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A ilusão como processo de formação do conhecimento e meio para a escolha das verdades na visão do jovem Nietzsche

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

MEDEIROS, Francisco Francimar da Silva [1]

MEDEIROS, Francisco Francimar da Silva. A ilusão como processo de formação do conhecimento e meio para a escolha das verdades na visão do jovem Nietzsche. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 06, Ed. 12, Vol. 03, pp. 22-40. Dezembro de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/formacao-do-conhecimento

RESUMO

O presente trabalho tem o propósito de apresentar o processo de ilusão, tecido pelo intelecto, formando, assim, o conhecimento e o processo de escolha das verdades estabelecidas, tendo por matéria-prima o conhecimento adquirido na tecelagem ilusória do intelecto, discussão esta, levantada nos primeiros escritos do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, sendo um conceito retomado por ele para explicar a manifestação da realidade cognitiva, intelectiva e as verdades construídas. A problemática deste artigo retrata a importância da ilusão na construção e estabelecimento dos processos cognitivos, visando responder: Como a ilusão está presente no percurso de formação do conhecimento e da verdade? O objetivo deste trabalho é analisar esse processo de construção ilusória e como ele produz conhecimento e verdade. A metodologia aplica deste trabalho, foi a análise bibliográfica dos primeiros escritos do filosofo Nietzsche e trabalhos publicados na atualidade que remetem ao tema. Chegamos a alguns resultados: o primeiro: é a constatação de que não existe nada que não seja aparência e ilusão, agimos, pesamos e abstraímos aparências. O segundo resultado, é que o ser humano não é um ser especial, separado e diferenciado dos outros seres, ele é produto da natureza, objeto pelo qual ela utiliza em seu processo de redenção. Visamos, com este trabalho, contribuir para uma visão do homem menos separado dos impulsos e da influência da natureza, no intuito de criar uma visão mais integrada, entre homem, natureza e sociedade.

Palavras-chaves: Aparência, Intelecto, Verdade.

1. INTRODUÇÃO

O filosofo alemão Friedrich Nietzsche, por meio de sua análise crítica ao pensamento filosófico, religioso, valorativo e cultural de sua época, tenta fazer uma análise genealógica das bases constituintes da sociedade ocidental. Essa análise é feita em sua primeira fase de pensamento, no qual debruçaremos em nossa pesquisa. E é nessa fase que ele passa a estudar com profundidade sobre o pensamento dos filósofos pré-socráticos, ou filósofos naturais. Foi muito influenciado pelo filosofo Arthur Schopenhauer, o filosofo da vontade e dos impulsos, seu mestre nessa primeira fase. Também foi muito influenciado pela arte, poesia, música e o pensamento trágico, que circulava em sua época; e pelas descobertas na biologia, antropologia e ciência.

O pensamento estético presente na primeira fazer da filosofia de Nietzsche, tem como influência o contexto cultural e filosófico da Alemanha do século XIX, o pensamento trágico grego e   uma necessidade de afirmação da vida. A Alemanha dos séculos XVIII e XIX estar imbuídos nos estudos da arte, do teatro e da literatura trágica, renascendo assim o interesse por entender a natureza da arte trágica, interpretada e refletida dentro da cultura alemão. No primeiro momento deste período temos o surgimento da arte, poesia e teatro trágico, criando assim um terreno onde iram florescer um pensamento sobre o trágico dentro da filosofia. Pensadores como: Shelling, Hegel, Hölderlin, Schopenhauer começam a desenvolver um pensamento sobre esta dimensão, presente tanto na arte quanto na vida. É exatamente esta tradição que o jovem Nietzsche herda de seu tempo, construindo assim sua primeira fase de pensamento.

O pensamento trágico é apresentado a Nietzsche por meio da interpretação filosófica de Schopenhauer, que constrói toda uma visão trágica para sua filosofia. Com sua teoria sobre o trágico tenta explicar a realidade, o mundo e a construção cognitiva. Como origem e protagonista central de sua obra e de sua filosofia, ele elege “a vontade cega, perturbadora, medonha e caótica” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 11), que gera e governa a vida e o mundo. Com ele o caos e não ordem, como era para filosofia clássica e moderna, é colocada como centro e produtora da existência. A vida e o mundo como manifestações de algo animado e inanimado são as duas faces dessa vontade. Elas se manifestam de forma fenomênicas, mas em si há um desejo de afirma-se.

A manifestação desta vida que deseja afirma-se, ser e ganhar forma, ou seja, aparecer, é analisado e trabalhado por Nietzsche, no conceito de aparência. Por isso “[…]a vida não possui qualquer existência a não ser nos indivíduos, necessitando para manifestar-se[…]” (BENCHIMOL, 2002, p. 43). Para expressar a ideia aparente e ilusória da realidade, ele recorre ao arcabouço teórico e linguístico do filosofo Emmanuel Kant. E ara manifestar a ideia do mundo como Vontade e pulsão, ele recorre as ideias de seu mestre Arthur Schopenhauer. Considerando “[…] Nietzsche ‘na esteira de Schopenhauer—, cativa da aparência, e iludida pelo véu de Maia.” (FINK, 1983, p. 24). Os dois teóricos ajudam Nietzsche a construir e manifestar seu pensamento estético nessa.

Falaremos sobre o conceito de aparência apresentado por Nietzsche, dentro de uma perspectiva artesanal do intelecto, que é o responsável por criar formas que represente as sensações que chega a uma percepção do corpo. Essas sensações também são formas imagéticas criada pelos sentidos, para materializar aquilo que tocou no corpo. No segundo momento do trabalho falaremos sobre produto do intelecto, que é a produção de conhecimento, que será classificado como verdade ou falsidade dentro do convívio social. Se por um lado a verdade é uma ilusão criada pelo intelecto, por outro lado ela é manipulada no meio social, tendo como função preservar da extinção o grupo mais fraco. Com isso podemos entender que a verdade é produto, ilusão, representação do intelecto, dando a entender que ele é a única coisa real em si.

