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Ação Penal nos Crimes de Estupro de Vulnerável

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CONTEÚDO

SANTOS, Wanderley Alves dos [1] REIS JÚNIOR, José Carvalho dos [2]

SANTOS, Wanderley Alves dos; REIS JÚNIOR, José Carvalho dos. Ação Penal nos Crimes de Estupro de Vulnerável. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 03, Ed. 06, Vol. 02, pp. 164-185, Junho de 2018. ISSN:2448-0959

Resumo

A ação penal nos crimes sexuais contra pessoas vulneráveis está prevista no artigo 225 do CP, sendo que a interpretação literal de tal dispositivo, atualmente majoritária, pode causar às vítimas o fenômeno da vitimização secundária e terciária, bem como graves consequências psicológicas e sociais. Busca-se neste artigo a adequação da interpretação com os valores preconizados pela reforma penal realizada pela lei 12.015/2009 garantindo-se assim a tutela da vítima e o respeito à sua dignidade e liberdade de escolha.

Palavra-chave: Ação Penal, Estupro de Vulnerável.

1. Introdução

Os crimes envolvendo abuso sexual podem ser inseridos entre aqueles que causam maior comoção e revolta dentro do corpo social, não por acaso os crimes de estupro (artigo 213 do CP) e estupro de vulneral (artigo 217-A do CP) foram alçados, nos termos do artigo 1º, V e VI da lei 8.072/90, à categoria de crimes hediondos.

A despeito das diferenças socioculturais entre os países pode-se observar que as diversas legislações mundiais concentram-se em duas vertentes primordiais no que tange à tutela da liberdade sexual; (a) Exigência de adesão voluntária à prática sexual, ou seja, despida de violência, fraude ou ameaça e (b) Proteção daqueles que não podem exteriorizar de maneira válida sua vontade, inserindo-se aqui os doentes mentais e, principalmente, os menores/crianças.

Na Inglaterra, por exemplo, temos o Sexual Offences act. 2003[3], compilação de legislação penal acerca dos crimes sexuais, que em sua parte 1, item 1, prevê o crime de rape, ou estupro, em tradução livre, consubstanciado na penetração da vagina, ânus ou boca, com o pênis, sem o consentimento da vítima, imputando-se prisão perpétua.

1.Estupro

(1) Uma pessoa (A) comete uma ação ofensiva se:

(a) Intencionalmente penetrar a vagina, anus ou boca de outra pessoa (B) com o seu pênis.

(b) (B) não concorda com a penetração, e

(c) (A) não tem motivos razoáveis para acreditar que (B) consentiu.

(2) Para determinar se os motivos da crença de (A) são razoáveis, dever-se-á analisar todas as circunstâncias, inclusive todas as etapas que (A) adotou para se certificar que (B) consentia.

(3) As seções 75 e 76 são aplicáveis para as ofensas previstas nesta seção.

(4) Uma pessoa condenada por uma ofensa prevista nesta seção receberá pena de prisão perpétua.

A legislação inglesa, nos itens 4, 5, 6 e 7, prevê os crimes sexuais contra crianças, pessoas menores de 13 anos, nos termos da lei. Nestes casos basta o ato sexual e a prova da idade da vítima, independente de sua concordância ou não com a relação, sendo a pena também de prisão perpétua.

Por fim, no item 30, temos a tipificação da conduta de Sexual activity with a person with a mental disorder impeding choice[4], ou, em tradução livre, atos sexuais com pessoa com desordem mental ou impedida de consentir, englobando aqui: Na alínea 1, os atos sexuais praticados com pessoas com doenças mentais que afetem sua capacidade de escolha e na alínea 2 as pessoas que por qualquer motivo não podem expressar, de forma válida, sua vontade, tais como bêbados, drogados e/ou pessoas dormindo.

Nos EUA, mais precisamente no Estado do Texas, o código penal destina o capitulo 22 às chamadas Assaultive Offenses, em tradução livre: ataques ofensivos, prevendo no §22.001 os sexual assault[5], as ofensas sexuais.

O parágrafo que trata dos sexual assaults prevê na alínea “a” dois tipos de crime o item “1”, que trata dos abusos sexuais sem consentimento da vítima e item “2” atos sexuais com crianças, que na legislação em questão são as pessoas com menos de 17 anos, desde que não sejam cônjuge do autor:

22.011 OFENSAS SEXUAIS.

(a) Uma pessoa comete uma ofensa se:

(1) Intencionalmente ou conscientemente:

(A) De causa a penetração do anus ou órgão sexual de outra pessoa, sem seu consentimento, por qualquer meio;

(B) De causa a penetração da boca de outra pessoa, sem seu consentimento, pelo órgão sexual do autor;

(C) De causa ao contato do órgão sexual de outra pessoa, sem seu consentimento, com a boca, anus ou órgão sexual de terceiros, inclusive do próprio autor dos fatos, ou

(2) Intencionalmente ou conscientemente:

(A) De causa a penetração do anus ou de órgão sexual de uma criança, por qualquer meio;

(B) De causa a penetração da boca de uma criança pelo órgão sexual do autor;

(C) De causa ao contato ou penetração de órgão sexual de uma criança na boca, anus ou órgão sexual de outra pessoa, incluindo aqui o próprio autor;

(D) De causa ao contato do anus de uma criança com a boca, anus ou órgão sexual de outra pessoa, incluindo aqui o próprio autor;

(E) De causa ao contato da boca de uma criança com o anus ou órgão sexual de outra pessoa, incluindo aqui o próprio autor.[6]

A legislação Texana continua com uma parte explicativa, alínea “b”, apresentando rol das hipóteses em que a relação sexual será considerada sem consentimento, abrangendo desde o emprego de violência ou ameaça (Item 1), como também as situação nas quais a vítima está inconsciente ou fisicamente incapaz de resistir (Item 3), e até mesmo as situações em que a vítima por qualquer circunstância não pode consentir de forma válida com o ato sexual (Item 4).

