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Aportes socioespaciais à análise das paralisações de caminhoneiros no Brasil

RC: 52495
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/geografia/aportes-socioespaciais

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

BAGGIO, Ulysses da Cunha [1], SILVA, Marco Antonio Saraiva da [2]

BAGGIO, Ulysses da Cunha. SILVA, Marco Antonio Saraiva da. Aportes socioespaciais à análise das paralisações de caminhoneiros no Brasil. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 06, Vol. 07, pp. 28-48. Junho de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/geografia/aportes-socioespaciais, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/geografia/aportes-socioespaciais

RESUMO

O presente artigo busca analisar as paralisações de caminhoneiros no Brasil, sob uma perspectiva socioespacial, conferindo ênfase à circulação de mercadorias e, mais especificamente, da dependência do país em relação ao transporte rodoviário. O que nos levou a considerar o papel fundamental desempenhado por tecnologias comunicacionais no processo de mobilização desse segmento de trabalhadores, destacando-se a utilização do aplicativo WhatsApp. A pesquisa salienta, ainda, os impactos do movimento nos diversos setores da economia. Nos valemos, nesse sentido, de dados de associações dos setores envolvidos, além de notícias divulgadas nos meios de comunicação nacionais e internacionais.

Palavras-chave: Paralisações de caminhoneiros, rodoviarismo no Brasil, uso do WatsApp, movimento auto-organizacional.

INTRODUÇÃO

O artigo em tela busca analisar o movimento de paralisações de caminhoneiros no Brasil, com maior destaque ao de 2018, trazendo à tona algumas implicações socioespaciais relevantes à sua compreensão. Nesse sentido, a abordagem empreendida valeu-se de certa recuperação histórica de aspectos e ações da luta de trabalhadores, presentes na contradição capital e trabalho.  Ganhe destaque nesse contexto a utilização do dispositivo político representado pela greve, instrumento que alcançaria grande disseminação e capacidade organizacional entre os segmentos laborais explorados pelo capital.

A pesquisa enfatiza nesse movimento de caminhoneiros o emprego de tecnologias comunicacionais, com destaque para o WhatsApp, conotando, nesse sentindo, uma expressão socioespacial do “meio técnico científico-informacional”[3] (SANTOS, 2006) no Brasil contemporâneo. Sob essa condição e mais especificamente com o suporte dessa rede social, o movimento adquiriu enorme expressão e força, aspectos que fortalecem a importância da esfera da circulação do capital no território, sobretudo considerando-se suas amplas proporções geográficas, ratificando sua posição de certa centralidade na dinâmica econômica. Acrescente-se, ademais, a condição de uma certa dependência do país e, especialmente, de sua economia em relação ao modal rodoviário. Daí o poder alcançado por esse movimento, fato que a análise procurou revelar.

1. CONTEXTO HISTÓRICO DAS REVOLUÇÕES INDUSTRIAIS

Desde a primeira Revolução Industrial (1760), com o surgimento da burguesia e do proletariado, aos quais, respectivamente, Marx define como possuidora e não possuidora dos meios de produção, as relações de trabalho são alvos de intensas discussões e problematizações.

Com o passar dos tempos, as transformações produtivas sofreram modificações e, atreladas a estas, as diferenças entre as classes foram se acentuando. Do mesmo modo, as similaridades intraclasses começaram a sofrer modificações, passando, então, a apresentar particularidades, gerando subdivisões, que são as camadas sociais. O fato é que estas se apresentaram como expressões insólitas, confusas e tênues.

Desta forma, os sujeitos inseridos nas primeiras divisões, entre burguesia e proletariado, principalmente desta última, encontram dificuldades de se reconhecerem nas novas categorias sociais, seja por desaceitação ou por se sentirem pertencentes a camadas superiores. Assim, aqueles que aceitam e se reconhecem como participantes de determinados segmentos, acabam, muitas vezes, por desenvolver maiores sinergias. Estas relações, se bem coordenadas e articuladas, podem impactar outros grupos, direta ou indiretamente.

No que concerne à primeira Revolução Industrial, sabe-se que a exploração da força de trabalho se realizava de forma perversa. As jornadas de trabalho eram extremamente longas, extenuantes e submetidas à grande controle, afora as condições estruturais das fábricas se revelarem precárias e, não raro, insalubres, com certo destaque aos aspectos ergonômicos. O fato é que, diante das condições adversas de exploração, muitas foram as revoltas e manifestações que se desencadearam a partir desse contexto. Um dos protestos mais marcantes foi o movimento que se tornou conhecido como Ludismo, no qual grupos de proletariados se organizaram e começaram a praticar atos de destruição das maquinas, que eram vistas como as geradoras das mazelas sofridas pelos trabalhadores. É possível que este movimento tenha sido um dos marcos mais importantes e emblemáticos da luta entre classes no período da primeira Revolução Industrial.

Paralelamente a isso, é irrefutável a potencialização da produção propiciada pelo deslocamento do artesão da linha de frente do processo produtivo, em que todos os serviços braçais foram substituídos por maquinas, potencializando massivamente a produção, ao mesmo tempo que produziu grandes transformações sociais, logo também espaciais. Porém, não bastava apenas saber produzir em escalas industriais, sendo também necessário um sistema de transporte eficiente e rápido, para que as mercadorias pudessem chegar aos mais variados locais e, assim, conquistarem posições frente à concorrência, aumentando seus lucros. Nesse sentido, vale destacar a invenção do primeiro barco a vapor nos Estados Unidos, em 1807, bem como, em 1825, na Inglaterra, a construção de estradas de ferro, as quais tinham por finalidade o transporte de carvão das minas para as indústrias.

