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O papel da administração pública na guerra às drogas: Uma alternativa no modelo uruguaio(?)

RC: 82126
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

FERREIRA, Renan Azevedo Leonessa [1]

FERREIRA, Renan Azevedo Leonessa. O papel da administração pública na guerra às drogas: Uma alternativa no modelo uruguaio(?). Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 04, Vol. 04 , pp. 134-169. Abril de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/administracao/guerra-as-drogas

RESUMO

A denominada política de guerra às drogas, desde sua concepção, não tem alcançado os objetivos declarados de extinção do consumo e tráfico de entorpecentes. Em verdade, tem ocasionado o extermínio de grupos marginalizados, aliado a maiores danos ao bem jurídico  que visa a proteger. Nesse contexto, este trabalho se propõe à análise do paradigmático modelo uruguaio de legalização da cannabis, consubstanciado pela Lei n.º 19.172/13. Pontuam-se seus acertos e deficiências a fim de avaliar a viabilidade de sua implementação no Brasil, que deverá ser capitaneado pela Administração Pública. Ao final, sugere-se a regulamentação do consumo e venda de cannabis no país, procedendo-se às devidas adaptações às peculiaridades do caso brasileiro.

Palavras-chave: Guerra às drogas, Administração Pública, Lei n.º 19.172/13, Redução de danos.

1. INTRODUÇÃO

Em contraposição ao que se verificava há alguns séculos, quando do início da modernidade, o Direito encontra-se atualmente desvencilhado da religião e da moral. Na seara penal, essa disposição acarreta uma marcante característica sobre o conceito de delito. Uma prática delitiva é assim classificada, tão somente, em razão de ser contrária ao Direito em vigor no âmbito de determinado ordenamento jurídico, independentemente de sua moralidade (MIZRAHI, 2017, p. 110). Nesse contexto, encontra-se evidente o binômio legal/ilegal, que se volta à padronização de expectativas de comportamento.

No entanto, um verdadeiro Estado Democrático de Direito postula que se extraia a legitimidade desse binômio da soberania popular, de maneira que os comportamentos a se padronizar provenham da vontade geral do povo submetido àquele Direito. Sendo assim, descreve Habermas: o povo programa as leis (AMADO, 1997, p. 18). Os membros da sociedade, por meio da execução e aplicação das leis, são seus destinatários, porém eles mesmos programaram-nas. Por conseguinte, o Direito se mostra legítimo na medida em que seja expressão da própria vontade dos cidadãos a ele submetidos (MIZRAHI, 2017, p. 111).

O atual panorama de guerra às drogas subverte essa autonomia decisória do povo. Sob o pretexto de proteção da saúde pública, bem como de se viabilizar a segurança da típica família brasileira, a classe política fomenta desilusões acerca da necessidade de criminalização e combate ostensivo ao consumo das drogas. Uma solução extremamente simplista ao problema, a qual se fundamenta em ideologias aptas, tão somente, a propiciar a consolidação da classe política responsável por sua propagação. A população, nesse contexto, vê-se à mercê de propagandas e falsas ideias divulgadas pelos detentores de poder, obtendo a ilusão de que controla o centro decisório com relação à política de drogas. Em verdade, porém, tem sua opinião viciada desde sua formação, não sendo possível verificar-se a legitimidade do Direito proibicionista em vigor no Brasil e na maioria dos países ao redor do mundo.[2] As classes mais pobres, a seu turno, sequer possuem a ilusão de se encontrar às rédeas da política de drogas.

Na década de 1970, Boaventura de Souza Santos realizou um estudo da favela de Jacarezinho no Rio de Janeiro, a qual denominou Pasárgada, com o escopo de avaliar as causas e consequências da pluralidade jurídica no local.

Em seus estudos, Santos (1999) traça uma delineação histórica de formação da favela. Expõe que, a partir da década de 40, a população havia aumentado significativamente na região, sendo que não havia muito espaço disponível em caso de conflito por terra. Um panorama previamente pacífico de ocupação foi, assim, marcado pela violência progressiva. Os moradores tentavam recorrer aos policiais e à justiça para resolver seus conflitos, ao que eram rechaçados devido à sua situação de ilegalidade de moradia. Nesse esteio, a ilegalidade da posse da terra se repercutia sobre todas as outras relações sociais, mesmo sobre aquelas que não possuem qualquer vínculo com a terra ou com a habitação (SANTOS, 1999, p. 7).

Desse panorama emergiu a Associação de Moradores de Jacarezinho, que passou a ser responsável pela solução pacífica dos conflitos e atuou mediante a instituição de regras próprias e paralelas ao ordenamento jurídico ante a inércia do Estado em atender a tais demandas.

A partir do quadro traçado, delineiam-se vários paralelos com relação ao tráfico de drogas. É evidente tratar-se das mesmas pessoas atingidas pela segregação estatal, os moradores de favela, pessoas em sua maioria negras e de baixa renda (SHIMIZU, 2009, p. 4). Ademais, constata-se uma reificação desses indivíduos, porquanto sua ilegalidade em um âmbito reduzido (seja na questão da moradia, seja com a venda de drogas) implica a rejeição de todos os demais direitos, de modo que se nota o descaso e inclusive a violação patente aos direitos fundamentais dessas pessoas.

Nesse esteio, como afirma Karam (2012, p. 690), o proibicionismo absoluto e a guerra às drogas agravam o sofrimento dos moradores de favela em situação já precária, visto que legitimam um pretexto para tratar esses indivíduos como criminosos, de modo a submetê-los à perseguição e à prisão. Enquanto são esquecidas em seus direitos sociais, veem-se submetidos diariamente a uma guerra declarada, em que apenas têm a perder: ou no cárcere ou a sete palmos de terra.

Foi nesse contexto que Jorge Mujica, ex-presidente do Uruguai, promulgou, em 23 de dezembro de 2013, a Lei n.º 19.172/13 sobre a regulação da produção e venda de cannabis, desafiando a atual política de guerra às drogas adotada na maioria dos países.

Com vistas à consecução desses objetivos, a Lei n.º 19.172/13 estabelece três diretrizes: a regulação e monopólio estatais do mercado de cannabis; medidas sanitárias e educativas voltadas à prevenção do uso problemático e à reabilitação de usuários adictos; sanções administrativas e penais às infrações normativas das licenças (COITIÑO; QUEIROLO; TRIÑARES, 2017, p. 122). Dentre essas diretrizes, o texto da lei aponta ao bem jurídico saúde pública como aquele tutelado pela lei penal.

Este artigo se propõe, nesse contexto, à análise da Lei n.º 19.172/13 e de seus efeitos no Estado Uruguaio, a fim de se aferir a viabilidade de sua implementação pela Administração Pública brasileira. Outrossim, busca-se corrigir as eventuais deficiências encontradas nesse modelo, bem como adaptá-lo às peculiaridades da realidade brasileira. Trata-se de um modelo inovador, no qual outros ordenamentos jurídicos podem se espelhar.

2. POR TRÁS DA GUERRA ÀS DROGAS NO BRASIL

2.1 IDEOLOGIAS FOMENTADORAS DA GUERRA ÀS DROGAS

O proibicionismo atual, bem como o panorama de guerra às drogas vigente em diversos países, inclusive no Brasil, é lastreado por ideologias. Conforme a definição de Mathiesen (2003, p. 45-46), a ideologia consiste em uma crença arraigada na sociedade em geral que confere sentido e legitimidade a determinadas ações e instituições. Nesse sentido, muito embora as premissas e os resultados emanados de certos ideais sejam falsos, as ideologias conferem solidez e homogeneidade aptas a sustentá-los como verdadeiros.

Em vigor no sistema penal atual, de se notar a ideologia da Defesa Social, por meio da qual o delito é postulado como um fato natural, independente de legitimação por um ordenamento jurídico. Segundo essa teoria, cabe ao Direito apenas positivar as condutas criminosas já existentes em todas as sociedades. Nesse sentido, corrobora com o maniqueísmo, posto que determina a reprovabilidade absoluta de certas condutas de acordo com um padrão moral. Ou seja, não há que se discutir sobre o certo e o errado, vez que estes já se encontram previamente definidos (GOMES e ROCHA; 2012, p. 24-25). De mais a mais, com essa clara diferenciação, há soluções fáceis e visíveis para os problemas sociais: o combate ao crime e aos criminosos.[3] Esse quadro reforça a função declarada do Direito Penal, qual seja, de proteção de bens jurídicos, bem como justifica a guerra ilimitada contra os traficantes de entorpecentes.

Em consonância com a Defesa Social, outra ideologia a fundamentar a violenta repressão às drogas consiste na doutrina de Segurança Nacional. Inicialmente provinda do contexto da Guerra Fria (BARROSO, 2003, p. 72),[4] postula que qualquer consumo é comparado ao vício, sendo abusivo e intolerável. A racionalidade dessa política consiste em sufocar qualquer disponibilidade da substância, ainda que mínima, suprimindo-se a oferta de entorpecentes. Caso não seja possível, visa-se a reduzir o acesso às substâncias ao máximo. Sendo assim, ao se considerar o consumidor um adicto, sua conduta torna-se moralmente reprovável, impondo-se o sofrimento como mecanismo de expiação. O tratamento dispensado aos traficantes, a seu turno, é ainda mais severo.

O belicismo norte-americano deixou fortes marcas sobre essa ideologia, a qual propõe a imprescindibilidade da presença máxima do Direito Penal como instrumento repressor (UPRIMNY; CHAPARRO; CRUZ, 2017, p. 58). Segundo a Doutrina da Segurança Nacional, declara-se abertamente uma guerra ao tráfico de drogas, o que implica o uso de armamento bélico no combate aos traficantes e legitima o “fuzilamento sem processo” (BATISTA, 1998, p. 55). No Brasil, essa linha de pensamento levou à banalização da morte de integrantes dos estratos sociais inferiores, ou seja, de negros, jovens e pobres. Afinal, trata-se do grupo mais exposto no contexto do tráfico.