Por fim, o Código Penal Espanhol adota proteção semelhante. Em seu artigo 178, combinado com o artigo 179, tipifica o abuso sexual perpetrado mediante violência ou “intimidação”, consistente na introdução de objetos ou membros do corpo na vagina, ânus ou boca da vítima, aplicando uma pena de prisão de 06 até 12 anos.

A legislação espanhola continua com o artigo 180, que aumenta a pena do artigo 179 para prisão de 12 até 15 anos quando, entre outras hipóteses, a vítima se tratar de pessoa vulnerável, seja por idade, enfermidade ou situação, ou a vítima for menor de 13 anos.

3ª Quando a vítima se tratar de pessoa vulnerável, por sua idade, enfermidade ou situação e, em qualquer casso, quando for menor de treze anos, exceto no caso do disposto no artigo 183.[7]

Essa análise preliminar demonstra a tendência global de tutela sexual na sua faceta “dignidade”, pautando a proteção no consentimento da vítima, consentimento este que deve ser necessariamente válido, livre e espontâneo.

Nas palavras Professora Laura Lowenkron:

(…) consentimento, tal qual foi definido no pensamento liberal, pode ser entendido como um ato de vontade e, ao mesmo tempo, como uma capacidade para exercer livremente a própria vontade. Nesse sentido, a capacidade de ‘consentimento’ pressupõe a ideia de autonomia individual, que tem como pré-requisito o autodomínio, isto é, um ‘self’ livre de coações ou constrangimentos e capaz de governar racionalmente a si mesmo. Portanto, desde o Iluminismo, formas particulares de competência associadas à capacidade intelectual de razão e exercício do livre arbítrio foram valorizadas.[8]

2 .Evolução legislativa no Brasil [9]

Os crimes sexuais sempre foram objeto de atenção por parte do legislador pátrio sendo certo que o objeto de proteção muda conforme a época, refletindo os valores e visão da sociedade em que eram inseridos.

O Código Criminal do Império (1830) inseria os crimes sexuais no capítulo II, referente aos “crimes contra a segurança da honra” deixando patente que a proteção dizia respeito não necessariamente à dignidade sexual da vítima, mas sim à família, ou seja, à linhagem e a sua posição social.

Tais crimes eram divididos em duas seções; a primeira tratava do chamado “estupro” englobando não só a posse sexual mediante violência ou ameaça (artigo 222) como outras condutas tais como a “Seduzir mulher honesta, menor dezasete annos, e ter com ella copula carnal.[10]” e “Deflorar mulher virgem, menor de dezasete annos.[11]”. A segunda seção chamada de “rapto” envolve a retirada da mulher da casa da família, de forma violenta ou por sedução, ou seja, condutas nitidamente ligadas à proteção da imagem familiar e da “moral” vigente.

Tanto isso é verdade que uma das variações do estupro (artigo 222), o cometido por meio de violência ou ameaça, que corresponderia ao crime de estupro da nossa legislação atual, quando a vítima fosse mulher honesta a pena seria de prisão por 03 a 12 anos ao passo em que a vítima sendo prostituta aplicava-se a pena de prisão de 01 mês a 02 anos, deixando patente que a proteção não se dirigia à mulher como pessoa e sim a sociedade, à moral e aos costumes vigentes.

Além disso, quase a integralidade dos crimes sexuais teria a pena afastada quando o autor se casasse com a vítima, conforme previsão do artigo 225 “Não haverão as penas dos três artigos antecedentes os réos, que casarem com as offendidas.”[12], o qual se aplicava inclusive à modalidade de estupro violento, previsto no artigo 222.

Percebe-se, portanto, que a proteção dispensada pela legislação penal não guardava relação nenhuma com a dignidade das vítimas, notoriamente das mulheres, trata-se de um mecanismo de proteção da sociedade patriarcal, que de forma velada forçava o casamento da vítima com o agressor, bem como desprezava as mulheres que não se encaixassem no conceito de “honestas”.

O Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (1890) ampliou a relação de artigos a respeito dos crimes sexuais, inserindo-os no título VIII “Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje publico ao pudor[13]”, com divisão em capítulos, quais sejam: (a) Violência carnal; (b) Rapto, (c) Lenocínio; (d) Adultério ou infidelidade conjugal e (e) “Ultrage público ao pudor”.

A legislação em questão insiste na mesma forma de proteção da antecedente, adotando como valores principais a proteção da moral e da imagem familiar, esquecendo-se da proteção da dignidade da vítima.

A criação de um capítulo exclusivo para o crime de adultério serve como indicativo da forte carga moral carreada neste código, alçando à categoria de crime questão eminentemente domestica, ou o capítulo que versa sobre o “ultrage público”, criminalizando a ofensa aos “bons costumes”, quando estas “ultrajam e escandalisam a sociedade.[14]

Resta patente que o “nomen iuris” dado ao título é no mínimo impróprio, tanto pelo excesso de palavras, a maioria delas sem significado jurídico palpável, passando uma falsa ideia do bem jurídico tutelado, quanto pela falta de correlação entre o objeto jurídico tutelado e o nome adotado.

Adentrando no capítulo que trata da “violência carnal” temos a repetição de parte dos vícios do Código Criminal do Império, mantendo a diferenciação de pena para o estupro perpetrado contra mulher honesta ou não[15] bem como o crime de “Deflorar mulher de menor idade, empregando seducção, engano ou fraude.”[16]

A grande inovação deste código se deu no artigo 269, no qual o estupro é definido como o abuso cometido pelo homem contra mulher, virgem ou não, mediante violência, sendo que o próprio artigo define violência como sendo:

Por violência entende-se não só o emprego da força physica, como o de meios que privarem a mulher de suas faculdades psychicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se, como sejam o hypnotismo, o chloroformio, o ether, e em geral os anesthesicos e narcoticos.[17]

Aqui temos a noção de que a violência nos crimes sexuais envolve não só a física, mas também o emprego de qualquer meio que impossibilite a vítima de resistência, indicando um início de proteção à dignidade da vítima e a valorização de seu consentimento válido.

