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Michel Foucault e a refutação da hipótese repressiva sobre a sexualidade

RC: 154453
452
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/refutacao-da-hipotese

CONTEÚDO

ARTIGO DE REVISÃO

SILVA, Flavio Ferreira Altenfelder [1], SILVA, Lorena Ribeiro Novais [2], MENDES, Vera Lucia Ferreira [3], SOUZA, Luiz Augusto de Paula [4]

SILVA, Flavio Ferreira Altenfelder et al. Michel Foucault e a refutação da hipótese repressiva sobre a sexualidade. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 09, Ed. 10, Vol. 01, pp. 152-165. Outubro de 2024. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/refutacao-da-hipotese, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/refutacao-da-hipotese

RESUMO

Michel Foucault chama de hipótese repressiva um tipo de explicação comum que elege a repressão como o mecanismo central de apreensão da história da sexualidade. Segundo essa visão, o século XVIII marcaria uma ruptura a partir da qual os gestos, as palavras e os prazeres ligados às práticas sexuais seriam crescentemente bloqueados, tirados de cena e excluídos do espaço social até os dias de hoje. Lançando dúvidas sobre essa leitura, Michel Foucault afirma que, dos séculos XVIII ao XX, o sexo foi objeto de uma “explosão discursiva”, ainda que tenha ocorrido uma estreita limitação quanto aos termos e palavras utilizados para se referir à sexualidade (uma polícia dos enunciados), bem como das ocasiões oportunas e das pessoas autorizadas a falar dele (política da enunciação). O objetivo deste artigo é expor e analisar a crítica de Michel Foucault sobre a hipótese repressiva da sexualidade e, ao mesmo tempo, sua demonstração da constituição de novos modos de enunciação, evidenciação e controle da sexualidade. O artigo deriva de pesquisa bibliográfica, que recolheu, na obra de Michel Foucault, alguns dos principais textos e argumentos com os quais o autor delineia sua posição, bem como análises de estudiosos que dialogam com as formulações de Michel Foucault. A desnaturalização da hipótese repressiva e sua contraposição adveio de extenso e rigoroso processo de pesquisa e é uma das razões que faz da obra de Michel Foucault sobre a sexualidade uma referência relevante, que continua atual e que subsidia novas pesquisas sobre gênero e sexualidade no contemporâneo, daí a relevância em torná-la ainda mais acessível aos interessados pela temática da sexualidade.

Palavras-chave: Sexualidade, História da sexualidade, Regimes de enunciação, Políticas de enunciação.

1. INTRODUÇÃO

Ao longo da década de 1960, Michel Foucault publica uma série de livros nos quais explora o surgimento histórico de várias ciências, como a psiquiatria, a biologia, a economia e a linguística. Em livros como A História da Loucura (1961), As palavras e as coisas (1966) e A Arqueologia do Saber (1969) ele já se indagava sobre as relações entre o saber e o poder na constituição e no funcionamento das sociedades.

Davidson (2019), partindo de entrevista concedida por Foucault no final dos anos de 1970, sob o título “Verdade e poder”, aponta a avaliação que o pensador francês faz sobre as obras mencionadas; avaliação na qual se opõe a uma visão difundida na época (e ainda hoje), que representa a evolução dos saberes de maneira linear e gradual rumo a uma cientificidade, supostamente, cada vez mais rigorosa. Foucault confronta tal linearidade com rupturas e transformações relativamente abruptas ocorridas no interior de vários saberes empíricos ao longo dos últimos séculos.

Munido de um amplo material de pesquisa, que mapeava as referidas transformações, Foucault (1979, p. 4) constata que houve “uma modificação nas regras de formação dos enunciados que são aceitos cientificamente como verdadeiros.” Mais do que mera correção de erros anteriores ou refinamentos procedimentais, que manteriam a suposta linearidade dos avanços científicos, o que estaria em jogo seria o regime da enunciação científica, aquilo que regeria os enunciados e a relação entre eles para produzir proposições científicas. Tratar-se-ia, portanto, de um “problema de regime, de política do enunciado científico” (Foucault, 1979, p. 4).

