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O cinema incômodo de a casa que Jack construiu: éticas da agressão e da crueldade fílmicas

RC: 126747
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/arte/cinema

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PERRONE, Gabriel [1]

PERRONE, Gabriel. O cinema incômodo de a casa que Jack construiu: éticas da agressão e da crueldade fílmicas. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 09, Vol. 02, pp. 194-209. Setembro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/arte/cinema, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/arte/cinema

RESUMO

A casa que Jack construiu (The house that Jack built, 2018) ilustra o trabalho manifesto do diretor dinamarquês Lars von Trier pelo uso de transgressões narrativas e agressões estilísticas. Ao polemizar questões sobre o papel da arte, da expressão, estética e ética, usa do confronto para desestabilizar o espectador e proporcionar uma forma diferente de engajamento. A fim de se compreender esse cinema radical de enfrentamento, emergem as questões que norteiam a análise: o filme, construído por meio do incômodo, intenciona quais efeitos? Quais os motivos do confronto? O presente artigo segue uma abordagem qualitativa a objetivos descritivos por meio de procedimentos bibliográficos. Em articulação aos conceitos das Estruturas de agressão de Noel Burch e do Teatro da crueldade de Antonin Artaud, análise explora as relações táticas de contato com o espectador no uso de estratégias para um cinema incômodo a desafiar reflexões sobre contradições sociais e os resultados da veiculação e visualização da violência.

Palavras-chave: Cinema, Incômodo, A casa que Jack construiu, Agressão, Crueldade.

1. INTRODUÇÃO: UM ELO DIDÁTICO COM O ESPECTADOR

Em Studying contemporary american film, Thomas Elsaesser e Warren Buckland (2002) argumentam que a distinção entre o cinema clássico e o pós-clássico deve ser entendida não apenas no contexto do filme como um texto (discurso), mas também no contexto do filme como uma experiência (evento). Enquanto o cinema clássico é caracterizado pela integração entre narrativa e desenvolvimento temporal, o pós-clássico apresenta a narrativa subordinada ao imediatismo e à imersão. Em outras palavras, no cinema pós-clássico, o espectador é convidado em emoções e corpo a se tornar um participante ativo e intrínseco à experiência fílmica. Os conceitos de Kurt Lewin (1935) contribuem a este entendimento com a noção de espaço hodológico quando expõe a maneira pela qual o cinema pós-clássico redefine a visão sobre o espectador colocando-o em um novo tipo de espaço de contacto. Tal espaço diz respeito à experiência humana como um campo complexo de energia social e, aplicado ao cinema, pode mostrar que a experiência cinematográfica é muito mais imediata, muito mais dependente da existência dos outros, e muito mais socialmente condicionada. Sob esta ótica, o cinema não é um tipo de universo externo objetivado e afastado por uma barreira intransitável que separa o corpóreo intelectual ou o eu autor do espaço público. Em vez disso, o cinema é uma questão de sentidos que emerge entre o interior do mesmo e o exterior do mundo e, também, entre diferentes temporalidades e espacialidades. O cinema de Lars von Trier ilustra esta cinemática entre as coisas pelo uso de transgressões narrativas e agressões estilísticas que obrigam o espectador a criar o espaço intersubjetivo por si mesmo.

A casa que Jack construiu (The house that Jack built, 2018) é o mais recente thriller do diretor dinamarquês Lars von Trier. Nele, o serial killer Jack escolhe de forma aleatória cinco assassinatos, aos quais chama de incidentes, que cometeu ao longo de doze anos, para narrar sua história para Virgílio, que o conduz pelos círculos do inferno numa relação intertextual com a Divina Comédia (1472), de Dante Alighieri. Virgílio, ou Verge, como Jack o chama com muita intimidade, age como um antagonista que questiona não apenas a conduta do assassino, mas, também, traz um ponto de vista satírico de von Trier sobre seus próprios filmes e temas voláteis nos quais se envolveu nos últimos anos.