Nesse esteio, a associação entre as ideologias da Defesa Social e da Segurança Nacional[5] evidencia as verdadeiras funções exercidas pelo Direito Penal, quais sejam, definir politicamente algumas condutas como criminosas, selecionar (ou rotular) e estigmatizar determinados grupos sociais como desviantes (D’ELIA FILHO, 2007, p. 18).

A prática da conduta desviante não é uma qualidade do ato, mas sim um ato qualificado para a seleção de determinados indivíduos (CARVALHO, 1996, p. 19).Por conseguinte, indivíduos não pertencentes à classe social estigmatizada podem praticar a mesma conduta e não serem penalizados. Essa atribuição desigual do status de criminoso estabelece a noção de que a prática de crimes está relacionada às camadas marginalizadas da sociedade. No tocante às drogas, nota-se, como no caso de Pasárgada, uma vinculação generalizada dos moradores de favela à venda de entorpecentes. Legitima-se, assim um ambiente de guerra, tão somente, dentro das favelas.

Dentre os alvos da polícia, aqueles que sobrevivem a essa guerra são submetidos ao cárcere, sendo raramente detectados traficantes de classes mais elevadas. Se isso não bastasse, em contraposição ao sistema disciplinar dos países centrais, o sistema penal brasileiro possui características genocidas de supressão dos marginalizados.[6] Nas palavras de BATISTA (1998, p. 55):

Nessas condições, as prisões (pequenas instituições de sequestro) na América Latina não têm as mesmas funções das prisões do Centro. Aqui o modelo ideológico do panóptico de Bentham é substituído pelas teorias de inferioridade biológica de Cesare Lombroso.[7]

2.2 O LUMPEN-PROLETARIADO NO BRASIL

Esse cenário das classes marginalizadas guarda forte correspondência com concepção de Marx (2006) acerca do lumpen-proletariado. Trata-se de pessoas abaixo da classe operária, desorganizadas e que não possuem perspectivas de vida. Seriam vagabundos, presidiários e egressos, delinquentes, ladrões). Na realidade marginal atual, é possível incluir ao lumpen-proletariado os jovens negros moradores de favelas, que são excluídos da participação na sociedade por meio da segregação e estigmatização (BATISTA, 1998, p. 47).

De fato, após inseridos no mundo do tráfico, tornam-se o elo mais fraco da corrente criminosa. São triplamente submissos dentro do contexto da guerra às drogas: não apenas realizam o trabalho árduo de levar os entorpecentes às ruas, como também são aqueles submetidos ao terror e à violência opressivos do Estado. De mais a mais, assim agem seguindo os padrões determinados pela sociedade capitalista (VALOIS, 2016, p. 541).

Nesse sentido, a única forma pela qual esses agentes são reconhecidos pelo ordenamento jurídico consiste na manifestação da opressão, seja pela prisão, seja pelo extermínio sem processo (BATISTA, 1998, p. 57). Nota-se, por conseguinte, a desvinculação desses indivíduos da cidadania na sociedade em que supostamente deveriam se inserir. Há uma total ausência de perspectivas de vida, o que os compele viver apenas pelo presente, sem conferir qualquer importância à própria vida.

2.3 GUERRA ÀS DROGAS E CORRUPÇÃO

Embora se tenha constatado uma repressão crescente ao tráfico de drogas e aos grupos socialmente marginalizados, os lucros com a venda de entorpecente apenas aumentam. Ora, ao se direcionar a repressão aos jovens traficantes, faz-se possível desviar a atenção dos agentes que realmente se beneficiam com essa atividade.[8] Assim, nas palavras de Batista (1998, p. 99):

Se pensarmos que, entrando num negócio que rende bilhões de dólares anuais, esses jovens só perdem, e estão cada vez mais pobres e sem saída, percebemos que os vilões desta história não são os garotos pobres armados até os dentes das favelas.

Ao contrário de grupos terroristas, os verdadeiros empresários das drogas ilícitas – cidadãos inseridos na sociedade e vistos como “homens de bem”- não buscam o fim do Estado, mas uma simbiose com ele, de modo a cooptar sua estrutura e obter maiores vantagens com as práticas ilegais. Utilizam-se do aparato estatal para desativar possíveis intromissões indesejadas sobre áreas específicas de seu interesse (MIZRAHI, 2017, p. 114). Eliminam sua concorrência e buscam obter uma crescente margem de rentabilidade.

Esse panorama escancara o paradoxo das drogas: uma vez alcançada a etapa de interpenetração do tráfico com o Estado, o discurso de guerra às drogas se volta, em verdade, à consolidação dos grupos criminais que alcançaram certa posição de destaque no país. Possibilita a invisibilização dos responsáveis pelo tráfico, bem como a cumplicidade de funcionários estatais mediante propinas (MIZRAHI, 2017, p. 115).[9]

Com essa assertiva corrobora a “Teoria dos três níveis ou do Iceberg invertido”, que estabelece três categorias para a organização do tráfico (D’ELIA FILHO, 2007).[10] Segundo essa teoria, o tráfico presente nas favelas é a ponta de um iceberg invertido, mais sujeito à repressão e mais visível pela sociedade. Nas outras duas categorias, submersos na estrutura do iceberg, há os ‘novos ricos” e os “cidadãos acima de qualquer suspeita”. Trata-se de pessoas financiadoras, fomentadoras do tráfico e que auferem os maiores lucros, porém raramente são enquadradas pelo sistema punitivista (D’ELIA FILHO, 2007, p. 4-5). De fato, esses agentes efetuam a lavagem de valores, por meio da qual a renda ilegal proveniente do tráfico se transforma em valores lícitos, no âmbito de empresas e especialmente na esfera política.

2.3.1 QUAL A PROTEÇÃO CONFERIDA AO BEM JURÍDICO SAÚDE PÚBLICA?

Não se pode olvidar, dentro desta breve análise acerca do proibicionismo de entorpecentes, o bem jurídico a que a normal penal visa a tutelar. De fato, por mais que os argumentos elencados previamente sejam verídicos, caso se verificasse a efetiva proteção a um determinado bem jurídico, não haveria que se falar de descriminalização das drogas – embora a política atual de drogas certamente ainda assim merecesse muitos reparos. Por outro lado, nenhuma norma penal será legítima se visar meramente ao estabelecimento padrões de comportamento moralizantes ou predominantes dentro da sociedade (CARVALHO, 1996, p. 270).

A política proibicionista tem como fundamento a proteção do bem jurídico saúde pública, concebido, no entendimento de Muñoz Conde (2010, p. 647), como “um conjunto de condições positivas e negativas que possibilitam o bem estar das pessoas”. Como afirma Dieter (2011, p. 231), é legítima a tutela desse bem jurídico, desde que tal proteção decorra de um dano ou perigo concretos e individuais a esse bem jurídico. Deve-se pontuar que a tutela a um bem jurídico pode apenas incidir, em última análise, sobre bem jurídicos individuais, porquanto inclusive a proteção de bens jurídicos difusos não prescinde de um pressuposto de tutela individual.

Segundo Roxin (2008, p. 51), não é aceitável em um Estado Democrático de Direito a criação de normas criminalizadoras cujo bem jurídico não seja concretamente determinado. No tocante à saúde pública, a coletividade não possui um corpo real, de modo que a saúde pública, no sentido estrito da palavra, é inexistente. Trata-se, assim, de vários indivíduos que, em conjunto, consubstanciam o “público”. Por conseguinte, esse bem jurídico é individualizável no ponto da preservação da saúde de cada pessoa singularmente analisada.

Um dano a um bem jurídico disponível pressupõe o dissenso de seu titular, de modo que, constatado seu consentimento válido, não é legítima a intervenção do Estado. Do contrário, vedar-se-ia o direito individual à disposição daquele bem jurídico por seu titular. Nas palavras de Karam (2012, p. 682): “A proibição de uma conduta teoricamente lesiva de um direito de um indivíduo não pode servir, ainda que indiretamente, para tolher a liberdade desse mesmo indivíduo que a lei diz proteger”.

O Estado Democrático de Direito não pode impor decisões ao indivíduo quando seus efeitos se limitam ao exclusivo interesse deste, ainda que a conduta implique danos definitivos. A liberdade individual é a regra geral, uma vez que qualquer limitação imposta deve ter como único escopo assegurar o exercício isonômico de certo direito pelos demais indivíduos. Por conseguinte, enquanto terceiros não são concretamente afetados em seu direito, o Estado não possui prerrogativas para interferir nas decisões individuais (KARAM, 2012, p. 683).

Nesse esteio, a proibição do consumo e da venda de entorpecentes mediante consentimento vai de encontro ao princípio de liberdade individual, pois não se nota qualquer ofensividade a bens jurídicos de terceiros não envolvidos com a prática. Ora, já se constata que a proibição de venda e consumo dessas substâncias, por si só, já acarreta maiores violações a direitos fundamentais – em especial, da liberdade – do que a própria conduta que pretensamente visa a evitar (KARAM, 2012, p. 684).

Ainda, não se justifica a proteção do bem jurídico saúde pública com relação às drogas, porquanto a atual política proibicionista não blinda os indivíduos contra todas as espécies de drogas, e por outro lado, tampouco as drogas ilícitas consistem naquelas com maior danosidade social (RAMIREZ, 1990, p. 98). Em verdade, o álcool e o tabaco, substâncias lícitas, causam mais danos à saúde pública que todas as drogas tornadas ilícitas (KARAM, 2012, p. 694).

Com a ilicitude de certas substâncias entorpecentes, não há qualquer regulação de sua qualidade, de modo que os agentes clandestinos detêm toda a linha de produção. Afinal, a ilegalidade implica justamente a ausência de qualquer controle, possibilitando uma liberdade plena de produção, o que aumenta a possibilidade de adulteração e impureza das drogas; portanto, tornam-se mais nocivas ao bem jurídico saúde pública (KARAM, 2012, p. 695). De mais a mais, incentiva-se o consumo rápido, em condições insalubres, a fim de que os usuários não sejam descobertos, o que induz à infecção dos indivíduos, como por pelo vírus HIV e hepatite.

