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Entre o eu e o outro eu em Judas-Asvero: a catarse do seringueiro

RC: 83775
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/letras/catarse-do-seringueiro

CONTEÚDO

ARTIGO DE REVISÃO

LIMA, Adriana Alves de [1], TAVARES, Elyzania Torres [2], HANNA, Adel Malek [3]

LIMA, Adriana Alves de. TAVARES, Elyzania Torres. HANNA, Adel Malek. Entre o eu e o outro eu em Judas-Asvero: a catarse do seringueiro. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 04, Vol. 12, pp. 182-195. Abril de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/letras/catarse-do-seringueiro, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/letras/catarse-do-seringueiro

RESUMO

O presente artigo tem por escopo realizar um estudo acerca da ressignificação da catarse da alma humana através do olhar do seringueiro, no ensaio Judas-Asvero, de Euclides da Cunha. Essa reflexão tem por objetivo compreender como se dá o processo catártico que promove a dualidade da alma do seringueiro, purificando a alma desse sujeito, lançando a parte amaldiçoada para o Outro eu, o boneco de palha criado a sua imagem e semelhança. O método científico adotado foi o hipotético-dedutivo, delineando os aspectos miméticos presente na representação do seringueiro no boneco de Judas, assim como o levantamento das teorias acerca da catarse humana, articulando o desejo incontestável do seringueiro de liberdade e punição. No decorrer da análise, constatou-se que o seringueiro tem necessidade de purificar-se, na tentativa de se libertar das mazelas e exploração, às quais estava inserido. Malhar o Judas é uma forma de fazer com o boneco aquilo que ele desejava fazer com o colonizador. Assim, o processo catártico da alma se dá no intuito de expurgar seus sentimentos reprimidos, das desventuras amazônicas e superar seus traumas, sua má escolha. Assim, o ensaio Judas-Asvero é o repertório incontestável da superação do Eu sobre o Outro eu, por meio da reconstrução imagética do algoz, o mártir de sua salvação, perante o Criador, durante o Sábado de Aleluia o único instante catártico que os tornam humanos novamente.

Palavras-chave: Catarse, Imaginário Judaico-Cristão, Redenção.

1. INTRODUÇÃO

Em 1904, Euclides da Cunha tem um papel fundamental na demarcação dos limites territoriais do Brasil. Ele passa a comandar a expedição brasileira para demarcar as áreas limítrofes entre Brasil, Bolívia e Peru.

Nesse momento, vivemos um período marcado por grandes tensões entre os seringueiros brasileiros e peruanos, pois os conflitos existentes eram em decorrência ao auge da extração do látex na floresta amazônica.

A obra de Euclides da Cunha não é apenas uma narração do que ele encontrou nas terras amazônicas, mas caracteriza-se como uma representação da realidade amazônica. Seus escritos não evidenciam apenas a natureza, mas também as pessoas, a cultura do norte brasileiro e a denúncia da exploração que os seringueiros viviam nos grandes seringais.

O contexto histórico enunciado em Judas-Asvero faz referência aos movimentos migratórios, os quais muitos nordestinos migraram para o Acre, em especial, para a região do Purus devido à política de extração da borracha.

Com o intuito de fugir das grandes e cruéis secas naquela região e com a promessa de ganhar muito dinheiro, muitos nordestinos ambiciosos acabaram sendo iludidos por essa proposta de riqueza na Amazônia no século XIX.

Nessa perspectiva, além do sentimento de vantagem, ambição, esse migrante trazia em sua bagagem sua história, sua cultura, sobretudo, sua religião. Assim, os sertanejos transformam-se em seringueiros e povoam a região do Alto Purus, no Acre, no período do ápice do Ciclo da Borracha no século XIX 1879-1912.

