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A glitch art em jogo com a subjetividade

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

COELHO, Carmem Martins [1]

COELHO, Carmem Martins. A glitch art em jogo com a subjetividade. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 05, Vol. 03, pp. 56-73. Maio de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/arte/glitch-art

RESUMO

A glitch art é uma forma de expressão artística que consiste na corrupção de dados digitais ou na manipulação de aparatos eletrônicos. Ela teve grande expansão na última década, de modo que, nos últimos cinco anos, a glitch art foi a premissa de diversas mostras internacionais mundo afora. A partir da admissão do glitch, uma nova interação se estabelece entre o usuário e o dispositivo, que começa a revelar camadas de seu sistema interno, antes ocultas. Assim, o que tal forma de arte propõe é um jogo com a expectativa, percepção e subjetividade do espectador, mas isso não explica por si só o que tal relação acarreta de novo para esse indivíduo. Portanto, a pergunta que guia este artigo é: de que forma a glitch art intervém na subjetividade do sujeito? Com base nessa pergunta, o artigo analisa três videoartes de Rosa Menkman, teórica, curadora, artista visual holandesa especializada em arte de falhas e autora do texto Glitch Studies Manifesto. As obras escolhidas para a pesquisa são: Radio Dada, Eastern Fire Swim e Dear Mister Compression. O objetivo do trabalho é compreender de que maneira essa expressão artística contemporânea impacta a subjetividade individual e coletiva. A metodologia adotada é a revisão bibliográfica dos temas correlacionados à pergunta que norteia esse trabalho, que são: arte contemporânea; dispositivos tecnológicos e poder; imagem e mídia; e subjetividade no campo digital. A análise das três obras escolhidas, juntamente com discussão que cada uma levanta a respeito da relação sujeito-dispositivo, leva a alguns resultados. Pode-se dizer que a glitch art intervém na subjetividade do espectador de modo a estimulá-lo a pensar em como a tecnologia estrutura desejos e expectativas, desmancha a ideia de neutralidade do dispositivo, e ainda, concebe novas possibilidades estéticas que surgem a partir da incorporação do glitch. Assim, conclui-se que a glitch art se insere na arte contemporânea com a proposta de levar o público a uma relação menos passiva com a tecnologia, afastando-se do uso banal cotidiano em direção a um uso mais ciente e experimentativo

Palavras-chave: ruído, glitch art, tecnologia, dispositivo, subjetividade.

INTRODUÇÃO

Pensar a arte é pensar também seus meios e suportes. A história da arte, apesar de sua inegável autonomia, não pode ser completamente dissociada da história dos dispositivos. E esses dispositivos, que atuam como meio e suporte para produção artística, são, desde a revolução industrial, e cada vez mais, segmentos da comunicação. Ao longo do século XX, observou-se uma eclosão de diversos dispositivos tecnológicos que fomentaram a produção cultural, desde os nichos mais gerais e populares, vinculados à cultura de massa, até às vanguardas artísticas e suas experimentações. Por este motivo, Santaella (2008) alega a convergência entre os campos das comunicações e das artes. Como a própria argumenta, o plural atribuído a ambos os campos se justifica pela extensão de diferentes coisas às quais eles se referem.

Não há uma comunicação ou uma arte, mas uma porção de coisas às quais se convencionou chamar de comunicação ou de arte e que cada vez mais se cruzam. Santaella (2008) sinaliza uma perda significativa, tanto para a comunicação quanto para a arte, quando a cisão entre os campos é alimentada. Esta delimitação limita o primeiro campo à concepção reducionista da comunicação de massa, enquanto o segundo se mantém circunscrito aos estereótipos anacrônicos da arte, sem levar em conta a pluralidade da produção artística contemporânea.