Portanto, a negação das drogas ilícitas acarreta o pleno reforço dos danos que o modelo proibicionista busca evitar (D’ELIA FILHO, 2007, p. 15). Ao não se aceitar a discussão sobre seus métodos de produção, distribuição e consumo, tais substâncias se tornam mais nocivas do que em um contexto de legalização (KARAM, 2012, p. 696). Nesse sentido é convergente a lição de HULSMAN (2016, p. 61), ao postular que os danos secundários – provenientes dos impactos causados pelas políticas de repressão adotadas pelo governo – em muito superam os danos primários – aqueles causados diretamente pelo consumo de entorpecentes.

3. O ANSEIO POR SOLUÇÕES ALTERNATIVAS

Ante a patente falência da política atual na repressão do consumo de drogas, bem como sua eficácia na execução sumária de indivíduos e no reforço da segregação social, faz-se imprescindível um novo paradigma no tratamento das drogas. A história dos entorpecentes acompanha a história da própria humanidade, de modo que sempre haverá pessoas que se disporão ao seu consumo. Em uma sociedade plural, não cabe ao estado repreender a diversidade de culturas e opiniões, mas sim aceitar a alteridade ao fomentar o livre desenvolvimento do indivíduo enquanto este não afeta outrem.[11] Trata-se do caso da venda e consumo consentidos de drogas.

Nesse âmbito, faz-se mister a adoção de uma política de redução de danos, em que se verifica a aceitação do consumo de entorpecentes, mas se busca efetivamente reduzir seus efeitos nocivos.[12] Em um sistema em que o consumo, embora proibido, sempre foi facilitado e desregulado, os projetos de legalização não devem se focar na redução da demanda de entorpecentes, mas sim na redução dos danos à saúde, à liberdade, à assistência social aos consumidores. Uma política bem sucedida implicará reflexos na qualidade do produto oferecido, no acesso seguro à substância, bem como viabilizará um amparo estatal consubstanciado em políticas de conscientização e no acesso ao sistema de saúde (MIZRAHI, 2017, p. 355).

Alguns países já tomaram o primeiro passo ao descriminalizar o consumo de certos entorpecentes. Trata-se notadamente do caso da Holanda, onde o consumo de maconha nos “coffee shops” é lícito. Portugal foi o primeiro país do mundo a descriminalizar o uso de todas as drogas, bem como na Espanha houve uma autorização do consumo pela via jurisprudencial. Nos Estados Unidos, embora o consumo de cannabis seja proibido a nível federal, vários estados norte-americanos descriminalizaram seu uso recreativo, abrangendo um terço da população em 2020. Em 2020, de forma pioneira, o estado do Oregon descriminalizou o porte e consumo de todas as drogas. No entanto, constata-se, em maior e em menor graus – na Holanda e em Portugal, respectivamente-, a ausência de regulação estatal na produção dessas substâncias, de maneira que o tráfico ainda se faz presente. Embora se verifiquem  progressos na implementação de uma política de redução de danos, está apenas se perfará em sua plenitude com o enfraquecimento do tráfico de drogas e da violência deste decorrente.

3.1 A PROPOSTA DO URUGUAI

Levando em consideração essas experiências anteriores e visando a um aperfeiçoamento dos modelos previamente existentes, o ex-presidente uruguaio Jorge Mujica esforçou-se pela aprovação da Lei n.º 19.172/13, que regulamenta a produção e venda de cannabis naquele país. O artigo 1º da referida lei aporta os objetivos da nova política de drogas: regulamentar as formas de acesso e combater o mercado ilegal. Nesse esteio, a nova lei delineia quatro fundamentos em sua política: controle do tráfico de drogas, a prevenção baseada na promoção de um modelo de saúde, a redução de danos e o tratamento e reabilitação dos usuários (GALAIN PALERMO, 2015, p. 63).

Para além de regularizar a venda da substância, a n.º Lei 19.172/13 visa a unificar a regulamentação de todas as formas de acesso à cannabis. Sendo assim, estabeleceu também a possibilidade de cultivos domésticos e da formação de clubes canábicos (art. 2), sendo facultada a cada indivíduo a escolha de um único meio de obtenção da substância (art. 38). Com efeito, tendo em vista um efetivo controle das quantidades adquiridas, bem como considerando-se a incipiência dos procedimentos e a dificuldade ao se cruzarem informações, optou-se pela limitação a uma via de obtenção por usuário. O acesso é restrito, para os três casos (aquisição, clubes canábicos e auto cultivo), a pessoas físicas maiores de idade detentoras de cidadania uruguaia ou com residência permanente no país. Busca-se, com isso, evitar o transporte da substância por turistas advindos de diversos países, em especial dos vizinhos latinoamericanos. No mais, como forma de controle das quantidades obtidas por pessoa, a lei define como pressuposto às três formas de acesso a efetuação de um registro junto ao Instituto de Regulação e Controle da Cannabis (IRCCA) (arts. 14, 25 e 34, respectivamente). A obrigatoriedade de registro não está isenta de controvérsias, conforme se delineará no capítulo seguinte.

De mais a mais, conferiu-se ao IRCCA o monopólio na aquisição e distribuição das sementes destinadas ao auto cultivo, aos clubes canábicos, bem como às produções para vendas em farmácias (art. 46). Visa-se, assim, a obter um produto de alta qualidade garantindo-se, simultaneamente, a rastreabilidade genética das plantas (art. 89).

Com relação ao auto cultivo, foi permitido o plantio de até 6 sementes canábicas, limitando-se a obtenção de folhas a 480 gramas anuais por pessoa (art. 14). Outrossim, foi vedado mais de um cultivo doméstico em uma mesma habitação (art. 17) com o escopo de se evitar não apenas o plantio em grandes extensões, como também a obtenção de autorização por membros da família não interessados no consumo. Destarte, visa-se a inibir a obtenção de quantidades excedentes, o que abriria espaço para uma venda clandestina. De se notar, dessa forma, que o auto cultivo se tornou uma alternativa para os indivíduos que desejam cultivas sua própria substância para consumo, sem se submeter, ainda, à aquisição em locais públicos.[13] Trata-se de uma opção simples, apta a trazer impactos significativos ao tráfico de entorpecentes, desde que devidamente fiscalizada.

Os clubes canábicos, denominados “Clubes de Membresía”, a seu turno, são associações civis previamente autorizadas pelo Ministério da Educação e Cultura (art. 68). Destinam-se ao plantio, cultivo e consumo de cannabis por seus membros (art. 21), limitados entre 15 e 45 sócios (art. 24).[14] Mantém-se o limiar de 480 gramas anuais por sócio, sendo o plantio subordinado a 99 plantas por clube. Reforça-se, assim, a ratio da lei ao permitir o cultivo sem interferência do Estado, por um lado, evitando-se a destinação de grandes extensões ao cultivo, por outro. Por fim, para além da inscrição dos clubes canábicos, cada membro deverá possuir um registro junto ao IRCCA, a fim de permitir o cruzamento de informações referentes à obtenção da cannabis.

A terceira via de obtenção da substância consiste na aquisição em farmácias[15] autorizadas pelo Ministério de Saúde que obtiverem uma licença para o comércio perante o IRCCA (art. 32). As drogarias devem efetuar registro, bem como possuir um cadastro individual dos clientes que obtiverem a substância (art. 76). As vendas são efetuadas apenas pessoalmente e no local, excluindo-se compras por telefone ou via internet (art. 35). Ademais, o usuário deverá adquirir a substância para consumo pessoal junto a uma única farmácia (art. 38), a fim de propiciar maior controle sobre a obtenção individual da quantidade máxima permitida, qual seja, de 40 gramas mensais. Possibilita-se, ainda, maior previsibilidade sobre a quantia de cannabis a ser disponibilizada a cada farmácia para a venda, o que minimiza os problemas de abastecimento.

Com vistas à produção da substância para sua distribuição nas farmácias, a lei 19.172 conferiu a faculdade de plantio e desenvolvimento da cannabis a pessoas físicas e jurídicas devidamente registradas junto ao IRCCA (art. 5). Para a concessão da licença, requer-se declaração da origem dos fundos utilizados para investimento no projeto (art. 7), o que afasta o aporte de valores advindos do mercado ilegal de entorpecentes. De fato, para além da preservação da moralidade administrativa, caso o projeto viabilizasse o investimento por pessoas vinculadas ao tráfico de drogas, este não seria eliminado, mas receberia investimentos provenientes de fontes lícitas. Esse quadro acarretaria o efeito oposto ao que a lei visa a obter.

O IRCCA aprovou em licitação a contratação de duas empresas responsáveis pela produção da cannabis, a Simbiosys e a Iccorp, ambas com financiamento de capital predominantemente uruguaio (FERNANDEZ, 2015). Nos termos do art. 6º da Lei n.º 19.172/13, a licença outorgada a essas empresas apresenta delimitações expressas acerca do local de cultivo – controladas, inclusive, por sistema informatizado de georreferenciamento, no moldes do art. 89 -, procedimentos incidentes sobre a produção e distribuição.

Mantendo-se a coerência com relação aos limiares a serem obtidos mensalmente por meio dessas formas de acesso, a lei estabeleceu uma clara distinção entre o porte da substância e o tráfico. Ora, uma vez que por quaisquer dos meios é possível obter um limite máximo para consumo de 40 gramas mensais, tal valor consiste no limiar para a caracterização de um usuário (art. 39). Confere-se, assim, maior segurança jurídica, o que permite aos indivíduos trafegar em poder da substância sem apreensão ante uma imputação de prática de tráfico de drogas quando de uma abordagem policial.

Levando-se em conta uma das diretrizes principais seguidas pela Lei n.º 19.172/13, qual seja, o combate ao narcotráfico, foi determinada a isenção de imposto sobre todas as etapas de produção de cannabis (art. 104). Com efeito, os consumidores do mercado paralelo são incentivados a se dirigirem às farmácias em razão de um preço inferior por uma substância de qualidade. Delineia-se, assim, a viabilidade de uma concorrência com o tráfico de drogas, de modo a reduzir a demanda e, com isso, o financiamento desse mercado ilegal.[16]

De fato, foi estabelecido um controle rigoroso sobre todas as vias de acesso, razão pela qual foi instituído o IRCCA, organização governamental composta por membros de diversos Ministérios e responsável pela fiscalização de todas as etapas de produção e distribuição da cannabis (art. 78). O IRCCA também é responsável pela aplicação de sanções administrativas em razão da infração a licenças para obtenção de cannabis (art. 93). Sobre esse ponto, ressalta-se a ausência de novos tipos penais na nova lei. Visa-se a lidar com o descumprimento da lei, tão somente, na esfera administrativa, sempre que as condutas praticadas não incorram em crimes já previstos pelo ordenamento jurídico, em especial o de tráfico de drogas. Essa disposição reforça o viés liberal da referida lei, que se volta à redução de danos e a soluções efetivas à questão das drogas. Afinal, como a História demonstra, o viés encarcerador não tem fomentado a redução do tráfico e da violência dele decorrente.