A verdade torna-se o ponto de início e de chegada dessa concepção de ilusão onde estamos imersos, seja na nossa constituição cognitiva ou no nosso meio de se relacionar com o outro. A problemática deste artigo retrata a importância da ilusão na construção e estabelecimento dos processos cognitivos, visando responder: Como a ilusão está presente no percurso de formação do conhecimento e da verdade? O objetivo deste trabalho é analisar esse processo de construção ilusória e como ele produz conhecimento e verdade. A metodologia aplica deste trabalho, foi a análise bibliográfica dos primeiros escritos do filosofo, comentadores e dos respectivos trabalhos na atualidade, que remetem ao tema.

2. A  APARÊNCIA PARA NIETZSCHE

O conceito de aparência nesta primeira fase de Nietzsche, que aparecera em diversos texto desta fase, ganha maior destaque em sua obra: “O Nascimento da Tragédia” (1992). Nela ele tenta mostrar como a vida e suas pulsões se manifesta por meio das formas; como ela é morta por meio das formas racionais, e como ela renasce no espírito da música de Wagner. Nele há uma “[…] oposição estabelecida entre aquilo que Nietzsche denominou uma consideração trágica do mundo e uma consideração teórica do mundo.” (MENDONÇA, 2020, p. 30). Essas considerações tanto são opostas quando oscilou nos períodos históricos do ocidente. Uma se manifesta por meio das formas racionais e a outra por meio das formas artísticas.

Esta aparência e o mundo que aparece, que vem ao nosso encontro nas formas subjetivas do espaço e do tempo. O mundo, na medida em que realmente e, na medida em que e a ≪coisa em si≫, não se encontra fragmentado ‘na multiplicidade, é vida não diferenciada, mare única. A multiplicidade de tudo quanto existe e aparência, e mera aparição, na verdade tudo e uno. (FINK, 1983, p. 24)

A consideração trágica tem sua atuação entre o período mitológico e o surgimento da arte trágica, como manifestação da vida e seus impulsos. A consideração teórica do mundo tem início com a parceria de Eurípides e Sócrates. Entretanto é Sócrates que vai inaugurar esta consideração. “A ligação entre Sócrates e Eurípides é apresentada por Nietzsche como a ponte que teria levado a razão ao seu trinfo […]” (MENDONÇA, 2020, p. 73). A concepção teórica do mundo inaugurada por Sócrates cria a filosofia como sua principal defensora e propagadora das ideias e do método racional. Com ela surge a corrente e a tendência racionalista que desenvolverá toda a tradição filosófica do pensamento ocidental.

Esta consideração de mundo só começa a ruir, quando houver o processo de aniquilamento da “[…] pretensão socrático-racional quanto à validade universal de seus princípios e depois de comprovados os limites da razão é que se poderia nutrir a esperança de um redespertar da consideração trágica do mundo.” (MENDONÇA, 2020, p. 33). Aqui Nietzsche apresenta que o a aniquilação que destruiu a arte trágica, como manifestação da consideração trágica do mundo, é o mesmo que destrói os princípios racionais, manifestação da consideração teórica do mundo. O homem teórico começa a ruir, dando início ao homem trágico.

Nietzsche identifica que tanto nos processos de construção e atuação física e psíquica do ser humano e nos processos de construção e atuação do mundo, tudo se daria dentro desse processo de criação e destruição, resultado da manifestação e aniquilamento das considerações que opõe entre si. Para expressar essa nova concepção ontológica da realidade ele remete “[…]às filosofias de Kant e Schopenhauer […] (MENDONÇA, 2020, p. 22), que constituía a “[…] atmosfera conceitual que circundava a redação do livro, ao fato de Nietzsche ter encontrado expressão formal para seu pensamento[…] (MENDONÇA, 2020, p. 22). Utiliza o aparato linguístico de Kant e Schopenhauer para assim expressar seu pensamento.   Eles são utilizados por Nietzsche, porque naquele momento consegue expressar bem o seu pensamento, coisa que ele vai discordar tempos depois.

A filosofia dos dois tanto coloca em questão da limitação dos princípios racionais, ruindo assim com a herança socrático-platônico do pensamento filosófico, quanto aponta para a existência de uma realidade que é mais fundamental que a razão, do que ela não é capaz de expressar; já que sua estrutura só consegue captar e perceber formas e aparências, mas nunca a coisa em si. Kant identifica essa limitação da razão, que não consegue captar, perceber e apreender a coisa em si, coisa esta que se encontra totalmente desprovido de formas. Entretanto ele não conseguiu dizer o que seria essa coisa em si, e nem muito menos como expressá-la. É aí onde entra o pensamento pessimista de Schopenhauer, do qual Nietzsche utiliza, no intuito de formular sua teoria trágica do mundo. Vemos isso na afirmação de (MENDONÇA, 2020, p. 33,34) “Kant e Schopenhauer teriam sido responsáveis pelo surgimento de condições críticas no campo filosófico a partir das quais Nietzsche identifica a possibilidade de retorno ao modo trágico de lidar com o mundo, que teria sido recalcado a partir de Sócrates”. Os dois abra toda uma dimensão de discussão filosófica, possibilitando refletir sobre a fragilidade da razão, os impulsos caóticos da existência e a transposição do princípio da coisa em si, para a natureza.