A Revolução Industrial proporcionou inúmeras máquinas, dentre elas, várias reprodutoras de linguagem. A arte não teve escolha diante desse cenário a não ser passar por uma metamorfose. É importante que se compreenda a dimensão do impacto das transformações culturais do período na arte, que não devem ser compreendidas como mudanças apenas quantitativas, mas também qualitativas. Como Walter Benjamin expõe em seu trabalho “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica (2014), o impacto da reprodução técnica foi tamanho que encabeçou uma refuncionalização da arte. Observou-se, nas vanguardas modernistas, uma desconstrução cada vez mais brusca dos códigos pictóricos e dos sistemas de codificação, vigentes desde o Renascimento. Algumas décadas depois, a pop art radicalizou ainda mais nesse processo ao incorporar a publicidade, a indústria, a reprodução mecânica, ora de maneira crítica ou irônica, ora não.

Assim, percebe-se que uma categorização fixa da arte se tornou cada vez mais fugidia. Processo esse que se intensifica com o surgimento de novos meios de produção, consumo e distribuição. É o que Lúcia Santaella (2008) chamou de cultura das mídias, em oposição à cultura de massas. Segundo ela, trata-se de dispositivos tecnológicos que, em oposição aos meios de massa – estes só abertos para o consumo -, viabilizam uma apropriação produtiva por parte do indivíduo. Nesse contexto, surge a arte produzida no ambiente gráfico computacional. Os computadores (e os celulares, que podem ser compreendidos como computadores de mão) são parte estruturante da sociedade contemporânea e, por isso mesmo, encorajam investigação artística.

A glitch art é uma das tendências artísticas que aparecem no cenário digital. Por meio da distorção de dados digitais ou interferência em aparatos eletrônicos, a glitch art se apropria da falha e do mal funcionamento da interface. Rosa Menkman é uma artista visual, pesquisadora e curadora que explora falhas de software. Segundo Menkman (2011), o sistema de computador é composto por camadas de protocolos ofuscados que encontram sua origem em ideologias, economias, estruturas políticas e convenções sociais. Portanto, cabe aos artistas da glitch art desconstruir as hierarquias desses sistemas de montagem. Resta ainda entender qual é o efeito de tal perturbação no espectador.

De que forma a glitch art intervém na subjetividade do sujeito? Essa é a pergunta norteadora do artigo, que visa investigar o que resulta de uma nova interação com um dispositivo advindo do uso do glitch para fins artísticos. O objetivo é compreender de que maneira essa expressão artística contemporânea propõe uma diferente interação com a tecnologia. A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica, de modo a desenvolver alguns temas necessários à pergunta, como: dispositivos e atuação de poder, arte contemporânea e comunicação. A revisão de literatura do artigo emprega conceitos de filósofos, noções de teóricos da arte e da comunicação e, além disso, fundamentação teórica da própria artista cujo trabalho será analisado. Este artigo inicia-se, então, pela discussão dos dispositivos.

O COMPUTADOR ENQUANTO DISPOSITIVO

O potencial simulador do computador permite a manipulação de imagens já existentes, além da criação de novas imagens que independem de um referente material. Ou seja, a existência de um objeto no mundo concreto, como base para a criação de uma imagem, já não é mais necessária. Tal novidade acarretou uma multiplicação de signos no mundo e uma cultura visual sobressalente. Esse cenário pós-fotográfico concebe a imagem como sistema dinâmico, maleável, e delega aos artistas o desafio de manipular não apenas materiais, mas, sobretudo, tecnologia. Os artistas se apropriam não somente das ferramentas e suportes que as novas tecnologias concedem, mas também das possibilidades poéticas que surgem a partir de um novo contexto social e cultural, que supõe formas novas de se relacionar com a imagem e com a subjetividade.

Rosa Menkman é uma videoartista, curadora e teórica holandesa, que tem como proposta preponderante explorar o glitch[2] nas imagens digitais. Ela emprega diversos processos, como a compressão, o feedback e o próprio glitch, na produção de suas obras, tensionando a relação existente entre computador e usuário, imagem e espectador. O computador, enquanto dispositivo, é, muitas vezes, o conteúdo central do trabalho da artista. Giorgio Agamben (2009) parte da concepção foucaultiana de dispositivo para propor sua noção do termo, fundamental para a análise da obra de Menkman. Partindo do sentido originário do conceito, para Foucault, o dispositivo:

(…) tem natureza essencialmente estratégica, que se trata, como consequência, de uma certa manipulação de relações de força, de um intervenção racional e combinada das relações de força seja para orientá-las em certa direção, seja para orientá-las ou fixá-las e utilizá-las. O dispositivo está sempre inscrito num jogo de poder e, ao mesmo tempo, sempre ligado aos limites do saber, que derivam desse e, na mesma medida, condicionam-o. (AGAMBEN, 2009, p. 28).

