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Estupro de vulnerável, a palavra da vítima e os possíveis riscos de condenação

RC: 100786
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

FARIAS, Gilmar Ferreira de [1], SILVA, Linyker Mesêncio Araújo e [2]

FARIAS, Gilmar Ferreira de. SILVA, Linyker Mesêncio Araújo e. Estupro de vulnerável, a palavra da vítima e os possíveis riscos de condenação. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 11, Vol. 04, pp. 124-152. Novembro de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/palavra-da-vitima

RESUMO

O estupro de vulnerável (artigo 217- A do CP) se constitui como um crime que é praticado às escuras, onde os elementos probatórios, para fins de atribuição da autoria e materialidade delitiva, são considerados escassos. Ademais, tem-se que o magistrado, para fins de prolação de uma sentença em âmbito de crime sexual, possuirá apenas o testemunho da vítima para fins de comprovação de tal ato. Nesse contexto, infere-se: existem riscos de se ter uma condenação injusta em casos de crime de estupro de vulnerável, caso o julgador tenha como subsídio apenas a palavra da vítima? Dessa forma, objetiva-se tratar sobre a mencionada possibilidade, destacando que tal atuação por parte do julgador poderá culminar em uma condenação injusta, além de ferir os princípios do in dubio pro reo (a favor do réu) e da presunção de inocência. Com relação à metodologia adotada, enfatiza-se a utilização de elementos bibliográficos, jurisprudenciais e doutrinários. Com subsídio em todo o conteúdo exposto, coaduna-se com o posicionamento de que os direitos do acusado devem ser levados em consideração, principalmente quando o depoimento prestado pela vítima se mostrar incoerente ou o quando o magistrado tiver dúvidas acerca da autoria do crime. Dessa forma, compreende-se que o magistrado deve atuar com ponderação de valores e princípios e, em casos de incoerências probatórias ou incertezas, deverá pautar-se por princípios em prol dos acusados, para que não se tenha a propagação de decisões injustas. Ademais, considera-se o denominado “depoimento sem dano” como um importante mecanismo em prol da colheita do depoimento de crianças e adolescentes, sem que se tenha uma situação traumática para o menor e sem o comprometimento da confiabilidade da prova produzida.

Palavras-chave: Estupro de vulnerável, princípio da presunção de inocência, princípio do in dubio pro reo, acervo probatório, palavra da vítima.

1. INTRODUÇÃO

É sabido que o crime de estupro de vulnerável constitui-se como uma modalidade criminosa que geralmente é praticada na clandestinidade, às escuras, longe dos olhos de qualquer testemunha. Nesse esteio, compreende que o acervo probatório formado, sobretudo no âmbito de crimes sexuais, sempre se mostrará escasso, dificultando a formação da convicção do magistrado acerca dos fatos. Ademais, tem-se que o julgador, diante da necessidade de prolação de uma sentença, buscará se valer do depoimento prestado pela vítima e, em casos raros, de um exame de corpo de delito.

No contexto apresentado, surge uma indagação: existem riscos de se ter uma condenação injusta em casos de crime de estupro de vulnerável, caso o julgador tenha como subsídio apenas a palavra da vítima? Nesse esteio, busca-se através do presente artigo científico, tratar acerca da valoração do depoimento prestado pelas vítimas, no âmbito de um crime de estupro de vulnerável. Em outras palavras, analisa-se se a super valoração da palavra da vítima, em crimes sexuais, poderá acarretar condenações injustas e desprovidas de grande certeza jurídica.

Para alcançar tal intento, tem-se uma análise sobre o crime de estupro de vulnerável, os elementos classificatórios de tal delito (natureza jurídica, sujeitos ativos e passivos, prazo prescricional), bem como acerca do termo “vulnerabilidade”.

Posteriormente, realiza-se uma abordagem sobre os mecanismos probatórios mais comuns em crimes de estupro de vulnerável. Dessa forma, ressaltam-se os exames periciais (consubstanciado no exame de corpo de delito), nas provas testemunhais e, principalmente, no depoimento prestado pelas vítimas de crimes sexuais. Nesse aspecto, apresenta-se elementos que ratificam a escassez de provas em casos de crime de estupro de vulnerável, bem como a valoração da palavra da vítima.

Ademais, trata-se sobre os princípios da presunção de inocência e o princípio do in dubio pro reo (a favor do réu), aplicáveis na esfera de defesa dos acusados, sobretudo em relação ao cometimento de um crime de estupro de vulnerável.

No tópico principal, aborda-se sobre os principais posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca da valorização da palavra da vítima, em âmbito de crime de estupro de vulnerável. Nesse sentido, analisa-se se o magistrado poderá prolatar uma sentença condenatória, tendo como subsídio apenas a palavra e as acusações apresentadas pela vítima. Ressalta-se, nesse prumo, acerca das denominadas “falsas memórias” e “memórias sugeridas, ou seja, elementos que devem ser levados em consideração pelo julgador.

Dentre os possíveis caminhos que possam solucionar tal impasse jurídico, destaca-se o denominado “projeto depoimento sem dano”, voltado para a colheita do depoimento de crianças e adolescentes, no âmbito de crimes sexuais.

Com relação à metodologia empregada, salienta-se a utilização de elementos bibliográficos (leis e periódicos), doutrinários e jurisprudenciais, haja vista tratar-se de um tema puramente teórico, ou seja, que se distancia-se do âmbito prático e das pesquisas de campo.

2. CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL: ANÁLISE CONCEITUAL E ELEMENTOS PERTINENTES

Compreende-se que o crime de estupro, de maneira geral, encontra-se tipificado no artigo 213 do Código Penal Brasileiro, tratando-se de um ato delituoso, onde o agente constrange a vítima, mediante violência ou grave ameaça, para fins de conjunção carnal ou para a prática de atos libidinosos:

Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

§ 2º Se da conduta resulta morte:

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos (BRASIL, 1940).

Nesse esteio, consoante Eger e Moraes (2018), o delito de estupro é considerado um crime comum (que pode ser praticado por qualquer pessoa), mas é necessário, para fins de reconhecimento do crime, que as ações descritas no caput do artigo 213 do Código Penal sejam praticadas em conjunto com o não consentimento da vítima. Trata-se, sobretudo, de um ato praticado à revelia da vontade, do consentimento da vítima.

É importante ressaltar que, da mesma forma que pode se vislumbrar o delito de estupro, a legislação pátria também apresenta o crime de estupro de vulnerável. Nos mesmos moldes do delito geral, tem-se que o crime de estupro de vulnerável trata-se do ato de conjunção carnal ou prática de ato libidinoso, com menores de catorze anos ou contra aquele que, em decorrência de enfermidade ou deficiência mental, não possui o discernimento necessário para a prática do ato ou oferecimento de resistência:

Art. 217 – A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

§ 2º (VETADO)

§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.

§ 4º Se da conduta resulta morte:

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos (BRASIL, 1940).