Os diálogos entre os dois polemizam temas controversos nas tradições culturais da sociedade contemporânea. Jack busca defender a brutalidade, o horror e o assassinato como forma de arte, vista como expressão política. Ao mesmo tempo, sugere ao espectador uma série de questionamentos: Por que alguém é cruel? A arte serve como espaço de sublimação de desejos perigosos? O artista passa para o cinema, para as artes plásticas, música, escultura, todos os horrores que não consegue fazer em sociedade? Esses dilemas são colocados no filme exatamente como os pensamos, entre o real e o irreal, situação diante da qual Lars von Trier se descortina em tom de manifesto. Mesmo se utilizando de métodos que soam experimentais ou hostis – vide as leis do Dogma 95, a ausência de cenários em Dogville (2003) e Manderlay (2005), a arbitrariedade com que seus dramas se resolvem – von Trier é um realizador que transforma elementos de negação do cinema em artifícios indiscutivelmente cinematográficos. Justamente por manifestar e antecipar seus métodos de criação, por utilizar essa autoconsciência como uma espécie de hipersignificação ilustrativa dos elementos em jogo, que o diretor estabelece um elo de apelos muito didáticos com o espectador. Ainda assim, o filme, construído por meio do incômodo, intenciona quais efeitos? Quais os motivos do confronto? Para isso, antes, se faz necessária uma investigação mais ampla sobre o que narra o filme.

Figura 1 – A casa que Jack construiu em relação intertextual à Divina Comédia, de Dante Alighieri

A casa que Jack construiu em relação intertextual à Divina Comédia, de Dante Alighieri.
Fonte: Zentropa Entertainments.

2. A MATÉRIA-PRIMA É O CORPO HUMANO

Desde o início, a questão fundamental é relativa ao material já que toda criação e construção deve começar com a matéria. O material inicial utilizado por Jack para o primeiro da série de assassinatos é um macaco, aquele instrumento mecânico hidráulico utilizado na suspensão do automóvel para a troca de pneus, e que, na língua inglesa, morfologicamente, possui o mesmo nome do protagonista. O macaco marca a transformação na conduta do protagonista e instaura o procedimento que irá determinar o tipo de construção que será a casa que Jack pretende empreitar. Na explicação sobre a arquitetura das catedrais góticas, Jack diz: “O material faz o trabalho. Tem uma espécie de vontade própria e seguindo essa vontade o resultado será primoroso”. Portanto, não é por simples acaso que a personagem se chame Jack, já que o macaco para o assassinato é a ferramenta que irá gerar os corpos que formarão a casa de Jack. Então, o macaco hidráulico – jacké o instrumento para a morte, assim como Jack – o assassino – também o é. É o objeto, neste jogo de palavras, que traz o Jack assassino, construtor da casa corpórea que ele terá e, também, a casa que constitui quem Jack é.

Jack é engenheiro e aspirante a arquiteto. O arquiteto é o primeiro entre os construtores e o construtor do que vem em primeiro lugar, da Arché, que, para os filósofos pré-socráticos, é o elemento que deveria estar presente em todos os momentos da existência de todas as coisas do mundo, o princípio substancial ou substância primordial existente em todos os seres materiais, a matéria-prima de que são feitas todas as coisas (BORNHEIM, 1967). Aristóteles define a metafísica como a filosofia primeira capaz de fornecer fundamento a todas as ciências, uma ciência arquitetônica (ARISTÓTELES, 2012)[2]. Desta maneira, alinhando toda esta articulação conceitual presente nas entrelinhas do filme, é possível compreender a caracterização desdenhosa e irônica de Virgílio em relação a Jack ao defini-lo como um teórico. Afinal, o próprio Jack assina seus assassinatos pelo pseudônimo artístico Mr. Sophistication. Em sofisticação, temos o morfema sofis, equivalente à sofia da filosofia dos filósofos e dos sofistas, a profissão criada por Protágoras, discípulo de Demócrito, um tipo específico de professor na Grécia antiga e no império romano que deveriam ensinar a arete, termo grego que traduz o conceito de excelência ou virtude (JAEGER, 1945) – duas grandezas que Jack, Mr. Sophistication, se empenha em transmitir.