Essa fase do pensamento de Foucault é chamada de “arqueológica”, ela ajuda compreender o que estará em questão nos trabalhos chamados “genealógicos” da década de 1970. Uma indicação da diferença entre o projeto arqueológico e o genealógico está presente ao final da entrevista referida anteriormente. Nela, Foucault sugere:

por ‘verdade’, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados.

A ‘verdade’ está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. ‘Regime’ da verdade. (Davidson, 2019, p. 14)

Para Davidson (2019, p. 196), o primeiro parágrafo pode ser lido como uma interpretação retrospectiva que Foucault faz de seu método arqueológico, que consiste na caracterização histórica dos sucessivos sistemas ordenados de produção, repartição, circulação e funcionamento de enunciados. O segundo parágrafo, por outro lado, conduz ao projeto genealógico, que busca escrever a história das relações intrincadas entre a verdade e os sistemas de poder. Foi no período entre 1971 e 1979, ao assumir a cátedra “História dos Sistemas de Pensamento” no Collége de France, que Foucault desenvolve “uma genealogia da sociedade e da política modernas”, em que “as prisões, o corpo individual, a sexualidade e a população terminaram convertendo-se nos temas de suas investigações” (Castro, 2015, p. 53).

Esse quadro sintético é confirmado na introdução do segundo volume da “História da Sexualidade”, intitulado “O uso dos prazeres”, publicado em 1984, que será comentado mais adiante. O fato de o próprio autor caracterizar seu pensamento nesses termos serve como uma garantia de que, de alguma forma, retratamos de maneira fiel suas proposições.

Na introdução ao segundo volume da “História da sexualidade”, então, observa-se um exemplo nítido de como Foucault é o melhor intérprete de seu trabalho pregresso. Ao fazer um balanço de suas investigações até aquele momento, faz referência ao primeiro período de suas obras – o da arqueologia. Foucault relata seu ceticismo quanto à imagem de um progresso linear na ordem dos conhecimentos, que o levara a interrogar-se “sobre as formas de práticas discursivas que articulavam o saber” (Foucault, 2019b, p. 10).

Em seguida, o autor comenta a necessidade que viu de uma mudança teórica para o campo do poder, que “me levara a interrogar-me sobretudo sobre as relações múltiplas, as estratégias abertas e as técnicas racionais que articulam o exercício dos poderes” (Id. Ibid., p. 10).

Essas definições, evidentemente, servem como apoio interpretativo, como indicativos introdutórios para (re)situar “A vontade de saber” (primeiro volume da “História da sexualidade”) nesse percurso da genealogia, um itinerário complexo e marcado por diversos deslocamentos teóricos no pensamento de Foucault, que não cumpre desdobrar, uma vez que o rápido panorama traçado busca apenas dar contexto ao recorte temático que interessa aqui e que define o objetivo do artigo: expor e analisar a crítica de Michel Foucault sobre a hipótese repressiva da sexualidade e, ao mesmo tempo, sua demonstração da constituição de novos modos de enunciação, evidenciação e controle da sexualidade.

2. A HIPÓTESE REPRESSIVA E SUA SUPERAÇÃO

Antes de passar as considerações sobre as formulações críticas de Michel Foucault sobre a hipótese repressiva da sexualidade, destaque-se que o método que o originou nosso artigo foi de pesquisa bibliográfica, que recolheu, na obra do referido autor, alguns dos principais textos e argumentos com os quais ele delineou sua refutação à chamada hipótese repressiva da sexualidade, bem como suas proposições sobre o que chamou de “explosão discursiva” acerca da sexualidade a partir da modernidade. A pesquisa bibliográfica valeu-se também de análises de estudiosos que dialogam com as formulações de Michel Foucault sobre a temática[5].