O Código Criminal dos Estados Unidos do Brasil deu lugar ao nosso atual Código Penal, introduzido no ordenamento através do Decreto-lei 2.848/40, o qual possui título voltado aos crimes sexuais, título VI – crimes contra os costumes, dividido em capítulos: (a) Crimes contra a liberdade sexual; (b) Sedução e da corrupção de menores; (c) Rapto; (d) Lenocínio e tráfico de mulheres e (e) Ultraje público ao pudor.

A agressão sexual passou a figurar em dois tipos distintos; o de estupro (artigo 213) que se configurava na conduta de “Constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça” e o atentado violento ao pudor (artigo 214) descrito como “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal.”, deixando patente como elementar do crime a violência, física ou psicológica.

O código Penal de 1940, na sua redação original, não previa ainda o chamado “estupro de vulnerável”, adotando um instituto chamado de “presunção de violência”[18]. Quando a vítima gozasse de 14 ou menos anos, fosse alienada ou débil mental ou não pudesse, por qualquer outra causa, oferecer resistência presumia-se violência no crime, enquadrando-o no estupro (artigo 213) ou no atentado violento ao pudor (artigo 214).

A aludida legislação não fugia dos vícios de suas antecessoras, insistia ainda na proteção da moral, com figuras como o crime de “sedução”[19] que tinha entre suas elementares a virgindade da vítima mulher, ou a manutenção da expressão preconceituosa “mulher honesta”, presente, por exemplo, nos crimes de “posse sexual mediante fraude”[20] e “atentado ao pudor mediante fraude”[21].

O código de 1940, a despeito de sua patente evolução, não supera os preconceitos da época notadamente no que diz respeito à forma em que o sexo era visto. Apesar da adoção do “nomen iuris” liberdade sexual no capítulo I, percebe-se claramente que a proteção ainda é destinada à moral, sociedade e em último e derradeiro aspecto à vítima.

Neste cenário, em razão do aparente descompasso entre o código de 1940 e os dias atuais o título acerca dos crimes sexuais foi sofrendo mudanças pontuais, como, por exemplo, a lei 10.224/01, que criou o crime de assédio sexual, a lei 11.106/05, que aboliu o crime de sedução e de rapto, culminando com a lei 12.015/09, a qual realizou uma “microrreforma” nos crimes sexuais.

Entre as principais mudanças realizadas pela reforma de 2009 está: (a) Mudança do “nomen iuris” do título VI, que passa a se chamar “Dos Crimes contra a Dignidade Sexual”; (b) Junção dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor em um crime único, o estupro; (c) Extinção do instituto da violência presumida com a criação do tipo de “estupro de vulnerável”; (d) Mudança da ação penal que na redação original do código penal de 1940 era, em regra, privada, passando a ser, com a reforma, pública condicionada à representação do ofendido.

3. Da mudança de paradigma

O Código Penal de 1940 adotava, para o título VI, o “nomen iuris” “dos crimes contra os costumes”, nomenclatura esta que fora substituída, conforme visto, quando da reforma penal realizadas pela lei 12.015/09.

A mudança em questão não representa mera alteração gramatical. Trata-se de uma revolução na ótica da proteção dispensada pela norma, troca-se não o nome, mas sim a bem jurídico penalmente tutelado. Enquanto na redação original protegia-se a moral pública sexual, na nova legislação busca-se a tutela de um dos vários aspectos da dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil.

Sobre a interpretação da palavra “costumes” temos a lição de Heleno Cláudio Fragoso: “A palavra costumes empregada pela lei vigente significa a moral pública sexual, que é, em última análise, o bem jurídico penalmente tutelado.”[22]

Continua Fragoso tecendo crítica ferrenha à escolha do legislador:

As disposições de nosso CP nesta matéria são extremamente repressivas e representativas de uma mentalidade conversadora, incompatível com os tempos modernos. O critério que hoje domina a incriminação de tais fatos é o do efetivo dano social, sendo inteiramente injustificável a repressão penal de comportamentos considerados imorais pelos que têm poder de fazer as leis[23].

Nelson Hungria, por sua vez, apresenta a seguinte definição: “O vocábulo costumes é ai empregado para significar (sentido restritivo) os hábitos da vida sexual aprovados pela moral prática, ou, o que vale o mesmo, a conduta sexual adaptada à conveniência e disciplina social.”[24]

Percebe-se claramente o direcionamento da proteção legal do código de 1940 ao adotar como bem jurídico tutelado os costumes, busca-se a repreensão de novos hábitos, impondo à sociedade a vontade daqueles que elaboram as normas.

Chama mais atenção ainda, analisando não só a norma como também as palavras dos mestres, que em momento algum a proteção é direcionada ao indivíduo e sua dignidade. A legislação ao invés de pautar a proteção na pessoa, respeitando a diversidade e a liberdade, prefere adotar feição autoritária, tutelando ente jurídico vago, moral pública, o qual não faz jus à proteção penal, ao menos na forma em que foi posta.

Acerta o legislador com a lei 12.015/09, mesmo que de forma tardia, já que a ideia contida no título VI, proteção aos costumes, não mais condizia com os objetivos preconizados pela Constituição Federal de 1988.

A mudança do paradigma, a inserção do bem jurídico “dignidade sexual”, representa com perfeição a proteção exigida pelo texto maior. Tutela-se aqui não mais a forma pela qual a pessoa deve se portar perante a sociedade, ou a moral pública, mas sim o individuo e seu direito de ser respeitado e protegido em todos os aspectos de sua vida, inclusive o sexual.

