlendis & Vertecchia Editores, 1986.

ARAUJO, Emanoel. O universo mítico de Hector Julio Bernabó, o baiano Carybé. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2006.

BARRETO, José de Jesus. Carybé, Verger e Jorge: Obás de Xangô. 1ªed. Salvador: Fundação Pierre Verger e Editora Solisluna Design, 2012. (Coleção entre amigos)

CARYBÉ, Hector Bernabó. Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1980.

PRANDI, Reginaldo. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras.  Revista brasileira de Ciências Sociais. [online]. 2001, vol.16, n.47, pp.43-58.

Disponível no link:   http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092001000300003.

ROCHA, Agenor Miranda. As Nações Kêtu: origens, ritos e crenças: os candomblés antigos do Rio de Janeiro. 2ªed. Mauad Editora Ltda, 2000.

SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes. Religião e Espetáculo: Análise da dimensão espetacular das festas públicas do candomblé. 2005. FFLCH/USP. Tese de Doutorado. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-03092007-134704/en.php

SILVA, Vagner Gonçalves da. Artes do Axé. O sagrado afro-brasileiro

na obra de Carybé. In: Revista do Núcleo de Antropologia Urbana da USP – Ponto Urbe. v.10, p.1-47, 2012, posto online no dia 25 Julho 2014. Disponível no link: http://pontourbe.revues.org/1267

SOUZA, Patrícia Ricardo de. Axós e Ilequês: rito, mito e a estética do Candomblé. 2007. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. Disponível no link: http://livros01.livrosgratis.com.br/cp054630.pdf

VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubas na África e no novo mundo. 6ªed. Salvador: Ed. Corrupio, 2002.

2. Os mitos são histórias que servem de exemplo de como a força divina atua sobre as pessoas que entram para a religião.

3. Ordem em que são cantados os cânticos, nas cerimônias de candomblé.

4. Em entrevista. Fonte: http://www20.caixa.gov.br/Paginas/Releases/Noticia.aspx?releID=857

5. São rituais que propiciam a participação das cerimônias ou acesso aos mistérios sagrados.

6. É a denominação dos filhos-de-santo já iniciados na feitura de santo, que ainda não completaram o período de 7 anos da iniciação. Fonte: http://www.dicionarioinformal.com.br/iaô/

7. Espirito Ancestral

8. Ritual fúnebre realizado na casa de santo quando morre um membro da casa.

[1] Especialista em Artes Visuais, Professora do Ensino Fundamental da SME do RJ.

Enviado: Abril, 2018.

Aprovado: Março, 2019.

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Rosemary Fraga Costa

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