De acordo com Hobsbawm (1977), a Revolução Industrial em termos comerciais pode ser descrito como a vitória do mercado exportador sobre o mercado doméstico. A partir daí, surgiram novas opções de investimentos, tanto nos maquinários das fábricas, ao incremento da capacidade produtiva, quanto em inversões nos setores de transportes, aspectos que favoreceram o desenvolvimento galopante desses segmentos. Dentre as melhorias alcançadas pode-se destacar a utilização da energia elétrica nos sistemas produtivos das indústrias, o emprego de locomotivas a vapor na circulação de mercadorias, bem como o uso do petróleo nas maquinas de motor a combustão.

Desta forma, é indiscutível que as evoluções das ciências proporcionaram enormes avanços no processo produtivo. No entanto, ao se analisar a questão social é necessário maior cautela, pois, se por um lado foram alcançadas conquistas trabalhistas por meio de protestos e greves, por outro, houve o distanciamento entre as classes e o  recrudescimento das diferenças intraclasse, afora o fato de que este período compreendeu as duas grandes guerras mundiais. E é justamente com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, que se iniciou o período conhecido por Terceira Revolução Industrial, que perdura até os dias atuais.

Muitas foram as descobertas científicas nesta época, e a partir daí as produções industriais tiveram saltos gigantescos, e a circulação de mercadorias e de informações mudaram substancialmente o “tamanho do planeta”, sendo esta última impulsionada pela microeletrônica e a internet. Concomitante às modificações científicas, as relações sociais também sofreram expressivas alterações. Grandes conquistas sociais foram concebidas dentro do Fordismo, porém estas não foram globais, ficando restritas, principalmente, aos países desenvolvidos. Por outro lado, não se pode negar que países periféricos também tiveram melhorias, ainda que incipientes, podendo-se observar aqui uma assincronia marcante entre a esfera econômica e a social, com clara prevalência da primeira.

Com a decadência do regime fordista, que conduziu à formação de um novo padrão de acumulação, ao qual Lipietz (1988) designou de “Pós-Fordismo”, e David Harvey (1992) regime de “acumulação flexível”, grandes transformações foram desencadeadas nas economias, nas sociedades e nos territórios, em escalas variadas. Entretanto, elas não serão exploradas aqui em profundidade, buscando-se reter, fundamentalmente, o fato de que, na tentativa de superação da crise a ela relacionada, modificações importantes se processaram nas estruturas produtivas, dando impulso à efetivas reestruturações socioespaciais. Vale dizer que tais reestruturações demandam inversões substanciais em infraestruturas de transportes e comunicações, causando fortes impactos nos países periféricos do sistema-mundo, dentre eles o Brasil.

Em linhas gerais, após a decadência do regime de acumulação fordista, deu-se início ao sistema conhecido como neoliberalismo, que modificou as relações produtivas, interferindo diretamente no mundo do trabalho e na forma de sua organização. Ao contrário do sistema fordista, no qual o trabalhador tinha certa estabilidade e se dedicava a uma determinada função, na maior parte de sua carreira, no regime de acumulação flexível, sob o neoliberalismo, o trabalhador se depara com dificuldades e precarizações estabelecidas por esse novo paradigma produtivo. Desse modo, o trabalhador passa a ter que exercer não só uma, mas várias atividades, envolvendo, inclusive, sobreposições de funções à sua reprodução social, caracterizando, portanto, uma condição de elevação dos níveis de exploração do trabalho.

A flexibilidade produtiva insufla instabilidades profissionais, recrudescendo situações de maior competitividade nos ambientes laborais, recobrindo terceirizações, contratos flexíveis, organização do trabalho sob meta de resultados, etc., acirrando, dessa forma, disputas, menos entre capital e trabalho, do que entre os próprios trabalhadores, transformando companheiros de trabalho, dentro de uma mesma empresa, em inimigos, sob as coerções das metas, aspecto que perpassa, de modo ascensional, as hierarquias do mundo contemporâneo do trabalho.

As relações econômicas também mudaram substancialmente, pois com a abertura das economias ao capital estrangeiro, as grandes corporações tomaram conta do mundo. Empresas que antes pertenciam a um único dono ou poucos sócios passaram a ser propriedade de vários grupos de acionistas. Esta nova forma de organização econômica agravou as questões sociais, dado que o capital ganhou uma mobilidade nunca vista antes, e a partir do momento que os retornos econômicos não alcançam as expectativas desejadas, o mesmo é direcionado a outros espaços.

Diante dessa situação, o que se tem é a exposição de um dos lados mais perversos do capitalismo, na medida em que, ao capital, são proporcionadas liberdades à sua livre circulação, ao passo que aos trabalhadores são impostas, cada vez mais, fronteiras e barreiras à sua mobilidade internacional, o que revela um dos grandes paradoxos da globalização hodierna. Nesse sentido, o capital pode ser global, mas os impactos que ele produz se revelam localmente, o que nos permite dizer que, não seria propriamente o espaço que se globalizaria, mas sim os lugares, nos quais o drama social adquire, efetivamente, concretude e maior visibilidade. Um bom exemplo das consequências desta mobilidade é a cidade de Flint, nos Estados Unidos, que após a saída da General Motors deixou para traz um enorme contingente de pessoas desempregadas, endividadas e entregues a própria sorte.

Diante disto, após ter descrito sucintamente situações históricas dos períodos industriais em âmbito global, assim como suas repercussões no universo do trabalho, a partir daqui a abordagem mudará de escala, enfocando as modificações sofridas pelo Brasil desde o seu incipiente processo industrial, até culminar nas mobilizações trabalhistas dos caminhoneiros em 2018. Desse modo, a fim de se ter uma visão mais detalhada dessa situação, faz-se necessário relembrar, sucintamente, como se deu a formação da industrialização brasileira até os dias atuais. Pretende-se, com isso, evidenciar o quanto o país se mostra dependente do transporte rodoviário e, por conseguinte, do poder que os trabalhadores desse setor detêm, haja vista a proeminência que esse segmento ocupa na circulação de mercadorias e pessoas no território brasileiro.

2. INDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA E A IMPLANTAÇÃO DO RODOVIARISMO

É notório que a partir de 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, especialmente com a instituição do Estado Novo (1937-45), desencadeiam-se mudanças significativas na política econômica brasileira, que se estenderam ao próprio aparelho de Estado e ao território. Podem-se destacar, entre outras, a política de substituição de importações e seus desdobramentos com o Plano de Metas (1956-60), no governo JK, bem como a implementação do Plano de Integração Nacional (PIN), de 1970. Este Plano representou uma política marcadamente territorial, iniciado dois anos antes do I Plano Nacional de Desenvolvimento (1972-74). O PIN, saliente-se, se voltou, sobretudo, à Amazônia e ao Centro-Oeste [4], estendendo-se também ao Nordeste[5].

Com a construção de Brasília, no governo JK, e da rodovia Belém-Brasília, dá-se início a um processo de integração física do território, que se ampliou substancialmente com a abertura de novas rodovias de escala inter-regional promovidas pelo PIN. Tal conjunto de eixos rodoviários, respondeu pela constituição de uma efetiva ossatura de circulação no território, tendo em Brasília uma espécie de “elo” de ligação, posicionada na hinterlândia do país, articulando os diversos espaços regionais com o espaço polarizado da economia brasileira, representado pelo Sudeste, com destaque para São Paulo.

Sabe-se que os programas e ações implementados no governo Vargas deram um impulso fundamental à industrialização brasileira. Destaque-se que as atividades urbano-industriais tornaram-se, a partir de então, proeminentes em relação às do setor agrário-exportador (com maior projeção ao café e a borracha). Precipuamente a partir dos anos 1940, a industrialização se torna o eixo principal de acumulação da economia nacional, e o planejamento estatal passa a operar como o instrumento fundamental às ações governamentais na vida econômica do país.

Ao par dos impactos produzidos com a Segunda Guerra Mundial, comprometendo e isolando mercados, o Brasil foi compelido, pela força das circunstâncias, a intensificar a sua política de substituição de importações, incentivando fortemente a industrialização interna, que ganhou forte impulso com o modelo de modernização desenvolvimentista, que ficou conhecido como a “tríplice aliança”, ou “tripé econômico”[6].

Simultaneamente, no cenário mundial, deu-se inicio a “Guerra Fria”, marcada pela disputa geopolítica de poderes entre as duas grandes potências vencedoras daquele conflito mundial (EUA e URSS). Desde então, com o embate entre estas potências por espaços de influência no mundo e o desenvolvimento da corrida armamentista, deu-se um forte impulso ao desenvolvimento científico-tecnológico, tendo na eletrônica um dos marcos da Terceira Revolução Industrial.

Na década de 50, mais precisamente a partir de 1956, objetivando um desenvolvimento industrial acelerado, sob forte suporte estatal, o presidente Juscelino Kubitschek promoveu a implantação de um grande projeto de desenvolvimento econômico no país, o chamado Plano de Metas[7]. Este tinha como perspectiva promover uma rápida expansão produtiva, envolvendo uma grande abertura da economia, que propiciou uma vultosa ofensiva de capitais estrangeiros no mercado. Seu slogan era avançar “50 anos em 5”, visando a consecução de seus objetivos, o que, em larga medida, foi alcançado, desencadeando uma verdadeira reestruturação produtiva na economia, sobretudo na indústria. Seus objetivos principais foram o desenvolvimento dos setores da indústria de base, transportes, energia, educação, alimentação e a construção de Brasília (considerada a “meta-síntese” do Plano). Vale ressaltar que o Plano de Metas representou um dos maiores (se não, o principal) empreendimentos do Estado à expansão do capitalismo no Brasil, favorecendo, em larga medida, o capital monopolista privado, podendo-se destacar a indústria automobilística, que se consolida no país a partir de então. A expansão desse segmento desempenhou um papel indutor fundamental à afirmação/desenvolvimento do rodoviarismo no Brasil, condicionando, substancialmente, a produção e a organização do espaço brasileiro.

Segundo Wanderley Messias da Costa (1988), foi construído 12.169 km de rodovias, e pavimentadas 7.215 km. No caso das rodovias federais, passou-se de 22.250 km a 35.419 km durante a execução do Plano (1957-60). Estes números evidenciam a proeminência e a orientação ascensional do modal rodoviário, desencadeando o declínio do transporte ferroviário no país. Este, por sua vez, ficou muito aquém da condição de representar um vetor capaz de promover a integração física do território e da cadeia produtiva. Nesse sentido, Clélio Campolina Diniz ressalta que:

O sistema ferroviário brasileiro nunca cumpriu este papel. Além se sua extensão (máxima de 38.000 km), o mesmo não era integrado, ligando basicamente cada região exportadora ao respectivo porto, além de possuir distintas bitolas. A navegação fluvial não foi desenvolvida e os principais rios estavam fora das regiões de maior importância econômica.

A indústria automobilística brasileira começou a produzir no ano de 1960 (até então existiam apenas montagens), porém a grande expansão da produção ocorreu a partir do final daquela década, com a retomada do crescimento da economia brasileira. Entre 1967 e 1973 a produção saltou de 200.000 veículos/ano para 1.000.000, estabilizando-se a partir de então. A frota nacional subiu de 400 mil unidades, em 1955, para aproximadamente 13 milhões, em meados da década dos 80 (DINIZ, 1993, p.44).