Sobre o tema podemos citar o magistério de Guilherme de Souza Nucci, que demonstra com precisão a relevância da mudança do paradigma:

Ao mencionar a dignidade sexual como bem jurídico protegido, ingressa-se em cenário moderno e harmônico com o texto constitucional, afinal, dignidade possui a noção de decência, compostura e respeitabilidade, atributos ligados à honra. Associando-se ao termo sexual, insere-se no campo da satisfação da lascívia ou da sensualidade. Ora, considerando-se o direito à intimidade, à vida privada e à honra (art. 5.º, X, CF), nada mais natural do que garantir a satisfação dos desejos sexuais do ser humano de forma digna e respeitada, com liberdade de escolha, porém, vedando-se qualquer tipo de exploração, violência ou grave ameaça. Ainda assim, poderia a referida lei ter sido mais ousada, extirpando figuras como “mediação para satisfazer a lascívia de outrem”, “lugar para exploração sexual” ou “ato obsceno” (ver notas a respeito), que poderiam ser resolvidas de outra maneira, se efetivamente abusivas, sem a necessidade de se valer do direito penal para tanto[25].

Assim o Código Penal, com as reformas inauguradas pela lei 12.015/09, deixou de se preocupar com os chamados “costumes”, ou seja, com a postura das pessoas perante a moral pública, abandonando crimes que envolvem defesa da virgindade e outros ditos valores já ultrapassados, concentrando-se nas condutas que atingem o indivíduo e o corpo social de maneira relevante.

Preocupa-se a legislação em garantir a liberdade sexual, pautada no respeito e dignidade, focando a proteção no indivíduo, sendo protegida, acima das expectativas da sociedade e da família, sua vontade.

Por outro lado, de maneira louvável, ocupa-se a lei de criminalizar toda e qualquer atividade sexual que não advenha da livre, espontânea e válida concordância dos envolvidos, o que para nós designa o gênero “abuso sexual”[26], dos quais estupro, atentado violento ao pudor, estupro de vulnerável, violação sexual mediante fraude e assédio sexual são espécie.

4. Tipos penais de abuso sexual no código penal.

O código penal adota o consentimento como mola mestre dos crimes de abuso sexual, tanto isso é verdade que o título VI do Código Penal é inaugurado com o crime de estupro (artigo 213 do CP), que nada mais é que a violação sexual praticada mediante violência ou grave ameaça, ou seja, sem o consentimento real da vítima.

Continua o código prevendo a violação sexual mediante fraude (artigo 215 do CP), que nada mais é que o ato libidinoso praticado através de meio fraudulento, ou seja, o consentimento da vítima não é puro, não pode ser visto como livre, já que, certamente, na ausência da fraude a vontade da vítima seria manifestada de outra forma.

A fraude aqui é essencial, conforme lições de Guilherme Nucci:

O mecanismo para atingir o resultado pretendido é a fraude (utilização do ardil, do engodo, do engano) ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima. Quanto a este último mecanismo, pode tratar-se de qualquer um disposto a conturbar o tirocínio da vítima. Naturalmente, não se refere o tipo penal a qualquer forma de violência ou grave ameaça.[27]

No crime de assédio sexual (artigo 216-A do CP) a vantagem ou favorecimento sexual é obtido através de condição particular do autor, qual seja, superioridade inerente à emprego, cargo ou função. Aqui o consentimento não é livre, ele é conquistado através do temor reverencial, que nasce na vítima um medo de retaliação futura.

Como preleciona Cézar Roberto Bittencourt:

Esse dano ou prejuízo que a vítima, assediada ou constrangida, tem medo ou receio de sofrer não se limita à possibilidade de desemprego, demissão ou redução de sua remuneração; eventuais empecilhos, discriminações ou dificuldades de qual- quer natureza para a progressão na carreira, no emprego, cargo ou função também podem configurar meio, forma ou modo do constrangimento sofrido pela vítima.[28]

Por fim, mas não menos importante, nosso objeto de estudo, o estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do CP. Trata-se do crime no qual o consentimento ofertado pela vítima ou inexiste ou não é considerado válido, seja pela idade da pessoa, seja pela condição peculiar dela, enfermidade ou doença mental, seja pela situação fática experimentada, situações de privação ou redução das faculdades mentais.

Assim, nesta análise preliminar, percebemos que o legislador alça o consentimento à condição primordial nos crimes de abuso sexual, sendo que a falta dele ou sua obtenção por vias espúrias leva à criminalização da conduta, protegendo em sua esfera mais ampla a dignidade sexual das vítimas.

5. Estupro de vulnerável

O artigo 217-A do CP é inovação trazida ao sistema pela lei 12.015/09 vindo a substituir o instituto da “violência presumida” aplicando pena de reclusão de 08 (oito) até 15 (quinze) anos para o autor que tiver “conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos”[29], aplicando a mesma pena para aqueles que praticarem tais condutas com pessoas que “por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”[30]

Existem ainda duas formas qualificadas em função do resultado no artigo 217-A do CP. Se da conduta a vítima sustenta lesão corporal grave (§3º) a pena será de reclusão de 10 (dez) até 20 (vinte) anos, caso o resultado seja morte (§4º)a pena será de reclusão de 12 (doze) até 30 (trinta) anos.

Percebe-se claramente que o legislador abandona a antiquada ideia de presunção de violência, concentrando a proteção na figura da vítima criminalizando o ato libidinoso praticado com pessoas que ou não conseguem, por qualquer motivo, oferecer seu consentimento ou o consentimento por elas ofertado não é tido como válido pelo direito.

Nas palavras do Professor Guilherme Nucci:

São consideradas pessoas vulneráveis (despidas de proteção, passível de sofrer lesão), no campo sexual, os menores de 14 anos, os enfermos e deficientes mentais, quando não tiverem o necessário discernimento para a prática do ato, bem como aqueles que, por qualquer causa, não possam oferecer resistência à prática sexual. Independentemente de se falar em violência, considera a lei inviável, logo, proibida, a relação sexual mantida com tais vítimas, hoje enumeradas no art. 217-A do Código Penal. Não deixa de haver uma presunção nesse caso: baseado em certas probabilidades, supõe–se algo. E a suposição diz respeito à falta de capacidade para compreender a gravidade da relação sexual.[31]

Assim, nos termos do disposto no “caput” e o no “§1º” do artigo 217-A do CP, temos sua aplicação direcionada a três grupos de pessoas: (a) Menores de 14 (quatorze) anos; (b) Vulneráveis, que são os enfermos e doentes mentais, desde que não possuam o necessário discernimento para a prática do ato libidinoso e (c) Pessoas em situação de vulnerabilidade, que são aqueles, que por qualquer causa, não podem oferecer resistência à prática do ato libidinoso.