3.1.2 CONCLUSÕES DOGMÁTICAS SOBRE A LEI N.º 19.172/13

A Lei n.º 19.172/13 consiste em um projeto abrangente de legalização e regulamentação da cannabis no Uruguai. Para além de uma mera autorização da venda da substância em farmácias – motivo que a levou à notoriedade mundial – a referida lei prevê diversos mecanismos com vistas à extirpação do tráfico de drogas no Uruguai. Permite que indivíduos possuam seu cultivo próprio, viabilizando total discrição na obtenção e consumo da substância na intimidade de seu lar. Propicia, ainda, a implementação de clubes canábicos, para grupos de indivíduos que desejam cultivar e consumir a substância coletivamente. Ademais, os cidadãos ou residentes que não desejam cultivar a substância podem adquiri-la por um preço competitivo em farmácias. Essas três vias de acesso são rigorosamente fiscalizadas pelo IRCCA, o qual visa a assegurar a qualidade das plantas, com vistas à consecução de sua política de redução de danos.

Nesse esteio, a lei fomenta consumidores a fabricar, ou mesmo, adquirir legalmente o produto por preços inferiores àqueles praticados no mercado ilícito. Sobre esse ponto, a isenção tributária, associada ao rigoroso controle da origem dos aportes financeiros, viabiliza uma redução progressiva dos dividendos do mercado ilegal de entorpecentes. Nesse sentido, essa lei não abandona o proibicionismo do tráfico de drogas, mas estabelece um mercado legal de produção e venda das drogas.[17] Trata-se de circunstâncias excepcionais de permissivismo, propiciando maior segurança jurídica a todos os agentes, desde o início da escala de produção até o consumidor.

De mais a mais, de se notar a definição do limiar de 40 gramas para o porte da substância, quantia autorizada para o consumo mensal do indivíduo. Esse valor, além de coerente no contexto da lei, confere maior segurança jurídica aos usuários, produtores e distribuidores. Afinal, delimita claramente a área de incidência do sistema penal. De fato, previamente à promulgação da lei, a distinção entre tráfico e porte da substância lastreava-se em um exercício discricionário de ponderação dos policiais e do magistrado – tal como ocorre no Brasil atualmente -, o que muitas vezes acarretava injustiças e condenações contraditórias. Assim, a fixação de um limiar mínimo delimita, ao menos, uma moldura à livre convicção moral do juiz.

Ademais, o viés liberal dessa Lei não consistiu em um óbice para a regulamentação rigorosa da produção e consumo da substância, o que reforça a abrangência do projeto de legalização. Com efeito, de se pontuar a vedação ao consumo em locais públicos, inclusive no interior de transportes públicos (art. 40), bem como a proibição de se conduzir veículos sob efeito da cannabis (art. 41). Outrossim, é defeso aos trabalhadores o consumo da substância durante a jornada laboral (art. 42). Esses aspectos denotam a seriedade com que a lei foi elaborada, permitindo a superação de críticas de que consistiria em uma liberalização generalizada de cannabis.

Por outro lado, a Lei n.º 19.172/13 não está isenta de empecilhos ou à prova de inseguranças, a maioria dos quais de natureza prática. Trata-se de uma conseqüência natural para uma legislação pioneira, que visa a superar paradigmas e ideologias arraigados na sociedade. No capítulo seguinte, busca-se avaliar tais problemas empíricos a fim de se aprimorar a lei, bem como avaliar a viabilidade efetiva de sua implementação no Brasil.

4. SETE ANOS APÓS A LEI N.º 19.172/13: EFEITOS CONCRETOS E ADAPTAÇÃO AO CASO BRASILEIRO

Novos projetos são permeados de incertezas. Uma vez implementados, surgem empecilhos imprevisíveis, bem como outros previsíveis que escaparam à vista de todos seus empreendedores. Esse quadro se repete em se tratando da consecução do modelo adotado pela Lei n.19.172, o que não implica, de modo algum, o abandono desse novo paradigma. Exigem-se, em verdade, reparos.

4.1. QUESTÕES SOBRE O PRODUTO VENDIDO

Há duas principais queixas no tocante ao produto disponibilizado em farmácias: sua escassez e a baixa concentração da substância. Quanto ao primeiro problema, o Estado Uruguaio reconheceu que a produção inicial por apenas duas empresas foi insuficiente para fazer frente à demanda, fato também obstacularizado pelo clima uruguaio, que impõe dificuldades no cultivo (COLOMBO e VERPA, 2020). Por essa razão, em 2021, foi determinada a expansão de produção da substância para cinco empresas.

Outros consumidores entendem que a substância fornecida, apesar de ser de boa qualidade, possui concentração inferior àquela desejada, sendo marcante a diferença entre as substâncias produzidas em clubes canábicos (mais fortes) e em farmácias. Assim, é relevante a realização de ajustes de acordo com a demanda do mercado consumidor a fim de se atingir o objetivo de eliminar o tráfico ilegal. De qualquer modo, a substância comercializada já apresenta qualidade muito superior à orginalmente vendida, em regra de origem paraguaia, bem como estima-se ter retirado uma rentabilidade anual de U$S 30.000.000,00 em do mercado ilegal (BETANCUR, 2021). Segundo estimativas do IRCCA, desde a implementação da Lei n.º 11.972/13, um em cada três consumidores já aderiu a uma das três modalidades legais de obtenção da substância (COLOMBO e VERPA, 2020).

Deve-se ressaltar que desde a edição da lei aumentou significativamente o apoio da população uruguaia à discriminalização, o que revela redução do estigma sobre a cannabis: antes, 66% dos uruguaios rejeitavam o projeto de lei, enquanto hoje 68% dessa população aprovam a atual política adotada pela Administração Pública (COLOMBO E VERPA, 2020).

Dados revelam que, entre 2014 e 2018, o fluxo de cannabis ilegal advinda do Paraguai decaiu em cinco vezes. Por outro lado, o número de apreensão de drogas não reduziu nesse período, notadamente em razão de dois fatores: o consumo de outras drogas, principalmente a cocaína (MARTÍNEZ, 2019), bem como a possível utilização do país como ponto de venda internacional da substância (LISSARDY, 2019). Esses problemas, contudo, não sinalizam o fracasso da nova lei. Pelo contrário: indicam necessidade de aprofundamento da regulamentação e – possivelmente – expansão para legalização de outras substâncias.

4.2 QUESTÕES ATINENTES À FISCALIZAÇÃO DO ACESSO À CANNABIS

Um dos grandes desafios da regulamentação do acesso à cannabis consiste na fiscalização. Com efeito, trata-se de uma lei complexa, que cria diversos mecanismos pioneiros. De se notar, precipuamente, a insuficiência de funcionários engajados no controle, a fim de se impedir que produtores domésticos e cultivadores em clubes canábicos abasteçam o mercado ilegal.[18] A curto prazo, uma das soluções adotadas no Uruguai consistiu em limitar o acesso à cannabis a uma única das três vias, porém deve-se viabilizar exceções. A título exemplificativo, caso haja problemas no cultivo em clubes canábicos – por inexperiência, problemas com o cultivo plantas, entre outros – deve-se viabilizar a aquisição junto aos estabelecimentos canábicos.

Nesse contexto, enquanto se prioriza a busca por regulamentação e controle, adotando-se registro dos usuários consumidores, muitos suscitam a estigmatização a que esses indivíduos estão sujeitos. No mais, considerando-se a insuficiência de funcionários para o controle de todos os consumidores, vislumbram-se dificuldades na proibição do acesso da cannabis aos turistas, que paulatinamente se dirigem ao Uruguai em busca do consumo da substância.

4.2.1 A POSSÍVEL ESTIGMATIZAÇÃO DOS USUÁRIOS EM RAZÃO DOS REGISTROS

O tratamento uruguaio conferido à legalização da cannabis diverge de outros modelos em vigor, como no Colorado ou em Washington, locais em que não há obrigatoriedade de registro dos consumidores para obtenção da substância. O mesmo acontece na Espanha, ou nos “coffee shops” na Holanda, em que não há um limite da quantidade a ser adquirida por cidadãos e residentes. No Uruguai, foram tecidas críticas em razão dessa obrigatoriedade de registro. Para muitos consumidores, haveria uma contradição com a política de respeito à autonomia individual e à política de redução de danos. Tratar-se-ia de um mecanismo paternalista, o qual acarreta tão somente em gastos desnecessário pelo aparato estatal. Para além desses argumentos, destaca-se a possível estigmatização dos indivíduos, vez que é elaborado um banco de dados referente ao consumo de cannabis, o que poderia reforçar diversos mecanismos de repressão estatal sobre essas pessoas.

De fato, há relatos de diversos indivíduos que preferem manter  acesso ao produto pelo mercado ilegal, onde há desnecessidade de registro. A preocupação reside no fato de que, apesar de bem resguardados atualmente, esses dados podem ser futuramente utilizados por governos autoritários em desfavor dos usuários.

Essas questões pontuadas são de extrema relevância no contexto da aprovação de uma lei de viés liberal, descriminalizador e regulamentador da cannabis. Afinal, deve-se evitar a ocorrência de retrocessos e recrudescimentos disfarçados de avanços, tal como ocorreu com a Lei n.º 11.343/06. Para tanto, a exposição de motivos da Lei n.º 19.172/13, em que os projetos de Lei brasileiros devem se inspirar, destaca como um dos objetivos principais:

Encontrar un equilibrio entre aspectos tales como la libertad del individuo y la protección de su integridad física, así como entre los usos y costumbres aceptados socialmente y la no estigmatización de quienes consumen algún tipo de drogas (URUGUAI, 2013).