2. A NARRATIVA EUCLIDIANA EM JUDAS-ASVERO

A narrativa euclidiana em Judas-Asvero acabou sendo incorporada em vários gêneros textuais como conto, ensaio e crônica. Neste estudo, caracterizaremos como ensaio, por se tratar de um texto curto, o qual narra o cotidiano dos seringueiros na época da Semana Santa nas colocações nos seringais onde moravam e exploravam o látex e defumavam a borracha para exportação.

Embora seja uma narrativa curta, depreendemos que Euclides da Cunha traz à baila a discussão das marcas da religiosidade do seringueiro amazônico durante os festejos religiosos do Sábado de Aleluia.

Desse modo, a narrativa euclidiana enuncia como se dá a fé do homem amazônico em uma perspectiva religiosa, ou seja, não vemos apenas os elementos da natureza, do lugar, da terra amazônica em si, mas o ser humano, as pessoas que vivem nesse lugar e como a religião interfere na vida do seringueiro acriano, em especial, o “penar” do seringueiro trabalhador que sofre com a realidade encontrada, aqui, em terras acrianas.

O Sábado de Aleluia nada mais é do que uma comparação com o seu sofrimento, das suas mazelas e o preço por ter sido ambicioso. Nessa perspectiva, vemos um paralelo entre o judeu errante – o Asverus – e o Judas, o Iscariotes, e o seringueiro, o homem que aqui vive. Ou seja, a celebração do Sábado de Aleluia praticada pelos seringueiros e seus familiares é festejada como um sentimento de alívio, como um meio de descarregar todo o sofrimento e exploração vividos no seringal.

Ademais, é como se os sofrimentos vividos por eles se assemelhassem ao sofrimento do filho de Deus, o Messias, na Sexta-feira da paixão. Esse dia altera todo o cotidiano dos seringais.

Toda a semana santa correu-lhes na mesmice torturante daquela existência imóvel, feita de idênticos dias de penúrias, de meios-jejuns permanentes, de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma interminável sexta-feira da Paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefinida, pelo ano todo afora (CUNHA, 2000, p. 173).

Depreendemos que o catolicismo marca a religião nos seringais. O dia da Sexta-feira da paixão representa para os cristãos relembrar a morte de Jesus Cristo, que morreu na cruz para salvar os seres humanos dos seus pecados. Assim, o enredo da narrativa é construído na vida sofrida dos homens nos seringais e que a religião se configura com uma forma de se libertar, como fugir do sofrimento.

Assim, a narrativa é centrada na vida dramática do homem amazônico e na sua visão pessimista da vida, nas adversidades vividas, não nos elementos naturais.

Então pelas almas simples entra-lhes, obscurecendo as miragens mais deslumbrantes da fé, a sombra espessa de um conceito singularmente pessimista da vida: certo, o redentor universal não os redimiu; esqueceu-os para sempre, ou não os viu talvez, tão relegados se acham à borda do rio solitário, que no próprio volver das suas águas é o primeiro a fugir, eternamente, àqueles tristes e desfrequentados rincões. (CUNHA, 2000, p. 174).

De todos os tipos humanos enunciados na obra de Euclides da Cunha, o seringueiro é enunciado como escravo, como pessoa excomungada e jogada a própria sorte e que não tinham perspectiva de vida, além da exploração, o qual era tratado como escravo.

Cunha (2000, p. 174-175) conceitua o seringueiro como

[…] um excomungado pela própria distância que o afasta dos homens; e os grandes olhos de Deus não podem descer até àqueles brejais, manchando-se. Não lhe vale a pena penitenciar-se, o que é um meio cauteloso de rebelar-se, reclamando uma promoção na escala indefinida da bem-aventurança.

E o seringueiro abalança-se a esse prodígio de estatuária, auxiliado pelos filhos pequeninos, que deliram, ruidosos, em risadas, a correrem por toda a banda, em busca das palhas esparsas e da ferragem repulsiva de velhas roupas imprestáveis, encantados com a tarefa funambulesca, que lhes quebra tão de golpe a monotonia tristonha de uma existência invariável e quieta.