Se a ferramenta da arte do sofista é a linguagem e para o filósofo “a linguagem é a casa do ser” (HEIDEGGER, 1998, p. 274), Mr. Sophistication recusa um conceito que se pode escrever simplesmente em letras e palavras. Mesmo em seus ataques à religião, seu método possui as mesmas características ritualísticas, todo um fazer baseado em fortes crenças como a própria religião. Jack prefere algo mais penetrante como o apóstolo bíblico Paulo, que escreve suas cartas “não em tábuas de pedra, mas em tábuas de corações humanos!” (BÍBLIA, Coríntios, 3: 3). A casa que Jack construiu não é a casa da linguagem, da significação, da representação, mas a casa carnal feita pelos órgãos humanos mantidos em seu freezer. Não é o corpo, esse corpo que habitamos, nossa casa e nós mesmos? A casa de Jack é a organização dos vários corpos de suas vítimas e, novamente citando Paulo, “como cada um de nossos corpos é um membro do corpo de Cristo, da Igreja, cada um de nossos corpos é ele próprio uma igreja, um templo no qual Deus habita” (BÍBLIA, Coríntios, 12: 27), então, não é qualquer casa, mas sim um templo. Assim, pode-se compreender o discurso de Jack sobre a arquitetura das catedrais dedicadas aos deuses, que se preocupam mais com a estética em detrimento da ética.

É importante ressaltar, dado ao teor irônico à religiosidade, que Jack não se vê como um indivíduo clérigo ou portador de uma identidade religiosa, e sim como um artista à serviço das concepções filosóficas. Se para Foucault a filosofia é uma arte de viver (MILLER, 1993), a arte de Jack é mais fiel à definição de Sócrates da filosofia como a arte de morrer (PLATÃO, 1986). O protagonista fornece uma explicação que é teleológica, dos estudos dos fins, propósitos e finalidades, e, ao mesmo tempo, escatológica: “o objetivo final do ser humano não é anterior à morte, mas posterior”. Jack explica que é apenas a decomposição da uva que a eleva à arte. E nisto, pode-se encontrar os dizeres do apóstolo João: “se o grão de trigo for jogado na terra e não morrer, ele continuará a ser apenas um grão. Mas se morrer, dará muito trigo” (BÍBLIA, João, 12: 24). Desta forma, Jack vê o corpo humano atingindo o lugar de obra de arte quando atinge sua finalidade, a morte. Ao cumprir este objetivo, se chega à perfeição. Assim, não há outro material adequado para a arte de Jack além do próprio corpo humano. Se Jack falha repetidamente em construir sua casa com tijolos e argamassa é porque erra na identificação do material ideal, aquele com vontade própria, o material ser humano. Há, portanto, um papel de discussão extremamente pungente sobre o estado da arte. Quando se põe em tela um assassino em série que pensa assassinato como forma de arte, levanta-se o questionamento: até onde o pensar artístico pode levar? Mas, principalmente, até onde vai o papel humano na criação?

Pode ser coincidência, ou não, que A casa que Jack construiu tenha sido lançado exatamente no bicentenário de Frankenstein (1818) de Mary Shelley. Tanto o filme de Trier quanto o romance de Shelley oferecem uma reflexão sobre o significado de techné, entendida como qualquer tecnologia científica ou de criação artística. Ambos, Dr. Frankenstein e Jack, são motivados pelo mesmo desejo de criar. Seus projetos servem a extremos opostos, mas compartilham o mesmo material. A criação, artística ou tecnológica, não é livre, está sempre vinculada à destruição. Na medida em que a criação humana é condicionada a um mundo já criado, não se pode criar sem deixar de alterar, reconfigurar, e, assim, destruir. Dr. Frankenstein e Jack não se contentam com a matéria inerte, já criada. Eles exigem um tipo diferente de material, o material divinal, que é o material adequado para a criação divina. Em suas ambições de arquitetura, Jack refere-se ao “Grande Arquiteto por trás de tudo”. Shelley chama a atenção para a arrogância do Dr. Frankenstein, chamando-o Victor e depois de “o potente Victor” (SHELLEY, 2021, p. 89), uma referência ao “o potente Victor” do poema de John Milton, Paraíso perdido (MILTON, 2001, p. 7)[3].