A perspectiva de dispositivo de Foucault já é bastante ampla, pois considera o material e o imaterial, o linguístico e o não-linguístico. Tudo que media uma relação de poder, orientando-a em certo sentido, pode ser lido enquanto dispositivo. Entretanto, Agamben sugere pensar essas relações de poder de modo mais sutil. É fácil enxergar as dinâmicas de poder imbuídas em um dispositivo como o confessionário, mas Agamben contesta a ingenuidade atribuída a elementos que estabelecem uma relação menos explícita com o poder. Para ele, linguagem é dispositivo, lápis é dispositivo e mesmo a arte, apesar de sua dimensão crítica e contestadora, também é dispositivo, e não está livre de estipular relações de poder. Dispositivo é tudo aquilo que media a relação dos indivíduos com o mundo. Segundo Agamben (2009):

Temos assim duas grandes classes: os seres viventes (ou as substâncias) e os dispositivos. E entre os dois, como terceiros, os sujeitos. Chamo de sujeito o que resulta da relação, e por assim dizer, do corpo a corpo, entre os viventes e os dispositivos. (AGAMBEN, 2009, p. 41)

Desse modo, pode-se pensar em alguns dispositivos assimilados pela artista em seu processo artístico. De forma mais evidente, o computador, mas também a imagem e a informação, se configuram como dispositivos e fazem parte do jogo poético que Menkman estabelece em suas obras. Para poder apreender melhor a proposta da artista e de que maneira ela perturba esses dispositivos, é crucial entender a forma com que esses dispositivos e o poder atuam.

Michel Foucault surge na década de setenta com uma concepção diferente sobre o poder. Foucault desloca o poder do centro das coisas e retira sua totalidade; o poder, para ele, não vai de um lugar a outro sempre na mesma direção (como da burguesia sobre o proletariado), mas circula entre todos os estratos e segue em diferentes direções. Isso não significa dizer que o poder é distribuído de igual forma entre todos, mas sim que há dinâmicas de poder, inclusive nos grupos mais vulneráveis, porque o poder não é homogêneo. Assim, Foucault nega a ideia do poder enquanto propriedade de alguém ou de algum grupo. Seus efeitos são mais facilmente identificados através de disposições, manobras, técnicas e funcionamentos. O poder também não opera por violência ou ideologia, sempre reprimindo ou enganando, pelo contrário, o poder produz verdade ao incitar, combinar, normalizar, enquadrar etc. E é nesse sentido que os dispositivos devem ser interpretados dentro de uma relação de poder, pois sua atuação não se dá somente pela violência, mas, principalmente, produzindo realidade e delimitando possibilidades.

O computador, por exemplo, pressupõe uma série de funcionamentos usuais: a pessoa senta-se de frente para a tela e navega nos mesmos sites e redes sociais, que, por sua vez, são regulados por algoritmos que fogem ao conhecimento do senso comum. Tudo o que abrange esse uso pressupõe circulação de poder. O corpo sentado costuma denotar disciplina, um ordenamento do corpo que nos remete ao corpo dócil de Foucault. Os sites e redes sociais envolvem transações econômicas e transporte de dados que não são transparentes para os usuários. O algoritmo seleciona o conteúdo para o usuário sem consultar o mesmo (aqui as estratégias de enquadramento e incitação são nítidas).