A obra de Cunha denuncia como os seringueiros eram tratados na região do Purus, a condição desumana dada a esses seringueiros que viam nas celebrações da Semana Santa uma libertação da exploração e do endividamento adquirido nos seringais. Nesse ponto, começa o “penar” desse homem que mesmo sofrendo não consegue se libertar da escravidão e malhar o Judas é uma maneira de se “livrar” e “vingar” os dias angustiantes vividos na Amazônia Acriana.

Entretanto, esses sentimentos e realidades são alterados, a partir das celebrações do Judas. É narrada a confecção do boneco, que retrata o próprio sertanejo, o próprio seringueiro, e seus dramas. O boneco é feito com trações que horroriza. “A breve trecho a figura demoníaca apruma-se, especada, à popa da embarcação ligeira” (CUNHA, 2000, p. 175).

Confeccionar o boneco altera todo o cotidiano do seringal, é nele que vemos representado o flagelo do homem amazônica, pois, ele é construído à semelhança daqueles homens, desde o formato do rosto até as vestimentas. O seringueiro constrói o

Judas como se fez sempre: um par de calças e uma camisa velha, grosseiramente cosidos, cheios de palhiças e mulambos; braços horizontais, abertos, e pernas em ângulo, sem juntas, sem relevos, sem dobras, aprumando-se, espantadamente, empalado, no centro do terreiro. Por cima uma bola desgraciosa representando a cabeça. É o que manequim vulgar, que surge em toda a parte e satisfaz à maioria das gentes.

E principia, às voltas com a figura disforme: salienta-lhe a afeiçoa-lhe o nariz; reprofunda-lhe as órbitas; esbate-lhe a fronte; acentua-lhe os zigomas; e aguça-lhe o queixo, numa massagem cuidadosa e lenta; pinta-lhe as sobrancelhas, e abre-lhe com dois riscos demorados, pacientemente, os olhos, em geral tristes e cheios de um olhar misterioso; desenha-lhe a boca, sombreada de um bigode ralo, de guias decaídas aos cantos. Veste-lhe, depois, umas calças e uma camisa de algodão, ainda servíveis; calça-lhe umas botas velhas, cambadas […] (CUNHA, 2000, p. 175-176).

Conforme observado, o ritual do Sábado de Aleluia descrito por Euclides da Cunha, conforme o excerto acima segue o mesmo princípio para a construção do boneco de Judas, o que muda da versão tradicional é que o boneco, em vez de ser pendurado em um poste para ser malhado, é amarado em um bote, o qual é colocado no Rio para ser malhado pelos ribeirinhos com pedras e tiros, durante o percurso do rio, até sumir.

Sobre a malhação do Judas que desce o rio, Euclides da Cunha (2000, p. 177) a descreve da seguinte maneira:

Então os vizinhos mais próximos, que se adensam, curiosos, no alto das barrancas, intervêm ruidosamente, saudando com repetidas descargas de rifles, aquele bota-fora. As balas chofram a superfície líquida, eriçando-a; cravam-se na embarcação, lascando-a; atingem o tripulante espantoso; trespassam-no. Ele vacila um momento no seu pedestal flutuante, fustigado a tiros, indeciso, como a esmar um rumo, durante alguns minutos, até reavivar no sentido geral da correnteza.

Salienta-se que, conforme descrito acima, a malhação do Judas tem início no momento em que o boneco é posto no rio, por meio de tiros e pedras, mas acrescenta-se nesse processo a motivação do seringueiro em construir o boneco de Judas e a razão de colocá-lo no rio para ser malhado. Trata-se da esperança de ser visto por Deus e perdoado pelos crimes cometidos a si mesmo e a sua família.

Neste desejo de obter a santificação e o perdão por suas desventuras e autopunição pelos crimes praticados contra si mesmo, manifesta-se no processo catártico que tem início na construção do Judas-seringueiro, que será abordado mais à frente, ficando a partir deste momento uma breve explanação sobre os aspectos teóricos sobre a Catarse.