Destaque-se que a escolha pelo Estado por essa modalidade de circulação refletia, ao mesmo tempo, interesses em torno de uma expansão rápida, bem como alegações quanto aos custos concernentes ao transporte ferroviário, considerados elevados, ao que se soma certas dificuldades relativas às amplas proporções do território brasileiro. No entanto, fazia-se necessária a existência de uma base logística adequada, dentre as quais, e, mais especificamente, a construção de novas estradas, conferindo-se maior ênfase às de escala inter-regional. Elas favoreceram tanto a uma maior mobilidade de veículos automotores (caminhões, etc.), mercadorias e também pessoas, valendo lembrar, acerca deste último, os grandes fluxos migratórios das regiões deprimidas para o centro dinâmico da economia brasileira, representada, principalmente, por São Paulo.

A partir daí, a dependência do país em relação ao transporte rodoviário aumentou substancialmente, tanto que, atualmente, estima-se que a frota de caminhões no país esteja em torno de 2 milhões[8] de veículos, contribuindo tanto para a circulação interna de produtos diversos, quanto ao escoamento para fins de exportação.

3. AS MAIS RECENTES GREVES DOS CAMINHONEIROS NO BRASIL EM DESTAQUE

Foram muitas as paralisações realizadas pelos caminhoneiros ao longo da história da categoria. Entretanto, serão destacadas aqui apenas as ocorridas entre 2013 e 2018.  Não que as anteriores não tenham sido importantes, pelo contrário, todas alcançaram algum tipo de conquista em suas reivindicações, umas mais, outras menos.

Em 2013, os caminhoneiros estavam insatisfeitos com uma série de questões, o que levou o Movimento União Brasil Caminhoneiro (MUBC)[9] a decretar em 1 de julho uma paralisação que durou quatro dias. Neste movimento, os caminhoneiros defendiam as seguintes pautas: Criação da Secretaria Nacional de Transportes Rodoviários de Carga, isenção de pagamento de pedágios em todas as estradas brasileiras, subsídio no preço do óleo diesel e a revisão da Lei do Caminhoneiro (Lei 12.619/2012) [10], que foi substituída em 2015 pela Lei 13.103/2015[11]. Para a convocação e divulgação da paralisação, os sindicados utilizaram, principalmente, a comunicação radiofônica e a panfletagem.

No decorrer das manifestações, vários setores tiveram suas atividades afetadas, como, por exemplo, os serviços de entregas dos Correios, abastecimentos dos mercados alimentícios, escoamento de produtos rurais e abastecimento de combustível. Destaque se aqui que a reação da população à falta deste último foi menos tumultuada, se comparada à de 2018.

Já em 2015, as manifestações dos caminhoneiros retornaram com maior intensidade que às de 2013, porém, as pautas não mudaram muito, tendo como principais reivindicações as questões dos pedágios, do preço do óleo diesel e a “Lei do caminhoneiro”. De forma estratégica, politicamente falando, ganha relevo o fato de que as manifestações foram organizadas de modo a ocorrerem pelo país em momentos diversos ao longo do ano, evitando-se, desse modo, a sua concentração temporal. Outro aspecto que merece ser destacado refere-se à organização dos movimentos, os quais, ao contrário da de 2013, que foi assumida pela MUBC, não contaram com ingerências institucionais, buscando-se, assim, uma posição de maior autonomia.

Diante da ausência de representatividade por alguma instituição, o que ocorreu foi uma deficiência no planejamento, organização e divulgação das atividades. Para contornar esta situação os caminhoneiros começaram a se articular através das redes sociais e dos aplicativos de mensagens, respectivamente o Facebook e o WhatsApp, os principais veículos utilizados para divulgação dos movimentos.

Assim como em 2013, os desabastecimentos de produtos e o congestionamento foram os principais reflexos das paralisações de 2015. Para resolver tais situações e por um fim a essas manifestações, o governo atendeu a algumas das pautas cobradas pelos caminhoneiros, com destaque para a substituição da Lei 12.619/2012 pela Lei 13.103/2015. Conhecida popularmente como Lei do Motorista ou Lei do Caminhoneiro, esta tem como principais destaques a isenção da cobrança de pedágio para caminhões com eixos suspensos e vazios (sem carga); perdão das multas por excesso de peso dos caminhões, retroativas a dois anos; exigência de exames toxicológicos na contratação e desligamento; ampliação dos pontos de parada para caminhoneiros, com possibilidade de trabalhar até 12 horas seguidas, sendo quatro extraordinárias, desde que previsto em acordo coletivo.

Como pode ser visto, esta lei interfere diretamente nas condições de trabalho da classe caminhoneira, que passou também a ter direito a um maior período de descanso no decorrer das viagens, além de terem conseguido o direito de receber pelas horas de espera referentes ao carregamento e descarregamento das mercadorias.

4. PARALISAÇÃO DE 2018: REFLEXO DE PLANEJAMENTOS PRETÉRITOS

No dia 21 de maio de 2018 foi deflagrada mais uma paralisação dos caminhoneiros. Do mesmo modo que em 2013 e 2015 as reivindicações cobravam novamente reduções nas tarifas dos pedágios em relação aos eixos suspensos e a redução do custo do óleo diesel. Porém, novas pautas de cunho político foram incorporadas às reivindicações, tais como: o fim da política de aumentos diários da Petrobrás, redução para todos os combustíveis, cobrança diferenciada de IPVA para autônomos e, por último, a saída do presidente Michel Temer. Acrescente-se em relação a esta última, que uma parcela considerável dos caminhoneiros reivindicava a intervenção militar.