No contexto abordado, entende-se que ambas as tipificações (delito de estupro e estupro de vulnerável) buscam, sobretudo, preservar e tutelar a dignidade sexual da vítima, constrangida mediante ato de violência ou grave ameaça. Dessa forma, resolveu o legislador abordar não apenas sobre o ato de conjunção carnal (cópula natural, praticada entre um homem e uma mulher), mas também sobre atos que obriguem a vítima, a praticar ou permitir que o agente pratique outro ato libidinoso (SANCHES, 2017).

Nessa esfera de pensamento, tem-se que o Superior Tribunal de Justiça, em sede de análise de um Agravo Regimental em um Recurso Especial, ponderou que: “Para a consumação do crime de estupro de vulnerável, não é necessária a conjunção carnal propriamente dita, mas qualquer prática de ato libidinoso contra o menor” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 279878/MG. Relator: Ministro Campos Marques. Diário Judiciário Eletrônico- DJe, 04 abr. 2013).

Da mesma forma, acerca da presunção de violência, tem-se que o Supremo Tribunal Federal, em sede de análise de um Habeas Corpus, enfatizou que a simples conjunção carnal com menor de catorze anos, já se enquadra no delito de estupro, sendo prescindível qualquer questionamento sobre violência:

A violência presumida foi eliminada pela Lei n. 12.015/2009. A simples conjunção carnal com menor de quatorze anos consubstancia crime de estupro. Não se há mais de perquirir se houve ou não violência. A lei consolidou de vez a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Ordem indeferida (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 101.456. Relator: Ministro Eros Grau. Diário Judiciário Eletrônico- DJe, 30 abr. 2010).

Com relação ao termo “vulnerabilidade”, tem-se que o mesmo se refere não apenas às pessoas menores de catorze anos, mas todas aquelas que se encontrem em uma situação de fragilidade ou perigo. A Lei, consoante Capez (2020) não se refere à maturidade sexual da vítima, mas, sobretudo, sobre a situação de fraqueza, de não poder consentir ou se defender de tal delito:

Vulnerável é qualquer pessoa em situação de fragilidade ou perigo. A lei não se refere aqui à capacidade para consentir ou à maturidade sexual da vítima, mas ao fato de se encontrar em situação de maior fraqueza moral, social, cultural, fisiológica, biológica etc. Uma jovem menor, sexualmente experimentada e envolvida em prostituição, pode atingir à custa desse prematuro envolvimento um amadurecimento precoce. Não se pode afirmar que seja incapaz de compreender o que faz. No entanto, é considerada vulnerável, dada a sua condição de menor sujeita à exploração sexual (CAPEZ, 2020, p. 207).

Acerca do nível de vulnerabilidade da vítima, complementa Silva:

[…] pode derivar-se de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou de doença mental. Como é presumida da idade da pessoa, quando absolutamente incapaz, é esta indicada como sem discernimento para compreender o valor ou caráter do ato que venha a praticar […] (SILVA, 2008, p. 481).

Dentre os demais elementos relativos ao delito de estupro, aborda Capez (2020) que o bem jurídico a ser tutelado é a liberdade sexual da mulher ou homem, ou seja, a liberdade de escolha para a prática de relações sexuais e dos parceiros. Além disso, vislumbra-se que o sujeito ativo, bem como o sujeito passivo podem ser homens ou mulheres. No âmbito do delito de estupro de vulnerável, por outro lado, considera-se imprescindível a tutela da dignidade sexual dos vulneráveis e não propriamente a liberdade sexual. Nesse contexto, enfatiza Bitencourt:

Na realidade, na hipótese de crime sexual contra vulnerável, não se pode falar em liberdade sexual como bem jurídico protegido, pois se reconhece que não há a plena disponibilidade do exercício dessa liberdade, que é exatamente o que caracteriza sua vulnerabilidade (BITENCOURT, 2020, p. 237).

Ressalta-se, ademais, que o crime em questão possui como elemento subjetivo o dolo (a vontade de praticar a conduta delituosa, abrangendo ação, resultados, nexo causal e o elemento cognitivo, ou seja, a consciência da prática de um crime).

No âmbito de classificação doutrinária, Capez (2020) pondera que o crime de estupro de vulnerável é um crime material (haja vista que deixa vestígios), doloso (não se admitindo a modalidade culposa), comissivo (pois necessita de uma ação por parte do agente), instantâneo (não se prolonga no tempo) e plurissubsistente (podendo se desdobrar em mais ações). Observa-se, sobretudo, que se trata de um crime hediondo, previsto no artigo 1º, inciso V da Lei 8.072 de 1990.

No tocante ao prazo prescricional do crime de estupro de vulnerável, segundo o entendimento de Vale e Silva (2020), o mencionado delito possui um tempo de prescrição variável de acordo com a pena aplicada, sendo diverso em cada caso em concreto. Portanto, nos casos de estupro de vulnerável, o prazo de prescrição tem início após a vítima completar a maioridade.

3. MECANISMOS PROBATÓRIOS NO ÂMBITO DE CRIMES SEXUAIS

É cediço que as provas, na seara de Direito Processual Penal, desempenham um papel precípuo para o deslinde da ação, haja vista que atuam para fins de comprovação dos fatos e da autoria do crime (BITENCOURT, 2020).

Nesse esteio, tem-se que tais mecanismos probatórios buscam, sobretudo, convencer o julgador acerca da existência de determinada situação fática e, concomitantemente, alcançar a verdade real. Dessa forma, o atual Código de Processo Penal traz em seu bojo que todos os mecanismos probatórios que, por lei, são admitidos. São considerados como meios probatórios o interrogatório, a confissão, a prova testemunhal, o exame de corpo de delito, as perguntas destinadas à vítima, o reconhecimento de pessoas ou coisas, a acareação, os documentos, indícios e a busca e apreensão (BRASIL, 1941).

É importante destacar que, no âmbito de crimes sexuais, o Código Processual Penal, por intermédio do artigo 158, prevê que sempre que o crime deixar vestígios, faz-se necessário o exame de corpo de delito:

Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.

Parágrafo único. Dar-se-á prioridade à realização do exame de corpo de delito quando se tratar de crime que envolva:

I – Violência doméstica e familiar contra mulher;

II – Violência contra criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência (BRASIL, 1941).

Nesse contexto, ressalta Tourinho Filho: ‘’Quando a infração deixa vestígios, por exemplo em um caso de estupro, é necessário o exame de corpo de delito, isto é, a comprovação dos vestígios materiais por ela deixados torna-se indispensável’’ (TOURINHO FILHO, 2009, p. 256).

Acerca de tal celeuma, também pondera Lopes Júnior (2021) que o mencionado exame é aplicado quando precisa se constatar a materialidade do delito: “o exame técnico da coisa ou pessoa que constitui a própria materialidade do crime (portanto, somente necessário nos crimes que deixam vestígios, ou seja, os crimes materiais)” (LOPES JÚNIOR, 2021, p. 179). Deste modo, quando o crime de estupro deixa vestígios e faz-se necessário o exame de corpo de delito, deverá ser realizado uma perícia minuciosa. Nesse contexto, tem-se que o laudo deve comprovar se a relação foi consentida ou não pela vítima, não podendo se ater apenas a existência ou não de uma relação sexual. Em outras palavras, faz-se necessário que se comprove o grau de violência empregada, se existiu qualquer ato de defesa por parte da ofendida:

O laudo pericial deve comprovar ainda a violência empregada, pois a mera comprovação da conjunção carnal não é capaz de mostrar a resistência da vítima. Ele deve levar em conta se houve qualquer tipo de defesa, como por exemplo, arranhões no corpo do acusado (CAPEZ, 2020, p. 59).