3. ASPECTOS TEÓRICOS DA CATARSE

Falar em Catarse é tratar de um processo de purificação do ser mediante um estado de necessidade de purgar algo. Segundo Queiroz (2019)

O termo catarse é de origem grega, κάθαρσις (kátharsis), sendo usado com o sentido etimológico de purificar, purgar ou limpar. Do mesmo radical grego origina-se a palavra καθαρό (katharó; em português, cátaro), que significa puro. Cátaro (katharó) é alguém que passou por uma catarse (kátharsis), isto é, um processo de purificação.

Como pode ser observado, a catarse é um processo de purificação que tem sua origem na Grécia, com o filósofo Aristóteles em sua obra Poética. Para Queiroz (2019)

[…] Aristóteles (384-322 a.C.) apresenta a sua noção de catarse. Segundo ele, a tragédia descreve em forma dramática, não-narrativa, incidentes que suscitam piedade e temor; desse modo, consegue-se a catarse (purificação) dessas paixões. Para ele, a música também produz uma catarse.

Seguindo viés postulado por Queiroz (2019), a catarse é o meio pelo qual o homem purifica sua alma mediante as representações trágico-dramáticas. Representações estas, comuns na Grécia antiga, derivadas da poética dramática que consiste na reprodução de ações nobres, encenadas no palco por atores que emitam os desprazeres de heróis trágicos, que por decisões errôneas, transpõe-se de um momento de felicidade para a infelicidade.

Essa transposição representada nas encenações teatrais envolve seus expectados em um sentimento de terror e piedade que contribui para que suas emoções reprimidas sejam purgadas em forma de libertação humana, de suas experiências traumáticas, e purificação da alma. Chancelando a teoria de Aristóteles, Adorno (2011, p. 359 apud LOUREIRO; FONTE; OLIVEIRA, 2017, p. 701) afirma que “[…] a catarse (aristotélica) é uma ação purgativa das emoções que se harmoniza com a repressão”.

Em um movimento evolutivo, a Catarse passou a ser vista como um processo psicoterápico em que

[…] J. Breuer e S. Freud designaram por catarse a rememoração de uma situação traumática que liberaria o afeto “esquecido” e este restituiria ao sujeito a mobilidade de suas emoções. Freud uniu estreitamente a noção de catarse à prática da hipnose. (QUEIROZ, 2019)

A Catarse, conforme apresentado acima, passou a ser utilizada no meio científico, no caso do apresentado, no campo da Psicologia e da Psicanálise como uma forma de superar um trauma, restituindo as emoções do paciente. No caso de Freud, como destacado acima, esse associou a catarse por meio da prática de hipnose, após observar os estados catárticos provocados nos processos hipnóticos realizados em pacientes que buscavam a cura de seus medos e traumas. Nesse sentido, a catarse para psicanálise representa a cura de um paciente de suas experiências traumáticas recalcadas.

O vocabulário catarse tem sido usado também em áreas como a religião e a medicina, persistindo no sentido de expulsão daquilo que é estranho a essências ou à natureza de um ser.  No âmbito da medicina, o termo catarse está atrelado ao esvaziamento do intestino que pode acontecer por vômito, evacuação de fezes, urina e suor. No sentido religioso, prevalece o estado de purgação espiritual desejado pelo homem ao buscar, por meio da confissão de seus atos, além de purificação da alma, uma aproximação mais intensa ao mundo espiritual.

É no âmbito religioso que, a partir de agora, iniciaremos uma análise acerca do processo catártico pela qual o seringueiro passa com a construção do boneco de Judas, retratado por Euclides da Cunha no ensaio Judas-Asvero, presente na obra Um paraíso perdido.

4. A CATARSE DO SERINGUEIRO: A REDENÇÃO POR MEIO DO BONECO DE JUDAS

A cada dia que o seringueiro passa no interior da Floresta Amazônica, surgem lampejos de arrependimento e estagnação, pensando na condição deplorável na qual passou a fazer parte. A necessidade de expurgação por seus pecados transcende a matéria orgânica, alcançando a alma e o espírito, a essência de um autocondenado.