Apesar de muitas instituições terem declarado apoio à paralisação, esta se configurou como descentralizada, ou seja, os caminhoneiros autônomos não se sentiam representados por nenhuma delas. Acerca disso, Maalouf (2011) assinala que tais instituições, que declaravam apoio ao movimento, perderam legitimidade representativa frente à classe dos caminhoneiros. Portanto, pode-se dizer que o movimento se orientou por uma perspectiva de maior autonomia política, com um traço auto-organizacional.

Nesse sentido, assim como em 2015, todas as mobilizações se deram, em grande medida, através de aplicativos de redes sociais, agora com maior protagonismo do WhatsApp, o qual, segundo a empresa:

[…] é um meio rápido, simples e confiável de se comunicar com qualquer pessoa no mundo. Mais de 1 bilhão de pessoas, em mais de 180 países, utilizam o WhatsApp para se manter em contato com amigos e familiares, a qualquer hora e em qualquer lugar. O WhatsApp não é apenas gratuito, mas também está disponível em vários dispositivos móveis e em áreas com baixa conectividade; tornando-o acessível e confiável onde quer que se esteja. Ele é um meio simples e seguro para compartilhar seus momentos favoritos, enviar informações importantes ou colocar a conversa em dia com um amigo. O WhatsApp ajuda as pessoas a se conectarem e compartilharem, não importa onde elas estejam no mundo. (WHATSAPP, 2018).

Conforme o WhatsApp, no Brasil, o número de usuários do aplicativo, em maio de 2017, chegou a 120 milhões. Estima-se que estes números em 2018 tenham sido ainda maiores; porém, até o presente momento a empresa não divulgou números mais atualizados.

Diante da tamanha abrangência do WhatsApp e das funcionalidades do mesmo, é possível compreender como os organizadores das paralisações se articularam e disseminavam, rapidamente, os ideais da greve. Como dito anteriormente, toda a troca de informações em tempo real reflete, claramente, aspectos marcantes da Terceira Revolução Industrial, na qual estamos inseridos, dando-nos, assim, expressões concernentes à sua geograficidade.  Reitera-se aqui, nos termos de Milton Santos (2006) a presença de um “Meio Técnico Científico Informacional” e sua capacidade de proporcionar a ampliação e a difusão rápida de bens imateriais, dentre eles informações.

Pode-se dizer que na medida em que o governo demorava a responder aos apelos do movimento, o nível de insatisfação aumentava, potencializando a sua expansão pelo país, que se viu tomado por uma espécie de curto-circuito geográfico de circulação e abastecimento, acarretando dificuldades e perturbações diversas à vida social, pondo em evidência as enormes potencialidades dos caminhoneiros em face de suas demandas, cujas estratégias adotadas praticamente paralisaram o país.

Diferentemente das outras paralisações (2013 e 2015), nas quais ocorreu a interrupção total da circulação nas rodovias, na de 2018 os caminhoneiros deixaram o fluxo livre para os veículos pequenos, ônibus e caminhões de medicamentos e produtos hospitalares. Nos primeiros dias, inclusive, caminhões que transportavam cargas vivas foram liberados. No transcurso do tempo a circulação de produtos foi ficando cada vez mais difícil. Ao mesmo tempo em que a greve se disseminava em uma velocidade recorde, sobretudo quando comparada às anteriores, passando a contar com um apoio parcial da população, o que lhe imprimiu maior força.

Quando a paralisação passou do quinto dia, muitas cidades pequenas já não possuíam mais combustível, e vários mercados começaram a ficar com estoques baixos. Ademais, diversas instituições de ensino no país tiveram que suspender parcialmente suas atividades, acarretando impactos substanciais tanto na economia como em diversas áreas sociais.

Diante da proporção da mobilização, jornais do mundo inteiro começaram a noticiar os movimentos e seus reflexos nos mais variados setores. O jornal britânico The Guardian, em sua página online, trouxe a seguinte chamada: “São Paulo, the biggest city in South America, in state of emergency over fuel shortages while markets run out of food.” [12]

O jornal francês Le Point internacional, também em sua página digital, descreveu a situação do desabastecimento de produtos da seguinte forma:

Situation critique.Vols annulés, stations-service à sec, supermarchés à court de produits frais : la situation était absolument critique au cinquième jour de cette grève pour protester contre la hausse des prix du diesel. « Nous n’allons pas permettre que la population n’ait pas accès à des produits de première nécessité […], que les hôpitaux n’aient pas les médicaments nécessaires pour sauver des vies », a expliqué le président Temer. (LE POINT, 2018)[13].

O jornal argentino La Nacion, em parte de sua reportagem, também comentou sobre as consequências das paralisações nos diversos setores da economia.

Como consecuencia de la falta de aprovisionamiento, en los mercados de abasto centrales de San Pablo y Río de Janeiro hay escasez de frutas y verduras, aumentaron los precios de los alimentos en los supermercados y ya se siente la falta de productos, sobre todo de perecederos como lácteos y carnes. Ha habido alzas en los precios de hasta el 400% y denuncias de precios abusivos. También en las farmacias empezaron a escasear medicamentos. (LA NACION, 2018)[14].

A repercussão desse cenário dada pelos jornais internacionais, expôs um país imerso numa crise de abastecimento de amplas proporções, afetando mais agudamente a vida das pessoas do que se viu nas paralisações dos anos anteriores. Da mesma forma, as indústrias foram diretamente atingidas pela greve e tiveram perdas gigantescas. Alguns setores acumularam prejuízos que ultrapassaram a cifra dos bilhões.