A hipótese repressiva sobre a sexualidade está fartamente discutida no volume 1 da “História da sexualidade” (“A vontade de saber”), abarcando a modernidade, por isso é nesse volume que, principalmente, se detém nossa análise. É verdade que o autor recua até a Idade Média para rastrear os pontos iniciais de surgimento das técnicas de poder e das transformações sociais que culminaram na experiência moderna da sexualidade, porém, grande parte do livro é dedicada ao período que vai do século XVIII ao XX. A partir do volume 2, Foucault reorganiza seu projeto para efetuar um recuo de longa duração até a Antiguidade grega e romana, conforme relatado na introdução do livro, enveredando para os processos e práticas históricos que produzem os indivíduos na condição de sujeitos, uma discussão que, embora muito relevante, não diz respeito diretamente a questão a ser tratada aqui. Na introdução do volume 2, “O uso dos prazeres”, o pensador francês esclarece o que a série de investigações sobre sexualidade visa: não um relato dos comportamentos sexuais efetivos dos indivíduos ao longo da história, nem às representações associadas a esses comportamentos. As pesquisas em torno da sexualidade se referem ao

[…] desenvolvimento de campos de conhecimentos diversos (que cobriram tanto os mecanismos biológicos da reprodução como as variantes individuais ou sociais do comportamento); a instauração de um conjunto de regras e de normas, em parte tradicionais e em parte novas, e que se apoiam em instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e médicas; como também as mudanças no modo pelo qual os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, seus deveres, prazeres, sentimentos, sensações e sonhos. […] O projeto era, portanto, o de uma história da sexualidade enquanto experiência, se entendemos por experiência a correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade. (Foucault, 2019b, pp. 7-8)

No parágrafo citado acima, Foucault sintetiza os eixos de sua pesquisa no cruzamento entre saber, poder e subjetividade, que se condensa numa “experiência” da sexualidade histórico-cultural que é peculiar das sociedades ocidentais modernas. Com os elementos delineados até aqui, é possível vislumbrar o projeto global da “História da sexualidade” escrita pelo autor. A publicação do primeiro livro, “A vontade de saber”, em 1976, lançou uma plataforma de pesquisa influente até os dias de hoje, na medida em que considera a “sexualidade” num plano a um só tempo institucional, histórico, epistemológico e político. Mais do que afirmar que a sexualidade não é um dado natural imutável, que apresenta diversas manifestações em diferentes sociedades, o autor singulariza essa experiência a partir de discursos pedagógicos, médico-psiquiátricos, jurídicos, estatais e de diversas estratégias que atravessam todo o corpo social. A genealogia da sexualidade moderna busca demonstrar a sua produção histórica, diferenciando-se de momentos anteriores da própria história europeia e de outras sociedades.

Para levar a cabo esse projeto, Foucault descreve o que chamou de “hipótese repressiva”, um tipo de explicação comum que elege a repressão como o mecanismo central de apreensão da história da sexualidade. De maneira análoga ao que se viu Foucault fazer em seus estudos da fase arqueológica, na qual uma visão de desenvolvimento suave e linear das ciências é criticada para lançar uma outra explicação original, apoiada em amplo material histórico-empírico. Nessa medida, a hipótese repressiva é descrita para marcar posição e orientar seus estudos noutra direção. Nas palavras do autor, no que consiste a hipótese repressiva?

Século XVIII seria o início de uma época de repressão própria das sociedades chamadas burguesas, e da qual talvez ainda não estivéssemos completamente liberados. Denominar o sexo seria, a partir desse momento, mais difícil e custoso. Como se, para dominá-lo no plano real, tivesse sido necessário, primeiro, reduzi-lo ao nível da linguagem, controlar sua livre circulação no discurso… (Foucault, 2019a, p. 19)

Com efeito, segundo essa visão, o século XVIII marcaria uma ruptura a partir da qual os gestos, as palavras e os prazeres ligados às práticas sexuais seriam crescentemente bloqueados, tirados de cena e excluídos do espaço social até os dias de hoje.