3. É A DOR QUE ESTÁ EM CAUSA, A CRUELDADE ESTÁ NO FUNDAMENTO DO ESPETÁCULO

Jack rejeita o engano de uma arte que se formou de uma aliança profana com os poderes opressivos da civilização, uma arte que a política da polis instrumentaliza a fim de alcançar e manter sua autopreservação. Ele diz: “Algumas pessoas afirmam que as atrocidades que cometemos na nossa ficção são os desejos internos que não podemos cometer em nossa civilização controlada. Eu não concordo”. Jack exige que a nossa admiração estética não seja voltada para o mal sublimado – castrado – mas para o próprio mal. E, então, o filme sugere algumas indagações: É menos má a atrocidade sublimada do que a maldade crua do ato criminoso simplesmente porque a primeira é representada pelas lentes neutralizantes da arte, que oferecem um lugar desapegado e, portanto, seguro para nós, os espectadores e o artista que comete a atrocidade impune? Ou o mal retratado através da arte é pior precisamente porque é sublimado? A arte de Jack, por outro lado, é uma arte que descarta o artificial; uma ficção sem o conforto do fictício; um significado nu de sua significação; uma apresentação sem representação. Tal arte sem mediação não pode deixar de ser uma arte radical do mal. À vista disto, para pensar tais questões sobre arte, expressão, imagem, forma, estética e ética, entendendo a ética como uma intenção do provocar o incômodo para desestabilizar o espectador e proporcionar uma forma diferente de engajamento e reflexão, são pertinentes os conceitos sobre as estruturas de agressão de Noel Burch, onde o autor dedica todo um capítulo a discorrer sobre o tema em seu Práxis do Cinema de 1969. Burch defende que o mal-estar, ou como aqui chamamos de incômodo, como forma de agressão, toma um lugar mais importante e evidente na temática do cinema mais recente[4] (BURCH, 1992)[5]. Para ele, a censura cinematográfica foi sempre um meio da massa se proteger contra o que não quisesse ver, contra tudo o que ameaçasse o seu controle físico e moral. Portanto, é o caso de um fardo imposto aos cineastas pela massa, de um gesto de autodefesa pelo qual a massa se protege ante às sensações fortes que o meio e os cineastas podem exibir.

Todas essas formas de agressão nascem da relação muito especial, quase hipnótica, que se estabelece entre o espectador e a tela quando o cinema fica escuro. […] Não importa o grau de consciência crítica do espectador para que, sentado dentro de uma sala escura, subitamente só diante da tela, fique à mercê do realizador, que passa a poder violentá-lo a qualquer momento e por qualquer meio (BURCH, 1992, p. 152).

Burch considera que todas as imagens realmente censuráveis constituem, esteticamente, agressões. Então, a investigação tende a focar de que modo a dor, porque é a dor o que está em causa, quase sempre dor moral, mas também física, pode ser considerada como uma das componentes da experiência estética ao ser vivida “através de uma dialética da transgressão para apreender, ainda que confusamente, a dimensão abstrata de uma obra de arte” (BURCH, 1992, p. 148). Ao abordar filmes que retratam a violência histórica da humanidade de maneiras mais nuas e impactantes e que se estabelecem como um ataque agressivo em direção ao espectador, o autor aborda o efeito produzido tanto, simultaneamente, incômodo e perturbador quanto belo em função do próprio sentimento de mal-estar que põe em causa. Para Burch, os que não aceitam tais atitudes são incapazes, por motivos compreensíveis, de considerar os horrores deste tempo como partes integrantes da dramaturgia da história e de fazer com que a obra que tenha o merecimento de ser estudada no seu intuito de exibir para incomodar. O autor exemplifica com o curta-metragem de Georges Franju, O sangue das bestas (Le Sang des Bête, 1948):

No começo são apresentas imagens de uma poesia bem populista, acompanhadas de música delicada e uma narração nostálgica que “embalam” o espectador. […] Não sabemos até aqui nenhum tipo de ameaça a quem assiste se não fosse o título do filme, a nossa confiança seria igual à do simpático cavalo que vemos ser levado gentilmente através do pátio de um matadouro (BURCH,1992, p. 153).