Acerca disso, destacamos abaixo segmentos que foram atingidos pelas paralisações:

4.1 INDÚSTRIA DA CONSTRUÇÃO

Em nota divulgada em seu site no dia 28 de maio, a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) informou que a estimativa de prejuízos do setor já havia chegado a quantia de 2,9 bilhões de reais. Dois dias depois a instituição soltou outra nota com o seguinte título:Indústria da construção está no seu limite”. Segundo a CBIC, os prejuízos já tinham atingido o montante de 5 bilhões de reais.

4.2 TRANSPORTES AÉREOS

A Associação Brasileira das Empresas Aéreas (ABEAR), também se manifestou em relação aos prejuízos ocasionados pelas paralisações dos caminhoneiros;

As companhias AVIANCA, AZUL, GOL e LATAM, por meio da ABEAR (Associação Brasileira das Empresas Aéreas), informam que, passada uma semana da paralisação dos caminhoneiros em todo o Brasil:

1. Mais de 270 voos foram cancelados e outros alterados nos mais diversos aeroportos do país, o que reforça a necessidade de todos os passageiros procurarem se informar sobre sua situação específica antes de iniciar viagem.

2. Apesar de a maior parte da malha aérea permanecer em operação, os cancelamentos e mudanças de horários deverão continuar a acontecer, sem previsão de normalização, por causa da não reposição ou total ausência de combustível em aeroportos menores espalhados pelo país.

3. É estimado um prejuízo diário de mais de R$ 50 milhões, que envolve cancelamentos, pousos técnicos para reabastecimentos e atendimento a passageiros que deixaram de embarcar.

4. Enquanto permanecer esta situação, os passageiros podem alterar seus voos – impactados pelo desabastecimento – para nova data ou horário, sem o pagamento de taxa de remarcação e das eventuais diferenças tarifárias, de acordo com as regras de cada companhia.

A ABEAR reforça que os passageiros que têm viagem programada para os próximos dias, inclusive durante o feriado, devem se informar sobre o status de voo junto às empresas (por meio de sites, SACs ou aplicativos) antes mesmo do deslocamento ao aeroporto. (ABEAR, 2018).

4.3 AGROINDÚSTRIA

Outro setor que sofreou prejuízos nas casas dos bilhões foi o setor produtor e exportador de suínos, aves, ovos e material genético. De acordo com a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), foram paralisadas com a greve dos caminhoneiros 167 unidades frigoríficas, que somadas aos outros segmentos que compõe essa Associação, elevaram os prejuízos à casa dos 3.150 bilhões de reais.

4.4 AGROPECUÁRIA

No caso da agropecuária os prejuízos são mais difíceis de serem contabilizados, por se tratar de um setor amplo, abarcando desde grandes proprietários de terras a pequenos produtores familiares. O que se sabe, é que a contribuição dos pequenos agricultores no fornecimento de alimentos variados para as populações citadinas é enorme, uma vez que, aos grandes produtores cabe, na maior parte das vezes, a produção de commodities. Durante as paralisações, muitos pecuaristas de leite tiveram suas produções perdidas devido a impossibilidade de transportar o produto até as indústrias compradoras. O jornal Gazeta do Povo assim se reportou a essa questão:

Leite jogado fora

Cena comum (e considerada inevitável pelo setor) quando há greves do tipo, imagens de leite sendo jogado fora circularam nas redes sociais nos últimos dias. Extremamente perecível, a bebida pode ser armazenada 24 horas na propriedade rural e mais 24 horas na indústria, explica Frans Borg, presidente da cooperativa Castrolanda, de Carambeí, uma das maiores produtoras do país. Passado esse período, já não é mais adequado para o consumo. “Aí arrebenta a corda, com certeza vai se perder”, salienta. Enquanto isso, as vacas não param de produzir mais leite. “É a natureza, se não tirar esse leite, ela fica doente.”

O produtor Mayke Boldt, da colônia Witmarsum, em Palmeira, tem um plantel de 80 vacas. Nesta terça, ele tinha sido obrigado a jogar fora 2 mil litros de leite, o que corresponde a toda a produção diária da fazenda e um prejuízo de R$ 2.700,00. Um dia depois, a mesma quantidade foi pelo ralo. “Nós não temos mais lugar para armazenar. A nossa perda é grande, mas teve produtor que teve que jogar 75 mil litros de leite fora”, lamenta. (GAZETA DO POVO, 2018).

4.5 PRODUÇÃO

A indústria automotiva, um dos símbolos da industrialização brasileira, e protagonista da modernização do país, principalmente a partir do “Plano de Metas” (1956-60), também não escapou dos impactos da greve. De acordo com a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA), os prejuízos não ficaram restritos apenas às produções, propriamente ditas, mas foram muito além disso, impactando também o setor de vendas. Em sua página destinada à imprensa no dia 6 de junho, a ANFAVEA divulgou comparativos tanto das produções do mesmo período de 2017, quanto os impactos ocasionados pela greve dos caminhoneiros.

São Paulo, 6 de junho de 2018 – A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, Anfavea, divulgou na quarta-feira, 6, em São Paulo, os resultados da indústria automobilística em maio e no acumulado do ano: o licenciamento até o quinto mês do ano registrou 964,8 mil unidades, elevação de 17% sobre as 824,5 mil de 2017. Apenas em maio foram comercializadas 201,9 mil unidades, resultado 3,2% superior no comparativo com o mesmo período do ano passado, quando 195,6 mil unidades foram negociadas. Contra abril deste ano a queda foi de 7,1% em relação as 217,3 mil unidades vendidas em abril. Para Antonio Megale, presidente da Anfavea, as paralisações do fim do mês impactaram o resultado de maio:

“A greve dos caminhoneiros dificultou o abastecimento de peças para a produção e de transporte de veículos para as concessionárias. Além disso, trabalhadores e consumidores tiveram dificuldade com abastecimento de combustível, interferindo nos deslocamentos até a rede. Não fosse este cenário, certamente teríamos registrado maior crescimento em maio”.