Enfatiza-se, ademais, que nas hipóteses de prática de atos libidinosos, que configuram como estupro, nem sempre poderá ser provado por intermédio de um exame de corpo de delito, haja vista que em tais condutas inexiste conjunção carnal. Ademais, em tal modalidade criminosa, é muito raro ter a presença de testemunhas, tendo em vista que o agente tenta realizar tal ato de maneira clandestina, às escondidas. Dessa forma, na maioria dos casos de crime de estupro, ter-se-á como elemento probatório apenas o depoimento de vítima (NUCCI, 2020).

Nesse aspecto, tem-se que, conforme ponderações de Pacelli (2018), o interrogatório do réu configura-se como “o último ato da audiência de instrução, cabendo ao acusado escolher a estratégia de autodefesa que melhor consulte aos seus interesses” (PACELLI, 2018, p. 382). Dessa forma, tal mecanismo probatório é considerado um elemento de defesa, onde o acusado poderá demonstrar a sua versão dos fatos, ou seja, a visão pessoal acerca do crime. É importante destacar que o acusado possui o direito de manter-se em silêncio, como forma de não construção de provas e incriminação de si mesmo. Em tal modalidade probatória, tem-se que, durante o interrogatório, o magistrado fará perguntas ao acusado, a fim de esclarecer questões pessoais, de qualificação e formação profissional e até mesmo elementos relacionados à prática delituosa (PACELLI, 2018).

Outro meio probatório de grande relevo refere-se à confissão do réu. Nesse sentido, compreende-se que tal mecanismo probatório encontra-se previsto no artigo 197 do Código de Processo Penal, onde o magistrado, posteriormente ao ato de confissão, irá aferir tal prova e confrontá-la com as demais provas juntadas aos autos, observando, sobretudo, se há compatibilidade com as demais provas, inclusive com o interrogatório do acusado. Nesse âmbito, considera-se a confissão como uma admissão de responsabilidade do acusado para com o delito praticado, bem como para com todos os elementos e fatos que lhe foram imputados. Ressalta-se, ademais, que tal prova é passível de retratação e divisão (PACELLI, 2018).

Com relação à prova testemunhal, tem-se que “só é prova testemunhal aquela produzida em juízo” (CAPEZ, 2020, p. 448). Dessa forma, tem-se que a testemunha irá relatar o ocorrido diretamente ao magistrado, partes, representantes e demais sujeitos processuais. Ressalta-se que, em regra, a prova testemunhal será realizada de forma oral, salvo exceções legais (em casos de pessoas que detenham deficiência auditiva ou de fala).

Importante destacar que as testemunhas, uma vez que se comprometem perante à justiça, prestam um compromisso legal para se aterem à verdade dos fatos, conforme prevê o artigo 203 do Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 203. A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e Ihe for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade (BRASIL, 1941).

Além disso, em casos em que as testemunhas faltem com a verdade, estarão passíveis de responsabilização pelo crime de falso testemunho, consoante previsão do artigo 342 do Código Penal: “Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa” (BRASIL, 1940).

Nesse aspecto, segundo Capez (2020), em crimes de estupro geralmente inexistem testemunhas durante a prática do ato, tornando-se tal mecanismo probatório pouco utilizado em tal âmbito.

3.1 O DEPOIMENTO DA VÍTIMA E O VALOR PROBATÓRIO

Conforme visto, tem-se que no âmbito de crimes de estupro, geralmente não se obtém um conjunto probatório vasto, ou seja, é um delito onde a comprovação da autoria e materialidade muitas vezes possuem como subsídio o exame de corpo de delito (em alguns casos), o depoimento da vítima e de testemunhas (em alguns casos). Nesse aspecto, aborda Arraes: “Os crimes sexuais não podem ser analisados como os outros crimes, desde o tocante de discutir sobre o crime até a parte processual, por meio da prova” (ARRAES, 2018, p. 45). Dessa forma, tem-se que o mencionado delito merece uma atenção especial e grande cautela por parte do julgador, haja vista tratar-se de um delito praticado às escuras, sem prova material.

Em caráter complementar ao exposto, salienta Talon (2018) que a prova pericial se faz necessária para que o Ministério Público elucide a materialidade da infração, contudo, nem todos os delitos são passíveis de comprovação via prova pericial. Dessa forma, a palavra da vítima, no âmbito de crimes sexuais, adquire maior valoração:

[…] prova pericial é fundamental para que o Ministério Público conclua pela materialidade da infração. Todavia, nem todos os delitos deixam vestígios. Nesses casos, a palavra da vítima ganha uma maior atenção e valoração por parte dos Magistrados e Tribunais (TALON, 2018).

No que se refere ao depoimento da vítima, compreende-se que esse, para fins de relevância e credibilidade, deve pautar-se na verossimilhança e coerência com as demais alegações e provas produzidas. Nesse sentido, conforme as ponderações de Bitencourt, o “elemento importante para o crédito da palavra da vítima é o modo firme com que presta suas declarações. Aceita-se a palavra da vítima quando suas declarações são de impressionante firmeza, acusando sempre o réu de forma inabalável” (BITTENCOURT, 2020, p. 194).

Nesse esteio, consoante Bittencourt (2020), se existirem dúvidas, incertezas quanto à palavra de vítima, principalmente se estiver em conflito com o depoimento do acusado, deverá o magistrado comparar tais declarações com os demais elementos processuais contidos nos autos.  Dessa forma, leva-se em consideração todas as informações juntadas, que vão desde o acusado (incluindo-se antecedentes, formação moral, idade, capacidade mental, a forma de prestar as declarações, possíveis contradições ou inseguranças durante o depoimento, elementos de verossimilhança com o depoimento da vítima, grau de proximidade entre vítima e acusado) ao delito em si (se foi praticado de maneira clandestina ou não).

Acerca da relevância e valoração do depoimento da vítima, ainda enfatiza Mirabete:

Embora verdadeiro o argumento de que a palavra da vítima, em crimes sexuais, tem relevância especial, não deve, contudo, ser recebida sem reservas, quando outros elementos probatórios se apresentam em conflitos com suas declarações. Assim, existindo dúvida, ainda que ínfima, no espírito do julgador, deve, naturalmente, ser resolvida em favor do réu, pelo que merece provimento seu apelo, para absolvê-lo por falta de provas (MIRABETE, 2019, p. 1349).

Observa-se, no contexto abordado, que a vítima, sempre que possível, deverá contribuir com a justiça, elucidando fatos, informações, possível autoria, provas e outros mecanismos precípuos, em consonância com o que dispõe o artigo 201, parágrafo 1º do Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações.

§ 1º Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade […] (BRASIL, 1941).

