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O estigma do trabalho nos mitos greco-romano e judaico-cristão de criação do homem

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL 

MORAES, Francisco Américo Martins [1]

MORAES, Francisco Américo Martins. O estigma do trabalho nos mitos greco-romano e judaico-cristão de criação do homem. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04, Ed. 01, Vol. 06, pp. 133-145 Janeiro de 2019. ISSN: 2448-0959

RESUMO

Em tempos de Reforma Trabalhista (2017), que vem demonstrando e aprofundando a precariedade do trabalho, faz-se pertinente neste momento de gravidade para a classe trabalhadora, refletir, por meio de um estudo comparado e amparado teoricamente na crítica marxista, acerca do estabelecimento do estigma sobre o trabalho nas literaturas das sociedades greco-romana e europeia de cultura religiosa judaico-cristã, especificamente a partir dos mitos de criação do Homem que tanto influenciaram o Mundo Ocidental, espalhando a “maldição” do trabalho por todos os recantos do mundo que, embora na contemporaneidade tenha perdido seu caráter estigmatizado de pena ou condenação, não deixa de degradar, alienar e reificar o homem por meio do trabalho.

Palavras-chave: Trabalho, Literatura, Estigma, Gregos, Judeus.

INTRODUÇÃO

De acordo com o poeta grego Hesíodo (1991) o mito de Prometeu e Pandora descreve a origem do homem e da primeira mulher (Pandora), o roubo do fogo dos deuses, que foi dado aos homens, e a gama de males que passou a afligir a humanidade. O roubo do fogo pelo ardiloso titã Prometeu provocou a ira de Zeus, deus supremo do Olimpo e pai de todos, o qual pune e condena Prometeu à tortura eterna de ter seu fígado permanentemente devorado por aves, acorrentado numa rocha; e aos homens, Zeus estende por meio de Pandora, a condenação eterna ao trabalho e a toda sorte de males:

[…] Antes vivia sobre a terra a grei dos humanos

a recato dos males, dos difíceis trabalhos[2],

das terríveis doenças que ao homem põem fim;

mas a mulher, a grande tampa do jarro alçando,

dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares […] (HESÍODO, 1991, p. 29).

O mito de Prometeu e Pandora nos remete à semelhança com o livro bíblico do Gênesis, onde narra-se que Iahweh (Deus), o criador de todas as coisas, pune Adão e Eva – esta, aliás, a primeira mulher tal como Pandora da mitologia grega, motivo de queda de Adão, o primeiro homem – por tê-lo desobedecido ao comerem do fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal, posta no meio do jardim do Éden. Por esta razão, foram expulsos do paraíso e condenados a buscar seu sustento por meio de “trabalhos penosos”:

Ao homem, Ele disse:

‘Porque ouviste a voz de tua mulher

e comeste do fruto da árvore que te havia proibido comer,

maldita seja a terra por causa de ti!

Tirarás dela com trabalhos penosos[3] o teu sustento

todos os dias de tua vida.

[…] Comerás o teu pão com o suor do teu rosto […]’ (Gên, 3:17 e 19).

Diante das duas versões literárias acerca da origem mítica do Homem, o estigma do trabalho como pena ou condenação parece ser um dos pontos em comum entre ambas. Com efeito, tal estigma sobre o trabalho tornou-se um elemento cultural dominante nas sociedades clássicas ocidentais greco-romana e de cultura religiosa judaico-cristã, e que se estendeu até, mais ou menos, ao final da Idade Média europeia. Isto aconteceu a partir das ações das classes dominantes sobre as classes subjugadas. O curioso, nesse sentido, é que o teor dos textos, à época greco-romana, por exemplo, carregava toda uma aura religiosa particular a esses dois povos, pois, sendo a vontade dos deuses, por isso mesmo, não poderiam ser contestados sendo, portanto, assimilados como verdades absolutas, as quais – tomando aqui de empréstimo um conceito da psicologia analítica pra enfatizar a afirmação – se sedimentavam no fundo do inconsciente coletivo. Contudo, mais tarde, com a consolidação do cristianismo no mundo Ocidental, a religiosidade da antiguidade clássica é fundida às raízes judaico-cristãs. Daí em diante, os textos bíblicos tomam o status de verdades incontestes igualmente sedimentadas no inconsciente coletivo Ocidental em detrimento dos textos clássicos, que passam a ser considerados pagãos.