Nietzsche usa os conceitos de aparência e coisa em si, de Kant; e o conceitos de vontade e representação de Schopenhauer, para assim cunhar seus conceitos de Uno-primordial e aparência, que se desenvolvem e expandem, nos princípios estéticos da natureza (polínio e dionisíaco) e nos princípios estético-psíquicos (sonho e embriaguez).  Ele retoma a linguagem filosófica dos dois, para expressar seu pensamento filosófico, ideias que já circulavam na atmosfera intelectual de sua época, e que agora se manifesta de uma outra perspectiva. Então as ideias trágicas e a linguagem, para manifestá-la, já circulavam em torno dele, determinando assim o seu uso.  Por isso que o conceito de aparência era tão caro para o jovem Nietzsche, a ponto de retomá-lo como linguagem de expressão de sua teoria trágica. Podemos perceber isso na citação abaixo:

Não há interior e exterior no mundo. — Assim como Demócrito transferiu os conceitos de “em cima” e “embaixo” para o espaço infinito, onde não têm sentido algum, os filósofos transportam o conceito de “interior e exterior” para a essência e a aparência do mundo; acham que com sentimentos profundos chegamos ao profundo interior, aproximamo-nos do coração da natureza. Natureza. Mas esses sentimentos são profundos apenas na medida em que com eles, de modo quase imperceptível, se excitam regularmente determinados grupos complexos de pensamentos, que chamamos de profundos; um sentimento é profundo porque consideramos profundo o pensamento que o acompanha. Mas o pensamento profundo pode estar muito longe da verdade, como, por exemplo, todo pensamento metafísico; se retiramos do sentimento profundo os elementos intelectuais a ele misturados, resta o sentimento forte, e este não é capaz de garantir, para o conhecimento, nada além de si mesmo, tal como a crença forte prova apenas a sua força, não a verdade daquilo em que se crê. (NIETZSCHE, 2000, p. 16)

Podemos ver na citação acima, como Nietzsche começa sua discussão sobre o conceito de aparência e como estamos tão imersos em sua ilusão, aponto de ser enganado com a sedução das formas e do prazer que elas nos causam. Tais experiências são provindas de seu cotidiano. É nesse cotidiano que o homem se depara com um mundo repleto de imagens, formas, sabores, sons, espessuras e cheiros. Isso provoca nele uma tempestade de sensações, do qual não se compreende. Entretanto isso leva-o a ter a experiência com um mundo que não está fora, mas dentro dele; já que ele só tem experiência com aquilo que seus sentidos têm contato. Ter a experiência com as sensações e com as imagens produzidas pelo contato com o mundo externo, faz ele perceber e construir a imagem e o conceito de mundo interno.  O que ele ver e o que ele sente construirá as imagens espaciais de dentro e fora, de interior e exterior. Essas imagens mentais transportariam para os conceitos de aparência e essência. Assim fala Nietzsche em sua obra: “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra Moral’: “[…] uma excitação nervosa convertida numa imagem mental e, em seguida, a transposição de tal imagem […]” (NIETZSCHE., 2012, p. 14). É exatamente essaexcitação nervosa” que provoca uma representação dela na mente.   

Então podemos perceber que a imagem que foi criada para interpretar a sensação que chegou aos sentidos, não passa de uma aparência carregada de sensação, afetos, impulsos. O contato com as coisas do mundo externo produz algo interno, algo completamente novo, a única coisa existente para o homem; já que o mundo em si ele não sente, o que sente é a imagem que seu mecanismo sensitivo e cognitivo produziu para formular uma compreensão para ele. Também não sente as estruturas que produz tais imagens, já que elas não expandem produzindo impulsos de si mesmo, por isso o homem não teria contato com as estruturas de si mesmo e nem do mundo. A única coisa que ele tem acesso são aos seus impulsos, afetos, aquilo que vibra no homem. As estruturas não vibram, não pulsionam, elas são estáticas, elas são em si.

La sensación no es un resultado de la célula, sino la célula es un resultado de la sensación, es decir, una proyección artística, una imagen. Lo sustancial es la sem sación, lo aparente es el cuerpo, la materia. La intuición tiene sus raíces en la sensación. Relación necesaria entre dolor e intuición: el sentimiento no es posible sin un objeto, el ser-objeto es ser-intuición. El proceso primordial es éste: la voluntad única del mundo es al mismo tiempo autointuición (NF/FP 1869 – 1874, 7 [168])

Esses afetos, sentimentos, essa força, essa vontade de torna-se, quando chega nos sentidos humanos, deseja expandir, sobreviver. Entretanto eles não têm como transportar dos sentidos. Esta força que tenciona para a vida, aciona o intelecto e sua capacidade de ilusão. Os sistemas que compõe o ser humano precisam dar uma resposta ao que está sendo sentido nas esferas inferiores. Algo pulsa no corpo e é necessário identificar o que é. Entretanto não é possível o intelecto fazer tal identificação, pois sua função não é essa, seu objetivo é manipular aquela sensação para poder criar outra de acordo com os seus propósitos. Somente “com o mundo orgânico começaria a “aparência” (Schein)” (MÜLLER-LAUTER, 1997 p. 118), pois ela é o resultado da necessidade se manifestar e o meio possível de expressão.

É a partir disso que há a captura das impressões, para só assim poder matar, petrifica, mumifica e conserva na forma de conceito. Podemos ver isso no seguinte fragmento: “portanto ela [a impressão] é petrificada: por meio de conceito, a impressão é capturada e isolada, e, depois de morta e esfolada, é mumificada e conservada enquanto conceito” (NF/FP, 1869-1874, 19 [228]). As impressões tornam a base, a matéria prima dos conceitos, é por meio delas que os conceitos passam a existir, ganhando assim sua forma, pois toda forma só é possível se tiver uma energia pulsional para reter. “Não há, porém, quaisquer expressões ‘próprias’, assim como, sem metáfora, não há nenhum conhecer propriamente dito” (NF/FP, 1869-1874, 19 [228]). O conhecimento depende exclusivamente de pulsões que são convertidos em ideias e conceitos.