É natural que os migrantes que dantes pertenciam ao sertão, ou regiões mais afastadas da floresta amazônica, ao chegar no “inferno verde” e ali passar a viver no interior da floresta, entre animais e isolado do mundo exterior, passassem a sentir a desolação de seu espírito, se culpando por estar naquela situação, já que o paraíso descrito pelas inúmeras narrativas de viajantes, não condizem com a realidade.

Neste martírio, ao se verem isolados em sua agonia e ressentidos pelos crimes praticados a si mesmos, surge o mecanismo libertador desta solidão intangível: o Sábado de Aleluia. Nesse processo libertário de seus estigmas, a criação do boneco de palha, o Judas para malhação, tornar-se-á uma espécie de receptáculo para os deslizes dos seringueiros, conforme descrito por Euclides da Cunha (2000, p. 173):

No Sábado de Aleluia os seringueiros do Alto Purus desforram-se de seus dias tristes. É um desafogo. Ante a concepção rudimentar da vida santificam-se-lhes, nesse dia, todas as maldades. Acreditam numa sanção litúrgica aos máximos deslizes.

[…]

Ora, para isso, a Igreja dá-lhe um emissário sinistro: Judas; e um único dia feliz: o sábado prefixo aos mais santos atentados, às balbúrdias confessáveis, à turbulência mística dos eleitos e à divinização da vingança.

Diante o exposto, percebe-se que o seringueiro, em sua busca pelo perdão divino, se exalta frente à única possiblidade de redenção, a purificação de suas mazelas e crimes contra si mesmo, por ter adentrado a aquele “inferno”, fruto de sua ganância. Nesse dia santificado pela Igreja que o boneco de Judas surge como o Emissário Salvador, ganhando destaque na procissão no interior da Floresta Amazônica, pois é ele que irá conduzir o pecador à catarse de sua redenção, fechando mais um ciclo de sofrimento, para que após o Sábado de Aleluia reinicie todo o processo de arrependimentos e mazelas de onde se encontra, engolido pela floresta que o circunda.

Porém, a purificação não vem apenas pelo desejo ou pela vontade, é preciso que o seringueiro adentre as etapas do ritual de purificação, fazendo uso de sua própria identidade compartilhada com o outro que surgirá entre trapos e palhas. Assim como Prometeu, seguindo a ideia de criação do titã Epimeteu, cria o homem a partir do barro, o seringueiro cria seu alterego, não com o intuito de dar-lhe o conhecimento das artes e das ciências, mas para carregar em suas entranhas as desilusões e crimes de seu criador, pois é na figura de Judas que eclode todo o processo ritualístico.

Segundo Hardman (2009, p. 256) “Sua presença [o boneco de Judas] desencadeia antes de tudo um ritual autorreferente, um teatro móvel no rio, cuja catarse coincide em reconhecer-se nos bonecos esculpidos à imagem e semelhança do seringueiro.” Este auto-reconhecimento só se dará mediante o processo ritualístico que tem início na construção do homúnculo.

Durante o ritual que antecede a catarse do seringueiro, os trapos que contribuirá na confecção do boneco devem pertencer ao próprio seringueiro, para que o homúnculo tenha traços reais do seringueiro, onde se dará o vínculo, a ligação do criador com a criatura.

Segundo Francisco Venâncio Filho (2000, p. 80).

“Judas-Ashaverus” é um quadro a Rembrandt, em que traça a vingança do sertanejo contra si mesmo, esculpindo o Judas à sua própria imagem e semelhança, para, atirando-o à correnteza da estrada que lhe passa à porta, enviar a outras paragens o Ashaverus, como mensagem de sua maldição e sua desdita.