Um dos princípios da arte de Rosa Menkman é destruir a suposta neutralidade do dispositivo, e ela faz isso ao revelar os vários processos que estão ocultos no uso cotidiano da internet. A artista, ao forçar falhas no sistema, expõe outra face da imagem digital que raramente é acessada. A partir disso, o espectador é obrigado a encarar os vários protocolos e convenções que estruturam o sistema computacional. Segundo a artista, em seu Glitch Studies Manifesto[3]: “Eu olho para o glitch como um buraco no conhecimento, uma estranha dimensão em que as camadas de tecnologia de repente são muito diferentes do que o que eu conheço.” (MENKMAN, 2011, p. 9)

Figura 1 – Frame da obra Vernacular of File Formats, 2011, Rosa Menkman.

Frame da obra Vernacular of File Formats, 2011, Rosa Menkman
Fonte: Vimeo da artista.

Ainda segundo Agamben (2009), o capitalismo tardio se apresenta como uma enorme acumulação e proliferação de dispositivos. Ou seja, a relação com o mundo nunca foi tão mediada por dispositivos como hoje. É difícil pensar em uma situação na vida de um indivíduo que não seja modelada ou monitorada por algum dispositivo. Agamben também enxerga nos dispositivos contemporâneos outra especificidade. Para ele, tais dispositivos agem mais suprimindo subjetividade do que produzindo sujeitos.

O que acontece agora é que processos de subjetivação e processos de dessubjetivação parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar à recomposição de um novo sujeito, a não ser de forma larvar (…). As sociedades contemporâneas se apresentam assim como corpos inertes atravessados por gigantescos processos de dessubjetivação que não correspondem a nenhum processo de subjetivação real. (AGAMBEN, 2009, p. 47)

Em outros períodos históricos, a classe dos artistas foi responsável por explorar as novas ferramentas, investigando as possibilidades e também as problemáticas que se inauguraram. Se o cenário contemporâneo é envolto por dispositivos, talvez essa função se faça mais urgente e necessária. Em um momento em que a sensibilidade humana é capturada por dispositivos, os artistas pensam formas de regeneração subjetiva. Os trabalhos de Rosa Menkman buscam um resgate da subjetividade do espectador ao desterritorializar a relação máquina/informação e usuário.

Rosa Menkman propõe uma experiência íntima com a máquina ao apresentar seus processos internos. A artista propõe que se olhe para o aparelho com outros olhares, como se quisesse dissecar esse dispositivo. Menkman subverte o sentido do glitch como um erro a ser evitado. O glitch é uma espécie de ruído digital, e, enquanto ruído, é tido como obstáculo à mensagem. Porém, se por um lado o ruído impede a comunicação normativa, por outro lado, abre espaço para uma outra comunicação. Esta outra não funciona de forma fechada, mas como um campo de possibilidades abertas.

Foram selecionados três trabalhos da artista para serem analisados com mais profundidade. São eles: Radio Dada, Eastern Fire Swim e Dear Mister Compression. A escolha desses três trabalhos se justifica pela heterogeneidade que apresentam, configurando uma soma diversificada de propostas.

RADIO DADA

Radio Dada[4] é uma performance de 2009, posteriormente transformada em videoarte. Consiste em um vídeo de quatro minutos em que pixels vão se transmutando e se realocando de modo a formar novas imagens, criando composições que remetem à pintura abstrata. Essas imagens são acompanhadas de sons, digitais e analógicos, que possuem melodia e instrumentalidade, assistidos de sons que lembram ruídos. A trilha sonora é um elemento importante da obra, pois ao mesmo tempo que sugere uma contemplação e relaxamento, invoca barulhos caóticos que perturbam a possibilidade de um descanso pleno.

Figura 2 – Frame da obra Radio Dada, Rosa Menkman, 2009.

Frame da obra Radio Dada, Rosa Menkman, 2009
Fonte: Vimeo da artista.