Em sua obra “Verdade e Mentira no Sentido extra Moral”, Nietzsche faz uma relação bem interessante em associar o conceito a um cemitério intuições, afirma ele: “[…] sobre aquele enorme columbário de conceitos, cemitério das intuições, sempre construído novos e mais elevados pavimentos[…]” (NIETZSCHE., 2012, p. 45). É interessante o fato de Nietzsche definir os conceitos como sepulturas onde guarda as cinzas das impressões, dos afetos, dos sentimentos. E ele não retém para poder transportar todo o impulso vivo, mas para matá-lo, pois só assim o intelecto poder criar suas formas sobre a base dos restos mortais dos impulsos. Os conceitos por si mesmo não teriam essência e nem base, seriam apenas formas vazias, se houvesse a possibilidade de surgirem sem os impulsos. É o que Nietzsche fala em um fragmento póstumo de 1870: “O conceito no primeiro momento de sua formação é um fenômeno artístico a simbolização de uma completa profusão de aparências, originalmente uma imagem, um hieróglifo” (NF/FP, 1869-1874, 8 [41])[2]. Eles necessitam dos impulsos para que possam ser o conteúdo pelo qual os conceitos se fixam. Cada conceito é um impulso morto sob suas paredes, que nunca teremos acesso, pois além de estar morto, e não ter mais nenhuma atividade ou ação, só é possível ter acesso as formas produzidas pelo intelecto. Quando operamos e articulamos conceitos estamos combinando sepulturas cheia de impulsos, fria e vazias.

Além do intelecto produzir dissimulações para o indivíduo, no intuito de construir um mundo fictício, ordenado, controlado e sem desmedida, ele também utiliza das ilusões já criada e produz grandes estruturas e edifícios com essas pequenas ilusões.  Por muito tempo se “[…] acreditou nos conceitos e nomes de coisas como em aeternae veritates [verdades eternas], o homem adquiriu esse orgulho com que se ergueu acima do animal: pensou ter realmente na linguagem o conhecimento do mundo.” (NIETZSCHE, 2000, p. 13). Falsa ilusão que os conceitos, as verdades e a linguagem produzem, parece nos dar a falsa impressão de desvendar as estruturas do mundo, mas o que temos, segundo Nietzsche, é apenas uma interpretação segundo o intelecto.

Os conceitos são pequenas partículas de sentidos, ou seja, “[…] é uma metonímia […] que o conhecer termina por se antecipar.” (NF/FP, 1869-1874, 19[204]). Além de já trazer em sua estrutura elementos cognoscíveis, ao se relacionarem com outros conceitos, passam a produzir consequências, essas por sua vez criam conhecimento, que é desenvolvido pela estrutura do intelecto auxiliado pelo ato de pensar, refletir sobre as relações de conceitos. Quando o conhecimento é formulado, logo em seguida tomamos conhecimento e com isso nos apropriamos, ou seja, conhecemos o fato. Isso tudo geram uma cadeia de pensamentos, um conjunto de conhecimento formulado e ciente de si mesmo. “[…]o pensamento que se torna consciente representa apenas a parte mais ínfima, digamos a mais medíocre e a mais superficial – pois, é somente esse pensamento consciente que se realiza em palavras, isto é, em sinais de comunicação, pelo qual a própria origem da consciência se revela.” (NIETZSCHE, 2016, p. 365). Isso nos mostra que aquilo que temos acesso por meio da percepção dos conceitos e ideias constituem uma pequena parte que foi possível ser manifestada. A linguagem “[..]é um incalculável tesouro de conceitos já prontos de objetos e relações [..]” (CAVALCANT, 2003, p. 34), possibilitando a expressão do pensamento, que se dar no conflito entre impulsos e conceitos. Expressando esse conflito na linguagem e nas formas artísticas

Em quase todos os pontos, os problemas filosóficos são novamente formulados tal como dois mil anos atrás: como pode algo se originar do seu oposto, por exemplo, o racional do irracional, a sensível do morto, o lógico do ilógico, a contemplação desinteressada do desejo cobiçoso, a vida para o próximo do egoísmo, a verdade dos erros? Até o momento, a filosofia metafísica superou essa dificuldade negando a gênese de um a partir do outro, e supondo para as coisas de mais alto valor uma origem miraculosa, diretamente do âmago e da essência da “coisa em si”. (NIETZSCHE, 2000, p. 10)

A ideia de que as coisas se originaram de seus opostos e essas origens se davam de forma “miraculosa” e se encontrava no “âmago” das coisas, constituem a característica do pensamento metafisico. Vejamos que com a produção de conceitos, belas e perfeitas ilusões, criada sobre as bases pulsionais, desenvolverá toda uma estrutura composta de sistemas, princípios, leis, e verdades, do qual desemborcará na produção de conhecimento para mundo do homem. Para dar sentido e justificar o que estava sendo construído e produzido, surge da necessidade os conectivos lógicos. Tudo isso chaga a uma consciência de realidade existencial, palpável, de que nada mais existe além dessa concepção, que só isso é possível de ser, e de fundamentar tudo aquilo que não é. Entretanto “Vivemos, com efeito, numa ilusão contínua através da superficialidade de nosso intelecto […]” ( NF/FP, 1869-1874, 19[49]). Intelecto ao mesmo tempo que é o grande artesão de nosso ser, é também o grande ilusionista, que tece incessantemente um veio, no intuito de impedir o caos externo a nós, passando a ver e sentir por meio de formas artísticas.

Essa concepção constrói toda uma realidade mental, que não há sentido e nem verdade fora desses padrões. Tudo aquilo que estiver fora dessas estruturas são meras ilusões, aparências, que não tem fundamentos ou sentidos, são apenas impulsos. Aí temos as ilusões, que se considera fundamentos, e se esqueceu de seu processo e sua origem, taxando os impulsos de ilusão, o verdadeiro criador do mundo dos conceitos. Os impulsos são as únicas realidades que de fato existem, pois é a única que temos acesso, a única que nos toca, que experimentamos de fato.