Esclarece-se, ademais, que o magistrado poderá requerer a condução coercitiva da vítima, caso ela seja devidamente intimada e deixe de comparecer em juízo, sem quaisquer motivos ou justificativas plausíveis (BRASIL, 1941).

4. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E O PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO

De acordo com Alexy (2008), os princípios, de uma forma geral, são considerados “mandados de otimização”, ou seja, estão contidos nas entrelinhas das normas e estabelecem um norte, um caminho a seguir pelos operadores de direito. Dessa forma, tem-se que os princípios podem ser satisfeitos em diferentes graus, possibilidades fáticas e jurídicas:

Princípios são, por conseguinte, mandados de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. “O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes” (ALEXY, 2008, p. 90).

Compreende-se, nesse esteio, que os princípios, sobretudo os constitucionais, atuam como verdadeiras bases, representando o ponto de partida daqueles que aplicam as leis e indicando a melhor decisão a ser tomada:

No sentido, notadamente no plural, significa que as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. E, assim, princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixam para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-as em perfeitos axiomas. Princípios jurídicos, sem dúvida, significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito. Indicam o alicerce do Direito (SILVA, 2008, p. 51, grifo nosso).

Dentre os diversos princípios existentes, destaca-se o denominado princípio da presunção de inocência e o princípio do in dubio pro reo, no âmbito de análise do crime de estupro de vulnerável.

No contexto apresentado, tem-se que o princípio da presunção de inocência é considerado um princípio fundamental no âmbito do direito penal, onde pressupõe-se que o ente público não poderá prosseguir com a ação penal, caso não existam elementos comprobatórios de culpabilidade do acusado.

Nesse aspecto, observa-se que o mencionado princípio se encontra previsto no artigo 5º, inciso LVII da Magna Carta de 1988, in verbis:

Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

[…] LVII- ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (BRASIL, 1988).

Observa-se, portanto, que o princípio da presunção de inocência busca, sobretudo, considerar que o direito de liberdade do indivíduo deve ser considerado e defendido, sendo à prisão uma exceção ao direito em comento. Ademais, tem-se que o acusado deve ser considerado inocente durante o trâmite processual e só será considerado culpado após o trânsito em julgado de uma sentença condenatória.

Nesse diapasão, conforme preleciona Lopes Jr., considera-se a presunção de inocência como um “princípio reitor do processo penal e, em última análise, podemos verificar a qualidade de um sistema processual através do seu nível de observância (LOPES JÚNIOR, 2021, p. 182).

Dessa forma, não há de se considerar um indivíduo culpado ou imputar uma culpabilidade a alguém, senão por intermédio de provas que possam subsidiar uma sentença condenatória. Nesse sentido, aborda Tourinho Filho:

Cabe à acusação provar a existência do fato e demonstrar sua autoria. Também lhe cabe demonstrar o elemento subjetivo que se traduz por dolo ou culpa. Se o réu goza de presunção de inocência, é evidente que a prova do crime, quer a parte objecti, quer a parte subjecti, deve ficar a cargo da acusação (TOURINHO FILHO, 2009, p. 2022).

No mesmo prumo, tem-se também o princípio denominado “in dubio pro reo”, ou seja, um princípio fundamental em direito penal onde se prevê que, diante de quaisquer dúvidas acerca da culpabilidade do acusado, preponderará a presunção de inocência, haja vista que a culpa deverá ser comprovada nos autos. Com relação ao termo “dúvida razoável”, pondera Flor (2016) que se trata de um fator incerto com relação ao grau de culpabilidade de alguém, ou seja, a falta de condições de se imputar ao acusado o ônus pelo cometimento de um crime:

Entende-se como dúvida razoável o fator incerto quanto a culpa do acusado. É, em apertada síntese, a falta de condições plenas de imputar ao acusado a ampla responsabilidade pelo cometimento do delito. O fator incerto, aquele que gera determinada dúvida quanto à existência do ato infracional, bate de frente com o princípio da presunção de inocência, e por este é plenamente repelido do campo da capacidade de imputação de responsabilidade penal ao acusado (FLOR, 2016).

No sentido apresentado, vislumbra-se que o in dubio pro reo é considerado um alicerce do processo penal no âmbito do Estado Democrático de Direito. Da mesma forma, considera-se o mesmo como princípio correlato à presunção de inocência, haja vista que, diante de dúvidas com relação à culpabilidade de alguém, presume-se a inocência deste, ou seja, decide-se “em favor do réu”. Urge salientar que tal contexto encontra-se tipificado no artigo 386, inciso VII do Código de Processo Penal, que assim dispõe: “Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: […] VII – não existir prova suficiente para a condenação […]” (BRASIL, 1941).

Ademais, conforme Tourinho Filho (2009), o mencionado princípio visa, sobretudo, proteger os denunciados de atos injustos e arbitrários, impossibilitando uma condenação que tenha como subsídio provas falhas. Dessa forma, quando o magistrado incorrer em dúvidas com relação à culpabilidade, deverá recorrer ao princípio do in dubio pro reo. Em caráter complementar ao exposto, preleciona Nucci:

Na relação processual, em caso de conflito entre a inocência do réu- e sua liberdade e o direito- dever de o Estado punir, havendo dúvida razoável, deve o juiz decidir em favor do acusado. Exemplo está na previsão de absolvição quando não existem provas suficientes na imputação formulada (NUCCI, 2020, p. 103).

No mesmo contexto, também aborda Souza Neto (2003) que a aplicação do princípio do in dubio pro reo culmina na absolvição do acusado, ou seja, sem possibilidade de propagação de decisões injustas, sem qualquer violação à legislação vigente, mas interpretando-a da maneira mais plena possível:

Por isso, quando houver fatos permeados de dúvida alegados pela acusação, a absolvição do réu se faz necessária, com base na primeira parte do artigo 156 do Código de Processo Penal, nas palavras de Jardim “restaura-se o princípio do in dubio pro reo em toda sua plenitude, sem ferir a letra da lei, mas interpretando o sistema positivo”. Aliás, isto é o que está expresso no artigo 386, inc.VI, por muitos esquecidos no tratamento do ônus da prova penal (JARDIM apud SOUZA NETO, 2003, p. 210).

É importante salientar, segundo Nucci (2020), que os princípios abordados também são aplicáveis na esfera de crimes sexuais, sendo que o magistrado, diante da inexistência de provas cabais da autoria e culpabilidade, deverá levar em consideração a presunção da inocência e o in dubio pro reo.

5. ESTUPRO DE VULNERÁVEL E OS RISCOS DE UMA CONDENAÇÃO SUBSIDIADA APENAS PELO DEPOIMENTO DA VÍTIMA

Consoante visto, o delito de estupro de vulnerável gera uma grande revolta e grande repulsa no âmbito social hodierno, não somente pelas vias de execução do crime, mas, sobretudo, pelo grau de fragilidade das vítimas. Ademais, segundo o entendimento exposto por Vale e Silva (2020), o crime de estupro de vulnerável é mais recorrente dentro do próprio arranjo familiar em que a vítima está inserida, de forma clandestina, longe dos olhos de quaisquer testemunhas. Nesse esteio, trata-se de um crime de difícil apuração, haja vista a escassez de provas que são colhidas em tal situação:

Há uma repulsa grande da sociedade quando se tem conhecimento da prática do crime de estupro contra crianças e adolescentes, por ser um crime tão odioso e violento, onde violenta não só o corpo bem como a alma, gerando danos imensuráveis a vida destas vítimas.