A mimese apresentada por Venâncio Filho (2000), na qual o seringueiro constrói o boneco de Judas a sua imagem e semelhança surge como reflexo do sertanejo, momento em que o outro surge como o alterego do criador, mas carregado apenas dos infortúnios pela qual o seringueiro arrasta dia após dia, “[…] a existência inteira, monótona, obscura, dolorosíssima e anônima, a girar acabrunhadoramente na via dolorosa inalterável, sem princípio e sem fim, do círculo fechado das ‘estradas’.” (CUNHA, 2000, p. 174).

A representação por meio do boneco de Judas aflora o início da catarse, quando o seringueiro se reconhece nas feições daquele homúnculo. Pois, segundo Seligmann-Silva (2005, p. 45)

Ao falar de arte e dor devemos ter em mente esse fato. Já que Aristóteles colocou no centro da sua teoria da tragédia a “purgação” das paixões eléos ephóbos, da piedade e do terror. Essa purgação só funciona graças à identificação e à consequente compaixão. Sentimos terror diante da morte e tendemos a nos identificar com quem sofre: sem esse pressuposto a tragédia e as representações cristãs da paixão não funcionariam.

Conforme apresentado por Seligmann-Silva (2005), a purgação só irá ocorrer diante do reconhecimento, da identificação do Ser com a sua própria tragédia, sem os elementos, a redenção por meio da catarse não se manifesta. Daí a necessidade de se ter um boneco com traços de seu criador que busca o perdão de seus pecados.

Numa releitura do real, o retrato do seringueiro se volta à mimese de sua verdadeira paranoia, a catarse de sua alma, onde o Judas do Sábado de Aleluia se veste da imagem pretensa de seu criador, rompendo com o limite do invariável e estático pensamento real, abraçando o signo articulatório do imaginário judaico-cristão. O seringueiro assume a máscara de Criador, articulando seu desejo incontestável de liberdade e punição na criação do Judas a sua imagem e semelhança. Este “Frankenstein” fará a divisão entre o Céu e o Inferno, visto que “o homem, ao penetrar as duas portas que levam ao paraíso diabólico dos seringais, abdica às melhores qualidades nativas e fulmina-se a si próprio. A rir, com aquela ironia formidável.” (CUNHA, 2000, p.127), percebendo que suas mazelas estão prestes a se fincar no seu Outro eu, libertando-o do inferno.

Neste processo catártico, o seringueiro ao expurgar seus sentimentos reprimidos, busca a purificação, a limpeza de seu interior como meio de superar seus traumas, sua má escolha. Assim, o ensaio Judas-Asvero, é o repertório incontestável da superação do eu sobre o outro eu, por meio da reconstrução imagética do algoz que será o mártir de sua salvação perante o Criador. Haja vista que a história social desta civilização mergulhada no poço exaustivo de suor e desventuras amazônicas encontramos particularidades que levam o seringueiro a desnudar-se de suas virtudes humanas, que o distingue dos demais seres, confrontando as dificuldades abertamente, adaptando-se e transformando o meio na qual pretende fixar seus domínios. A animalização ocorre frente às dificuldades impostas por seu próprio egoísmo, que vem desde o período colonial. Estes homens que se encontram isolados no meio do grande aglomerado de animais ferozes e uma floresta sufocante e densa, encontram no Sábado de Aleluia o único instante catártico que os tornam humanos novamente, pois é o momento da redenção de seus deslizes.

A relação entre o Eu e o Outro, neste momento, borbulha nas intempéries soluçantes do silêncio. Silêncio este que o seringueiro criador carrega durante a edificação do boneco do Judas. Este se torna sagrado em sua procissão interior, pois, o caboclo está diante de uma divindade sacro-santa, às avessas, um pecador que assume a carapuça de salvador no interior do seringal amazônico.