As imagens do vídeo recordam as nuvens de Bachelard. Assim como as nuvens, as imagens de Radio Dada são figuras amorfas, em que as pequenas unidades (pixels) se agrupam e se desprendem, formando novas paisagens. Em seu texto O Ar e os Sonhos, Gaston Bachelard (2001, p. 190) elucubra a respeito das possibilidades imaginativas providas pelas nuvens: “A nuvem nos ajuda a pensar a transformação”. Radio Dada é um conjunto de nuvens digitais, um céu tecnológico. Seu potencial onírico se alinha às particularidades do mundo hodierno, com sua superabundância de tecnologia e de ruídos numa velocidade acelerada. Novamente, para Bachelard (2001, p. 190): “Nosso desejo imaginário se liga a uma forma imaginária, preenchida com uma matéria imaginária”. Parte do saber da arte consiste em dar forma aos desejos e necessidades da imaginação. Rosa Menkman, enquanto artista e teórica, parece ter identificado uma carência coletiva de subjetividade no uso da tecnologia. A artista sugere outra relação com o dispositivo, e o faz, aqui, de forma sensitiva.

A abstração compõe um devir. Segundo Deleuze e Guattari (1995), o devir não quer atingir uma forma definitiva, nunca se conclui numa forma; nunca atinge, nunca concretiza a forma para a qual tende. Radio Dada é devir, não quer alcançar um estado final, destrói a hegemonia do significante para possibilitar significados maleáveis. Jean-François Lyotard (1993) enxergou na pintura abstrata o sublime. Partindo da noção kantiana de sublime, Lyotard diz que o belo é representável, e o sublime escapa à representação. A pintura abstrata moderna é sublime para Lyotard, pois abandona a realidade para mostrar o invisível por meio do informe. Há uma aura sublime em Radio Dada que se forma a partir de alguns elementos. São eles: o abstracionismo, que exprime o poder do amorfo; a contínua transformação da paisagem, que confere à obra a continuidade da deformação; e, por último, a trilha sonora, que une o instrumental aos ruídos tecnológicos e forma uma sonoridade tecno-onírica.

Ainda sobre o sublime na obra, pode-se pensá-lo, também, a partir da relação contemporânea entre homem e o excesso tecnológico. Em 1983, Mario Costa e Fred Forest cunharam o termo “estética da comunicação” para originar um campo de estudos que se debruçaria sobre as tecnologias de comunicação e o impacto dessas na experiência estética, configurando uma nova condição antropológica. Posteriormente, Costa (1995) argumenta que a estética da comunicação se conecta fortemente à noção de sublime. Foi Kant o responsável por difundir o termo “sublime”, caracterizando-o como um sentimento de impotência humana diante de forças de grandes dimensões. Um poder que, em sua magnitude, nos amedronta, causando uma combinação de medo e prazer. Enquanto a beleza harmoniza, o sublime desconcerta.

Costa (2003) enxergou na tecnologia um tipo de excesso, uma certa monstruosidade desejada. As novas tecnologias alteram radicalmente as noções de espaço, tempo e presença. Tudo é igualmente próximo e longínquo. Além disso, um desconhecimento por parte do senso comum em relação ao funcionamento dessas tecnologias reforça um prazer no desconhecido. Costa intitulou esse sentimento desperto pelas novas tecnologias de “sublime tecnológico”, que coloca as pessoas diante da vastidão das grandes redes, do ciberespaço e das possibilidades de simulação que o cenário contemporâneo proporciona.

Radio Dada reflete o sublime tecnológico ao colocar o espectador em contato com uma afluência de pixels – o menor elemento da imagem digital – em deslocamento. Essa movimentação forma um fluxo digital que evoca a amplitude da tecnologia na vida das pessoas, ao mesmo tempo que uma certa organicidade do movimento remete a uma força natural. O excesso de pixels e de ruídos sonoros nutrem a beleza e a angústia frente à overdose de estímulos e tecnologização do mundo.

De volta à pergunta que direciona este artigo: De que forma a glitch art intervém na subjetividade do sujeito? Em Radio Dada, a artista intervém na subjetividade alterando o juízo de valor usualmente atribuído às falhas no sistema. Menkman converte o glitch em uma paisagem pitoresca. Ao fazer isso, mostra que a tecnologia pode servir a outros propósitos diferentes do original, e que o erro também tem seu apelo estético. É provavelmente essa inversão de valores que dá nome a obra (Radio Dada), que faz referência ao Dadaísmo, movimento conhecido por atribuir valor artístico a um objeto através do deslocamento de contexto. A obra coloca a subjetividade do espectador em estado de devaneio através da manipulação de software. Um cenário que parecia puramente objetivo e distante do sonho, torna-se sensitivo.