Não obstante as ocorrências dos casos de estupro maioria das vezes são praticadas dentro do âmbito familiar, onde na esfera familiar maioria dos autores são pais, padrastos, tios, avós, e conhecidos da vítima e da família. Nesta linha, pode-se dizer que o estupro é um crime negro, cometido longe de possíveis testemunhas, longe dos olhos, na escuridão, resultando na dificuldade da apuração do crime e da coleta de provas substanciais da prática deste (VALE; SILVA, 2020).

Com relação às provas que são produzidas na esfera penal, compreende-se que as mesmas desempenham um importante papel para configuração da autoria, culpabilidade e punição dos acusados. Dessa forma, tem-se que tais mecanismos probatórios permitem que o julgador tenha maior percepção dos fatos, da verdade real e, consequentemente, possa prolatar uma decisão justa e equânime (PACELLI, 2018).

Nesse intento, tem-se que, no âmbito dos crimes sexuais, sobretudo em casos de estupro de vulneráveis, os meios probatórios mais comuns são concretizados por intermédio do depoimento da vítima e do exame de corpo de delito (quando o crime deixar vestígios, não se aplicando em todas as hipóteses). Desta feita, em virtude da escassez probatória, a jurisprudência e doutrina pátria concedem grande relevo e importância para o depoimento prestado pela vítima:

Nos delitos contra os costumes, a palavra da ofendida avulta em importância […] nessas condições, é muito evidente que suas declarações, apontando o autor do crime que lhe vitimou, assumem caráter extraordinário, frente às demais provas. Não seria razoável e nem é comum que a pessoa com essas qualidades viesse a juízo cometer perjúrio, acusando um inocente de lhe haver constrangido à conjunção carnal ou a ato libidinoso outro qualquer. Por isso, sua palavra, enquanto não desacreditada por outros meios de prova, digamos, vale como bom elemento de convicção (ROCHA, 1999, p. 355).

No mesmo contexto apresentado, observa-se que a jurisprudência pátria, diante da ausência de um acervo probatório robusto (haja vista que é um crime cometido de maneira clandestina, geralmente sem a presença de testemunhas), também concede grande relevância e importância para o depoimento prestado pela vítima:

CRIMINAL. RESP. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. ABSOLVIÇÃO EM SEGUNDO GRAU. REVALORAÇÃO DAS PROVAS. PALAVRA DA VÍTIMA. ESPECIAL RELEVO. AUSÊNCIA DE VESTÍGIOS. RECURSO PROVIDO

I. Hipótese em que o Juízo sentenciante se valeu, primordialmente, da palavra da vítima-menina de apenas 8 anos de idade, à época do fato -, e do laudo psicológico, considerados coerentes em seu conjunto, para embasar o decreto condenatório.

II. Nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, a palavra da vítima tem grande validade como prova, especialmente porque, na maior parte dos casos, esses delitos, por sua própria natureza, não contam com testemunhas e sequer deixam vestígios. Precedentes.

III. Recurso provido, nos termos do voto do Relator (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RESP 700.800/ RS. Relator: Ministro Gilson Dipp. Diário Judiciário- DJ, 18 abr. 2005).

Nesse sentido, observa-se que o Superior Tribunal de Justiça, em sede de análise de um Recurso Especial, considerou como de inestimável importância o depoimento prestado pela vítima, uma criança de 08 anos de idade (à época do fato) e também do laudo psicológico, ou seja, instrumentos probatórios que demonstravam coerência com os fatos e que seriam, dessa forma, suficientes para subsidiar uma decisão condenatória (PACELLI, 2018).

Observa-se, nesse prumo, que o depoimento da vítima no âmbito de crimes sexuais, detém grande importância e aplicabilidade. Contudo, embora a tutela penal seja muitas vezes direcionada para as pessoas vulneráveis, deve-se também considerar a outra face da situação vivenciada. Em outras palavras, compreende-se que o magistrado, ao condenar alguém pelo cometimento de um crime de estupro de vulnerável, deverá levar em conta todo o conjunto probatório apresentado e não apenas o depoimento prestado pela vítima. Do contrário, caso se leve em consideração apenas a palavra da vítima, o julgador assumirá um risco considerável de cometer injustiças (PACELLI, 2018).

Ao tratar acerca do cometimento de um delito de estupro de vulnerável, o julgador deve-se atentar ao fato de que a vítima, muitas vezes, estará em condições de elevada fragilidade, sendo muitas delas de tenra idade. Dessa forma, entende-se que muitas crianças e pré-adolescentes, vítimas de tal delito, podem ser manipuladas ou influenciadas por palavras, situações imaginárias. Nesse contexto, Pieri e Vasconcelos (2017) citam o caso de um homem que foi condenado pelo cometimento do delito de estupro de vulnerável, mas que, anos após tal condenação, comprovou-se que o mesmo era inocente e que não tinha sequer tocado na vítima:

As crianças e pré-adolescentes são facilmente influenciáveis por palavras ou situações. Ao serem ouvidas, por não quererem desagradar os que estão lhe acompanhando e não tem nem a coragem de desmentir o que disseram, acabam por muitas vezes relatando situações fantasiosas. Um caso desse tipo aconteceu em Salvador, no município de Nova Sussuarana, em que um homem foi condenado indevidamente pelo estupro de sua vizinha, na época com 12 anos de idade. Porém, de acordo com a Defensoria Pública da Bahia (2012) ‘aquela adolescente que o acusou, hoje mulher feita, resolveu falar a verdade: não houve estupro e nem mesmo assédio. Ao juiz da Vara de Execuções Penais, ela revelou que toda a história fora criada por sua mãe. E que o referido homem sequer a tocou’ (PIERI; VASCONCELOS, 2017).

No mesmo sentido narrado, tem-se também a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Piauí, em sede de análise de uma Revisão Criminal, onde constatou -se que a vítima havia mentido durante o depoimento prestado em juízo acerca da autoria do indivíduo em um crime de estupro de vulnerável. Desta feita, ponderou o respeitável Tribunal acerca da incoerência das informações prestadas, culminando em uma retratação por parte da vítima e posterior absolvição do réu:

PENAL – REVISÃO CRIMINAL – CRIME DE ESTUPRO – JUSTIFICAÇÃO JUDICIAL – VÍTIMA QUE DECLARA HAVER MENTIDO AO PRESTAR SEU DEPOIMENTO EM JUÍZO – VACILAÇÕES DA OFENDIDA QUE DESQUALIFICAM A SUA PALAVRA E DESAUTORIZA A CONDENAÇÃO DO RÉU.