Burch diz ser a imagem de morte súbita mais avassaladora, em sua nudez, de todas as que nos deu o cinema até então. O espectador sofreu o primeiro choque. Este choque irá se repetir ao longo do filme em diversas variações. E pode realmente se dizer que esta é uma obra em que toda a ritmia é determinada por uma sucessão de descargas de dor. Ritmia porque estas descargas são de uma intensidade muito variada como a degola de uns dez cordeiros no espaço de poucos segundos, seguido do enchimento dos cadáveres com ar comprimido e do esfolamento até a um longo plano das carcaças fumegantes “como uma nota sustida longamente e de uma beleza espantosa, de onde parece soltar-se o odor da própria morte” (BURCH, 1992, p. 154). Noel Burch explica que a existência no filme destas estruturas é esculpida no horror, são percebíveis inevitavelmente através de um véu de dor porque cada espectador é vulnerável a estes assaltos brutais.

É, portanto, uma incapacidade com que certo crítico tivesse podido acusar Ingmar Bergman de oportunismo político pelo fato de haver incluído uma cena real filmada no Vietnã no seu filme Persona. O crítico referido está de tal modo cego pelo seu próprio sistema de referência que não pode ver que, para um espírito como o de Bergman, a imagem de um monge que se suicida com fogo perdeu a conotação política para passar a significar a violência e a injustiça dos homens, e, pois, uma componente poética necessária num momento preciso do filme (BURCH, 1992, p. 162).

Então, atinge-se a questão da violência estética para tratar da violência dos homens e, para este intuito, Antonin Artaud e seu manifesto sobre o teatro ou cinema da crueldade traz consideráveis contribuições. As teorias de Artaud imaginavam um novo teatro radical com uma função ritual, uma espécie de alquimia transformacional destinada a perturbar o espectador da passividade indolente. Enquanto o teatro ocidental era baseado na psicologia, levando o espectador a dormir na zona segura do prazer voyeurista, Artaud pediu um teatro da crueldade baseado em espetáculos roteados pelo corpo. Para ele, o teatro pode praticar em nós a crueldade terrível e necessária, para nos fazer compreender que “[…] não somos livres. E o céu ainda pode cair sobre nossas cabeças. E o teatro foi criado, em primeiro lugar, para nos ensinar isto” (ARTAUD, 1976, p. 113). Para Artaud, o teatro, e aqui pode-se incluir o cinema, tem o poder de nos ensinar que somos capazes de atos de crueldade e que os atos violentos não são simplesmente a mando de pessoas más, mas de todas as pessoas. Paradoxalmente, ao perceber que todos nós somos capazes de provocar violência, o teatro da crueldade cria as condições para que possamos praticar uma transformação na qual entendemos sobre do que somos capazes. E, o poder do cinema é talvez o mais forte em momentos, especialmente, que envolvem a violência. Pela ótica de Artaud, a crueldade está no fundamento de todo espetáculo.

[…] e isso pode ser igualmente válido para o cinema. Um conjunto mais restrito de filmes que retratam a violência explícita a serviço de trazer à tona, ultrapassando a tela, o que o cinema pode com mais força: o que se destaca quando nos faz questionar quem somos, e consegue isso não necessariamente através de obras filosóficas abstratas, mas “através da pele” – através de obras que não proporcionam prazer na visualização pela abstração, mas que induzem em nós a sensação física de repulsa. O idealismo de Artaud demanda um olhar franco para a humanidade e de tudo do que ela é capaz na esperança de afetar os organismos para uma mudança (BLUM, 1971, p. 22). 

4. A ARTE EXIBE A MORTE, REPRESENTA AQUILO QUE JÁ NÃO O É

Mesmo que A casa que Jack construiu pareça se centrar predominantemente nas artes visuais, como na fotografia bidimensional e a arquitetura tridimensional, uma vez que estes são os dois campos de expressão artística de Jack, a verdadeira protagonista, no entanto, é a música, não dimensional. Não só o filme é pontuado com pequenos vídeos de Glenn Gould praticando o piano – “Ele representa a arte”, como Jack explica a Verge – a justaposição do artista para o criminoso pode sugerir que Jack, como um serial killer, é tanto um gênio artístico quanto Glenn Gould ou, ainda mais, que o gênio artístico é tão perigoso como o assassino em série. A prioridade da música no filme de Lars von Trier pode se tornar menos intrigante se fôssemos considerar que a música é a arte imaterial (MANOUSSAKIS, 2007, p. 109). Entretanto, de todas as artes, “a música sozinha mantém a força e a violência de suas origens no assassinato: o assassinato do animal – a caça – ou o assassinato do humano – a guerra” (QUIGNARD, 2016, p. 202). Na história do Terceiro incidente, no filme, Jack destrói esta distinção, “caçando” uma mulher e seus dois filhos. A discussão de Jack sobre o Stuka, o famoso bombardeiro da força aérea alemã durante a Segunda Guerra Mundial, ressalta a função das sirenes do avião como um som ensurdecedor planejado como um ato psicológico de guerra. A música de máquinas de matar como a deste avião de ataque captura suas vítimas muito antes de realmente atingir seu alvo. “Pode-se sobreviver à bomba, mas ninguém pode escapar do som”, ele diz. Também, é a música que possui um lugar destacado no inferno, no epílogo do filme, quando Trier compõe seu katabasis, o termo mitológico grego usado para se referir à descida ao mundo inferior. Virgílio explica a Jack que o zumbido que ele ouve é o som que o inferno gera:

Não devemos nos concentrar em extrair gritos e lamentos porque os gritos de dor de tantos milhões de indivíduos juntos se tornam o que você acabou de ouvir. Um zumbido cuja intensidade aumentará à medida que nos aproximamos da presença do sofrimento. 

Ao dizer isto, Virgílio cita a si mesmo e, mais especificamente, o Canto VI da Eneida. Virgílio parafraseia Sófocles: “E o enxame dos mortos vibra à medida em que desce. Essa é a música terrível da morte” (VIRGÍLIO, 2005, p. 169)[6].

O filme se configura como um desafio ao espectador na relação problemática entre a ética e a estética. Na Grécia antiga, a relação entre o Bom – Agathon – com o Belo – Kalon – era estabelecida com a ética subordinada pela estética. O feio, o inválido e o deficiente eram dispensáveis (SCOTT, 2019). Pode-se pensar em paradigmas semelhantes, mais atuais, quando, nas sociedades contemporâneas, os gostos pessoais e culturais são fortemente determinados pelos critérios estéticos. Trier sugere que essa relação pode ter resultados catastróficos como vimos e vemos nas ondas fascistas, os preconceitos endêmicos e as categorizações dos seres humanos como melhores, piores, dispensáveis ou de eliminação propícia. E von Trier vai além, se temos bons motivos para libertar a ética da estética, por que impedir que considerações éticas decidam o valor estético de uma obra, mesmo que seja um crime ou uma casa composta por cadáveres decomposição? Os visitantes dos campos de concentração de Auschwitz não devem tomar um momento para admirar a “perfeição” pela qual um extermínio em tão grande escala foi realizado de maneira tão sistemática e eficiente? Não é o sofrimento injusto do herói trágico que torna a tragédia tão sublime? Não é um exemplo de arte o processo de mumificação da vida do Egito antigo? A arte representa aquilo que já não o é, mostra o que está morto, ou melhor, a arte mata aquilo que retrata. Seguindo esse pensamento, toda arte é monumental, funerária, e a casa corpórea de Jack pede para ser reconhecida como uma verdadeira obra-prima em acordo com tais abordagens. Trier gosta da provocação, de encontrar as brechas nos discursos e tradições sociais para colocá-las em xeque. Como definir a ética para um serial killer que, seguindo Nietzsche (1999)[7], declara que “só como fenômeno estético a existência e o mundo aparecem eternamente justificados” (p. 33).

Figura 2 – A casa corpórea de Jack

A casa corpórea de Jack
Fonte: Zentropa Entertainments.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A CASA NÃO É QUALQUER EDIFÍCIO

Em toda esta estratégia do incômodo proposto por Trier, quando é levantada a possibilidade altamente improvável da existência da ética de um assassino, o público pode se deparar com uma pergunta diferente: Por que a casa que Jack construiu é precisamente uma casa? Entre todos os objetos e estruturas do mundo, Jack poderia ter escolhido qualquer outro. A casa não é qualquer edifício. A casa se constrói onde o homem habita. De acordo com Heidegger (2001), “não habitamos porque construímos, mas construímos porque habitamos, isto é, porque somos moradores. De fato, ser um ser humano significa […] habitar” (p. 146). A casa que Jack construiu é então uma questão profunda, não importa o quanto é perturbadora, vem do desejo humano de fazer um lugar para si, que tenha sua identidade e onde se pode ser, pelo menos ali, livre para ser quem verdadeiramente é. Heidegger nos promete que “se ganha mais se a habitação e a construção se tornarem dignas de questionamento porque é o questionamento que traz o pensamento” (p. 148-149).