De qualquer forma, portanto, o trabalho parece ter sido estigmatizado como um mal ou algo penoso, que causa sofrimento à humanidade, de forma implícita ou direta, através de textos literários revestidos de uma aura sagrada, religiosa e, por isso mesmo, resignadamente incontestável, ideologicamente se assemelhando no conteúdo e no objetivo entre ambos: relegar tal sofrimento ou pena exclusivamente aos escravos ou servos, pois o trabalho, sobretudo o manual, se constituía num grande ultraje ou humilhação para qualquer um membro das elites daquelas sociedades. Todavia, a partir do século XI, com o Renascimento Comercial e Urbano, a burguesia, que enriquecera trabalhando, se viu diante da necessidade inadiável de demolir tal imagem negativa associada ao trabalho, porque era o único meio pelo e sobre o qual possibilitaria enriquecer – explorando o trabalhador assalariado – e expandir ainda mais os seus negócios. Feito isto, a burguesia passa, então, a “acorrentar” – tal como o titã Prometeu – a humanidade ao trabalho desumanizante, alienante, visto ou aceito “naturalmente”, no mundo contemporâneo, como “dignificador” e fim último da existência humana.

O MITO DE PROMETEU E PANDORA E A LITERATURA COMO VEÍCULO IDEOLÓGICO

No âmbito das sociedades capitalistas, que são extremamente utilitaristas e voltadas ao lucro incessante, diz-se que a literatura não serve para nada, isto é, não possui nenhuma utilidade prática na vida diária de qualquer pessoa. Apesar disso, a literatura, sem dúvida, contribui para a formação do homem. Pertinente a isto, o crítico literário e romancista Rogel Samuel (1990, p. 7-10) afirma que “a literatura, como produto do trabalho humano […] faz uma transformação da realidade […] e interfere indiretamente nas consciências, no sentido de humanizar o próprio homem”. Antonio Candido (2002, p. 77), por sua vez, também entendia que a literatura possui uma função humanizadora, uma capacidade de “confirmar a humanidade do homem”. Entretanto, assim como a literatura pode ser utilizada no sentido de humanizar o homem, também ela pode ser um veículo condutor de ideologias que têm como finalidade a alienação, a reificação, o domínio do homem pelo homem e a sua consequente degradação. Como exemplo disso, na Grécia como na Roma Antigas, o mito de criação do homem em Prometeu e Pandora parece ter tido a finalidade, por parte das classes dominantes, de “deformar” a consciência do homem comum para a assimilação de alguns assuntos importantes.

Na análise literária do referido mito percebe-se, pois, à primeira vista, questões de ordem como, por exemplo, as consequências funestas da desobediência e rebeldia diante da “vontade” dos deuses (punição de Zeus a Prometeu e aos homens), a condição depreciativa e inferior imposta à mulher (representada por Pandora, a primeira mulher, que encarna a origem dos males humanos) no âmbito da sociedade patriarcal greco-romana e, para o que mais interessa neste estudo, o estigma legado ao trabalho na condição de um mal para a humanidade, como resultado da atitude imprudente de Pandora ao abrir uma caixa ou jarro, dado a ela intencionalmente por Zeus, cujo interior guardava todos os males que passou a assolar os homens neste mundo e, dentre eles, o trabalho.

A “MALDIÇÃO” DO TRABALHO NA GRÉCIA CLÁSSICA

“Introduzindo o trabalho (érgon), aparece a fadiga (pónos). Zeus introduz um mal, Pandora dissemina males”.[4]

Segundo o filósofo alemão Friedrich Engels (2004b), as mãos são os órgãos do trabalho e que, por sua vez, criou o trabalho e o próprio homem. Engels fez esta afirmação ao analisar a evolução do homem pela ótica do trabalho, quando ele deixa a fase primitiva e adentra na era da civilização, num texto clássico intitulado Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem, publicado após sua morte, no final do século XIX. Em estudo[5] anterior, Engels (2005a, p. 25), de maneira clara e objetiva, nos aponta que os homens, em curso na roda da civilização, começam a se distanciar uns dos outros através do trabalho intelectual e do manual na medida em que “[…] a cabeça que planejava o trabalho já era capaz de obrigar mãos alheias a realizar o trabalho projetado por ela”.