O legislador veio a entender que as pessoas de tenra idade merecem proteção especial, neste sentido foi fixado que seu consentimento não poderia ser tido como válido, assim, a prática do ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos, ter-se-á o estupro de vulnerável a despeito do consentimento da vítima.

A exposição de motivos da lei 12.015/09 explica a escolha do legislador:

(…) em se tratando de crianças e adolescentes na faixa etária referida, sujeitos da proteção especial prevista na Constituição Federal e na Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil, não há situação admitida de compatibilidade ente o desenvolvimento sexual e o início da prática sexual. Afastar ou minimizar tal situação seria exacerbar a vulnerabilidade, numa negativa de seus direitos fundamentais. Não é demais lembrar que, para a Convenção da ONU, criança é toda pessoa até a idade de 18 anos. Entretanto, a considerar o gradual desenvolvimento, respeita-se certa liberdade sexual de pessoas entre 14 e 18 anos.[32]

Os menores de 18 anos, inclusive por força de lei, são considerados pessoas em desenvolvimento, significando que até essa idade as pessoas estão em regime de aprendizado, construindo seus conceitos e adquirindo experiência.

Importante aqui citar a lição de Laura Lewonkron, Doutora em Antropologia Social:

O princípio que fundamenta a ‘menoridade sexual’ não é qualquer suposição de que o jovem abaixo da idade definida legalmente não tenha desejo ou prazer sexual, mas, sim, que este não desenvolveu, ainda, as competências consideradas relevantes para consentir uma relação sexual. Supõe-se que a competência para tomada de decisões vem com o tempo, através de um processo de socialização no qual o sujeito racional completo é (con)formado.[33]

A segunda proteção é destinada às pessoas vulneráveis, aqueles que por uma condição peculiar biológica não podem consentir com o ato. São os enfermos ou doentes mentais, desde que, por óbvio, não possuam o necessário discernimento para a prática do ato libidinoso, independente da idade.

Conforme lições de Rogério Greco:

É importante ressaltar que não se pode proibir que alguém acometido de uma enfermidade ou doença mental tenha uma vida sexual normal, tampouco punir aquele que com ele teve algum tipo de ato sexual consentido. O que a lei proíbe é que se mantenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com alguém que tenha alguma enfermidade ou deficiência mental que não possua o necessário discernimento para a prática do ato sexual.[34]

Por fim temos as pessoas em situação de vulnerabilidade. São vítimas em pleno gozo de suas faculdades mentais e capazes de consentirem com a relação sexual, contudo, em razão de uma situação passageira não conseguem se expressar de forma válida.

Esta última figura é essencial. Criminaliza a conduta daqueles que se aproveitam de uma situação para a prática do ato libidinoso sem o consentimento da vítima, como por exemplo, a prática de conjunção carnal com pessoa dormindo.

Aqui é importante frisar que para a configuração do crime basta que o autor abuse da situação de vulnerabilidade pouco importando quem a tenha colocado nesta situação, inclusive ela mesma.

Nas palavras de Affonso Celso Favoretto em sua tese de mestrado junto a PUC de SP: “Vale ressaltar que não se exige que o próprio agente tenha colocado a vítima nesse estado, sendo necessário, apenas e tão somente, que tenha se aproveitado da sobredita circunstância.”[35].

6.Ação penal no crime de estupro de vulnerável.

Conforme redação do artigo 225 do CP[36] a ação penal, em regra, para os crimes “contra a liberdade sexual” e “contra vulneráveis” será a pública condicionada, exceto quando a vítima for menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável, quando a ação será pública incondicionada.

Justifica-se a escolha do legislador. Os chamados crimes sexuais atingem muito mais a intimidade da vítima do que o próprio interesse publico, os processos são desgastantes e muitas vezes humilhantes, podendo causar na vítima intenso sofrimento.

Um dos principais objetivos do legislador era evitar a vitimização secundária, aquela gerada pelo sistema penal abrangendo o aparato policial até os sujeitos processuais tais como Juízes e Promotores e terciária, a decorrente da falta de amparo dos órgãos públicos e da ausência de receptividade social em relação à vítima.

Nas palavras de Roger de Melo Rodrigues em sua dissertação de Mestrado apresentada junto à Universidade de São Paulo:

Na verdade, pode-se falar em distintos processos de vitimização, responsáveis pela gênese da condição de vítima, que podem ser classificados em: a) vitimização primária: associada à prática da infração penal; b) vitimização secundária: associada às instâncias de controle formal, mais especificamente, ao sistema de justiça penal; c) vitimização terciária: vinculada à falta de amparo do Estado e da ausência de receptividade social.[37]

Assim, ao adotar a ação penal pública condicionada, transfere o legislador a escolha para a vítima, a qual, no prazo legal de 06 (seis) meses a contar do conhecimento da identidade do autor, poderá ou não ofertar sua representação, ponderando os benefícios e malefícios do processo, conferindo condição de procedibilidade para que o Ministério Público atue.

Por outro lado, mostra o compromisso do Estado. Uma vez que a vítima manifeste seu desejo pela persecução penal, terá a seu favor todo o aparato estatal, na figura do Ministério Público. Opção bem mais adequada do que a feita pela redação anterior do artigo, que fixava, em regra, a ação como privada, transferindo os ônus e custos processuais para às partes, contribuindo com a impunidade.