Se fechamos os olhos, o cérebro produz uma quantidade de impressões luminosas e de cores, provavelmente como uma espécie de poslúdio e eco de todos os efeitos luminosos que o penetram durante o dia. Mas a razão (juntamente com a imaginação) transforma de imediato esses jogos de cores, em si amorfos, em determinadas figuras, formas, paisagens, grupos animados. (NIETZSCHE, 2000, p. 15)

Essência e aparência são meros conceitos criados sobre a morte e o esfolamento de nossos mais puros e profundos impulsos. Destruímos nossos sentimentos e sensações para poder construir um mundo que possamos controlar, ser previsível, ter sentido, para que possamos estar confortáveis.  É também um mundo frio, enquadrado, sem vida e sem impulsos. Com suas formas cada vez mais abstratas tenta definir o mundo e suas pulsões com seus meios dissimuladores. Fala o que se deduz sobre o mundo, mas nunca teremos acesso ao que de fato o mundo é. Não conhecemos outro meio de acesso a nós e ao mundo se não pelas imagens e aparências, até mesmo as formas sensitivas. O mundo que conhecemos e sentimos é o mundo das aparências, seja ela sensitiva ou conceitual, isso é um verdadeiro despertar “[…]súbito no meio desse sonho, mas somente para ter consciência que estava sonhando e que devo continuar sonhando para não perece[…]” (NIETZSCHE, 2016, p. 76). Esse mecanismo ilusório criado por nosso intelecto e ressaltado por nossa consciência, possibilita pensar o caos por meio das formas sensitiva e abstratas. Precisamos sonhar, para a realidade como ele é, não nos destrua.

Que lugar admirável ocupo diante da existência inteira com meu conhecimento, como isso me parece novo e ao mesmo tempo espantoso e irônico! Descobri por mim que a velha humanidade, a velha animalidade, sim, mesmo todos os tempos primitivos e o passado de toda existência sensível, continuam a viver em mim, a escrever, a amar, a odiar, a concluir […] (NIETZSCHE., 2016, p. 76)

Na perspectiva de Nietzsche não há princípios, fundamentos, essências ou nem um meio que garanta o acesso e o conhecimento de algo verdadeiramente em si, sem nenhuma influência com as imagens dos sentidos e do intelecto. Então Nietzsche se pergunta: “O que é agora para mim a “aparência'”? A aparência é para mim a própria vida e a própria ação que, em sua ironia de si mesma, chegará até a me fazer sentir que há nela aparência[…]” (NIETZSCHE., 2016, p. 76). Somos seres de imagens e para as imagens, tomar consciência disso não para romper com esse processo, mas para estar ciente daquilo que verdadeiramente somos e de todos os processos ocultos, esquecidos e necessário na construção de nós mesmo como seres sensitivos e conceituais. Possibilitando assim um melhor convício com nossos instintos e sensações. Livrando assim da arrogância das formas racionais e de sua pretensão por ser o fundamento e o eixo da existência, que impossibilita outras formas de fundamentos e de verdades.

3. A APARÊNCIA COMO VERDADE

Se formos analisar a constituição humana iremos perceber que sua formação é necessariamente constituída por uma diversidade de elementos, tanto naturais quantos sociais. Esses elementos constituem o que de fato eles são. Somo uma coisa única? Não! Somo uma multiplicidade de tudo aquilo que nos circunda e de tudo aquilo que compõe o nosso planeta.  Essa diversidade impulsiona a criação e uma estrutura não diversa, ou seja, uma estrutura particular, universal, igual, e abstrata, tudo aquilo que o externo não é. “Todo conceito surge pela igualação do não-igual.” (NIETZSCHE, 2012, p. 35). Essa ideia e percepção de distinção e igualdade e associação entre as coisas que analisamos, é algo que só existe para o mundo humano e que se dar por meio de metáforas, metonímias e apropriações da natureza sobre a rege da estrutura cognitiva. Isso produz verdades.

[…] O que é, pois, a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são[..] (NIETZSCHE, 2012, p. 36)

As verdades consolidadas, que surgem como realidades prontas, não trazem em si, a causa e o processo de sua tecelagem, e desenvolvimento. Ela tem sua origem nos instintos.   O “[…] instinto é precisamente a essência de nossa espécie e de nosso rebanho.” (NIETZSCHE, 2016, p. 37). O grande primeiro condutor, desenvolvido pela natureza, tanto para conduzir, quanto para manter um vínculo com a existência natural, são os instintos. Na medida que o mundo a sua volta vai mudando, proporcionalmente vai surgindo as necessidades, são elas por sua vez forçarão o homem a dar um passo à frente em sua evolução, para só assim manter-se existente, para sobreviver ele forçará transcender. Essa “necessidade que dominou o ser humano; como um animal em perigo, ele precisava de ajuda, […] ele precisava da ‘consciência” (NIETZSCHE, 2016, p. 221). A transcendência é uma condição humana, fruto da necessidade de sobrevivência, diante do perigo de extermínio e sua espécie.

A primeira grande Necessidade que o ser humano encontra, logo em seus primeiros momentos de existência é a sua sobrevivência na natureza, tendo em vista, que eles não têm nenhum elemento que os favoreça sobreviver, como: garras, assas, resistência, força, velocidade etc. O primeiro grande obstáculo, será se manter na natureza sem ser exterminado por ela. Diante da necessidade de sobrevivência, da guerra de todos contra todos e pelo fato do “[…] homem dessa época só se conhece comparando-se a um outro homem[…]” (MARTON, 1978, p. 64), ver-se obrigado a viver em comunidade, passando assim a conviver com os outros, a se relacionarem. A partir desse momento há uma nova mudança de mundo, de perspectivas e conseguintemente novas necessidades. Pois perceberam que por mais forte que fossem alguns entre eles, não eram o suficiente para poder viver sozinho e muito menos conviver no meio natural.