Lançando dúvidas sobre essa leitura, Foucault afirma que, dos séculos XVIII ao XX, o sexo foi objeto de uma “explosão discursiva”. Ainda que tenha ocorrido uma estreita limitação quanto aos termos e palavras utilizados para se referir à sexualidade (uma polícia dos enunciados), bem como das ocasiões oportunas e das pessoas autorizadas a falar dele (política da enunciação), “sobre o sexo, os discursos – discursos específicos, diferentes tanto pela forma como pelo objeto – não cessaram de proliferar” (Foucault, 2019a, pp. 20-21). Assim, houve uma incitação generalizada, a partir de múltiplos domínios discursivos, para se falar de sexo de maneira mais detalhada e circunstanciada.

3. A TRANSFORMAÇÃO DA TECNOLOGIA PELO BIOPODER

A formação histórica dessa grande injunção para se falar sobre o sexo começa a se engendrar antes mesmo do século XVIII. Os seus momentos cruciais, situados na Idade Média, desde pelo menos o século XIII com o Concílio de Latrão, e intensificados a partir da Contrarreforma nos séculos XVI-XVII, colocam em relevo a confissão como a técnica de poder responsável pelo início dessa meticulosa necessidade de se falar continuamente dos prazeres sexuais, que na época eram agrupados sob o vocabulário da “carne”: “pensamentos, desejos, imaginações voluptuosas… tudo isso deve entrar, agora, e em detalhe, no jogo da confissão e da direção espiritual” (Foucault, 2019a, p. 21).

A pastoral cristã, portanto, figura como a desencadeadora desse “dever fundamental, a tarefa de passar tudo o que se relaciona com o sexo pelo crivo interminável da palavra” (Id. Ibid., p. 22). Não se trata apenas de relatar determinadas infrações aos códigos morais, mas de “se dizer a si mesmo e de dizer a outrem, o mais frequentemente possível, tudo o que possa se relacionar com o jogo dos prazeres, sensações e pensamentos inumeráveis, que através da alma e do corpo tenham alguma afinidade com o sexo” (Id. Ibid., p. 23). Essa tecnologia de poder foi reapropriada e reatualizada nos séculos seguintes, sob novas formas, para fazer falar e ouvir continuamente sobre a sexualidade.

A partir do século XVIII há o surgimento de um conjunto de tecnologias de poder que Foucault denomina “biopoder”, no qual, diferentemente de épocas anteriores, a vida em suas várias manifestações passa a ser objeto de uma meticulosa teia de controle. Esse controle desenvolveu-se a partir de dois polos complementares: de um lado, o enfoque do corpo na condição de máquina, destinado a ser continuamente adestrado e ter suas forças ampliadas pelo mecanismo das disciplinas (uma anátomo-política do corpo humano), por outro, a espécie como um todo é investida de uma preocupação política, pela regulação dos processos biológicos como a natalidade, a mortalidade, a taxa de fecundidade (uma biopolítica da população).

Nesse sentido, a sexualidade e o sexo tornam-se o eixo articulador entre esses dois polos, por meio do que Foucault chama de “dispositivo de sexualidade”. O que interessa diretamente aos propósitos deste texto no desenvolvimento desses dois polos, cujas relações são complexas e paulatinamente articuladas com o passar do tempo, é a centralidade do dispositivo de sexualidade no esquadrinhamento contínuo das condutas sexuais. O dispositivo de sexualidade, atualizando as técnicas da confissão religiosa, confere a ela novos objetivos e a integra a um conjunto heterogêneo de ciências, que se consolidam na passagem do século XVIII ao XIX (Dreyfus e Rabinow, 1995, p. 154).