Trata-se exatamente das lições de Luiz Flávio Gomes em artigo publicado no ano de 2009, quando da entrada em vigor da lei 12.015/09:

A nova norma (do art. 225 do CP) é razoável e equilibrada. Andou bem em dispor que a ação penal, nos crimes sexuais previstos nos Capítulos I e II, seja, em regra, pública condicionada à representação da vítima. Nos crimes sexuais não existem interesses relevantes apenas do Estado. Antes, e, sobretudo, também marcantes são os interesses privados (o interesse de recato, de preservação da privacidade e da intimidade etc.). O escândalo do processo, muitas vezes, só intensifica a ofensa precedente (gerando o que se chama, na Criminologia, de vitimização secundária). O legislador não ignorou esse aspecto (sumamente importante) da questão. Nada mais sensato, nos crimes sexuais em geral (e no estupro em particular), que condicionar a atuação do Ministério Público à manifestação de vontade da vítima. Imagine (por desgraça) um juiz, um procurador, um parlamentar etc. sendo vítima de um estupro. A publicidade que acarreta o processo pode potencializar (e normalmente potencializa) a ofensa. Pode ser que a privacidade seja melhor para a vítima (para que ela não sofra a vitimização secundária).[38]

A ação, por outro lado, será pública incondicionada, quando a vítima se tratar de pessoa com menos de 18 (dezoito) anos ou vulnerável, nos termos do parágrafo único do artigo 225 do Código Penal.

Nestes casos o legislador considerou a situação peculiar da vítima, bem como sua incapacidade de consentir com o ato sexual, seja em razão da idade, seja em razão de condição particular, prescrevendo ação penal pública incondicionada, mantendo o necessário paralelismo entre a gravidade do crime e a ação penal.

7. Da interpretação do artigo 225 do código penal.

Considerando a redação do artigo 225 do Código Penal quase que a unanimidade da doutrina entende que há uma confusão em sua redação, tornando-o inaplicável, já que no “caput” prevê a regra geral de ação penal pública condicionada para os capítulos I e II do Título VI e no parágrafo único adota ação penal pública incondicionada no caso de vítima menor de 18 (dezoito) anos ou vulnerável, que em tese seria a integralidade do capítulo II, tornando a norma incoerente.

Neste sentido Cézar Roberto Bitencourt:

A Lei n. 12.015/2009, que alterou a redação do art. 225 do Código Penal, determina que a ação penal, para os crimes constantes dos Capítulos I e II do Título VI (“Dos crimes contra a liberdade sexual” e “Dos crimes sexuais contra vulnerável”, respectivamente), passa a ser pública condicionada à representação. Inverte, dessa forma, sua natureza, que era de exclusiva iniciativa privada. Contudo, paradoxal- mente, o parágrafo único do mesmo dispositivo legal determina que a ação penal é pública incondicionada se a vítima for menor de dezoito anos ou pessoa vulnerável, ou seja, na hipótese de todos os crimes previstos no Capítulo II do mesmo Título do Código Penal, o exercício da ação penal não depende de qualquer condição, contrariando a previsão do caput.[39]

Também Alváro Mayrink da Costa:

É flagrante a controvertida redação do texto legal, entendendo-se que, nas hipóteses dos injustos dos tipos de estupro, violação sexual mediante fraude e assédio sexual (Capítulo I) e no elenco dos crimes sexuais contra vulneráveis (estupro de vulnerável, satisfação de lascívia mediante a presença de criança ou adolescente e favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável, procede-se através de ação penal de iniciativa pública incondicionada.[40]

Podemos mencionar o entendimento de Paulo César Busato:

Há aqui um evidente equívoco do legislador, merecedor, sem dúvidas, de veemente crítica. Todos os crimes do Capítulo II têm por vítimas as pessoas identificadas no parágrafo único do art. 225 e alguns crimes do Capítulo I também podem ter por vítima, por exemplo, pessoa menor de 18 anos.[41]

Ao contrário dos posicionamentos apresentados, não vislumbramos nenhuma contradição ou incoerência no texto legal e sim questão de interpretação racional da norma jurídica buscando a partir do “mens legis”[42] seu real significado e abrangência, com base no “occasio legis”[43].

Na reforma realizada pela lei 12.015/09, bem como na legislação comparada, percebe-se a preocupação com o consentimento da vítima, bem como o respeito à sua vontade, notadamente pela adoção da ação penal condicionada como regra geral.

Para estes subscritores o artigo 217-A do CP contempla três categorias de pessoas e não duas, como sustenta a doutrina. Ao lado dos menores de 14 (quatorze) anos e das pessoas vulneráveis temos as chamadas pessoas em situação de vulnerabilidade.

As pessoas em situação de vulnerabilidade não são “vulneráveis”, na real acepção do termo, não possuem qualquer enfermidade ou doença, ao contrário, são pessoas absolutamente capazes e no total domínio de suas faculdades mentais que em razão de uma situação passageira não podem se manifestar acerca do ato libidinoso.

Assim, pela redação do artigo 225, parágrafo único do CP a ação penal será pública incondicionada quando a vítima for menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável, mantendo-se pública condicionada quando a vítima for pessoa em situação de vulnerabilidade, a qual poderá exercer seu direito de representação (ou não) tão logo recobre suas faculdades mentais.

Situação totalmente diferente dos menores de 14 (quatorze) anos e dos vulneráveis que a despeito do passar do tempo nunca tornar-se-ão capazes, seja pela presunção da lei, seja pela doença ou enfermidade que sofrem, respectivamente, motivo pelo qual é razoável a adoção da ação penal pública incondicionada.

A leitura tradicional, de que o legislador cometeu um lapso, é muito simples e não se adéqua ao objetivo da norma, desrespeitando a vontade daqueles que são capazes, mas que por situação passageira não puderam oferecer seu consentimento. Pior ainda, permite o fenômeno da vitimização secundária e terciária, contribuindo com a não comunicação de crimes à justiça, gerando a chamada cifra negra.

Busca-se aqui a tutela da vítima, preservar sua vontade no que tange ao estupro sofrido. Somente a vítima pode escolher se deseja ou não o processo, só a pessoa que sofre o crime sabe das possíveis consequências de suas escolhas, ao Estado cabe a missão de proteger os realmente vulneráveis e de informar os capazes, mas acima de tudo, respeitando as escolhas destes últimos.