Viver de forma gregária, constituem ao homem um maior nível de força em detrimento aquelas que os ameaçavam enquanto espécie. Entretanto nesse convício social um pequeno grupo percebeu-se fracos em relação a uma grande maioria dominante. Temos aí a segunda percepção da realidade. Um problema se instaurou, e esse, assim como o outro antes da formação em grupo, também os ameaçavam enquanto ser. Uma nova necessidade se instaura. Inevitavelmente toda “[…] a sociedade tende a sua conservação e realiza um ato de legítima defensa […] os motivos de conservação são o medo e a esperança, motivos tão poderosos e toscos quanto a inclinação ao falso” (NIETZSHE, 2016, § 33, 44)[3]. Agregar para se conservar, é uma característica presente nas espécies. No ser humano a sociedade é um meio de preservação e conservação dos indivíduos que são fracos diante da natureza e seus perigos

Com essa ameaça e com a ajuda do instinto de sobrevivência, logo é acionado o intelecto humano, força dissimuladora e criativa até então oculta. Eles precisavam criar um ambiente, onde houvesse um equilíbrio de poder entre os membros, para só assim ter certa familiaridade entre eles. Para isso se fazia necessário organizar a comunidade, elaborando normas e costumes, surgindo o conceito de direitos e deveres, no intuito de diminuir a força dos mais fortes, equilibrando os poderes. “Os direitos apresentavam-se como ‘grau de poder” (MARTON, 1978, p. 66) para aqueles mais fracos entre os membros da comunidade. Entretanto ter a aceitação dos mais fortes custaram aos mais fracos sua total submissão, desde que preservassem suas vidas, um preço pequeno para um grande proveito que os chefes iriam ter dos súditos.

Como um meio para a conservação do indivíduo, o intelecto desenrola suas principais forças na dissimulação: pois esta constitui o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos vigorosos, conservam-se, como aqueles aos quais denegado empreender uma luta pela existência com chifres e presas afiadas. No homem, essa arte da dissimulação atinge seu cume (NIETZSCHE, 2012, p. 27).

Nesse primeiro momento da sociedade, lei e costumes em geral encontravam todos misturados. Os costumes foram criados de forma arbitrário, sem nenhum critério ou fundamentos que os estabelecessem. Qualquer atitude tornavam um costume. Surge a necessidade de uma unidade coletiva, pelo qual tivessem afinidade e elementos em comum, criando assim um sentimento de pertença, segurança e conforto. Para existir certas leis e determinados costumes, era necessário selecionar o que seria permitido ou proibido dentro da comunidade. O proibido passou a ser entendido como o comportamento errado, enquanto o permitido o comportamento certo, assim a noção de certo e errado passaram a ter distinção. “A moral é, primeiro, um meio de conservar a comunidade em general e de evitar seu aniquilamento: em segundo lugar, constituem um meio de manter a comunidade em determinado nível e de assegurar algumas de suas qualidades.” (NIETZSHE, 2016, § 44)[4]. Algo completamente novo, já que não havia o que podia e o que não podiam. Havia apenas comportamentos, a qualidade deles só foi incrementada a partir desse momento.

Aqui vemos a atuação do intelecto fazendo aquilo que melhor sabe fazer; “o engano, o adular, mentir, enganar, o falar pelas costa, o representar” (NIETZSCHE., 2012, p. 27), tudo para ludibriar a situação a seu favor. Essa sua capacidade de manipular a realidade a sua volta, seja ela individual, ou coletiva, ganha maior reforço quando esses mesmos membros são desprovidos de força e se encontram com sua sobrevivência em risco; criando o cenário e o terreno perfeito para a atuação da arte de enganar do intelecto. Veja! Que é o instinto que impulsiona a criação de meio de comportamentos (meio morais), e depois a construção de princípio, do qual determinará o que será escolhido por verdadeiro e o que será escolhido por falso, e em seguida banindo aquilo que não serve para o convívio social.

Aqui vemos que a verdade é escolhida dentre outras verdades menos vantajosas para o coletivo, mas especialmente para os mais fracos, já que é todo um projeto de sobrevivência deles. Não há nenhum caráter revelativo, como defendia a filosofia. Ela foi criada, manipulada e imposta e não revelada. Então são os instintos que acionam o intelecto, para poder criar a verdade e assim se livra da extinção. Logo a verdade é falseada tanto pelos instintos, pois estar inserida em um interesse, e não em um conhecer da coisa, quanto pelo intelecto que irá criar as diversas formas de verdade. Aqui temos um paralelo entre a vontade de verdade apresentado por Nietzsche como sendo esse desejo que vai desde as formas instintivas até a cristalização nos conceitos, que dará base a construção do despertar do homem e da natureza; e o conceito de essência apresentado pela tradição filosófica que constituía uma ideia já cristalizada e que possibilitava a criação do mundo e sua objetividade. Então podemos concluir que “[..]toda “verdade” se torna “aparência” e toda “aparência” “verdade.” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 118). A diferença aqui é que em Nietzsche a cristalização é fruto da necessidade de sobrevivência da vida e da capacidade do intelecto de falsear os impulsos. Enquanto o conceito de essência, é algo cristalizado na existência, do qual já se encontra como algo fixo, eterno e puro de objetividade.

Na visão de Nietzsche a verdade é escolhida e definida não por princípios, que regem a fundamentação da realidade, mas como justificativa dos preceitos morais que tem por base os interesses instintivos de indivíduos a beira da extinção. A verdade é falsa, tanto em seus princípios, quanto em sua criação e finalidade. Não há verdade em si, mas apenas interesses instintivos que escolhemos por verdades, pois elas fornecem certas vantagens para o indivíduo. Não buscamos a verdade, por causa de sua revelação, mas pela vantagem que ela nos oferece. “Ele quer as consequências agradáveis da verdade, que conservam a vida[…]” (NIETZSCHE., 2012, p. 30). Da mesma forma que não rejeitamos a mentira por causa de sua falsidade, mas pela desvantagem que ela possibilita. “[…]o que eles odeiam fundamentalmente não é o engano, mas as consequências ruins, hostis, de certos gêneros de enganos.” (NIETZSCHE., 2012, p. 30). O prazer, a sobrevivência e o desprazer diante da vida, são os elementos que constituintes da conservação, dos princípios e dos valores morais.