Em outras palavras, basicamente “as cabeças” que exerciam funções de maior relevância nas sociedades comunais – quando estas se desagregaram em razão do grande aumento populacional num ritmo mais acelerado do que o avanço e o desenvolvimento das técnicas de produção que, apesar disso, já ensejava maior fartura – criaram a propriedade privada da terra e a divisão da sociedade em classes antagônicas social e economicamente. Aníbal Ponce (2005, p. 22), psicólogo, pensador marxista e ensaísta argentino, igualmente aponta para essa dupla e provável origem do aparecimento das classes sociais antagônicas: “O escasso rendimento do trabalho humano e a substituição da propriedade comum pela privada”. Em seguida, Ponce (2005, p. 23) identifica “as cabeças” como sendo “uma espécie de ‘funcionários’ que receberam a custódia de gerenciar determinados interesses sociais que, de maneira oportunista, fizeram derivar desses interesses certa exaltação de poderes” – razão pela qual se tornaram classe dominante. Nesse sentido Ponce esclarece ainda mais, vejamos:

[…] tem importância ressaltar que as classes sociais, que, posteriormente, chegaram a ser privilegiadas, desempenhavam, no início, funções úteis. A sua supremacia inicial foi, a princípio, um fato aceito voluntariamente e, de certo modo, espontâneo. Qualquer desigualdade de inteligência, de habilidade ou de caráter poderia servir de base para uma diferença que, com o tempo, poderia engendrar um submetimento (PONCE, 2005, p. 23).

Tal “submetimento” veio consequentemente com o tempo e, principalmente, com a desagregação da sociedade comunal. Portanto, é a partir desse momento que podemos afirmar sem receios de que foram as classes dominantes as responsáveis por atribuir uma conotação negativa ao trabalho, relegando-o às mulheres, aos pobres ou aos escravos e servos. É, sem dúvida, em sua época clássica, quando floresceu a civilização helênica nos séculos V e IV a.C., que a ideia ou condição de esforço físico penoso ligado ao trabalho se intensifica e é também nesse contexto que se pode notar a ação sutil e implícita (ideológica) do mito de Prometeu e Pandora, pois reforçavam ou consolidavam tal ideia no inconsciente coletivo helênico – que era senão uma ação ideológica das elites aristocráticas sobre as classes subalternas, tal como hoje na contemporaneidade a sociedade capitalista pós-industrial assimila a ideologia burguesa para o “trabalho dignificador”. De maneira abstrata, porém, não é possível determinar o trabalho como um castigo de Zeus aos homens advindos dos mitos, exceto diretamente nas relações antagônicas de trabalho entre as classes.

Nesse sentido, Arnold Hauser, escritor e historiador húngaro, por exemplo, nos dá uma ideia precisa do alcance tomado pela atribuição negativa do trabalho pelos homens pertencentes às classes dominantes da Grécia clássica, vejamos:

O baixo apreço por pessoas que têm que trabalhar para viver, o desdém por todo trabalho remunerado, e até pelo trabalho produtivo em geral, originam-se no fato de que tais atividades – em contraste com as primevas ocupações aristocráticas de governo, guerra e esporte – sugerem subordinação e serviço (HAUSER, 2000, p. 115).

As observações de Arnold Hauser, nesse sentido, referem-se às diferenças sociais vividas pelos artistas no mundo antigo greco-romano, principalmente entre os poetas e os demais artistas. As situações sociais vividas por eles eram completamente antagônicas: enquanto os poetas gozavam de grande prestígio os pintores ou escultores, por exemplo, e, embora suas obras fossem admiradas e seus serviços requisitados, eram discriminados pelo seu ofício remunerado. À primeira vista, isto parece ser contraditório, mas não o é porque tal situação ilustra claramente a dicotomia entre o nobre ocioso e o trabalhador que vive de seu ofício manual – remunerado ou forçado. Ora, para o “ofício” de poeta é necessário tempo livre ou para o que o sociólogo italiano Domenico De Masi (2000) chama de “ócio criativo”. No entanto, isto só não explica nem justifica o prestígio desfrutado pelos poetas em relação aos demais artistas. Para melhor entendermos isso, Hauser explica exatamente como acontecia:

O poeta desfruta, por vezes, uma estima bastante peculiar como vidente e profeta, outorgador da fama e intérprete de mitos; o artista plástico ou gráfico é e continua sendo um artesão que, com seu salário, obtém tudo a que tem direito. Vários fatores explicam essa situação. Em primeiro lugar, o pintor ou escultor trabalha por remuneração e não tenta ocultar esse fato de ninguém, ao passo que o poeta é olhado como um hóspede e amigo de seu mecenas, mesmo quando depende dele completamente. Depois, ocorre também que o escultor e o pintor têm de trabalhar com ferramentas e materiais que sujam, enquanto o poeta anda sempre com roupas e mãos limpas – o que tem muito mais importância do que se poderia pensar aos olhos de uma época não-técnica. O fato mais importante, porém, é que o escultor ou pintor é obrigado a executar trabalho manual que envolve esforço físico e o desempenho de muitas tarefas exaustivas, ao passo que o labor do poeta não é certamente óbvio à vista (HAUSER, 2000, p. 115).