Tal posicionamento já encontra inclusive respaldo nos tribunais superiores:

  1. A própria doutrina reconhece a existência de certa confusão na previsão contida no art. 225, caput e parágrafo único, do Código Penal, o qual, ao mesmo tempo em que prevê ser a ação penal pública condicionada à representação a regra tanto para os crimes contra a liberdade sexual quanto para os crimes sexuais contra vulnerável, parece dispor que a ação penal do crime de estupro de vulnerável é sempre incondicionada.
  2. A interpretação que deve ser dada ao referido dispositivo legal é a de que, em relação à vítima possuidora de incapacidade permanente de oferecer resistência à prática dos atos libidinosos, a ação penal seria sempre incondicionada. Mas, em se tratando de pessoa incapaz de oferecer resistência apenas na ocasião da ocorrência dos atos libidinosos, a ação penal permanece condicionada à representação da vítima, da qual não pode ser retirada a escolha de evitar o strepitus judicii.
  3. Com este entendimento, afasta-se a interpretação no sentido de que qualquer crime de estupro de vulnerável seria de ação penal pública incondicionada, preservando-se o sentido da redação do caput do art. 225 do Código Penal.[44]

Conclusão

O surgimento da lei 12.015/09 modificou o paradigma de proteção no que tange aos crimes sexuais, alçando a dignidade sexual como valor primordial da proteção penal centrando a análise do crime no consentimento livre, espontâneo e válido.

Tutela-se aqui a vítima e não mais costumes, posturas ou honra familiar. Sendo um dos interesses primordiais da legislação evitar a vitimização secundária e terciária, consistente na “violência” estatal e social.

Neste sentido mantém-se o poder de decisão acerca do nascimento ou não do processo criminal nas mãos da vítima, que gozando de sua plena capacidade pode decidir oferece representação criminal conferindo ao Ministério Público poder de promover a ação penal pública.

Por outro lado a legislação fixa ação penal como pública incondicionada quando a vítima se tratar de menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável em razão das peculiaridades do consentimento destas pessoas.

Entendemos que o artigo 217-A do CP cria três categorias de pessoas: Os menores de 14 (quatorze) anos, os vulneráveis, pessoas que por enfermidade ou deficiência não podem oferecer consentimento válido e, por fim, as pessoas em situação de vulnerabilidade, que são consideradas vulneráveis em razão de situação passageira.

Conforme defendido no presente artigo a ação penal, para as pessoas em situação de vulnerabilidade, seria pública condicionada nos termos do “caput” do artigo 225 do CP por não se enquadrarem, tecnicamente, no conceito de pessoa vulnerável, bem como por se adequar com precisão aos objetivos da norma, protegendo a vítima de maneira ampla evitando vitimização secundária e terciária.

Assim, teríamos a regra geral da ação penal pública condicionada para os crimes previstos no Capítulo I do Título VI e para os crimes do capítulo II quando a vítima fosse pessoas em situação de vulnerabilidade, por outro lado, sendo a vítima menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável a ação seria pública incondicionada.

Vale frisar que não defendemos a ação penal pública condicionada para todas as hipóteses do artigo 217-A do CP, nossa interpretação diz respeito única e exclusivamente à última parte do § único do artigo, às pessoas em situação de vulnerabilidade, as quais são plenamente capazes, mas por situação passageira se viram em condição de vulnerabilidade.

Trata-se de uma interpretação distinta da doutrina tradicional, baseada nos objetivos da lei 12.015/09 e acima de tudo na dignidade da pessoa humana. O respeito à vontade daqueles que compreendem os fatos e podem se expressar é fundamental para a real proteção das vítimas, evitando consequências maiores, indesejadas pelas vítimas.

Referências

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte especial 4 : crimes contra a dignidade sexual até crimes contra a fé pública. 11. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva, 2017. 661 p.

BUSATO, Paulo César. Direito Penal: Parte Especial – Artigos 121 a 234c do Código Penal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017. 1005 p.

BRASIL. Código Criminal do Império, de 12 de dezembro de 1830. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm (Acesso em 10 de janeiro de 2018).

BRASIL. Código Penal, decreto-lei 2.848 de 07 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-publicacaooriginal-1-pe.html (Acesso em 10 de janeiro de 2018).

BRASIL. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, decreto 847 de 11 de outubro de 1890. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D847.htmimpressao.htm. (Acesso em 10 de janeiro de 2018).

BRASIL. Lei Número 12.015, de 07 de agosto de 2009 – Exposição de motivos. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2009/lei-12015-7-agosto-2009-590268-exposicaodemotivos-149280-pl.html (Acesso em 15 de janeiro de 2018).

ESPANÃ. Código Penal, lei 10/1995, de 23 de novembro de 1995. Disponível em: http://perso.unifr.ch/derechopenal/assets/files/legislacion/l_20121008_02.pdf. (Acesso em 10 de janeiro de 2018).

FAVORETTO, Affonso Celso. Estupro de Vulnerável: Uma Análise à Luz dos Princípios Constitucionais e do Sistema Penal. 2011. 156 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Especial – Volume II (Arts. 213 a 359). 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. 590 p.

FRIEDE, Reis. Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica. 9. ed. Barueri: Manole, 2015. 212 p.

GOMES, Luiz Flávio. Estupro com Lesão Corporal Grave ou Morte: A Ação é Pública Condicionada. 2009. Disponível em: http://ww3.lfg.com.br. (Acesso em 02 de fevereiro de 2018).

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Especial – Volume III (Arts 155 a 249 do CP). 7. ed. Niterói: Impetus, 2010. 737 p.

HUNGRIA, Nélson; LACERDA, Romão Córtes de. Comentários ao Código Penal: Vol. III – Arts. 197 a 249. 4. ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1959. 540 p.

LOWENKRON, Laura. Menina ou moça:: Menoridade e consentimento sexual.. 2016. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2318-92822016000100002. (Acesso em 04 de fevereiro de 2018).