Com a introdução do conceito de biopoder, uma série de fenômenos históricos descritos minuciosamente por Foucault ao longo do volume 1 da “História da sexualidade” ganham coerência e são colocados num amplo panorama histórico que lhes confere sentido, entre os quais se destacam: a multiplicação dos domínios discursivos científicos que inventam e exploram a “sexualidade”, com destaque para a medicina e a psiquiatria; as técnicas de “colocação em discurso” mobilizadas por essas ciências; e a proliferação das “anomalias sexuais”, cujo caso paradigmático é a criação da categoria da homossexualidade, contrapostas a uma “norma silenciosa” caracterizada por uma sexualidade hetero, adulta e monogâmica.

A colocação do sexo em discurso escapa do domínio religioso e é alçado às dimensões políticas e econômicas, relacionadas ao Estado. Análises, contabilidades, classificações e especificações, por meio de pesquisas quantitativas, redimensionam os prazeres sexuais no âmbito do cálculo político, “anexando” a sexualidade a um domínio da racionalidade:

[…] cumpre falar do sexo como uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder público, exige procedimentos de gestão… (Foucault, 2019a, p. 27)

A aparição de uma economia política da “população” é responsável pela formação de múltiplas observações sobre a sexualidade. A “população” torna-se um problema econômico e político, isto é, a população com suas características próprias, variáveis específicas, indo desde a natalidade, esperança de vida, até formas de alimentação e adoecimento.

As questões científicas, administrativas e sociais relacionadas à sexualidade da população tornam-se problemática central para médicos, psiquiatras, pedagogos, juízes, professores, cientistas sociais e para as famílias, na medida em que esse domínio da vida (dos apetites, dos desejos e das vontades) fornece parte substantiva da explicação para a saúde do indivíduo e para sua posição e identidade social.

Para Foucault, a sexualidade emerge como uma dimensão relevante à estratégia de poder, que conjuga o indivíduo e a população para expandir sua malha. Em vários âmbitos foram criados instrumentos para ouvir, observar e registrar; incitações institucionais múltiplas, no plano da economia, da pedagogia, da medicina, exigiram do indivíduo a formulação de sua sexualidade num discurso contínuo.

Seria possível, para cada ciência particular e instituições específicas, como a escola e a família, percorrer as relações mútuas entre práticas de poder e as formações de saberes a partir de condutas, impulsos e motivações vinculadas à sexualidade. No entanto, é talvez no âmbito da psiquiatria que se passa a transformação mais emblemática. O início do século XIX marca uma mudança relevante: a separação de uma medicina do sexo em relação à medicina do corpo, o que provocou uma explosão discursiva sobre a sexualidade. Essa separação entre medicina do sexo e do corpo baseou-se no isolamento de um “instinto sexual”, de tal sorte que, ainda que não houvesse alteração orgânica, esse instinto era capaz de apresentar anomalias constitutivas, desvios adquiridos ou processos patológicos (Dreyfus e Rabinow, 1995, p. 188).

Os resultados de nosso estudo sobre as posições de Foucault, mostram que a medicina e a psiquiatria, com suas respectivas práticas de escuta e registro das práticas sexuais, fazem parte de um conjunto mais amplo de estratégias que se voltam à experiência sexual. Para Foucault (2019a, p. 112), “não existe uma estratégia única, global, válida para toda a sociedade e uniformemente referente a todas as manifestações do sexo”. Com isso em mente, ele descreve quatro grandes conjuntos estratégicos, que ganham força na passagem para o século XIX e que desenvolvem dispositivos específicos de saber e poder sobre o sexo: a histerização do corpo da mulher; a pedagogização do sexo da criança; a socialização das condutas de procriação; e a psiquiatrização do prazer perverso. Essa última estratégia é responsável pelo que Foucault caracterizou como a “implantação perversa”. Antes de averiguar propriamente o processo de psiquiatrização, convém retomar, brevemente, o que o autor entende por “dispositivo de sexualidade”, uma vez que ele foi responsável pela produção histórica dessa experiência.