As exportações no quinto mês de 2018 também foram menores: 60,7 mil unidades deixaram as fronteiras brasileiras, baixa de 17% ante as 73,2 mil de abril e de 17,3% sobre as 73,4 mil de maio do ano passado. Nos cinco meses já transcorridos do ano, 314,1 mil unidades foram exportadas, crescimento de 1,6%, quando analisado com as 309,1 mil de 2017.

A produção de autoveículos em maio foi afetada mais intensamente. As 212,3 mil unidades representam decréscimo de 20,2% quando comparado com as 266,1 mil de abril e recuo de 15,3%, se defrontado com as 250,7 mil unidades de maio do ano passado. No acumulado, contudo, o registro é de alta de 12,1%: 1,17 milhão de unidades este ano e 1,05 milhão em 2017. Megale reiterou, em números, o impacto das manifestações no desempenho mensal: “A indústria automobilística deixou de produzir entre 70 e 80 mil veículos, vender cerca de 25 mil e exportar algo próximo a 15 mil unidades”. (ANFAVEA, 2018).

Em face das perdas nos mais variados setores e a insatisfação popular ao então presidente Michel Temer, as ações do mercado brasileiro tiveram quedas significativas. De acordo com os veículos de imprensa nacionais, no dia 28 de maio a Bolsa de Valores apresentou queda de quase 5%, com destaque para as ações da Petrobras, que tiveram redução na ordem dos 20%.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foram poucos dias de paralisações, os quais, no entanto, se mostraram suficientes para suscitar na sociedade a clara percepção das consequências quanto a uma certa dependência que o país possui em relação ao transporte rodoviário, que se apresenta, reitera-se, como o principal meio de circulação de mercadorias e pessoas no território.

Tal dependência, ao priorizar quase que exclusivamente o uso de caminhões ao transporte de mercadorias, num território de amplas proporções, está longe de constituir a melhor das opções. Vale registrar que através da malha rodoviária escoa-se 75% da produção no país, seguida da marítima (9,2%), da aérea (5,8%), da ferroviária (5,4%), da cabotagem (3%) e da hidroviária (0,7%), conforme a pesquisa “Custos Logísticos no Brasil”, da Fundação Dom Cabral (2017). Destaque-se, ainda, nesse estudo, que os custos logísticos dos deslocamentos de longa distância compreendem aproximadamente 40% do total. Acresce que o modal rodoviário se revela, ao menos em boa parte dos países mais avançados, sobretudo os de maior extensão espacial, mais adequada a deslocamentos de curtas e, no máximo, médias distâncias, mas não para longas extensões, como ocorre no Brasil. Para estas, o transporte ferroviário — e mesmo o hidroviário — se apresenta como a melhor alternativa, a exemplo do que se verifica em parte expressiva daqueles países.

Assim, pode-se questionar essa grande dependência que o país revela em relação ao modal rodoviário, fruto, como se viu, de uma decisão política tomada em décadas passadas, acarretando, ao longo dos tempos, implicações indesejáveis tanto ao funcionamento da circulação, como, de modo relacionado à própria economia do país. A esse respeito temos encarecimentos nos custos de fretes, bem como certa morosidade na alocação de mercadorias, em função de problemas de conservação de boa parte das rodovias do Brasil, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, respondendo por expressivas perdas econômicas (deseconomias). Ao par disso, também tem exercido interferências problemáticas na produção e organização de seu espaço, sobretudo no que concerne aos ambientes urbanos, sobretudo os de maior proporção. Destaque-se aqui grandes e constantes congestionamentos, elevados índices de acidentes, poluição atmosférica, sonora, visual, maior vulnerabilidade a roubos de cargas, redefinições de espaços construídos, que priorizam, por sua vez, demandas da própria circulação, do que as da sociedade.

Quanto às paralisações, pode-se argumentar que elas se mostram como respostas possíveis da classe caminhoneira em relação à atual precarização das condições de trabalho enfrentada pela categoria, que, de modo geral, assumem o sentido político de greve. Um dos aspectos de maior destaque no movimento, e que opera como um grande componente motivador do mesmo, está em torno do preço do combustível, dado que este constitui um fator regulador fundamental do ganho do motorista, haja vista que os fretes são calculados por quilômetros rodados. Diante disso, o fechamento de contratos de longo prazo acaba por representar um risco aos embolsos e ao próprio sustento do motorista e, não raro, também de suas famílias.

Por contraste, pode-se pensar também que as paralisações dos caminhoneiros tenham se tratado de locaute, uma vez que as pautas defendidas apresentavam um direcionamento mais inclinado aos interesses dos empresários do setor de transporte, como, por exemplo, as questões de impostos, a exemplo do PIS/PASEP e COFINS, que incidem sobre o preço do diesel.

Diante disso, entendemos que seja recomendável certa cautela analítica quanto às afirmações apressadas em relação à natureza política desse movimento, em que pese a diversidade de atores envolvidos nesse processo. Dentre eles grandes transportadoras, empresários de menor frota, caminhoneiros autônomos, contratados, bem como diferentes sindicatos – que não conseguem representar toda a categoria, a exemplo dos sindicatos patronal, dos caminhoneiros autônomos e dos caminhoneiros contratados. Nesse universo evidenciam-se formas distintas de defesa de seus interesses, bem como expressões desiguais de mobilização em diferentes partes do país, concentrando-se mais em determinados lugares do que em outros. Junte-se a isso pautas diferentes entre os diversos grupos, daquelas apresentadas na fase inicial das paralisações, como, por exemplo, a defesa de posturas políticas mais autoritárias, remetendo à ditadura militar.