MAYRINK DA COSTA, Álvaro. Direito Penal: Parte Especial. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 915 p.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito penal : parte especial : arts. 213 a 361 do Código Penal; 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. 808 p.

RODRIGUES, Roger de Melo. A Vítima e Processo Penal Brasileiro: Novas Perspectivas. 2012. 258 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

STJ. Habeas Corpus: HC 276.510 RJ. Relator Ministro Sebastião Reis Júnior. Dj: 01/12/2014. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1343799&num_registro=201302916894&data=20141201&formato=PDF. (Acessado em 10 de fevereiro de 2018)

UNITED KINGDOM LEGISLATION. Sexual Offences Act 2003. Disponível em: http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2003/42 (Acesso em 04 de fevereiro de 2018).

UNITED STATES OF AMERICA. Texas Penal Code (2005). Disponível em: https://law.justia.com/codes/texas/2005/pe/005.00.000022.00.html (Acesso em 04 de fevereiro de 2018).

[1] Mestrando pela PUC/SP; Especialista pela EPD/SP; Professor Convidado de Direito Militar junto a FADISP/SP; Advogado

[2] Mestrando pela PUC/SP; Especialista pela FADISP/SP; Professor Bolsista de Direito Penal e Processo Penal junto a FEPI – Itajubá/MG; Delegado de Polícia em MG.

[3] (TRADUÇÃO LIVRE). UK Sexual Offence Act 2013.

1-Rape

(1) A person (A) commits an offence if:

(a) he intentionally penetrates the vagina, anus or mouth of another person (B) with his penis,

(b) B does not consent to the penetration, and

(c) A does not reasonably believe that B consents.

(2) Whether a belief is reasonable is to be determined having regard to all the circumstances, including any steps A has taken to ascertain whether B consents.

(3) Sections 75 and 76 apply to an offence under this section.

(4) A person guilty of an offence under this section is liable, on conviction on indictment, to imprisonment for life.

[4] Part 1. 30.1 – UK Sexual Offence Act 2013

[5] Tex. Penal Code §22.001.

[6] (TRADUÇÃO LIVRE). Tex. Penal Code §22.001.a – SEXUAL ASSAULT: a) A person commits an offense if the person:
(1) intentionally or knowingly:

(A) causes the penetration of the anus or sexual organ of another person by any means, without that person’s consent;
(B) causes the penetration of the mouth of another person by the sexual organ of the actor, without that person’s consent; or
(C) causes the sexual organ of another person, without that person’s consent, to contact or penetrate the mouth, anus, or sexual organ of another person, including the actor;  or

(2) intentionally or knowingly:

(A) causes the penetration of the anus or sexual organ of a child by any means;
(B) causes the penetration of the mouth of a child by the sexual organ of the actor;
(C) causes the sexual organ of a child to contact or penetrate the mouth, anus, or sexual organ of another person, including the actor;
(D) causes the anus of a child to contact the mouth, anus, or sexual organ of another person, including the actor; or
(E) causes the mouth of a child to contact the anus or sexual organ of another person, including the actor.

[7] (TRADUÇÃO LIVRE). Articulo 180, §3 – Código Penal Espanhol. “Cuando la víctima sea especialmente vulnerable, por razón de su edad, enfermedad o situación, y, en todo caso, cuando sea menor de trece años, salvo lo dispuesto en el artículo 183.”

[8] LOWENKRON (2016).

[9] Não foram feitos comentários acerca da Consolidação das Leis Penais de Vicente Piragibe (1932) e sobre o Código Penal Hungria (1969), que nunca entrou em vigor, uma vez que essas legislações não modificaram de forma relevante os tipos à época.

[10] Artigo 224 do Código Criminal do Império.

[11] Artigo 219 do Código Criminal do Império.

[12] Artigo 225 do Código Criminal do Império

[13] Título VIII do Código Penal dos Estados Unidos do Brasil.

[14] Artigo 282 do Código Penal dos Estados Unidos do Brasil.

[15] Artigo 268 do Código Penal dos Estados Unidos do Brasil.

[16] Artigo 267 do Código Penal dos Estados Unidos do Brasil.

[17] Artigo 269 do Código Penal dos Estados Unidos do Brasil.

[18] Artigo 224 Código Penal de 1940 (redação original).

[19] Artigo 217 do Código Penal de 1940 (redação original).

[20] Artigo 215 do Código Penal de 1940 (redação original).

[21] Artigo 216 do Código Penal de 1940 (redação original).

[22] Fragoso (1986) pag. 001

[23] Fragoso (1986) pag. 001

[24] Hungria e Lacerda (1959) pág. 103.

[25] NUCCI (2017) pág. 04.

[26] Adotamos a designação “abuso sexual” em homenagem à designação usada pelos EUA “sexual assaults” reservada aos crimes em que há contato sexual, mesmo que potencial, entre autor e vítima, deixando a terminologia “ofensas sexuais” para os demais crimes.

[27] NUCCI (2017) pág. 39.

[28] BITTENCOURT (2010) pág. 86.

[29] Artigo 217-A do Código Penal.

[30] Artigo 217-A do Código Penal.

[31] NUCCI (2017) pág. 57.

[32] Lei 12.015/09 – Exposição de motivos.

[33] LOWENKRON (2016)

[34] GRECO (2010) pág. 516.

[35] FAVORETTO (2011) pág. 105.

[36] Art. 225.  Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação.

Parágrafo único.  Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.

[37] RODRIGUES (2012) pág. 40.

[38] GOMES (2009).

[39] BITENCOURT (2017) pág. 155.

[40] MAYRINK DA COSTA (2010) pág. 188.

[41] BUSATO (2017) pág. 940.

[42] Real expressão do legislador, independente de sua intenção.

[43] Motivos que inspiraram o legislador.

[44] STJ – HC 276.510/RJ – Rel. Min. Sebastião Reis Júnior – Dj: 01/12/2014

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Wanderley Alves dos Santos

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