De se destacar, por outro lado, a segunda diretriz essencial daquela Lei qual seja, o combate ao tráfico de drogas. Sobre esse ponto, a inexistência de controle às vias de acesso à substância implicaria um fomento ao tráfico em detrimento de seu combate. Afinal, indivíduos poderiam obter quantidades superiores àquelas suficientes ao seu consumo a fim de vendê-las no mercado ilegal.[19] Se, por um lado, a exigência de registro possa parecer inerente a um sistema paternalista e estigmatizante, por outro, está em consonância com o escopo de combate ao mercado ilegal. Há de se inviabilizar, nesse sentido, o acesso de traficantes à cannabis produzida legalmente.

Ora, sem um controle da obtenção individual da substância – conforme proposto no modelo uruguaio, de 40 gramas – o mesmo indivíduo poderia adquirir uma quantidade muito superior e revendê-la no mercado ilegal. Com efeito, não se pode olvidar das extensões do território, bem como da elevada população brasileira, o que acarretará, inevitavelmente, em problemas de abastecimento em algumas regiões. Nesses momentos, os traficantes podem lucrar com a venda da substância por eles adquirida legalmente, o que se mostraria em total dissonância com os objetivos ora propostos. E mais: os traficantes teriam a capacidade de ocasionar crises de abastecimento, adquirindo vultosos montantes da substância em determinada região. Sendo assim, é imprescindível o registro dos indivíduos que obtenham a substância por quaisquer vias de acesso – auto cultivo, clubes canábicos ou aquisição em estabelecimentos. Trata-se da única opção viável para se prevenir uma revenda ilegal da substância por indivíduos que optem por permanecer no tráfico.

Reconhece-se, neste contexto, que a criação de um banco de dados contendo usuários da substância poderia propiciar uma exclusão e marginalização dessas pessoas. No entanto, um registro cauteloso e sigiloso impedirá esse efeito indesejado. Esses dados devem ser armazenados em um banco de dados de acesso restrito, com a finalidade exclusiva de controle da obtenção de cannabis pelos usuários. O acesso a essas informações deverá ser circunscrito à entidade análoga à IRCCA, destinada a aplicações das sanções administrativas cabíveis, e ao Ministério da Saúde. Em hipótese nenhuma a polícia civil ou militar poderá ter acesso a esses dados, bem como sua divulgação em processos criminais e inquéritos imprescindirá de determinação judicial. Policiais não poderão ingressar nas residências ou exigir exibição de licenças sem autorização judicial, a menos que haja irrepreensíveis suspeitas acerca da prática de tráfico.[20]

O combate aos rótulos e estigmas é primordial para se alcançar a reinserção das classes marginalizadas na sociedade. Contudo, trata-se de um progresso lento, que não pode ser alcançado, exclusivamente, pela via legislativa. Consiste em um processo social amplo, que repercute, em última análise, nos sistemas policial e penal. Por conseguinte, são necessárias mudanças no pensamento da sociedade, e não apenas no sistema penal. Esse marco regulador e pioneiro deverá, assim, ter seus objetivos e mecanismos divulgados, bem como debatidos em detalhes no seio social. A conscientização será primordial, ainda, no âmbito das academias de Polícia, a fim de se retirarem os estigmas existentes, bem assim se assegurar a efetiva garantia aos direitos individuais dos consumidores da substância.

Portanto, a implementação de mecanismos de controle do acesso à substância faz-se, por ora, necessário, resguardando-se, por outro lado, o sigilo dessas informações, a fim de se promover um equilíbrio entre as liberdades individuais e o combate ao tráfico de cannabis. Visa-se, assim, a mitigar o estigma a que os usuários podem estar submetidos. Esse modelo, tal como implementado no Uruguai, tem demonstrado uma boa percepção pelos usuários, sendo que a maioria não vislumbra um aumento da estigmatização com a aprovação da Lei.[21]

Levando-se em consideração os dados fornecidos pelo IRCCA, somando-se as três vias de acesso, houve cerca de 30000 usuários registrados nos primeiros 6 meses, o que se traduz na adesão de 1% de toda a população uruguaia, ou 25% dos usuários de cannabis. Até fevereiro de 2021, o número de pessoas com acesso à substância dobrou, atingindo marca superior a 60000 usuários (IRCCAd, 2021). Destarte, embora a implementação do modelo seja relativamente recente, as estatísticas indicam um crescimento progressivo na adesão ao projeto.

4.2.2 PREOCUPAÇÕES COM O TURISMO CANÁBICO

Dentre os maiores desafios à fiscalização encontra-se o mercado de turistas. Afinal, muitos estrangeiros são atraídos ao país em razão da regulamentação da venda da substância, em busca de conhecer o sistema legal canábico, porém se veem impedidos de obtê-la legalmente. Optam, com isso, pela aquisição ilegal junto aos clubes canábicos, ou mesmo, por meio de traficantes (BELLO, 2018). Ora, o mecanismo de regulamentação Uruguai é fortemente regulador, porém, ao ignorar o denominado “turismo canábico” fomenta, indiretamente, mercado ilegal, vez que são os auto cultivadores e clubes canábicos que fornecem a substância aos turistas (MIZRAHI, 2017, p. 335).

Em verdade, não há razão para se impedir o acesso de turistas à cannabis por meio da aquisição nas farmácias uruguaias após efetuado o registro. Uma política inovadora que se propõe ao respeito à autonomia individual, bem como ao direito ao acesso legal à substância de qualidade, não pode estabelecer critérios discriminadores em relação aos estrangeiros. Afinal, a política de redução de danos e o respeito à dignidade humana não exclusivos de cidadãos e pessoas residentes no país (MIZRAHI, 2017, p. 334).

Nesse sentido, propõe-se a viabilidade da aquisição da substância por turistas estrangeiros, fornecendo-se uma quantidade da substância proporcional ao tempo de permanência no país. Sendo assim, vez que um cidadão uruguaio pode obter 40 gramas mensais da substância, um turista que permanecer no Uruguai por uma semana poderá adquirir 10 gramas de cannabis (HUDAK; RAMSEY; WALSH; 2018).

4.3 EMPECILHOS ADVINDOS DE INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS NORTE-AMERICANAS

No âmbito internacional, o ceticismo e resistência de países mais resilientes à legalização das drogas se refletiu em um óbice ao mecanismo uruguaio de venda da substância (GALAIN PALERMO, 2015, p. 71-72). Após a adesão de farmácias tradicionais uruguaias à venda de cannabis, foram mantidas as linhas de crédito já existentes com instituições financeiras uruguaias. No entanto, decorrido um breve período do início das vendas, o Bank of America e CitiBank notificaram bancos uruguaios, notadamente o Banco de La República Oriental Del Uruguay (BROU), sobre a obrigatoriedade de encerrarem as contas de farmácias que mantivessem o comércio de cannabis (MARTINEZ, 2017). Segundo os bancos norte-americanos, a seção 320 do USA Patriot Act (2001) veda a prestação de serviços por instituições financeiras a quaisquer entidades envolvidas na manufatura, produção e distribuição de entorpecentes, incluindo-se a cannabis. A aplicação desse dispositivo, ainda, estender-se-ia aos bancos estrangeiros que possuam contas vinculadas a instituições financeiras norteamericanas (seção 319, USA Patriot Act).

Nesse contexto, os bancos Santander, Itaú e BROU encerraram as contas das farmácias que optaram por manter a venda da substância, o que forçou a realização de vendas nesses estabelecimentos em espécie. Outras farmácias, a seu turno, optaram por manter suas contas bancárias, retirando-se do projeto de venda de cannabis. Sendo assim, a obrigatoriedade do encerramento de linhas de crédito consiste em um empecilho significativo à adesão das farmácias desde o início das vendas da substância, em julho de 2017.

O IRCCA avalia alternativas para permitir a manutenção de linhas de crédito. Cogitou a criação de uma conta destinada às farmácias por meio do Banco Central do Uruguai, porém essa situação poderia acarretar os mesmos problemas com instituições norte-americanas, vez que novamente invocariam uma violação ao Patriot Act. Essa situação, porém, não consistiu em entrave para continuidade e expansão do programa. São explorados canais financeiros alternativos, como venda em dinheiro e contas correntes pessoais dos proprietários das farmácias (BETANCUR, 2021).

4.3.1 AS FARMÁCIAS NO CONTEXTO DAS POPULAÇÕES MARGINALIZADAS NO BRASIL

Muito embora os impactos do tráfico de entorpecentes no Uruguai sejam comparáveis com aqueles ocorridos no Brasil – aumento da violência e do encarceramento, por exemplo -, há que se traçar fatores distintivos entre esses dois países. Pontuam-se, notadamente, a magnitude do tráfico e o controle de diversas favelas por facções criminosas no Brasil.[22] De fato, ao contrário do Uruguai, o Brasil é um dos países mais envolvidos na produção e distribuição mundial de entorpecentes, o que reforça a influência dos grupos envolvidos com o tráfico no país.

No modelo do Uruguai, tal como instituído, as pessoas envolvidas no tráfico de entorpecentes se mantêm à margem da legalidade. Visa-se a enfraquecer o comércio ilegal, tão somente, pela redução da demanda, levando os consumidores a adquirirem legalmente a substância. No entanto, ao se adotar esse modelo no Brasil, deve-se cogitar em outros mecanismos para um enfraquecimento mais célere e eficaz do tráfico. Ademais, vez que as facções criminosas detêm um arsenal considerável de armas de fogo no país, não se poderia descartar represálias aos estabelecimentos responsáveis pela venda de cannabis, especialmente por meio de furtos e destruição desses locais.

Sendo assim, propõe-se uma complementação ao modelo uruguaio, voltada à adaptação a essa situação brasileira. Com efeito, conforme exposto no capítulo 2, os indivíduos envolvidos com o tráfico consistem naqueles marginalizados, excluídos e perseguidos pelas diversas formas de controle social instituídas pelo Estado. A fim de se reverter esse quadro, evitando-se simultaneamente represálias aos estabelecimentos voltados à venda de cannabis, busca-se a inclusão desses agentes ao projeto de regulamentação da substância.