Com efeito, isto sim parece justificar o prestígio gozado pelos poetas na sua proximidade com a nobreza, pois não necessitavam executar “indignos” e exaustivos trabalhos físicos e manuais como os pintores e os escultores – no caso destes últimos, suas criações eram veneradas, mas o criador era desprezado conforme podemos observar nas palavras do filósofo romano Sêneca, citadas por Hauser: “Oferecemos orações e sacrifícios perante as estátuas dos deuses, mas desprezamos os escultores que as fazem” (SÊNECA apud, HAUSER, 2000, p. 116). Um pouco mais adiante, Hauser continua a descrever as diferenças, não só entre os poetas e os demais artistas, mas também de uma forma mais geral, que compreende o nobre e o trabalhador livre ou escravo:

Num tempo em que a agricultura e a criação de gado estavam plenamente desenvolvidas e eram principalmente exercidas por mulheres, a guerra tinha passado a ser a principal ocupação dos homens (nobres e livres), e a caça sua modalidade predileta de esporte. Guerra e caça exigiam prática, coragem e aptidões especiais, razão pela qual eram tidas em elevado apreço; por outro lado, ocupações que envolviam trabalho minucioso, paciente e fatigante eram mais convenientes para indivíduos débeis e, portanto, nada tinham de honrosas. Essa forma de pensar é levada a extremos e, com o decorrer do tempo, toda a atividade produtiva, qualquer ocupação exercida para ganhar a vida, passam a ser consideradas desonrosas. Tais trabalhos são destinados aos escravos porque são desprezíveis, e não desprezíveis (como se supunha antes) por serem confiados a escravos (HAUSER, 2000, p. 115).

O alto apreço pelas ocupações bélicas e pela caça, encarada como esporte, foram mantidas enquanto a aristocracia guerreira grega manteve-se no poder porque, quando a hegemonia dessa classe cessou, diz Arnold Hauser (2000, p. 220) que “tornou-se corrente uma outra concepção muito semelhante de prestígio, derivada agora das competições atléticas”. Depois disso, certamente, a guerra deixou de ser uma ocupação digna para ser somente uma obrigação porque, quando as guerras cessavam, a única ocupação digna de um homem nobre e livre estava ligada aos jogos e às competições esportivas. Além dos mitos, os nobres também tiveram a contribuição dos filósofos na legitimação do estigma sobre todo e qualquer tipo de trabalho, inclusive Platão e Aristóteles. Para eles e alguns outros filósofos, portanto, e, igualmente para as classes dominantes, a ociosidade total era a condição prévia de tudo o que era bom e belo – era o inestimável bem que, só por si, tornava a vida digna de ser vivida. “Somente aquele que dispõe de ócio podia alcançar sabedoria e liberdade de espírito, podia ser senhor da vida e gozá-la plenamente” (HAUSER, 2000, p. 116).

Aos olhos de Platão, por exemplo, “toda especialização, toda profissão rigorosamente definida, era vulgar” (HAUSER, 2000, p. 116) porque a prerrogativa de todo homem livre era justamente a “contemplação das ideias” e não preso a atividades físicas penosas; e, de um modo mais geral, o trabalho, para Platão, “permanecia alheio a qualquer valor humano e em certos aspectos parecia mesmo a antítese do que fosse essencial ao homem” (ANDERSON, 2000, p. 27). Por sua vez, Aristóteles (2004, p. 150) também dizia que “onde um homem manda e outro é mandado podia-se dizer que existe um trabalho”. Nesta frase de Aristóteles, com efeito, encontramos novamente o sentido negativo do trabalho ligado ao caráter de servidão e pena. Todavia, a palavra trabalho, tal como a entendemos hoje, não existia para os gregos, pois, segundo os historiadores franceses Jean-PierreVernant e Pierre-Vidal Naquet (1989, p. 10), os gregos utilizavam um termo específico que era aplicado a todas as atividades que exigisse esforço penoso; e até para ilustrar isso, eles citam uma passagem da mitologia na qual o herói Heracles[6] tem de optar entre uma vida de prazer e preguiça a uma vida voltada a atividades penosas.[7] Era, pois, nesse mesmo sentido que a aristocracia e os filósofos entendiam qualquer esforço físico que não fosse a guerra, a filosofia ou os jogos olímpicos – ocupações dignas de um homem livre em detrimento das ocupações remuneradas ou escravas, tidas como aviltantes e desonrosas.