MORAL DE ESTRELA

Predestinada à tua órbita,

Que te importa, estrela, a escuridão?

Rola, bem-aventurada, através desse tempo!

Que a miséria te seja estranha e distante!

Ao mundo mais longínquo destinas tua claridade:

A piedade deve ser pecado para ti!

Admites somente uma única lei: ser pura!

(NIETZSCHE, 2016, p. 35)

Quem sobreviveu o forte ou o fraco? Quem venceu? O franco, pois com medo da extinção e diante de sua fraqueza ele desenvolve a sua inteligência, a única capaz de manipular, ludibriar, equilibra e conter a força. “Pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas.” (NIETZSCHE, 2012, p. 27). O confronto entre os fortes e os fracos, vence os que tem maior condição física. Mediante esse risco iminente, para aqueles sem condição física necessária no combate frontal, os mais fracos recorrem a capacidade manipulativa criada pelo intelecto. Com isso afirma Scarlet Marton: “Os vencedores seriam os fracos, porque são eles os mais numerosos e “os mais inteligentes” (MARTON, 1978, p. 64, 65). Toda a civilização, com suas leis, costumes, filosofias, teologias e tudo o que foi produzido ou pensado é herdeira do pensamento dos fracos. Somos fruto da fraqueza e da aparência da aparência, que nós chamamos por verdade. Qual é a aparência da verdade? Um doce e amarga ilusão que precisamos crer para não perecermos.

Se o dionisíaco puro é aniquilador da viela, se só a arte torna possível uma experiência dionisíaca, não pode haver dionisíaco sem apolíneo. A visão trágica do mundo, tal como Nietzsche a interpreta nesse momento, é um equilíbrio entre a ilusão e a verdade, entre a aparência e a essência: o único modo de superar a radical oposição metafísica de valores. (MACHADO, 1999, p. 26)

A determinação de comportamentos aceitáveis, em detrimentos daqueles não aceitáveis e o surgimento de uma legislação necessária para a organização e bom convívio entre os membros. Tudo isso que não era comum, mas estritamente anormais entre eles, tem a aceitação da maioria do grupo, levando essa maioria a concordar com essas determinações que seria imposta a todos. Realidade que nunca experimentaram, pois elas são falsas, ilusórias sem nenhum respaldo no mundo fora de nós. Mas temendo um inimigo com uma força maior, e tendo de sobreviver a todo custo, mesmo que falseando a vida, “ele necessita de um acordo de paz e empenha-se então para que a mais cruel bellum omnium contra omnes ao menos desapareça de seu mundo.” (NIETZSCHE., 2012, p. 29). Com isso firmam-se o pacto de cumprimento das regras, de vivência dos costumes e das verdades impostas.

O aparecer da verdade como aparências qualificadas, tem no pacto, um de seus elementos essenciais que possibilitaram seu surgimento. O pacto social e o intelecto são passos de criação e eleição da verdade. E assim esses três elementos são as bases primordiais, os alicerces que deram origem a cultura. “A tradição nasce sem obedecer a nenhum imperativo imanente dos costumes e sem ter nenhum acordo com a sua validade ou não-validade. Ela é sobretudo o fruto do desejo de conservação de urna coletividade.” (MARTON, 1978, p. 68). Com eles os homens fazem uma importante migração de um mundo diverso, múltiplo, não-igual e sensitivo, para um mundo unificado, particular, igual e intelectual. Esses elementos os forçam a criarem um mundo só para eles, já que tais elementos não existiam na natureza. Homem e natureza passam cada vez mais estarem separado até que tornem divergentes.

Mas por que aceitaram tantas privações e controle? Por que na comunidade mesmo com tantas privações, era muito mais cômodo, seguro e bastante protegido. Havia vantagens em abrir mão da liberdade e de suas vontades e crenças particulares. Aqueles meios sociais lhes davam muito mais chances de sobrevivência do que outros, além de ser algo criado e conhecido. E o conhecido é “quilo a que estamos acostumados, de modo a não nos surpreendermos mais[…]” (NIETZSCHE, 2016, p. 223). Com o passar do tempo todos se renderam a comunidade, acostumaram-se a algo. O “[…] habitual é o que há de mais difícil a considerar como problema, a ver por seu lado estranho, distante, ‘exterior a nós próprio” (NIETZSCHE, 2016, p. 223), tornam aquele ambiente algo familiar, costumeiro, comum, algo necessário, e do qual não conseguem viver sem ele; mesmo tendo noção de sua falsidade, pois não correspondiam com o mundo.

À medida que as gerações vão se firmando, essas leis, comportamentos, verdades e atitudes passam a ser a pessoa, pois elas nasceram e foram criadas nelas, sem chances de sentir e viver o aposto. A verdade “[…] é um logro que visa levar todos os indivíduos a conformarem-se as regras da vida em coletividade” (MARTON, 1978, p. 80).  À medida que os mais antigos vão morrendo, a história da verdade vai sendo esquecida, até chegar o momento que só reste a verdade e a sociedade, começa “[…]uma crença na verdade[..] (MACHADO, 1999, p. 31). Eles tornam os princípios da existência humana, por onde se manifesta e pelo qual tudo gira em torno, tornaram o centro da existência. As “verdades são ilusões das quais se esqueceram que elas assim o são, metáforas que se tornaram desgastadas e sem força sensível, moedas que perderam seu troquel e agora são levadas em conta apenas como mental, e não mais como moedas” (NIETZSCHE., 2012, p. 36). Dar luz a história da verdade é um meio em que Nietzsche encontrou para resgatar toda essa memória esquecida devido o distanciamento e desenvolvimento da sociedade. Seu intuito é construir uma ponte entre a sociedade e a sua memória, promovendo assim a integração humana com suas raízes.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito de aparência apresentado por Nietzsche neste momento inicial de sua vida acadêmica, traz a afirmação e valorização da vida como sua marca característica. A afirmação da vida e suas pulsões são importantíssimas, não só neste primeiro momento, mas em toda a sua obra e vida. Tanto que a vida se torna o ponto inicial da existência física e racional, e não uma realidade transcendental fora do mundo e da vida.