Para Peter Burke (1995, p. 166), “o silêncio religioso é um misto de respeito por uma divindade; uma técnica para abrir o ouvido interior; e um sentido de inadequação de palavras para descrever as realidades espirituais”. Logo, o silêncio proposto pelo seringueiro durante a narrativa não é em vão, trata-se de um silêncio solene que faz parte do imaginário judaico-cristão que permeia a cultura destes homens que vivem no interior da floresta.

No ensaio Judas-Asvero Euclides detalha todos os momentos de transmutação catártica do seringueiro, através de seus próprios rituais, pertencente à cultura judaico-cristão, a de construir um boneco de Judas à sua imagem, utilizando suas próprias vestes e palhas, como se fosse a construção de seu próprio ser, um novo Eu que passa a surgir por meio de um homúnculo que ganhará uma alma para ser sacrificado, e, assim, expurgar os pecados de seu criador.

Após a criação deste homúnculo de trapos e palhas, surge a relação entre o Eu e o Outro eu. Um autorretrato floresce ali no meio da floresta, um espantalho pronto a se tornar o Outro por meio do eu criador. É neste momento que a catarse da alma do seringueiro se aflora, ganha vida neste espetáculo higienizador da alma que só pode ocorrer mediante a expurgação de seus crimes e, para isso entra em cena o que chamamos de catarse, o ato de purificação pela qual o seringueiro precisa percorrer.

A catarse no processo de santificação do seringueiro, a qual se manifesta em seu ritual que transcende a construção do boneco de Judas, é preciso que o criador transponha a parte podre de sua alma para o receptáculo que ficará responsável em carregar as mazelas de seu criador durante o processo de purificação. Inicia-se então, a segunda parte do ritual, e a mais representativa no processo de libertação, trata-se do momento em que o boneco de Judas será enviado para percorrer o calvário,

E, a partir daí, a saga punitiva dos celebrantes, ao jogarem os Judas-fantasmas em barquinhos à deriva nos cursos d’água, para expô-los aos tiros dos ribeirinhos, à correnteza incerta, aos escolhos e ao entrechoque das próprias canoas. Nesse desfecho, nesse baile macabro de autorretratos desmanchando-se, entre risos sardônicos e autopunitivos, expressa-se, afinal, sublime e ironicamente, o momento supremo de vingança contra o próprio destino. (HARDMAN, 2009, p. 256-257)

Destaca-se nessa saga punitiva em que os barcos navegam, à deriva, sendo alvejado pelos ribeirinhos, desponta-se a punição física, da alta do seringueiro, depositado no homúnculo que segue sua própria procissão, encarregado e trazer em seu íntimo as dores de seu criador para juntos alcançar a redenção.

Vale salientar que o processo de purificação do seringueiro não fica apenas na malhação do boneco do Judas Seringueiro, é preciso levar em consideração outro fator preponderante neste processo de santificação, a água que rodeia o boneco durante sua procissão ao longo do rio. A salvação da alma se dá em definitivo quanto este recebe as bênçãos por meio da água, que em sua representatividade religiosa,

[…] a água se apresenta como sendo um elemento puro, representando a vida e a salvação por meio do batismo, que fará o elo de ligação entre homem e Deus. […] a relação da água do rio com o boneco de palha representa a vida em uma escala mais ampla do que o percebido, isso porque a utilização do Judas de pano não é suficiente para promover a catarse do seringueiro por meio da troca, mas também por meio da purificação pela água, quando este entra em contato com o rio, passando para um estágio quase metafísico, sendo molhado pelos respingos e solapões  (HANNA, 2015, p. 158-159).

Assim, o processo da catarse na qual o seringueiro passa a fazer parte, é carregado de movimentos ritualísticos para a concretização de seus desejos, pois como visto no fragmento acima, não bastava apenas a criação do boneco de trapos e palha e a malhação deste, era preciso que o boneco, carregando nas entranhas a alma e o desejo de redenção do criador, passasse pelo calvário e pelo batismo por meio das águas do rio, para então caracterizar a sansão litúrgica de suas mazelas e crimes cometidos contra si mesmo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ensaio Judas-Asvero é o retrato do caboclo seringueiro que vivia no interior da Floresta Amazônica, especificamente as margens do rio Alto Purus, por onde Euclides da Cunha delineou a demarcação do Tratado de Fronteira entre Brasil e Peru.