Nos crimes de estupro, a palavra da vítima é de grande relevância. As suas vacilações deitam a perder a prova, já que em tema de crime contra os costumes fundamental é a sua palavra. Se ficou manifesta a sua incoerência, inclusive com retratação, impõe-se a absolvição do réu. Revisão Criminal conhecida e provida (BRASIL. Tribunal de Justiça do Piauí. RVC 50016903/PI. Relator: desembargadora Rosimar Leite Carneiro. Diário Judiciário Eletrônico- DJe, 15 mai. 2006).

Conforme o entendimento de Garbin (2016), uma pessoa condenada pelo cometimento de um crime de estupro cumprirá uma pena de oito anos de reclusão, em regime inicialmente fechado, conforme prevê o artigo 217 – A e o artigo 33, § 2º, alínea A, ambos provenientes do Código Penal Brasileiro. Além disso, os condenados pelo delito em comento geralmente são estigmatizados em uma prisão, sendo vítimas de violências físicas, sexuais e psicológicas. Acerca de tal celeuma, complementa Melo (2005) que as marcas deixadas pelo possível cometimento de um delito tão grave são difíceis de se reverter:

A sociedade limita e delimita a capacidade de ação de um sujeito estigmatizado, marca-o como desacreditado e determina os efeitos maléficos que pode representar. Quanto mais visível for a marca, menos possibilidade tem o sujeito de reverter, nas suas inter-relações, a imagem formada anteriormente pelo padrão social (MELO, 2005, p. 03).

 Salienta-se, ademais, que outro fator de grande atenção por parte dos julgadores refere-se às falsas memórias que as vítimas possam ter. Em outras palavras, trata-se de um assunto relativamente novo no âmbito jurídico, mas que exige a atenção de doutrinadores e juristas brasileiros.

Nesse prumo, tem-se que as falsas memórias constituem-se como um processo cognitivo que dá a falsa sensação de que algo ocorreu com a pessoa. Em outras palavras, entende-se que as falsas memórias se traduzem pelo estabelecimento de informações que não foram vivenciadas no mundo real, mas que na mente da vítima, aconteceram. Acerca de tal assunto, disserta Mira Y López:

O indivíduo, quando se dá conta da pobreza de suas lembranças, as completa automaticamente, utilizando as cadeias de associações que logicamente devem se encontrar relacionadas com eles, e isso faz com que, mesmo estando de absoluta boa-fé, o resultado da evocação se acha tão distante da realidade como o poderia estar o sonho (MIRA Y LÓPEZ, 2009, p. 28).

Da mesma forma que o indivíduo poderá sofrer esse processo cognitivo de falsas memórias, tem-se que ele também poderá se tornar passível da implantação de memórias sugeridas, ou seja, um pensamento ou uma lembrança influenciada. Dessa forma, seja de forma inconsciente ou não, a pessoa poderá ter a falsa sensação de que foi vítima de um crime ou que alguém é o culpado pela ocorrência de uma situação:

O processo de surgimento das falsas memórias pode ocorrer mediante fatores endógenos, como distorções, e por fatores externos, como por exemplo, informações falsas que são sugeridas ao indivíduo. Baseado nos estudos de Alfred Binet (1900) foi sugestionado à existência de dois tipos de memórias, a memória autos sugerida e a memória deliberadamente sugerida, posteriormente tais termos foram denominados de falsas memórias espontâneas e sugeridas. As falsas memórias espontâneas são aquelas produto de alterações endógenas, as lembranças são modificadas internamente, como resultado do funcionamento da memória. Já as falsas memórias sugeridas vêm do meio externo, resulta das falsas informações que o indivíduo acaba incorporando a memória original (STEIN apud RAMOS, 2017).

No âmbito do direito Processual Penal e, sobretudo, em casos de apuração de um crime de estupro de vulnerável, o magistrado deverá observar em quais condições o depoimento da vítima foi colhido. Dessa forma, consoante Pieri e Vasconcelos (2017), muitas vezes, antes de se colher o depoimento formal de uma vítima, lhe é apresentada um álbum de fotos ou imagens digitalizadas de pessoas que já foram investigadas ou que se encontram em investigação. Ademais, na busca pela obtenção de informações rápidas, muitas vítimas são instigadas a um reconhecimento visual, ocasionando na criação de falsas memórias sugeridas e na fragilidade dos depoimentos prestados.

Segundo ponderações de Pieri e Vasconcelos (2017), existem casos de falsas memórias até mesmo no âmbito familiar contemporâneo. Nesse esteio, compreende-se que muitos pais, ao praticarem atos de alienação parental (situações nas quais incute-se na mente da criança que o outro genitor não a ama mais), podem ocasionar em diversos traumas para a vida de crianças e adolescentes e, inclusive, em falsas memórias. Dessa forma, pode-se vislumbrar que tais atos, subsidiados por falsas memórias, podem acarretar condenações injustas e inadmissíveis:

Já o processo nº 0319101-44.2014.8.05.0001 TJ/BA, relata o caso de uma jovem de 12 (doze) anos, que após a separação dos pais não aceitou o padrasto dentro de casa e por influência do pai, o acusou de estupro. Edmilson Gonçalves dos santos, foi condenado a dez anos em regime fechado. Apenas três anos depois, ela revelou a farsa. Nesse caso o juiz também o condenou apenas no depoimento da vítima e da testemunha que seria o pai manipulador (PIERI; VASCONCELOS, 2017).

É importante enfatizar que a valoração do depoimento prestado pela vítima, para fins de condenação no âmbito de crime de estupro de vulnerável, deve ser dotado de grande precisão, de certeza e, quando possível, ser analisado juntamente com o conjunto probatório formado nos autos. Dessa forma, segundo Nucci (2014), o depoimento prestado por crianças e adolescentes, em tal situação, deve ser coerente com as demais provas e elementos processuais, principalmente pelo grau de vulnerabilidade dessas vítimas e pelo amplo campo de imaginação das mesmas.

Em caráter supletivo, prelecionam Vale e Silva (2020) acerca da dificuldade de se apurar a verdade real dos fatos quando se tem apenas o depoimento de uma criança ou adolescente e da necessidade de que tal testemunho corrobore com os demais elementos apresentados, para fins de convicção do julgador:

Consequentemente não se pode afirmar que a criança ou adolescente estará sempre dizendo a real verdade dos fatos, ou que estará sempre mentindo diante as suas declarações. Aqui ressalta-se uma grande problemática referente à palavra da vítima como testemunho e o seu consequente valor probatório. Não restam dúvidas que a declaração testemunhal da vítima vá influenciar da tomada de decisão do julgador, ainda mais quando se é a vítima uma criança. Contudo, este testemunho pessoal deve ser sempre corroborado com outros elementos probatórios e de convicção que são trazidos aos autos do caso (VALE; SILVA, 2020).

Nesse sentido, esclarece Nucci (2021) sobre a necessidade de o julgador exercitar a capacidade de observação e sensibilidade para compreender a verdade contida nos autos:

[…] só resta exercitar ao máximo a sua capacidade de observação, a sua sensibilidade para captar verdades e inverdades, a sua particular tendência de ler nas entrelinhas e perceber a realidade na linguagem figurada ou propositadamente distorcida (NUCCI, 2021, p. 589).