Portanto, respondendo à questão norteadora: Como a ilusão está presente no percurso de formação do conhecimento e da verdade? Chegamos a alguns resultados ou respostas a problemática apresentada, concluímos que a aparência é toda a manifestação da existência, seja ela o mundo físico ou intelectual. E esses dois mundos não são e nem estão separados, mas intrinsicamente unidos, até porque um é produto do outro e os dois são representação na natureza.  Ela nos mostra que somos manifestação, representação desta vida que deseja ser, nos faz perceber a grande conexão existente entre nós e mundo, no qual nossa racionalidade nos faz esquecer. Pensar os impulsos como elo, ponte entre o mundo físico e transcendental, produzido pela nossa capacidade cognitiva, nos faz retomar essa conexão perdida entre o biológico e o psíquico, produzindo mais consciência sobre nossos processos psíquico-físicos.  Trazer para o debate filosófico o processo de tecelagem, de nossas primeiras ideias e conceitos e a própria construção do grande artesão presente em nós, o nosso intelecto, tendo como matéria prima esses impulsos, é a grande contribuição de Nietzsche nesse primeiro momento de seu pensamento.

Uma outra contribuição que nos oferece para o debate, é a ilusão presente no conceito de verdade. Já que a verdade se torna uma construção e seleção de determinados conhecimentos produzido pelo intelecto. A verdade são os conhecimentos selecionados dentro do convívio social, no intuito de ser elevado a realidade única e aceitável, por isso que a verdade é mais uma construção social, do que exclusivamente uma tecelagem cognitiva. Com isso o conceito de verdade passa por dois processos de falsificação: o primeiro se dar no intelecto, quando há a tradução e representação dos impulsos para o mundo das formas, surgindo aí o conhecimento; o segundo processo se dar no meio social, quando há a seleção dos conhecimentos produzido pelo intelecto, para satisfazer e manter a sobrevivência de determinado grupo.

Isso nos mostra e faz refletir sobre o mundo fenomênico, cognitivo e social em que estamos inseridos. Mundo esse que na visão de Nietzsche, não passa de meras ilusões. Que o ser humano não teria acesso a nada essencial, apenas as ilusões que nosso intelecto produz, para assim podermos construir um novo mundo a nossa cara, já que o mundo natural é caótico, instável e incompreensível. A ilusão torna-se essencial na construção e manutenção do ser humano. Com isso podemos concluir que o ser humano é um ser de aparência, pois age, vive, pensa e sente por meio de ideias e conceitos aparentes, que não tem nenhuma correspondência com mundo natural. Esses conceitos e ideias só faz sentido para nós, pois ele foi feito único e exclusivamente, para nossa sobrevivência individual e em grupo. O ser humano é um artista e uma obra de arte. Artista, pois ele age, vive e pensa, por meio de construções artísticas feito por seu intelecto; e obra de arte, pois ele é produto da natureza.

REFERÊNCIAS

CAVALCANTI, A. H. Símbolo e Alegoria – a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. [s.l.] Universidade Estadual de Campinas, 2003.

FINK, E. A Filosofia de Nietzsche. Lisboa: editorial presença, 1983.

MARTON, S. Por Uma Genealogia Da Verdade. Revista Discurso, , 1978. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/issn.2318-8863.discurso.1978.37847>

MACHADO, R. Roberto Machado Nietzsche e a Verdade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1999b. v. 22

MÁRCIO BENCHIMOL. Apolo e Dionísio, Arte, Filosofia e Crítica da Cultura no Primeiro Nietzsche. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, 2002.

MENDONÇA, Adriany Ferreira de. A invenção da metafisica a partir da arte: perspectivas nietzschianas. Coleção X. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020

MÜLLER-LAUTER, W. A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche. 2° Edição ed. São Paulo: Annablume, 1997. v. 53

NIETZSCHE., F. Sobre Verdade e Mentira. São Paulo: Editora Hedra, 2012.

NIETZSCHE, F. W. O nascimento da Tragédia ou Helenismo e pessimismo. 2° edição ed. [s.l.] Companhia das Letras, 1992.

NIETZSHE, F. Escrito sobre retórica. Madrid: Editora Trotta, 2000.

NIETZSHE, F. El Caminante y su Sombra. Madrid: Lectulandia, 2016.

NIETZSCHE, F. Fragmentos Póstumos (1869 – 1874). Madrid – Espanha: EDITORIAL TECNOS, 2010.

NIETZSCHE, F. W. Correspondencia II (Abril 1869- Diciembre 1874). Madríd: Editorial Trotta, 2007b.

SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e Representante, 1° tomo; tradução de Jair Barbosa . – São Paulo: Editora UNESP, 2005

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. “El concepto en el primer momento de su formación es un fenómeno artística la simbolización de una completa profusión de apariencias, originariamente una imagen, un jeroglífico.” (NF/FP, 1869-1874, 8 [41])

3. “[…] la sociedad tiende a su conservación y realiza un acto de legítima defensa. […] los motivos de conservación son el miedo y la esperanza, motivos tanto más poderosos y toscos cuanto que la inclinación a lo falso” (NIETZSHE, 2016, § 33, 44)

4. “La moral es, primero, un medio de conservar la comunidad em general y de evitar su aniquilamiento: en segundo lugar, constituye un medio de mantener la comunidad en un determinado nivel y de asegurar algunas de sus cualidades.” (NIETZSHE, 2016, § 44)

[1] Pós-graduação, graduação. ORCID: https://orcid.org/ 0000-0002-5239-9549.

Enviado: Outubro, 2021.

Aprovado: Dezembro, 2021.

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Francisco Francimar da Silva Medeiros

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