Tendo os conceitos das estruturas de agressão de Burch e da crueldade de Artaud, pode-se chegar a algumas considerações sobre o filme de Trier, que atendem às questões que instigaram a investigação, a fim de se compreender as ambições do diretor a realizar um filme incômodo por meio do confronto. O próprio título do longa, The house that Jack built, vem de uma rima tradicional britânica: “Jack constrói uma casa e nela guarda grãos; em seguida, vem um rato que come os grãos; depois, um gato surge e come o rato….”[8] Esta mesma dinâmica anunciada no título de uma narrativa em abismo onde vemos aparecer personagens que serão devorados pelo mais forte faz referência ao funcionamento do mundo, da sociedade atual. Então, é o mesmo que Artaud exige que seja mostrado em seu teatro da crueldade de forma violenta, numa relação que invada o espectador para que sirva de mudança e que Burch defende como os horrores deste tempo como parte integrante da dramaturgia da história e, assim,  material para o uso do artista que pode optar por uma abordagem mais incisiva que rompa a censura feita pela massa para que ela veja o que não quer ver. E Lars von Trier, tido por muitos como um radical, assim como Artaud, pode até ser um autor que exerce seu ofício pelo impacto, mas, ainda assim, trabalha seu cinema, em última instância, como uma experiência de forte contato com o público, muito semelhante à invasão que Artaud pretende.

Stanley Cavell[9] expressa alguma ambivalência sobre qual é a melhor posição na visualização das atrocidades do mundo, aceitar o mundo como horrível ou se revoltar com seus horrores, e conclui que “é ainda mais terrível perder a capacidade desse horrorizar” (ROTHMAN, 2005, p. 26). Enquanto os filmes causam revoltas, levantando questões sobre a ética em respeito à dor dos outros, talvez haja benefícios a serem aproveitados ao assistir obras particulares que se utilizam da violência. Estes benefícios incluem a possibilidade de alcançar um modo ético de visualização, em que não se assiste para o prazer, não se visualiza necessariamente a fim de ter o prazer de assistir o sofrimento alheio, mesmo em se tratando do outro fictício. Ao contrário, sentir o horror ante os atos horríveis que se assiste, este modo ético de engajamento, não é provocado por filmes em que a violência é apresentada na tela por estados de ânimos ou diversão. Em vez disso, é provocado em obras que retratam a violência de forma contextualizada no que se pode considerar uma mais profunda exploração da crueldade em que seja possível incomodar. Isto coloca o espectador na situação de contraste com a noção de prazer, o que talvez seja central para o horror como gênero. Todavia, deve-se considerar o prazer da espectatorialização diante do êxito de tais estratégias de repulsa à crueldade.

No ato final, os próprios corpos congelados se tornarão o material da casa. Tudo pertence a uma mesma dimensão irrelevante, um mundo onde não existem mais significados, onde qualquer hierarquia moral ou material foi banida. Todo esse movimento de antissignificação, de banalização moral de todo corpo e matéria, dá liberdade para o diretor trazer o discurso que deseja – sendo o ápice disto o momento em que Jack vê grande valor na construção pela destruição e, assim, o filme joga com imagens do regime nazista. Quando, em uma reflexão sobre o fazer artístico, Jack comenta sobre sua descrença de que as atrocidades que cometemos na ficção e na arte são desejos interiores que nossa civilização não permite extravasar, deixa claro esse ceticismo por qualquer polarização moral. Afirma: “Eu acredito que o céu e o inferno são apenas um. A alma pertence ao céu e o corpo ao inferno”. Então, a dimensão da matéria, de tudo o que é físico e concreto no mundo, se encontra igualmente amaldiçoado a uma mesma realidade obscura.

Figura 3 – A matéria ultra flexível e a banalização da morte nos cartazes promocionais do filme

A matéria ultra fexível e a banalização da morte nos cartazes promocionais do filme
Fonte: Nordisk Film Distribution.