Dentre os elementos de maior importância para fins de apuração real dos fatos, Nucci (2021) ressalta que o momento de colheita do depoimento de uma vítima de tenra idade deverá ocorrer de forma ponderada. Dessa forma, leva-se em consideração as informações prestadas, o trauma causado ao menor (sentimentos e frustrações ocasionadas), o confronto entre o que foi dito pela vítima e pelo acusado (confronto de informações), além da aplicabilidade dos princípios da presunção de inocência e o in dubio pro reo (a favor do réu).

No mesmo contexto asseverado, discorrem Vale e Silva sobre o depoimento prestado pela vítima e sobre a necessidade de se apurar possíveis contradições:

A regra que deve ser observada pelos magistrados é a valoração deste confronto de declarações, feitas com o auxílio interpretativo das partes, onde se extrai das entrelinhas de ambos os declarantes os dados relevantes para a solução do feito criminoso. Visto que há contradições de ambos os lados, o certo a se fazer é a exploração em contraste com as demais provas coletadas no processo, chegando-se à conclusão de quem forneceu a versão mais plausível, mais real e concreta dos fatos, independentemente de ser a vítima ou o réu (VALE; SILVA, 2020).

Com relação à aplicabilidade dos princípios da presunção de inocência e o in dubio pro reo, compreende-se que, diante de uma dúvida acerca das informações prestadas pela vítima, deverá o magistrado ponderar pela absolvição do réu. Nesse sentido, embora o ente público busque tutelar os direitos da vítima, concedendo uma proteção (principalmente à dignidade sexual), não se pode ignorar a aplicabilidade os mencionados princípios quando se tiver uma incerteza acerca da autoria delituosa (NUCCI, 2021).

No mesmo sentido exposto, ressalta Rangel (2018) que em um campo de incertezas, deverá o Estado observar o estado de inocência do acusado:

Se há dúvida, é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a júri, onde o sistema que impera, lamentavelmente, é o da íntima convicção (RANGEL, 2018, p. 171).

Na seara jurisprudencial, também se observam posicionamentos em prol dos princípios da presunção de inocência e do princípio in dubio pro reo. Dessa forma, tem-se a decisão prolatada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, em sede de análise de um recurso de Apelação Penal, onde constatou-se que as provas apresentadas pela acusação se mostraram insuficientes e contraditórias. Tendo em vista tais constatações, ponderou o respeitável tribunal pela resolução da lide em favor dos direitos do acusado:

APELAÇÃO CRIMINAL. PENAL E PROCESSO PENAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PROVA INSUFICIENTE. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. RECURSO MINISTERIAL CONHECIDO E IMPROVIDO.

1 Em crimes contra a dignidade sexual, normalmente praticados às ocultas, deve-se conferir especial relevância à palavra da vítima.

2. No caso, as declarações da vítima apresentam graves contradições, especialmente no que diz respeito à autoria dos supostos abusos, atribuída pela criança a pessoas diversas a cada oitiva. Além disso, os elementos colhidos revelam um ambiente familiar conflituoso, envolvendo diversos membros, o que pode indicar a influência de parentes na versão narrada pela vítima. E se assim é, dúvida que se resolve em favor do acusado.

3. Apelação ministerial conhecida e improvida (BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Segredo de Justiça 0003261-77.2014.8.07.0012. Relator: Desembargadora Maria Ivatônia. Diário Judiciário Eletrônico- DJe, 19 dez. 2018).

 Em tom supletivo, também ressaltou o Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, onde salientaram, em sede de recurso de Apelação Criminal, que o depoimento prestado pela vítima no âmbito de um crime de estupro de vulnerável deve ser valorada e considerada, desde que esteja em harmonia com o conjunto probatório já presente nos autos:

PENAL E PROCESSO PENAL – APELAÇÃO CRIMINAL – ESTUPRO DE VULNERÁVEL – MATERIALIDADE – AUSÊNCIA DE LAUDO PERICIAL – COMPROVAÇÃO POR OUTROS ELEMENTOS DE CONVICÇÃO – AUTORIA COMPROVADA – PALAVRA DA VÍTIMA – CREDIBILIDADE. INÉPCIA DA DENÚNCIA E INEXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA. DESACOLHIMENTO. NULIDADE DA SENTENÇA POR AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. DESCABIMENTO. ABSOLVIÇÃO. PROVAS INSUFICIENTES. IMPOSSIBILIDADE. 1) É admissível que a prova da materialidade do crime de estupro de vulnerável seja efetivada por elementos de convicção diversos do laudo pericial, notadamente quando os atos libidinosos diversos da conjunção carnal não deixarem vestígios. 2) No delito de estupro de vulnerável, normalmente praticado às escondidas, longe dos olhares de testemunhas de visu, deve-se dar crédito à palavrada vítima, nomeadamente quando ela está em harmonia com as demais provas constantes nos autos e se mostra segura e coerente. 3) Apelo não provido (BRASIL. Tribunal de Justiça do Amapá. APL: 00113730820168030002/ AP. Relator: desembargador Gilberto Pinheiro. Diário Judiciário Eletrônico-DJe, 12 mar. 2019).

Compreende-se, portanto, segundo o entendimento de Nucci (2021), que o magistrado deverá analisar cada caso em concreto, de forma individual e ponderada. Dessa forma, caso o depoimento prestado pela vítima entre em colisão com as demais provas juntadas aos autos ou no caso de o julgador não possuir certeza acerca da culpabilidade e autoria do acusado, deverá preponderar o princípio da presunção de inocência e o princípio do in dubio pro reo.

5.1 O PROJETO DEPOIMENTO SEM DANO

Segundo o entendimento de Bitencourt (2021), antes do advento da Lei 13.431 de 04 de abril de 2017, inexistia na legislação pátria um mecanismo voltado para a colheita do depoimento de crianças e adolescentes, no âmbito de crimes sexuais. Dessa forma, por não levar em consideração a situação vivenciada por uma pessoa vulnerável, de tenra idade, tal procedimento poderia acarretar severos traumas para vida do menor, além de prejudicar a confiabilidade da prova produzida com base nas alegações prestadas.

Dessa forma, haja vista a inexistência de um procedimento de colheita de alegações realizadas por crianças e adolescentes, tem-se que elas eram submetidas a uma exposição muito grande, em razão de terem que relatar os abusos sofridos ou até mesmo a situação de estupro na fase policial (investigativa) e também na seara jurídica (durante o trâmite processual).

Em decorrência de tais questões, foi proposto, incialmente, o projeto denominado “depoimento sem dano”, de autoria do juiz Dr. José Antônio Dalto e Cézar, residente no estado do Rio Grande do Sul, que visava o atendimento especial de crianças e adolescentes, no âmbito de apuração de crimes sexuais.

O mencionado projeto teve origem em maio de 2003 e teve como fundamento a dificuldade de colheita dos depoimentos de crianças e adolescentes, além do notável comprometimento desse acervo probatório, ou seja, algo que afetava diretamente a convicção e convencimento do julgador acerca do delito. Ademais, através do referido projeto, busca-se retirar o menor de um ambiente formal (como fóruns, secretarias e salas de audiência) e colocá-lo em uma sala projetada com áudio e vídeo, para que se sinta mais seguro e protegido. Ressalta-se que o depoimento seria acompanhado de perto por um psicólogo e uma assistente social, sendo composto de uma única gravação, para que não se submeta o menor a um outro interrogatório.