Entretanto, houve mudanças no conceito aristocrático do que fosse prestígio aos homens livres, porém nada tão radical em relação à visão negativa do trabalho. Elas foram levadas a efeito quando a aristocracia guerreira grega se enfraqueceu com a ascensão dos comerciantes como nova classe social, durante o século IV a.C. e no decorrer da época helenística. Houve sim mudanças no velho conceito, mas, de acordo com Hauser, o trabalho como tal continuou longe de ser considerado uma atividade digna de respeito, e nem se reconhecia nele qualquer valor educativo, como é alegado pela moderna ética burguesa; pois esta, “representada” pelos comerciantes na Grécia Antiga, “desprezava o trabalho não menos do que a aristocracia” (HAUSER, 2000, p. 116).

A “MALDIÇÃO” DO TRABALHO NA ROMA CLÁSSICA

Na Roma Clássica o trabalho era igualmente encarado tal como os gregos – o que não é de se admirar porque os romanos absorveram toda a cultura grega. Então, embora difira um pouco na forma e se assemelhe no conceito de prestígio, “a agricultura, a guerra e a política constituíam o programa que um romano nobre devia realizar” (PONCE, 2005, p. 62). Com efeito, aos olhos da nobreza romana, Ponce (2005, p. 64) mostra de que forma, além da influência grega, o trabalho é estigmatizado: “O desprezo pelo trabalho apareceu como uma ocupação própria de escravos, de modo que em Roma também vamos encontrar, sem grandes variações, o mesmo antagonismo entre trabalho e ócio na Grécia”.

Portanto, obviamente o ócio também era a prerrogativa de todo romano livre, uma vez que o trabalho era tido como a “ausência de lazer”, e atribuição natural dos escravos (ARANHA; MARTINS, 1993). Contudo, tal opinião, acerca do trabalho, ainda era sustentada pelos romanos mesmo na iminência do fim do Império, cujas consequências abalavam sua principal coluna de sustentação: a exploração do trabalho escravo, conforme poderemos observar a seguir nas palavras de Engels (2005a, p. 161): “[…] A escravidão agonizante, contudo, ainda era suficientemente real para fazer considerar todo trabalho produtivo próprio de escravos e indigno de um romano livre […]”. Quanto ao trabalho remunerado ou assalariado, do mesmo modo que na Grécia, “os romanos tomavam o salário como prova de servidão” (PONCE, 2005, p. 67).

A “MALDIÇÃO” DO TRABALHO NO LIVRO BÍBLICO DE GÊNESIS JUDAICO-CRISTÃO

Alguns séculos depois, o Ocidente passa a receber uma influência inevitável e definitiva da literatura de tradição religiosa judaico-cristã, para a qual a concepção negativa do trabalho advém do livro bíblico de Gênesis onde o próprio Deus descansa de seu trabalho após ter terminado sua obra: “Tendo Deus terminado no sétimo dia a obra que tinha feito, descansou do seu trabalho” (Gên., 2:2). O que se afere desse versículo é de que todo trabalho exige um esforço penoso, difícil até mesmo para o Deus único – o criador por excelência. Logo, uma vez que Deus tivera que descansar após seu trabalho de criação, certamente, entende-se que foi uma atividade muito árdua, penosa. Além disso, no Gênesis também é narrada a expulsão de Adão e Eva do paraíso por desobedecer a vontade de Deus que, por esta razão, foram condenados a viver por meio do “trabalho penoso” (Gên., 3:17 e 19).