Neste ensaio, o autor tenta fazer uma descrição sociocultural acerca dos costumes e crenças dos seringueiros, cujo retrato é a própria epifania do abandono de suas convicções e sociabilidade para superar os estigmas causados a si mesmo e pela floresta que habita.

O ponto de intersecção entre a condenação para o inferno e a salvação para o paraíso, a catarse se manifesta como a única salvação possível, por meio do Sábado de Aleluia e a construção do boneco de Judas como receptáculo para carregar as mazelas de seu criador durante a procissão de martírios e batismos enquanto navega pelo rio se encontrando com outros homúnculos carregando os crimes de seus criadores.

Deste modo, a salvação se manifesta no processo de construção do boneco, receptáculo que carregará as mazelas e o desejo de salvação do seringueiro, o barco em que o boneco de Judas será amarado para descer o rio Purus, onde será malhado, e recebera a santificação por meio das águas do rio, um batismo que purificará em definitivo a alma daquele que busca a redenção, o Seringueiro Criador.

Portanto, o ensaio Judas-Asvero, de Euclides da Cunha, representa não só os caboclos seringueiros que vivam as margens do Alto Purus, como também os desejos desses que buscam o perdão de seus deslizes e lamentações, assim como a crença judaico-cristã que permeiam a floresta, fruto das intervenções dos colonizadores e pós-colonizadores.

REFERÊNCIAS

ARISTOTELES. Poética. São Paulo: Editora Abril, 1984. Cap. I a XII, p. 241-252. (Os Pensadores). In: DUARTE, Rodrigo (Org.). O belo autônomo: textos clássicos de estética. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997.

BURKE, Peter. A arte da conversação. Trad. de Álvaro Luiz Hattnher. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995.

CUNHA, Euclides da, 1866-1909. Um paraíso perdido: reunião de ensaios amazônicos. Seleção e coordenação de Hildon Rocha. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000. 393 p. (Coleção Brasil 500 anos)

HANNA, Adel Malek. Judas-Asvero: historicidade e crença judaico-cristã no interior da Amazônia. 1 ed. Curitiba: Prismas, 2015. ISBN 978-85-5507-007-5.

HARDMAN, Francisco Foot. Uma prosa perdida: Euclides e a literatura da selva infinita. GALVÃO, Walnice Nogueira (coord.). Revista Brasileira. Fase VII. Abril-Maio-Junho 2009. Ano XV. Nº 59. P.243- 260. Disponível em: <http://www.academia.org.br/sites/default/files/publicacoes/arquivos/revsita-brasileira-59.pdf>. Acesso em: 30/09/2020.

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[1] Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre – UFAC (2020). Mestre em Letras pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR (2017). Especialização em Libras pela Faculdade Uniasselvi (2020). Especialização em Educação Especial Inclusiva pela Faculdade Acriana Euclides da Cunha – INEP (2014). Graduação em Letras Português e respectivas literaturas, pela Universidade Federal do Acre (2012).

[2] Mestranda em pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR (2020). Especialização em Gramática e Ensino de Língua Portuguesa pela Faculdade Barão do Rio Branco, UNINORTE, (2009). Graduação em Letras – Língua Portuguesa, pela Faculdade Barão do Rio Branco, UNINORTE, (2008).

[3] Doutorando em Letras: Linguagem e Identidade, pela Universidade Federal do Acre-UFAC; Mestre em Letras: Linguagem e Identidade, pela Universidade Federal do Acre-UFAC; Graduando em Letras e Respectivas Literaturas, pela Universidade Federal de Rondônia-UNIR.

Enviado: Fevereiro, 2021.

Aprovado: Abril, 2021.

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Adel Malek Hanna

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