Primeiramente, para além da descriminalização do consumo da substância – o que implicará a retroatividade da lei penal, acarretando na atipicidade do porte de cannabis -, sustenta-se a incidência do instituto da abolitio criminis [23] a todos os indivíduos processados e condenados exclusivamente por tráfico de cannabis,[24] incursos no artigo 33 da Lei 11.343/06. A adoção dessa medida se fundamenta no reconhecimento da insuficiência e derrocada do modelo proibicionista adotado com relação à cannabis. Não se defende, contudo, a absolvição pela prática de delitos conexos, tais como crimes contra o patrimônio ou contra a vida. ajuizará com ação penal condenatória em face de indivíduos que tenham praticado condutas tipificadas pelo artigo 33 da Lei 11.343/06, envolvendo qualquer substância diversa da cannabis, mediante as seguintes condições:[25] a) não sejam indiciados como incursos no referido artigo até a data de promulgação da lei que regulamente a venda de cannabis ou, caso condenados por decisão irrecorrível, tenham cumprido integralmente a pena imposta; b) cessem definitivamente a prática de tráfico de drogas e a venda ilegal de cannabis, sob pena de revogação do benefício concedido.[26] Trata-se, nesse esteio, de um passo importante para se obter a descriminalização do consumo e venda de todas as drogas, tendo em vista, porém, os desafios da adoção de simultânea de uma legalização de todas as substâncias.

A fim de fornecer uma tutela aos indivíduos que lidavam previamente com a venda de drogas, de se destacar a importância do emprego de egressos do sistema criminal e ex-traficantes na cadeia produtiva de cannabis. Faz-se imprescindível viabilizar sua escolha por qualquer ofício ou profissão, possibilitando-se, porém, a opção pelo trabalho na produção e venda de cannabis. Para tanto, a utilização de farmácias pré-existentes não se mostraria a via mais adequada. A inserção de indivíduos previamente envolvidos com o tráfico em um ofício que pressuponha conhecimentos técnicos de medicamentos implicaria alguns empecilhos de início. A longo prazo, preza-se por uma capacitação dos egressos do sistema prisional, o que, porém, não se mostra viável de imediato. De mais a mais, as farmácias não são estabelecimentos adequados para um produto vendido com finalidades recreativas, tal como a cannabis.

4.3.2 CONCLUSÃO SOBRE O MODELO DE FARMÁCIAS URUGUAIO

A venda de cannabis em farmácias tem enfrentado desafios que seriam ainda maiores no Brasil. O corte de linhas de crédito no país levaria a uma baixa adesão de farmácias, o que poderia acarretar uma formação de “desertos canábicos”: áreas sem a existência de um estabelecimento que vendesse a substância, onde o tráfico continuaria prevalente. De mais a mais, represálias de traficantes concluiriam a inviabilidade do projeto. A complexidade do modelo adotado, assim, demandaria novos investidores especializados e conscientes dos desafios, situação incompatível com a inserção da venda de cannabis em farmácias pré-existentes.

Nesse esteio, propõe-se, parcialmente em consonância com o projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, de redação de Jean Wyllys, a criação de “estabelecimentos canábicos”, por meio da iniciativa privada, em que indivíduos previamente envolvidos com o tráfico possam participar, a fim de abandonar o mercado ilegal. Acrescente-se a necessidade de comprovação da origem dos aportes financeiros investidos, evitando-se o financiamento pelo próprio mercado ilegal de entorpecentes.

Essa proposta também não está à prova de dificuldades. Afinal, seria necessária uma venda de grandes quantidades da substância para manutenção da rentabilidade dos estabelecimentos, de modo que qualquer deficiência no abastecimento poderia levar a dificuldades em sua manutenção. Sendo assim, propõe-se o desenvolvimento desse projeto nos moldes dos denominados “coffee shops” holandeses, em que há oferta de uma variedade de produtos, alguns dos quais à base de cannabis, bem como de outros produtos alimentícios comuns. Essas medidas contribuiriam para torná-los economicamente viáveis, bem como atrativos para a iniciativa privada. Os “coffee shops”, ainda, viabilizam o consumo recreativo da cannabis, de modo que se mostra uma alternativa mais adequada em comparação com as farmácias.

Não se pode olvidar a garantia de empregos aos indivíduos previamente engajados no tráfico ilícito de entorpecentes e que optem pela adesão ao projeto. Propõe-se a obrigatoriedade da contratação, nos “coffee shops”, de um número mínimo dessas pessoas registradas junto ao órgão regulador. Caso não haja vagas suficientes, considera-se a inserção dos indivíduos em todas as etapas da cadeia produtiva: desde a produção, distribuição, envase, até a venda nos estabelecimentos. Para tanto, deve-se assegurar um processo licitatório adequado, contratando-se empresas efetivamente capazes de efetuar um plantio e controle de qualidade adequado das substâncias, bem como dispostas a contratar indivíduos provenientes das camadas marginalizadas da sociedade.

De mais a mais, é imprescindível considerar a representatividade do envolvimento de crianças e adolescentes na prática do tráfico de entorpecentes. A ausência de uma alternativa para esse grupo vulnerável poderia dificultar, ou mesmo, frustrar os objetivos de combate ao tráfico. E pior: poderia acarretar um aumento no número de menores de idade envolvidos com a venda dessas substâncias, sujeitos à exploração de traficantes, bem assim à repressão e violência de nosso sistema punitivista.

É notável que o caminho mais eficaz para o fim da marginalização desses jovens, e em respeito aos direitos infantis, consiste no investimento em políticas públicas de base, vinculadas a um ensino público de qualidade (BATISTA, 1998, p. 31). Portanto, é imprescindível, quando da legalização da cannabis, o reforço das políticas de acompanhamento psicossocial de adolescentes envolvidos no consumo e venda de drogas, sob o paradigma da política de redução de danos. Esse processo, ademais, deve ser aliado à inclusão do adolescente em programas sociais, assegurando um ensino de qualidade para sua formação pessoal e profissional. Quando da aquisição da maioridade, seguindo o raciocínio apresentado aos egressos do sistema prisional, pode-se facultar a esses adolescentes o ingresso na cadeia produtiva de produção e venda de cannabis.

Nesse sentido, diferindo-se do modelo uruguaio, o tráfico de entorpecentes seria confrontado por duas frentes: reduzem-se a demanda de consumidores e, simultaneamente, a oferta de mão de obra de indivíduos, maiores e menores de idade, que são levados a essa atividade ilegal. Afinal, o não oferecimento de ação penal em razão da prévia prática dessas atividades, associado ao oferecimento de um trabalho lícito, seria um atrativo para indivíduos que atualmente se encontram em situação de ilegalidade.

Por fim, não se pode olvidar o papel desempenhado pela regulamentação do auto cultivo e dos clubes canábicos, que permitiriam acesso controlado ao produto por via alternativa apta a mitigar eventual desabastecimento, bem como viabiliza aos usuários fabricação de acordo com sua preferência individual. Esse caminho se mostra uma opção interessante para usuários que desejem maiores níveis de concentração da substância.

5. NOVO VELHO BEM JURÍDICO TUTELADO

As diversas alterações em tipos penais referentes ao consumo e venda de cannabis podem implicar uma adequada promoção do bem jurídico tutelado. Afinal, propõe-se uma crescente regulamentação do acesso e venda da substância pela via administrativa, limitando-se as hipóteses de incidência do Direito Penal. Essa mudança de paradigma reflete falhas na tutela clássica do bem jurídico saúde pública.[27]

A Lei n.º 19.172/13 manteve o bem jurídico saúde pública como aquele tutelado pela norma penal. Afinal, é evidente sua aptidão a englobar a saúde potencial das pessoas individualmente consideradas, bem assim o funcionamento de um mercado regulamentado.

Assim, o bem jurídico saúde pública abarca a política de redução de danos, aliada ao respeito à liberdade individual, de modo a se proteger o direito ao consumo individual – na medida do risco ao próprio indivíduo -, bem como a produção estatal de determinadas substâncias com potencialidade baixa de dano – propiciando um acesso à cannabis de qualidade. Sob esses aspectos, haverá tutela, de fato, a saúde pública, e não permeada por uma função latente ilegítima.

O combate ao mercado ilegal e às suas consequências nefastas, tais como o aumento da violência, corrupção e lavagem de dinheiro, coaduna-se com tutela do bem jurídico saúde pública. Por essa razão, aliás, a lesão àquelas normas que acarretem maiores riscos à regulamentação do mercado pode ensejar a incidência de tipos penais, em especial no tocante à venda ilegal de cannabis.

Ainda, seguindo-se a concepção de ROXIN (2008), em um Direito Penal orientado por finalidades político-criminais, há de se reconhecer a importância da noção de risco proibido. Sobre esse ponto, uma conduta apenas será considerada típica caso dela emerja um risco rechaçado pela norma penal, o qual se manifesta no resultado. Com relação ao consumo de cannabis, muito embora se reconheça a possibilidade de se causarem transtornos físicos e psíquicos, encontramo-nos diante de um risco permitido pela norma – consubstanciada, no Uruguai, pela Lei 19.172/13 (MIZRAHI, 2017, p. 343-344), como também ocorre com o consumo de cigarros e bebidas alcoólicas.

Dessa forma, o estabelecimento de um limite mensal de obtenção de 40 gramas da substância não se volta a um parternalismo, ligado à limitação do dano à saúde dos indivíduos.[28] Visa, em verdade, ao combate ao tráfico ilegal de cannabis, este sim prejudicial à saúde individual, bem como à saúde pública. Sendo assim, em um mercado isento do tráfico ilegal da substância, seria natural a extinção de um limite mínimo para o consumo de cannabis.