Adão e Eva comeram o fruto proibido e, por isso, foram condenados a trabalhar. Consequentemente, tal sentença imprime inevitavelmente um caráter de castigo, de pena, uma maldição para o trabalho, porque hipoteticamente, antes de serem expulsos do paraíso, Adão e Eva tinham tudo do que necessitavam, pois não precisavam “trabalhar” para garantir sua sobrevivência. Depois, quando expulsos do paraíso, Deus os castigam a trabalhar penosamente com o suor de seus rostos para garantir seu sustento por todos os dias de suas vidas. Desse modo, para a nobreza feudal que, além de ter herdado o estigma do trabalho pelas aristocracias greco-romanas, tiveram essa impressão reforçada pela influência religiosa judaico-cristã; ainda mais pela atuação da Igreja Católica medieval, sobretudo dos sacerdotes do Alto Clero – diga-se de passagem, oriundos da nobreza – que, tal como os nobres feudais, viviam luxuosamente às expensas do trabalho servil dos camponeses. Porém, no Baixo Clero, as coisas não diferiam muito, exceto quanto a ausência de luxo desfrutada pelo Alto Clero. Dentro dos monastérios, por exemplo, Aníbal Ponce afirma o seguinte: “Tidos por alguns autores como um modelo de ‘vida perfeita’, a divisão em classes continuava existindo, sem nenhuma modificação; de um lado, os monges, dedicados ao culto e ao estudo, do outro, os escravos, os servos e os conversos, destinados ao trabalho” (PONCE, 2005, p. 91).

Ora, tanto os sacerdotes do Alto como do Baixo Clero, não trabalhavam porque os primeiros, grosso modo, estavam envolvidos com o luxo e o poder, de um lado, e o segundo com o culto e o estudo, do outro. Evidentemente, essas classes viviam do trabalho alheio dos poucos escravos que existiam e, sobretudo, dos servos que compreendiam a maioria da população medieval. Ainda quanto aos monastérios, Ponce (2005, p. 90) faz críticas às frequentes afirmações de que neles o trabalho manual tenha tido alguma valorização, pois “tais afirmações são tão falsas quanto a participação do cristianismo na libertação dos escravos”. E diz mais: “Não há dúvidas de que se trabalhava nos mosteiros, e de acordo com um plano preciso. Mas isso não quer dizer que todos trabalhassem, como se se tratasse de uma comunidade primitiva sem classes, ou de uma igreja dos primeiros tempos do cristianismo” (PONCE, 2005, p. 90). De fato, sim, existia trabalho nos mosteiros, porém não eram os sacerdotes quem os realizavam com frequência, mas os servos como já referido antes. Esses religiosos faziam parte da tripartição da sociedade feudal que consistia em três divisões: “Os bellatores ou guerreiros, os oratores ou religiosos, e os laboratores ou trabalhadores” (PONCE, 2005, p. 86). Em outras palavras, enquanto os primeiros guerreavam e os segundos oravam, os últimos, presos à terra, eram obrigados a sustentar, por meio de seu trabalho servil, a ociosidade e a vida faustosa dos primeiros. Tal condição social e, junto dela, o estigma sobre o trabalho perdurou por longo tempo até o declínio e a desagregação total do sistema feudal, em parte da Europa, pela ascensão da burguesia como nova classe social que sobrepujou, em pouco tempo, as antigas classes dominantes e o estigma sobre o trabalho. Antes disso, o trabalho como o entendemos hoje e desde aquela época, como no Mundo Antigo, ainda não tinha nome. Na Idade Média, nesse sentido, o historiador francês Jean-Claude Schmitt (1998, p. 86) diz o seguinte: “As palavras que mais se aproximavam dele (labor, opus) acentuavam, sobretudo a pena física e moral, consequência do Pecado original, ou na melhor das hipóteses a oferenda feita a Deus de todo o esforço”.

Na verdade, a atual palavra trabalho surge, pois, a partir do vocábulo tripaliare, do substantivo tripalium, que era um aparelho de tortura formado por três paus, ao qual eram atados os condenados e que também servia para manter presos os animais difíceis de ferrar (ARANHA, MARTINS, 1993, p. 10). Com efeito, tanto o estigma do Pecado original quanto a própria etimologia da palavra trabalho contribuiu para o seu estigma negativo no decorrer da Idade Média. Como já dito antes, a Igreja Católica foi a principal reprodutora dessas ideias por enfatizar o estigma do Pecado Original e atribuir outros significados negativos a outras atividades, apesar delas serem essenciais na economia social. Tais impressões negativas acerca das novas atividades começam a partir do século XI e perduram até o século XIII, devido ao conjunto de mudanças econômicas, demográficas, sociais e intelectuais de grande importância na Europa Ocidental. Tantas mudanças compreendem o renascimento das cidades que, por outro lado, anuncia e inicia o declínio do sistema feudal junto com o poder da Igreja Católica e dos nobres feudais. Nesse período chamado de Baixa Idade Média, surgem significados sociais a certos ofícios novos no cenário urbano junto com certos “tabus” do período anterior, conforme observa Schmitt:

[…] No leque amplamente aberto dos ofícios urbanos, certas atividades são julgadas desonestas (mercimonia inhonesta), ainda que, concretamente, elas representem um papel essencial na economia urbana. São as profissões de açougueiro, esquartejador de animais, carrasco, que põem em contato com o sangue. […] Os ofícios relacionados à impureza também conhecem o mesmo descrédito: os limpadores de fossas e, também, os operários da indústria têxtil, pisoeiros e tintureiros, parecem maculados por seu trabalho, e o próprio nome de tecelão torna-se sinônimo de herético. Ofícios suscitados pelo desenvolvimento das trocas, mas que supõem a manipulação corruptora do dinheiro, também inspiram desconfiança e reprovação: os comerciantes, sobretudo os prestamistas, todos eles chamados de ‘usurários’. Pesa contra eles outra acusação: eles especulam com o tempo, vendem-no de certa forma, enquanto o tempo pertence a Deus […] (SCHMITT, 1998, p. 268).

O que podemos observar disso tudo, naquele período, é que a Igreja começava a perceber o poder se esvaindo de suas mãos. O desespero era evidente. A criação dos tribunais do Santo Ofício (1215) atesta esse desespero, pois era necessário coibir severamente o desvirtuamento de seus dogmas. Sabemos que, apesar de todo o rigor, a Igreja não conseguiu resistir ao conjunto de mudanças que resultou no desmantelamento do sistema feudal e do seu poder. Consequentemente, reagindo às mudanças na economia medieval, levadas a efeito pelo renascimento das cidades e pela própria burguesia, esta se viu, pois, obrigada a criar uma ideologia do trabalho a fim de demolir a sua imagem degradante e transformá-la em consenso comum.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Hoje, nas sociedades pós-industriais, o estigma relativo ao trabalho, advindo das literaturas míticas de criação do homem nas sociedades clássicas e ocidentais de cultura religiosa judaico-cristã, não mais existe, uma vez que o trabalho é encarado “naturalmente” como único meio de se alcançar e obter a dignidade da vida humana, fim último da existência, pois o trabalho, no mundo de espírito burguês, “enobrece” o homem (WEBER, 2004).

Portanto, a imagem ou estigma relativo ao trabalho, sem dúvida, foi demolido ou invertida a sua lógica pela burguesia sem, no entanto, atenuar – senão intensificar – a precariedade desumana com que o trabalho sempre fora e ainda é realizado pelo homem. Como fato exemplar, podemos citar, ironicamente, que nos campos de concentração nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial, era comum ver um letreiro ou uma placa acima ou no meio dos portões de entrada a seguinte frase em alemão: “Arbeitmacht frei” (o trabalho liberta). Esta frase, basicamente, converteu-se numa espécie de símbolo dos esforços nazistas para condicionar as vítimas a uma falsa sensação de segurança antes de matá-las lentamente por meio de trabalhos forçados em condições subumanas as mais diversas. Eis aí, sem dúvida, a tônica da lógica do capitalismo sobre o trabalhador, independente se este ganha um baixo ou alto salário, será sempre um explorado – e descartável ao sabor dos interesses do empresário.

REFERÊNCIAS

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SCHMITT, Jean-Claude. A história dos marginais. In: ____. A História Nova. Trad. Eduardo Brandão. 4ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1998.

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WEBER, Max. A ética protestante e o espírito capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.

  1. Grifo meu
  2. Idem.
  3. LAFER, Mary de Camargo Neves. Os mitos: comentários. In:____. Os trabalhos e os dias – Hesíodo (1991).
  4. A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
  5. Hércules, para os gregos.
  6. Os doze trabalhos de Hércules.

[1] Graduado em História (Unipec/Uniron, 2007), Pós-graduado (Lato sensu) em História do Brasil (FIJ – Faculdades Integradas de Jacarepaguá, 2013) e Mestrando em Estudos Literários (Unir – Universidade Federal de Rondônia, 2017).

Enviado: Julho, 2018

Aprovado: Janeiro, 2019

 

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Francisco Américo Martins Moraes

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