Ao comentar a “História da sexualidade” de Foucault, a pensadora Gayle Rubin enfatiza a crítica que o autor francês faz a uma visão tradicional da sexualidade “como impulso natural da libido para se liberar da coerção social” (Rubin, 2017, pp. 77). Para Foucault, “os desejos não são entidades biológicas preexistentes, mas, em vez disso, são constituídos no decorrer de práticas sociais específicas ao longo da história” (id. Ibid., p. 78). Para Rubin e Foucault, portanto, há o interesse em fazer uma crítica aguda ao que se entende por “essencialismo sexual”, que consiste na ideia de que o sexo é um dado da natureza que antecede a vida social e as instituições, tratando a sexualidade como imutável, associal e transhistórica. Ambos os autores consideram que a medicina, a psiquiatria e a psicologia reproduziram em diversos momentos o essencialismo sexual, caracterizando o sexo como “propriedade dos indivíduos, algo que residiria nos hormônios ou no psiquismo” (id. Ibid., p. 79).

É contra o essencialismo sexual – mas não apenas no domínio da sexualidade, pois Foucault também estudou o sistema penal e outros fenômenos modernos – que o conceito de dispositivo é desenvolvido. Em uma discussão na qual Foucault participou com membros da intelectualidade francesa, registrada no capítulo “Sobre a história da sexualidade” no livro “Microfísica do Poder”, Foucault sintetiza sua conceituação de dispositivo:

através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. (Foucault, 1979, p. 244)

Trata-se, portanto, de uma ampla rede histórica que congrega os mais variados elementos, reunindo tanto discursos quanto múltiplas práticas sociais de poder. No caso específico da sexualidade, o dispositivo consiste em estratégias de saber e poder “em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências encadeiam-se uns aos outros” (Foucault, 2019a, p. 115). É nesse quadro que se deve situar a psiquiatrização do prazer perverso, a partir do qual foi possível, simultaneamente, isolar o instinto sexual como entidade biológica e psíquica autônoma, constituí-lo como referência da normalização e da patologização das condutas, e desenvolver técnicas corretivas para os quadros patológicos. Foucault denomina de “implantação perversa” a multiplicação das sexualidades ao longo dos séculos XIX e XX, tornando visíveis uma série de “tipos humanos” que foram catalogados exaustivamente pelos grandes sexólogos na passagem entre esses dois séculos.

Para abordar a implantação perversa, podemos dividir a análise em duas partes: o mecanismo de poder que deu visibilidade a todas essas manifestações sexuais periféricas e o caso da criação do homossexual na condição de categoria classificatória. A aparição das “figuras” da perversão (sádicos, incestuosos, fetichistas, a lista desse tipo de catálogo parece infinita) está ligada ao polo disciplinar do biopoder:

[…] através do isolamento, da intensificação e da consolidação das sexualidades periféricas que as relações do poder com o sexo e o prazer se ramificam e se multiplicam, medem o corpo e penetram nas condutas. E, nesse avanço dos poderes, fixam-se sexualidades disseminadas, rotuladas segundo uma idade, um lugar, um gosto, um tipo de prática. Proliferação das sexualidades por extensão do poder; majoração do poder ao qual cada uma dessas sexualidades regionais dá um campo de intervenção… (Id. Ibid., p. 54)

A especificação do movimento classificatório de seres humanos de acordo com a sexualidade permite, a um só tempo, o controle mais fino das condutas; controle exercido no espaço da “intimidade” dos indivíduos, como também serve de apoio para a incitação discursiva, na medida em que todas essas “figuras” são chamadas a confessar seus desejos, pensamentos e práticas sexuais. Isso possibilita a especificação e distribuição dos indivíduos segundo uma escala patológica, tornando-os permanentemente visíveis para o poder. Com esse processo, ao mesmo tempo em que as sexualidades periféricas são cada vez mais interpeladas e observadas, “o casal legítimo, com uma sexualidade regular, tem direito à maior discrição e tende a funcionar como uma norma mais rigorosa talvez, porém mais silenciosa” (Foucault, 2019a, p. 43). A proliferação perversa, ao estabelecer uma norma e seus desvios, torna os contornos de uma sexualidade supostamente “normal” (que seria heterossexual e adulta) invisíveis, naturais e esperados.