Conclui-se, por conseguinte, que as adaptações promovidas pela lei uruguaia permitem uma verdadeira tutela ao bem jurídico saúde pública, dentro das balizas do Estado Democrático de Direito.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da falência do modelo proibicionista absoluto, há de se adotar medidas diversas. Uma nova política de drogas deve se pautar nas seguintes diretrizes: respeito à autonomia individual; desestigmatização e aceitação do consumo de drogas; respeito às pessoas submetidas a tratamento pelo uso problemático; racionalidade da investigação policial e da persecução judicial; redução dos danos ocasionados pelo consumo da substância; combate não bélico ao tráfico ilícito de entorpecentes.

O novo paradigma adotado pelo Uruguai, por meio da Lei n.º 19.172/13, estabeleceu três vias de acesso à cannabis, o primeiro passo para a regulamentação de substâncias entendidas como entorpecentes: auto cultivo, clubes canábicos e aquisição em farmácias. Foi estabelecido um limite de 40 gramas mensais por usuário, cabendo a este optar pela via de sua preferência. Para a aquisição em farmácias, estabeleceu-se um preço competitivo (em torno de U$S 1,30 dólar por grama), possível mediante a isenção tributária conferida pelo governo (MARTINEZ, 2017).

O modelo uruguaio suscita a existência de uma abordagem alternativa ao tráfico no Brasil. A partir da experiência com os resultados obtidos naquele país, associada às particularidades do Brasil, propõe-se a adoção de mecanismos específicos para maior efetividade do sistema a ser adotado. De se notar, primeiramente, a importância de um processo de descriminalização do consumo da substância, o primeiro passo necessário aos paradigmas ora propostos. Para tanto, admite-se tanto a via judicial como a legislativa, sendo que esta poderá ser concomitante à regulamentação da venda da cannabis. Assim, a Administração Pública deverá exercer um papel central desde a produção, fiscalização até a disponibilização da substância. Recomenda-se, ainda:

Reconhecimento expresso da abolitio criminis a todos os condenados por porte exclusivo de cannabis, bem como àqueles indivíduos condenados como incursos no art. 33 da Lei n.º 11.343/06, em razão, tão somente, do tráfico de cannabis.

Redação de um novo tipo penal consistente no comércio ilegal de cannabis, ao qual se comine pena inferior àquela prevista para o tráfico de entorpecentes nos moldes do artigo 33 da Lei 11.343.

Efetuar uma proposta de não persecução penal em face de indivíduos previamente envolvidos com o tráfico de quaisquer drogas ilícitas (não indiciados quando da promulgação da lei ou que já tenham cumprido a pena), mediante o comprometimento de não retomarem aquela prática, sob pena de revogação do benefício. Ademais, fornece a oportunidade aos indivíduos marginalizados, previamente envolvidos com o tráfico, de inserção à cadeia produtiva e de vendas no mercado legal de cannabis.

Reforço de acompanhamento psicossocial de jovens e adolescentes envolvidos com o consumo e venda de drogas, assegurando-lhes a frequência ao ensino escolar e capacitação. Quando de sua maioridade, viabilizar o ingresso na cadeia produtiva de cannabis, se assim desejarem.

Devido à pressão exercida por instituições financeiras norte-americanas para que as farmácias uruguaias encerrassem as vendas de cannabis, sugere-se a implantação de “coffee shops”, locais mais adequados para o uso recreativo da substância e em que se aceitará o pagamento exclusivamente em espécie. Será imprescindível prévia investigação da origem dos valores investidos pela iniciativa privada.

Viabilizar a aquisição de cannabis por turistas, em quantidade proporcional ao tempo de permanência no país, a fim de não estimular o acesso de estrangeiros ao mercado ilegal.

Implementação de um banco de registro individual dos consumidores da substância, a fim de se assegurar o efetivo controle sobre o acesso à cannabis, com acesso exclusivo por órgãos atrelados ao Ministério da Saúde. Com vistas a mitigar a estigmatização dos usuários, deve-se vedar o acesso a essas informações pelas Polícias Federal, Civil e Militar. O sigilo do banco de informações apenas será rompido mediante ordem judicial.

Permitir e incentivar a criação individual e clubes canábicos regulamentados, em que o usuário poderá obter a substância de acordo com sua preferência, em graus de concentração e variedade diversos.

Promover campanhas de conscientização da sociedade acerca do funcionamento da Lei, a fim de retirar preconceitos da população. Ademais, faz-se imprescindível fornecer treinamentos adequados à Polícia, a fim de que se evitem violações à liberdade individual dos usuários.

Fornecimento de subsídios estatais, consubstanciados na isenção tributária, investimentos na produção, pesquisa e conscientização da população, bem como no auxílio à promoção de empregos a todos os indivíduos que se habilitarem no sistema.

Devido às extensões territoriais do país, bem como à forte resistência de diversos atores sociais, é necessário um meticuloso planejamento e organização da política de drogas. Uma articulação entre os governos federal e estaduais contribuirá para o funcionamento do mecanismo proposto, com destaque para a importância da fiscalização por órgãos destinados a essa finalidade. Sendo assim, propõe-se conferir poderes regulatórios e de controle aos entes da federação e, simultaneamente, um instituto regulador em âmbito federal.

Espelhando-se no exemplo uruguaio, faz-se imprescindível a realização de pesquisas estimativas sobre o número real de usuários no país, a fim de se estimar a quantidade da substância a ser produzida, bem como o número de coffe shops a se estabelecer.[29]

Deve-se, ainda, evitar recrudescimento legislativo em outros aspectos relacionados a entorpecentes, em especial o aumento do punitivismo ligado ao comércio das demais substâncias proibidas no ordenamento.

É necessário priorizar a realização de um processo licitatório transparente, com foco na investigação dos investimentos das empresas candidatas à produção e distribuição de cannabis. Sugere-se, para tanto, a adoção do modelo de concessão patrocinada, prevista no art. 2, § 1º, da Lei n.º 11.079/04.[30]

O Uruguai foi pioneiro na América Latina em diversos avanços históricos. Foi o primeiro país a abolir a escravidão, a aprovar o ensino laico, permitir o divórcio, bem como regulamentar a prática de prostituição. Recentemente, em 2012, foi o pioneiro na legalização do aborto. Esse pioneirismo uruguaio sempre serve de modelo para que os demais países latino-americanos sigam a mesma via. E esse ideal também é aplicável à política de drogas.

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REFERÊNCIAS – NOTAS DE RODAPÉ

[1] Mestrando em Direito Penal (PUC-SP), Especialista em direito penal e criminologia (PUC-RS).

[2] Segundo Habermas (apud AMADO 1997, p. 20-23), os destinatários das normas apenas necessitam cumpri-las se forem os autores das mesmas, de modo que há um direito racionalmente válido quanto à sua função integradora se sua normatividade provier de um processo verdadeiramente participativo. Portanto, o direito ilegítimo, proveniente de injustiças, não é válido e pode ser desafiado.

[3] Essa ideologia busca encobrir um Direito Penal baseado na culpabilidade do indivíduo, substituindo tal conceito pela noção de periculosidade. Esse quadro justifica intervenções pré-delituais, bem como fomenta as teorias referentes à finalidade de prevenção geral negativa da pena – neutralização dos indivíduos desviantes (RIBEIRO, 2006, p. 189).

[4] Com a decadência da URSS e, portanto, com a derrocada de um inimigo externo, os Estados Unidos buscaram um novo bode expiatório para os problemas sociais e econômicos, dessa vez vertendo-se a um inimigo interno: o tráfico de drogas. Nessa época, o Brasil e vários países do ocidente seguiram o alinhamento norte-americano, de maneira que igualmente declarou como inimigo interno o traficante de drogas.

[5] Essas ideologias não esgotam as vertentes que tratam a guerra às drogas como a medida necessária para a pacificação social. De se notar que o denominado Law And Order, ao explorar o medo e o pânico social, instrumentaliza a mídia a fim de difundir das ideologias de defesa social e segurança nacional. Propala o endurecimento das penas, a maior repressão ao tráfico de drogas, reproduzindo indistintamente o senso comum (CARVALHO, 2010, p. 153).

[6] Segundo Foucault, a prisão visa à supressão do bem jurídico do tempo livre, o que a qualifica como um aparelho jurídico econômico que cobra a dívida do crime em tempo de liberdade suprimida, mas também como instrumento técnico-disciplinar, com vistas a obter corpos dóceis e úteis. Os objetivos reais do Direito Penal seriam, portanto, a docilização das classes baixas associada à ocultação da criminalidade das elites. A submissão e o controle, consubstanciados precipuamente por meio do panóptico de Bentham, continuam presentes em certa medida na atual política proibicionista. Afinal, parcela significativa da população carcerária, a que se visa a disciplinar, foi processada ou condenada como incursa nos tipos penais referentes à prática de tráfico de entorpecentes. No entanto, essa primeira função cede espaço para, no âmbito do tráfico de drogas, a mera exterminação de indivíduos (SANTOS, 2006, p. 292).

[7] O sensacionalismo gerado pela mídia gera rotulações de determinados indivíduos como delinqüentes, disseminando a sensação de insegurança geral, o que reforça a necessidade de combate policial ostensivo ao tráfico. Sendo assim, os indivíduos, amedrontados, vêem-se muito mais propensos a quaisquer ideais que conduzam a uma pretensa tranqüilidade (BAUMAN, 2009, p. 13).

[8] Nesse sentido, Thomas Mathiesen aponta as funções reais do encarceramento, que coadunam ao ora exposto: Função purgatória, segundo a qual a prisão seria útil para controlar a população improdutiva e inconveniente na lógica capitalista; Consumismo de poder, mantendo-se a situação estrutural das pessoas improdutivas não contribuintes ao sistema e, por conseguinte, permitindo a manutenção do status quo social; Função distratora, como forma de desviar a atenção do perigo que os detentores do poder apresentam e focá-la nos delinquentes tradicionais das classes trabalhadoras mais baixas; e Função simbólica, em que se confere uma mancha ao presidiário, uma marca inclusive após cumprir sua pena (MATHIESEN, 2003, p. 224-226).

[9] Nesse esteio, de se notar inúmeras semelhanças entre o antissemitismo e a guerra às drogas. Verifica-se um papel essencial da mídia na disseminação do medo. O pânico moral propaga o medo que, por sua vez, abre espaço ao ódio a determinado grupo social. Esse cenário favorece o comportamento dos políticos no sentido de corroborar a popularidade dos discursos. Vale dizer, ainda que haja bons argumentos contrários ao antissemitismo ou à guerra às drogas, essas ideologias são politicamente populares (VALOIS, 2017, p. 550).