Consideramos que as paralisações podem até ter sido deflagradas pela categoria patronal. Porém, não se pode descartar a possibilidade de que elas tenham partido da mobilização dos próprios caminhoneiros autônomos. O que se reafirma aqui é que o aplicativo WhatsApp foi um instrumento fundamental nesse processo, no âmbito do território nacional. É emblemático, acerca disso, o evento do dia 21 de maio de 2018, quando os caminhoneiros fecharam todas as principais rodovias do país. E, o que se viu foi algo inédito no Brasil, com um segmento específico de trabalhadores paralisando praticamente o país inteiro, levando o governo federal a recuar em suas decisões.

Vale destacar, em termos do poderio alcançado pelo movimento, a quebra de umas das sequencias fundamentais da estrutura produtiva da economia, qual seja, a circulação. Tal colapso, acarretou grandes impactos na produção, no consumo e na distribuição do capital, interna e externamente ao país.

No contexto atual, o que se tem são incertezas e suposições, num período de transição e crise. Esse cenário de instabilidade nos leva a considerar que, se nossos governantes não se mostrarem capazes de conduzir o conjunto de reformas político-administrativas e econômicas de que a sociedade brasileira necessita – e que reverberam nas próprias pautas dos caminhoneiros -, as paralisações se tornarão cada vez mais constantes. Daí a necessidade premente quanto ao incremento de inversões em infraestruturas, inclusive de circulação, proporcionando tanto uma maior alavancagem da economia, como uma maior diversidade na circulação de mercadorias no território, reduzindo-se, assim, essa grande dependência que o Brasil apresenta em relação ao transporte rodoviário.

Acrescentaríamos, ainda, que esse movimento não se apresenta como uma expressão política isolada, mas integrando um cenário de mobilizações diversas que têm ocorrido no Brasil, mais recentemente. Pode-se postular que elas, de modo geral, demonstram uma nova fase de organização política da sociedade, resguardando-se de interferências político-partidárias. O que nos sugere o desenvolvimento de uma percepção social de que a política deva girar mais em torno dos próprios interessados do que do Estado – e isso pra além do que vem ocorrendo no Brasil -, o que não significa qualquer forma de deslegitimação em relação a essa instituição ou a qualquer outra dotada de legitimidade.

Diante desse cenário, a classe caminhoneira, motivada ou não por locaute, parece ter descoberto o “calcanhar de Aquiles” de um território de proporções continentais.

REFERÊNCIAS

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SANTOS, Milton; SILVEIRA,MariaL. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. São Paulo: Record, 2001.

APÊNDICE – REFERÊNCIAS DE NOTA DE RODAPÉ

3. Termo utilizado pelo Geógrafo Milton Santos para se referir às transformações da sociedade moderna no que diz respeito aos meios de produção do espaço geográfico. Estas transformações são em grande medida envolvidas pela “malha” da globalização, se materializando nos objetos, que além de serem técnicos e envolverem um emprego cada vez maior de ciência, adquirindo certo destaque aquelas relacionadas as tecnologias de informação, daí o termo “informacional”.  Para o autor, tal meio seria a “expressão geográfica da globalização” contemporânea no território, sendo utilizado não apenas no sentido de âmbito espacial, como também de operar como um recurso às próprias relações sociais, influenciando-as substancialmente.

4. Cujos empreendimentos contaram com o suporte da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia-SUDAM.

5. Com ações conduzidas pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste- SUDENE.

6. Modelo econômico preconizado pela união entre o capital estatal, capital privado nacional e capital privado estrangeiro.

7. Projeto de crescimento acelerado implementado pelo presidente JK a fim de promover o fortalecimento da economia brasileira assim como o desenvolvimento da industrialização.

8. Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) até 20/03/2018 (data da publicação do dado) Existia no Brasil 65,8 milhões de veículos. “Desse total, 41,2 milhões são automóveis (62,65%), 7,0 milhões são comerciais leves (10,67%), 2 milhões são caminhões (3,09%), 376,5 mil são ônibus (0,57%) e 15,1 milhões são motocicletas (23,01%)”. (www.ibpt.com.br).

9. Cooperativa de sindicatos de trabalho em prol da classe caminhoneira.

10. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12619.htm.

11. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13103.htm.

12. São Paulo, a maior cidade da América do Sul, em estado de emergência devido à escassez de combustível, enquanto os mercados ficam sem comida (tradução livre).

13. Situação crítica. Voos cancelados, postos de gasolina secos, supermercados ficaram sem produtos frescos: a situação era absolutamente crítica no quinto dia desta greve para protestar contra o aumento dos preços do diesel. “Não permitiremos que as pessoas tenham acesso às necessidades básicas… que os hospitais não tenham remédios para salvar vidas”, disse o presidente Temer. (tradução livre).

14. Como consequência da falta de oferta, nos mercados centrais de abastecimento de São Paulo e do Rio de Janeiro há escassez de frutas e hortaliças, os preços dos supermercados aumentaram e já há falta de produtos, especialmente perecíveis como laticínios e carne. Houve aumentos de preços de até 400% e alegações de preços abusivos. Também nas farmácias começaram a escassear medicamentos. (tradução livre).

[1] Pós-Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana, da Universidade de São Paulo (2012-2013), Doutorado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (2005), Mestrado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (1995) e Graduação (Bacharelado e Licenciatura Plena) em Geografia pela Universidade de São Paulo (1991).

[2] Graduação em Geografia pela Universidade Federal de Viçosa (2020).

Enviado: Dezembro, 2019.

Aprovado: Junho, 2020.

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Ulysses da Cunha Baggio

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