No mesmo sentido avençado pelo referido projeto, pode-se observar que, com o advento da Lei 13.431 de 04 de abril de 2017, buscou-se estabelecer um sistema de garantia dos direitos atinentes às vítimas ou testemunhas de violência (crianças ou adolescentes). Dentre tais garantias, tem-se uma a utilização de uma escuta especializada e do depoimento especial, ou seja, a colheita do depoimento do menor será realizada de forma especial, atendendo aos direitos e garantias previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente e valorizando à palavra da vítima, no âmbito de crimes sexuais (BRASIL, 2017).

Em caráter complementar ao exposto, observa-se a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em sede de análise de uma correição parcial. No âmbito decisório, ressaltaram a importância da colheita do depoimento pessoal de crianças e adolescentes, com atendimento aos direitos e garantias fundamentais ao menor:

CORREIÇÃO PARCIAL. INSURGÊNCIA MINISTERIAL. OITIVA DE VÍTIMA MENOR PELO SISTEMA DE DEPOIMENTO ESPECIAL. PLEITO DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS. INDEFERIMENTO. INOCORRÊNCIA DE INVERSÃO TUMULTUÁRIA DOS ATOS E FÓRMULAS LEGAIS.

1. A Lei 13.431/17, em seu art. 11, determina que o depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência será realizado, sempre que possível, uma única vez, em sede de produção antecipada de prova, garantida a ampla defesa do investigado, seguindo o rito cautelar da antecipação de prova, quando a criança tiver menos de 07 anos e em caso de violência sexual.

2. Não tendo sido ainda a denúncia oferecida, mas aportado aos autos a denúncia do CRAI- Centro de Referência no Atendimento Infanto-Juvenil do Hospital Presidente Vargas, entendo desnecessária a oitiva neste momento processual, o que tornaria prejudicada a finalidade precípua da nova lei do depoimento sem dano que é a oitiva da vítima de violência sexual em uma única oportunidade, em sede de produção antecipada de prova, através do depoimento sem dano.

3. Destarte ausente inversão tumultuária de atos ou fórmulas legais, não merece guarida o pedido. Correição parcial julgada improcedente (BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. COR 70083682211/ RS. Relator: desembargadora Maria de Lourdes G. Braccini de Gonzalez. Diário Judiciário Eletrônico- DJe, 05 mar. 2020).

Observa-se, portanto, que tanto o projeto “depoimento sem dano”, quanto a Lei 13.431/17 buscaram preservar não somente à dignidade sexual e a integridade física de pessoas vulneráveis, mas todos os direitos e garantias necessárias à pessoa em desenvolvimento. Ademais, tais mecanismos visam à colheita do depoimento de crianças e adolescentes da forma mais respeitosa possível, para que não haja dúvidas acerca da credibilidade e veracidade das declarações prestadas pelo menor, além da preservação de direitos e garantias fundamentais.

6. CONCLUSÃO

Tendo como subsídio todos os elementos suscitados na presente pesquisa científica, pode-se compreender que o crime de estupro de vulnerável constitui-se como um crime que macula a dignidade sexual e a integridade física de crianças, adolescentes ou pessoas que, em condições específicas, não conseguem apresentar resistência ao ato praticado pelo agente criminoso.

Nesse contexto, observa-se também que o crime de estupro de vulnerável geralmente é praticado pelo agente de forma clandestina, longe da presença de testemunhas e sem deixar vestígios. Dessa forma, pode-se compreender que o acervo probatório formado no âmbito de tal delito é escasso. Nesse sentido, pode-se observar que alguns casos, o juiz poderá se valer do depoimento prestado pela vítima, do depoimento do acusado, do exame de corpo de delito (quando o crime deixar vestígios) e, raríssimas vezes, de uma prova testemunhal.

Devido à escassez probatória no âmbito de cometimento do delito de estupro de vulnerável, tem-se que o magistrado ou julgador concederá grande relevância para o depoimento prestado pela vítima. Dessa forma, o modo firme com que a vítima presta suas declarações, além da coerência do depoimento com os demais elementos processuais, serão precípuos para o deslinde da ação e, consequentemente, a condenação do réu.

É importante destacar que a doutrina e jurisprudência pátria não consideram que apenas a palavra da vítima tenha o condão de condenar alguém pelo crime de estupro de vulnerável. Dessa forma, deve o magistrado atuar com cautela, com a utilização de mecanismos probatórios que permitam maior percepção dos fatos, da verdade real e, consequentemente, possa prolatar uma decisão justa e equânime.

Não se trata de uma escusa ao cumprimento da lei, nem tampouco de um ato que vise beneficiar o acusado de um crime de estupro de vulnerável. Objetiva-se, sobretudo, analisar todos os fatos e provas juntados e, em casos de dúvida ou de contradições apresentadas no depoimento da vítima, de se aplicar a essência contida no princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo. Em outras palavras, busca-se não ceifar a liberdade de alguém que pode ser inocente.

Conforme visto, compreende-se que muitas crianças e adolescentes podem ser facilmente manipuladas, influenciadas ou sugestionadas (através da implantação de memórias sugestivas). Nesse sentido, o menor irá acusar alguém por um crime que não foi praticado.

Portanto, no âmbito do Processo Penal e do Direito Penal, deverá o julgador fazer uma ponderação de valores e buscar, sobretudo, pautar-se por todos os elementos juntados nos autos. Dessa forma, só se prolatará uma sentença condenatória quando as provas deixarem muito claro a autoria delituosa.

Outro ponto de grande destaque, presente na pesquisa científica, refere-se ao denominado “depoimento sem dano”, ou seja, um projeto inicialmente elaborado por um magistrado e que, posteriormente, transformou-se em Lei. O mencionado projeto e Lei buscam tratar sobre os direitos e garantias de crianças e adolescentes e, sobretudo, a possibilidade de ouvi-las, em casos de crimes sexuais, em um ambiente menos formal, com o acompanhamento de psicólogos e também de assistentes sociais. Ressalta-se, nesse aspecto, que a legislação pátria deverá amparar tanto os direitos das vítimas de crimes sexuais (principalmente quando se tratar de pessoas vulneráveis) quanto dos direitos dos acusados (aplicando-se, sobremodo, os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo).

Portanto, em resposta à questão norteadora, compreende-se, portanto, que se trata de uma ponderação de valores, direitos e garantias, devendo o magistrado analisar cada caso de maneira individual, para que não se tenha a propagação de injustiças.

REFERÊNCIAS

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[1] Bacharelando no curso de graduação em Direito pela faculdade UNA- Campus Bom Despacho/MG.

[2] Bacharelando no curso de graduação em Direito pela faculdade UNA- Campus Bom Despacho/MG.

Enviado: Setembro, 2021.

Aprovado: Novembro, 2021.

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Gilmar Ferreira de Farias

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