Nesse sentido, Foucault analisa, numa passagem tornada clássica, o surgimento do homossexual como um “tipo” de pessoa peculiar. Nos códigos civis e religiosos de épocas anteriores, a sodomia era considerada um tipo de ato e não de pessoa: “o homossexual do século XIX torna-se um personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida” (Foucault, 2019a, p. 47). A sexualidade torna-se um critério exclusivo para medi-lo como humano, isto é, “ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ela é o princípio insidioso e infinitamente ativo das mesmas” (id. ibid., p. 48). O pensador francês atribui a data de nascimento da homossexualidade a um artigo de um médico chamado Westphal, em 1870, no qual fala sobre “sensações sexuais contrárias”, introduzindo o homossexual na condição de tipo psicológico com características intrínsecas e antitéticas em relação à sexualidade supostamente normal.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A caracterização do projeto foucaultiano sobre a história da sexualidade, os processos históricos envolvendo a emergência de um novo tipo de experiência com a sexualidade no período moderno e os conceitos mobilizados pelo autor para decifrar o surgimento desse fenômeno, perfazem um quadro histórico cujo interesse é evidente em face da centralidade dos estudos contemporâneos e das lutas emancipatórias vinculadas à sexualidade e aos gêneros. Significa dizer, por fim, que a perspectiva crítica aberta por Michel Foucault continua relevante aos estudos sobre a construção social da heterossexualidade e de seu predomínio como política normativa e hegemônica de poder.

REFERÊNCIAS

CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Tradução Beatriz de Almeida Magalhães – 1ª ed.; 1. Reimp. – Belo Horizonte: Autêntica Editora (Filô/Margens), 2015.

DAVIDSON, Arnold. O surgimento da sexualidade – Epistemologia histórica e formação de conceitos. Tradução Rogerio W. Galindo – 1ª ed. – Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2019.

DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Tradução Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. – 8ª ed. – Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra (Coleção Biblioteca de Filosofia), 2019a.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. Traduçao Maria Thereza da Costa Albuquerque; revisão técnica José Augusto Guilhon Albuquerque – 7ª ed. – Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra (Coleção Biblioteca de Filosofia), 2019b.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder; organização e tradução de Roberto Machado. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Edições Graal, (Biblioteca de filosofia e história das ciências: v. n. 7), 1979.

RUBIN, Gayle. Políticas do Sexo. Tradução: Jamille Pinheiro Dias. Títulos originais: Thinking Sex e The Traffic in Women. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

APÊNDICE – NOTA DE RODAPÉ

5. A pesquisa foi realizada como subprojeto no âmbito do projeto de pesquisa “A heterossexualidade como categoria e instituição política: estudo de mecanismos e de procedimentos hegemônicos de poder”, financiado pelo PIBIC/CNPq.

[1] Graduando em Psicologia. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5012-3381. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/0529865229549149.

[2] Graduanda em Psicologia PUC-SP. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1218-8365. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/3702557614281360.

[3] Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP; Mestre em Distúrbios da Comunicação pela PUC-SP; Graduação em Fonoaudiologia. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9322-3291. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/9285279875746982.

[4] Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP; Mestre em Distúrbios da Comunicação pela PUC-SP; Graduação em Fonoaudiologia. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4968-9753. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/9795645966787486.

Material recebido: 06 de dezembro de 2023.

Material aprovado pelos pares: 23 de agosto de 2024.

Material editado aprovado pelos autores: 22 de outubro de 2024.

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Flavio Ferreira Altenfelder Silva

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