[10] Essa teoria foi desenvolvida pelo Coronel Romeu A. Ferreira, com a conclusão da Operação Rio, em 1995, e foi adotada pela Subsecretaria de Inteligência da SSP/RJ. Os indivíduos que se encontram no topo do iceberg habitam os morros e favelas, são jovens de até 30 anos responsáveis pela venda de drogas a varejo.

[11]Em um Estado Democrático de Direito, cabe a todos os cidadãos aceitar a alteridade e diversidade, para além de uma mera tolerância. Ademais, postula-se o princípio da imanência, segundo o qual as drogas não são alheias à sociedade; de fato, sempre estiveram presentes no curso da história em diversas civilizações. A título exemplificativo, cita-se o consumo de folha de coca por trabalhadores rurais na Bolívia. Por fim, levando-se em conta os argumentos ora expostos, filia-se a uma política de redução de danos, considerando-se que esta consiste no mal menor ao se comparar com o combate ostensivo ao consumo das substâncias (SHECAIRA, 2014, p. 240).

[12] Nesse sentido, o CREMESP (2016) destacou a importância do desenvolvimento de políticas públicas acerca da prevenção e conscientização do uso de drogas. Asseverou que o modelo proibicionista atual consiste em um óbice ao acesso a informações relevantes para o alerta acerca do consumo dessas substâncias e aos cuidados assistenciais.

[13] Em abril de 2018, havia 8412 auto cultivadores no Uruguai. A seu turno, em fevereiro de 2021 esse número dresceu para 11630 (IRCCAa, 2021).

[14] O número de clubes canábicos no Uruguai cresceu de 90, em abril de 2018, para 165, em fevereiro de 2021 (IRCCAb, 2021).

[15] O número de farmácias continua estável, em 14, desde em abril de 2018. A expansão desse número depende do aumento da capacidade de produção da substância (IRCCAc, 2021).

[16] Um grama da substância custa cerca de um dólar (BAUDEAN, 2014).

[17] Compreende-se o modelo uruguaio como proibicionista com exceções, ou seja, ao passo que mantém o proibicionismo da venda irrestrita da cannabis, estabelece algumas normas de caráter limitador à intervenção penal (MIZRAHI, 2017, p. 346).

[18] No tocante à venda em farmácias, o IRCCA possuirá um controle informatizado da quantidade de cannabis vendido, bem como controlará a quantidade da substância disponível em cada farmácia. Com relação aos clubes canábicos, serão analisados os relatórios mensais enviados ao IRCCA, bem como se efetuarão inspeções aleatórias à sede do clube. Nos domicílios, igualmente, são realizadas inspeções aleatórias para se verificar a regularidade do cultivo (BAUDEAN, 2014, p. 22).

[19] Sobre esse ponto, o Projeto de Lei n.º 7.270/14 carece da delimitação de mecanismos de controle e fiscalização dos usuários. Não se nega o estigma a que os usuários podem estar submetidos, porém esse panorama não justifica a inexistência de um registro da aquisição, plantio e consumo da substância.

[20] Propõe-se uma melhora da eficácia e transparência policial; também será de grande valia o desenvolvimento de centros de mediação de conflitos nas áreas metropolitanas; por fim, o fornecimento de equipamentos e infraestrutura para a convivência e uso dos espaços públicos contribuirá para melhor interação entre a Polícia e a sociedade (BAUDEAN, 2014, p.32).

[21]  Há atualmente ao menos 60000 indivíduos aderidos em seis meses do início das vendas no Uruguai, dentre uma estimativa de 150000 consumidores da substância. Ademais, em uma pesquisa realizada sob os auspícios da Junta Nacional de Drogas, 51% dos usuários manifestaram estar de acordo ou muito de acordo com a afirmação de que se sentem com maiores liberdades para se expressar sobre seus hábitos de consumo após a promulgação da Lei. Com isso, as respostas demonstram um aumento na percepção da garantia ao direito de expressão, o que contribui para a redução da estigmatização dos indivíduos consumidores de cannabis (VALDOMIR, 2015, p. 25).

[22] O surgimento e fortalecimento das facções criminosas, notadamente do Primeiro Comando da Capital, está diretamente relacionado à explosão de encarceramento no Brasil, desacompanhada de infraestrutura, mínimas condições de salubridade nas prisões (DIAS, 2010, p. 394-396).

[23] Em tramitação no Congresso Nacional encontra-se o projeto de Lei n.º 7.270/14 de redação do Deputado Jean Wyllys, em que postula a concessão de anistia: “É concedida anistia a todos que, antes da sanção da presente lei, cometeram crimes análogos aos previstos na nova redação estabelecida para o artigo 33 da lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, sempre que a droga que tiver sido objeto da conduta anteriormente ilícita por elas praticada tenha sido a Cannabis, derivados e produtos de Cannabis.”

Em contraposição a esse projeto de Lei, não se entende tratar-se aqui de anistia, mas sim de hipótese de abolitio criminis. Aquela consiste no “esquecimento jurídico do ilícito”, tendo por objeto fatos ainda definidos como crimes, em geral políticos, eleitorais ou militares. Por outro lado, entende-se por abolitio criminis a desconsideração, por via legislativa, da tipicidade de uma conduta anteriormente prevista como crime. No caso em tela, evidente o enquadramento nesta definição. Afinal, a cannabis deixará de constar entre as substâncias entorpecentes abarcadas pelo tipo penal previsto no artigo 33 da Lei 11.343/06. Trata-se, portanto, de atipicidade da conduta (BITENCOURT, 2013, p. 209).

[24]  De se notar uma lacuna que emanará no ordenamento jurídico, afinal, qualquer venda de cannabis deixará de ser ilícita. Sendo assim, há de se criar um tipo penal consistente na venda de cannabis sem licença ou autorização da entidade estatal responsável por seu controle, cominando-se, contudo, pena inferior àquela prevista para o tráfico de entorpecentes ilícitos.

[25] O artigo 21, §3º, do Projeto de Lei n.º 7.270/14 dispõe que: “serão incluídos na anistia concedida, com a ressalva do § 1º, todos aqueles que, antes da sanção da presente lei, cometeram crimes análogos aos previstos na nova redação estabelecida para o artigo 33 da lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, sendo a substância que foi objeto da conduta ilícita por eles praticada uma droga distinta da Cannabis, derivados e produtos de Cannabis, sempre que:

I – Até o dia da promulgação da presente lei ainda não tiverem sido indiciados em processo criminal por tais crimes;

II – Por própria iniciativa se apresentarem perante o órgão que o Poder Executivo estabelecer para a solicitação do registro e habilitação como unidade de venda de Cannabis no varejo;

III – Abandonarem definitivamente, a partir de tal solicitação, qualquer atividade relacionada à produção e/ou comercialização de drogas ainda ilícitas, sob pena de revogação do benefício de anistia concedido.”

Inspira-se aqui nas propostas desse Projeto de Lei, porém não se filia à hipótese de concessão de anistia, afinal, esta incide sobre indivíduos já condenados pela conduta que se visa a esquecer. No caso em tela, o modelo visa a incidir sobre condutas que ainda não foram inseridas no sistema persecutório. Sendo assim, opta-se pelo não ingresso de ação penal condenatória, nos moldes da colaboração premiada adotada com relação à organização criminosa, prevista no art. 4º, §4º, da Lei 12.850/13.

[26] O Projeto de Lei n.º 7.270/14 prevê a habilitação dos indivíduos como unidade individual de venda de cannabis. No entanto, tal mecanismo implicaria a criação de milhares de unidades de venda, o que levaria a uma dificuldade de fiscalização. Ademais, o projeto é lacônico ao não estabelecer pressupostos mínimos para a outorga da licença. Por conseguinte, defende-se a incorporação desses indivíduos à cadeia produtiva de estabelecimentos já existentes e devidamente registrados, seja na condição de empregados ou indivíduos terceirizados. Esse quadro proporciona maior controle sobre a produção e venda da substância, bem como assegura uma fonte de renda lícita aos indivíduos outrora envolvidos com o tráfico de entorpecentes. De mais a mais, esse projeto estabelece como condição para se evitar uma pena privativa de liberdade a obrigatoriedade de trabalho dos antigos traficantes com a venda de cannabis, o que consistiria em um trabalho forçado. De fato, entre o cárcere e a venda legal da substância, ainda que em desacordo com sua vontade, os indivíduos fatalmente optariam por esta. Em decorrência disso, essa proposta não se mostra em consonância com o atual Estado Democrático de Direito, pautado pela liberdade de trabalho.

[27] Ressalte-se que esse bem jurídico apresenta uma inegável dimensão coletiva, que extrapola a soma de saúdes individuais. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. v.4. p. 321.

[28] De se pontuar que o proibicionismo vigente no direito penal uruguaio sequer logrou êxito em reduzir o consumo e o dano causado por substâncias entorpecentes. Esse quadro reforça o abandono do bem jurídico saúde pública como o protagonista na esfera penal referentes à política de drogas.

[29] Foram realizadas estimativas do número de usuários, bem como do número destes que aderiram à aquisição de cannabis no primeiro ano da implementação do projeto. Estimou-se, com isso, a produção para o primeiro ano de 6 toneladas de cannabis no país (BAUDEAN, 2014, p. 16-18). Esse valor, contudo, mostrou-se insuficiente para fazer frente à efetiva demanda verificada.

[30] Com a adoção da modalidade de concessão patrocinada, há de se reconhecer a atividade estatal de produção, distribuição e venda de cannabis como um serviço público prestado à coletividade. Com efeito, a linha de argumentação aqui defendida coaduna com a acepção de MELLO (2015, p. 695): “Serviço Público é, portanto, toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público, portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo.”

[1] Mestrando em Direito Penal (PUC-SP), Especialista em direito penal e criminologia (PUC-RS).

Enviado: Fevereiro de 2021.

Aprovado: Março de 2021.

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Renan Azevedo Leonessa Ferreira

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