EASTERN FIRE SWIM

Eastern Fire Swim[5] consiste em uma montagem que alterna entre fragmentos de uma prova olímpica de natação, glitches e planos-detalhe de um olho. A videoarte dura aproximadamente cinco minutos. Os trechos da prova avançam e regressam, sem que seja possível que o espectador efetivamente entenda o que se passa na prova, quem está na frente ou mesmo quem são os nadadores competindo. John A. Walker (1994) agrupou algumas das tendências encontradas na arte do período que o autor chama de pós-modernidade. Entre elas estão a complexidade, contradição e ambiguidade, em oposição à simplicidade e racionalidade modernas, e a mistura entre estratos culturais superiores e inferiores. Além disso, a hibridização entre mídia e arte se torna mais acentuada. A artista desacelera e acelera curtos trechos da prova, jogando com o dispositivo e com a expectativa. As falhas ocupam mais tempo de imagem que a prova esportiva, interditando a comunicação entre espectador e imagem. Menkman se apropria desses segundos decisivos da prova e os corrompe, largando mão do acontecimento narrativo para privilegiar a obstrução da comunicação e a criação, novamente, de uma nova relação com o dispositivo. Dessa vez, uma relação de estranhamento.

Figura 3 – Frame da obra Eastern Fire Swim, Rosa Menkman, 2008.

Frame da obra Eastern Fire Swim, Rosa Menkman, 2008
Fonte: Vimeo da artista.

A experimentação que a artista faz com o dispositivo, aqui, adquire, também, uma dimensão temporal. A escolha pela imagem referente a uma prova olímpica, e especialmente de natação (onde cada segundo é decisivo), acusa um enfoque na temporalidade. Ao corromper a imagem, Rosa Menkman corrompe o tempo. Este tempo, porém, não é um tempo vago, é o tempo midiático, da televisão, da transmissão ao vivo; radicalmente transformado pelas novas tecnologias de comunicação. Na obra, trechos da prova são seguidos de um glitch que simula a tela da televisão sem sinal, seguido de um momento anterior da prova, que leva o espectador ao plano do olho e, posteriormente, de volta à prova. Essa é a estrutura que perdura ao longo da videoarte de maneira vertiginosa. A imagem é maleável, o tempo é manipulável, o dispositivo é suspeito.

Em Eastern Fire Swim, a glitch art intercede na subjetividade do sujeito de modo a revelar a não-neutralidade dos dispositivos. Nessa obra, eles incluem a tela do computador e da televisão e a imagem midiática. O espectador é levado a reconhecer que o uso de tais dispositivos se baseia numa genealogia de convenções. Estas, têm gênese de ordem econômica, política e social. O público então pode identificar a relação existente entre o tempo social e as tecnologias de comunicação. A subjetividade é estimulada para dar forma a uma nova gestalt de interação com tais aparatos.

DEAR MISTER COMPRESSION

Dear Mister Compression[6] consiste em uma obra de três minutos e quarenta segundos em que um glitch simula um avatar da artista. Paralelamente, vão sendo escritas mensagens no canto esquerdo da tela, mas essas mensagens são corrigidas, apagadas e reescritas ao longo de todo o vídeo. Nesses textos também constam glitchs que prejudicam a compreensão total do texto, ainda que se possa compreender que a artista está se dirigindo a alguém. Esse remetente é provavelmente o procedimento de compreensão de dados, como indica o nome da obra em português: “Caro Senhor Compressão”. A compressão é uma técnica de computação usada para reduzir o espaço ocupado por dados, que tem a perda de qualidade da imagem como consequência. Neste trabalho, a artista propõe uma humanização da máquina e, conjuntamente, uma mutação do humano pela tecnologia. O interlocutor é a máquina e a emissora é a artista, transformada em erro no sistema através de manipulação digital.