Ao tornar toda definição material e moral ultra flexível, ao banir qualquer rastro de humanidade, propõe uma banalização dos horrores do mundo e o resultado se mostra inevitavelmente incômodo. Entretanto, a banalização da violência no filme dá indícios de não estar interessada em um simples efeito de choque, mas em uma reflexão sobre a artificialização dos princípios sociais. Em um determinado momento, um diálogo traz uma história sobre o tigre e o cordeiro, falando sobre o primeiro ser totalmente agressivo/instintivo, enquanto o outro seria o passivo a viver sua vida tranquilamente. Essa clara analogia apresenta, metaforicamente, os dois lados da própria essência do homem e instiga a indagação: por que Jack seria diferente de qualquer outro ser humano? Se os seres humanos são autodestrutivos e destrutivos entre si, se populações elegem fascistas, sanguinários e assassinos, indivíduos que homenageiam torturadores, além dos outros que os veneraram, por que a arte não poderia ser também a destruição e um assassino seu protagonista? A casa que Jack construiu se encaixa em um momento propício dos tempos, é uma obra sob o estado crítico da arte dentro de uma humanidade marcada pela evidente falta de memória histórica e reflexão crítica. Algo que não deixa de ser, também, de forma ainda mais ampla e abrangente, uma agressão à construção social e seu rastro de corpos mutilados, incinerados, vítimas do seu progresso.

REFERÊNCIAS 

ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edipro, 2012.

ARTAUD, Antonin. Selected writings. Berkeley: University of California Press, 1976.

BÍBLIA. N. T. Coríntios. In. BÍBLIA português. Sagrada Bíblia católica: Antigo e Novo Testamentos. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica de Aparecida, 2008.

_________. João. In. BÍBLIA português. Sagrada Bíblia católica: Antigo e Novo Testamentos. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica de Aparecida, 2008.

BLUM, William. Toward a cinema of cruelty. In. Cinema journal. v. 10. n. 2. Austin: University of Texas Press, 1971.

BORNHEIM, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1967.

BURCH, Noel. Práxis do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1992.

ELSAESSER, Thomas; BUCKLAND, Warren. Studying contemporary american film: a guide to movie analysis. Londres: Bloomsbury Academic, 2002.

HEIDEGGER, Martin. Pathmarks. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

HEIDEGGER, Martin. Poetry, language, thought. Nova York: Perennial Classics, 2001.

HORECK, Tanya; KENDALL, Tina. The new extremism in cinema: from France to Europe. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2011.

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SHELLEY, Mary. Frankenstein. Londres: Global Grey, 2021.

VIRGÍLIO. Eneida. Unicamp: eBooks Brasil, 2005.

APÊNDICE- REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. Originalmente escrito no século IV a.C.

3. Originalmente publicado em 1667.

4. Cabe, aqui, a consideração sobre a expressão “cinema mais recente” tendo como fonte uma publicação de 1969. Ainda assim, as abordagens de Burch se mantém como estratégias presentes e ainda mais arraigadas, a exemplo, no extremismo francês dos anos 90 em diante (HORECK; KENDALL, 2011).

5. Originalmente publicado em 1969.

6. Originalmente escrito no século I a.C.

7. Originalmente publicado em 1872.

8. The house that Jack built é uma canção popular infantil britânica e conto cumulativo de autoria desconhecida, fazendo parte do folclore popular britânico. Disponível em: http://www.pitt.edu/~dash/type2035.html. Acesso em: 27 de dezembro de 2020.

9. Originalmente apresentado na conferência Bergman and dreams (Harvard University, janeiro de 1978), impresso em 1979 pela Critical inquiry e publicado no conjunto de ensaios intitulado Cavell on film sob organização e edição de William Rothman.

[1] Doutor em Comunicação (Universidade Anhembi Morumbi – UAM / SP), Mestre em Imagem e Som (Universidade Católica Portuguesa – UCP / Portugal), Pós-graduado com Especialização em Educação e Novas Tecnologias (Universidade Federal de São Carlos – UFSCar) e Graduado em Comunicação Social – Rádio e Televisão (Universidade Estadual Paulista – UNESP). ORCID: 0000-0002-2967-4100.

Enviado: Setembro, 2022.

Aprovado: Setembro, 2022.

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Gabriel Perrone

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