Figura 3 – Frame da obra Dear Mister Compression, Rosa Menkman, 2010.

Frame da obra Dear Mister Compression, Rosa Menkman, 2010
Fonte: Vimeo da artista.

A transformação e deformação do corpo a partir do glitch evoca a noção de corpo sem órgãos de Deleuze e Guattari. Os autores não definem, ao menos não de maneira delimitada, o conceito de corpo sem órgãos. Isso se justifica pela proposta ontológica dos autores de não fixar o conceito, mas mantê-lo em aberto, reforçando seu caráter rizomático. Além disso, segundo Deleuze e Guattari, o corpo sem órgãos é mais uma prática, um exercício, uma experimentação, do que de fato um conceito. De forma grosseira, pode-se entender o corpo sem órgãos como um corpo pleno que permanece aberto às intensidades, na intenção de destruir qualquer fundamento que o aprisiona. Rosa Menkman comprime sua própria imagem ao ponto da desfiguração, se apropria do glitch para criar um novo corpo que não é mais humano, mas ciborgue, fantasmagórico, pós-humano. Aqui, Rosa Menkman não perturba somente o dispositivo, mas a própria imagem. A destruição do dispositivo é também a destruição da forma humana.

O corpo sem órgãos desarranja as máquinas, perturba seu funcionamento. Quando a máquina emperra, algo diferente do esperado acontece. Esse novo vai produzir outros direcionamentos para onde o desejo pode circular e desembocar. Encontrar a diferença para abrir novos espaços. Diante de um cenário saturado de dispositivos que capturam e demarcam a subjetividade, Menkman se apresenta como um corpo deformado. Essa deformação pode ser lida como consequência do encontro do corpo orgânico com a dessubjetivação promovida pelos dispositivos tecnológicos. Outra interpretação possível é a deformação como uma fuga, uma tentativa da criação de um outro sujeito, possível a partir desse encontro com a tecnologia.

A proposta de Dear Mister Compression (e que aparece em outros trabalhos da artista) pode ser comparada à do pintor Francis Bacon, a quem Deleuze dedicou o livro Lógica da Sensação. O que especialmente chamava a atenção de Deleuze na obra de Bacon era o uso que esse dava às suas formas. Apesar de taxado como figurativo, na medida em que não se caracteriza como abstração total, Deleuze enxerga no pintor o que também enxergava em Antonin Artaud e Samuel Beckett: a capacidade de gerar um corpo sem órgãos.

Figura 4 – Three Studies for Self-Portrait (1976); de Francis Bacon.

Three Studies for Self-Portrait (1976); de Francis Bacon
Fonte: New York Times[7]
Apesar do que sugere o nome, não são os órgãos em si que devem ser confrontados, mas o organismo. É o organismo e sua totalização que devem ser combatidos em prol de um corpo pleno sem órgãos. Segundo Deleuze e Guattari (1995):

O organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil. (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 24).

O organismo é, então, esse componente que controla e disciplina o corpo, imprime função, finalidade e utilidade, produz um corpo útil para o capitalismo e fecha as possibilidades de experimentação para o mesmo. O corpo sem órgãos anarquiza o organismo, conduz o corpo ao inexplorado. Permite sua compressão, deformação, transgressão. Se a realidade é impactada visceralmente pela abundância de tecnologia que a cerca, a arte quer entender qual corpo surge disso e qual outro corpo é possível. Assim como nas pinturas de Bacon, a imagem aqui não é abstrata. A dicotomia abstrato e figurativo é transgredida em favor de um novo tipo de imagem: o desfigurativo; uma forma humana que pretende a deformidade. Em Dear Mister Compression, quanto mais o avatar da artista se comunica com o processo de compressão, mais distorcida e menos humanóide se torna a figura. O avanço da deformação da imagem é, também, o avanço de uma interação mais íntima com essa tecnologia e, por consequência, com o dispositivo do computador.

De que forma a glitch art intervém na subjetividade do sujeito? Em Glitch Studies Manifesto, Rosa Menkman sugere o glitch como uma metáfora para a diferença. A diferença em Dear Mister Compression é alcançada em duas dimensões: a contaminação do humano pela tecnologia e a contaminação da tecnologia pelo humano. É por meio dessa ação que a artista concebe um corpo sem órgãos, que é, em si, uma proposta de desorganizar a subjetividade tal como ela está para dar espaço ao que pode ser. Tal desorganização se justifica pelo efeito domesticador que os dispositivos contemporâneos produzem na subjetividade, que, segundo Agamben (2009), reprimem a subjetividade mais do que a estimulam.

A arte é uma grande aliada da criação de um corpo sem órgãos. Desestratificar, inventar, imaginar, transformar… A arte demanda imaginação e delineia rotas de fuga. Se hoje, mais do que nunca, as imagens e dispositivos intercedem na relação entre indivíduo e mundo, conceber um corpo sem órgãos requer tensionar essas relações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao examinar os três trabalhos aqui apresentados, tem-se um panorama das possibilidades de experiências que a glitch art confere ao espectador. É evidente que Rosa Menkman não representa toda a comunidade de artistas que trabalham essa linguagem, mas é um de seus principais nomes, e autora do ensaio que sintetiza as proposições da vertente artística. Portanto, se existe alguém capaz de falar em nome do movimento, esse alguém é ela. Então, já tendo explorado cada um dos três trabalhos em particular, agora é o momento de olhar para eles enquanto um conjunto.

De que forma a glitch art intervém na subjetividade do sujeito? De forma geral, o que essa arte pretende é proporcionar uma experiência com o dispositivo diferente da experiência habitual. São oportunidades de deslocamentos subjetivos que inserem o espectador em posição de deslumbre, de estranhamento ou de curiosidade diante do desconhecido. De modo mais específico, a glitch art intervém na subjetividade do sujeito ao abalar sua crença na neutralidade do dispositivo, revelar os diversos protocolos que existem por detrás da dimensão tecnológica que o rodeia, acusar a manipulação do tempo e espaço produzida pela mídia e pelos aparatos tecnológicos, inspirar reflexões a respeito do impacto da tecnologia na sua percepção da realidade, e por último, apresentar novas possibilidades estéticas que surgem a partir do contexto contemporâneo de excesso tecnológico. Em todos os casos, porém, o elemento comum é a perturbação do dispositivo. O mérito dessa artista reside principalmente na sua habilidade para propor movimentações subjetivas em um tempo em que estas se encerram no uso abundante e banal das tecnologias.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos – Ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Zouk, 2014.

COSTA, Mario. O sublime tecnológico. São Paulo: Experimento, 1995.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1995.

DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018.

DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

LYOTARD, Jean-François. Lições Sobre a Analítica do Sublime. Campinas: Papirus, 1993.

MENKMAN, Rosa. Glitch Studies Manifesto. 2011

SANTAELLA, Lúcia. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: PAULUS, 3. ed. 2008.

WALKER, John A. Art in the age of mass media. Londres: Pluto Press, 1994.

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. Glitch trata-se de um termo usado para indicar falhas em um sistema, especialmente em softwares.

3. Glitch Studies Manifesto é um texto de 2011, escrito pela artista Rosa Menkman, no qual a artista apresenta a glitch art como gênero particular de arte contemporânea. Menkman argumenta que o glitch se situa entre um artefato e um processo.

4.  A obra pode ser encontrada no seguinte link: < https://player.vimeo.com/video/2321833 >. Acesso em 19.02.2021

5. A obra pode ser encontrada no seguinte link: < https://vimeo.com/3247009 >. Acesso em 26.12.2020.

6. Disponível em < https://vimeo.com/11147006 >. Acesso em 05.03.2022.

7. Imagem coletada em: < https://www.nytimes.com/2008/05/04/arts/design/04voge.html >. Acesso em 27.02.2022.

[1] Graduanda em Comunicação pela Universidade de Brasília. ORCID: 0000-0002-4920-8748.

Enviado: Agosto, 2021.

Aprovado: Maio, 2022.

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Carmem Martins Coelho

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