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Construção do conhecimento sob a perspectiva da teoria histórico-cultural e da pedagogia histórico crítica

RC: 120703
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/construcao-do-conhecimento

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

CARVALHO, Izabella Regina Almeida Santos de [1], SANTOS, Almira Alves dos [2], MONTENEGRO, Silvana Marisa [3]

CARVALHO, Izabella Regina Almeida Santos de. SANTOS, Almira Alves dos.  MONTENEGRO, Silvana Marisa. Construção do conhecimento sob a perspectiva da teoria histórico-cultural e da pedagogia histórico crítica. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 07, Vol. 02, pp. 48-68. Julho de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/construcao-do-conhecimento, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/construcao-do-conhecimento

RESUMO

Este artigo aborda sobre o processo de produção do conhecimento desde o princípio da unidade de Galileu Galilei até os dias atuais, e seu rebatimento no processo de formação humana para a emancipação. Dessa forma, tem como fundamento a seguinte questão norteadora: como a formação e a emancipação do ser humano podem ser alcançadas através da construção do conhecimento utilizando-se da Teoria Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico Crítica? Portanto, teve-se como objetivo demonstrar o processo da construção do conhecimento à educação e apresentar os conceitos da Teoria Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico Crítica, com vista à emancipação do ser humano. Diante disso, por meio da pesquisa bibliográfica, este estudo respaldou sua análise no materialismo histórico dialético, trazendo elementos que possibilitam a compreensão do surgimento do processo de fragmentação do conhecimento a partir de uma crítica ontológica. Dessa forma, foi possível constatar que a Teoria Histórico-Cultural e a Pedagogia Histórico Crítica estão em consonância com o materialismo histórico e os princípios que as sustentam e são retratadas em Marx e Gramsci, podendo compor uma orientação voltada para uma formação que assegure as novas gerações a apropriação dos instrumentos teóricos práticos para a construção do conhecimento, visando inseri-las ativa e criticamente na luta pela transformação da sociedade atual, colocando a educação a serviço da plena emancipação humana.

Palavras-chave: Conhecimento, Ensino, Emancipação.

1. INTRODUÇÃO

A busca de um conhecimento empírico e racionalista do universo esteve na origem da filosofia moderna, a partir da qual originou-se a ciência. Galilei foi seu grande precursor ao assegurar que à filosofia servia não apenas para descrever o mundo como fizeram os gregos, mas para explicá-lo, revelando princípios pela observação empírica da realidade e, implícitas a eles, leis universais. Descartes, por sua vez, foi mais longe ao sugerir o raciocínio lógico matemático como um princípio da explicação da causa, e a dúvida como sendo um método primordial. Se para os gregos bastava prever a existência do universo para o relatar, para o cientista algo só poderia existir se pudesse ser provado (CHÂTELET, 1994).

O princípio galiléico de unidade e o experimentalismo e a lógica da metodologia cartesiana guiaram Newton, no alvorecer do Iluminismo (sécs. XVIII-XIX), rumo a uma primeira teoria física com proposições universais. Já sob o auspício do capital industrial, sua s ideias, contudo, foram utilizadas pelos intelectuais conservadores da época para reafirmar uma concepção de ciência (oriunda de Bacon e também de Descartes), fundada na exaltação do “progresso” pela exploração da natureza e na fragmentação da realidade para estudo sistemático. Como consequência, aprofundou-se a ascendente especialização disciplinar entre as diferentes áreas da ciência, na qual a física assumiu um papel de liderança paradigmática, não obstante o determinismo que ainda encerrava em sua visão de mundo (PINTO et al., 2018, p. 110).

Da Antiguidade Clássica ao final da Idade Média, prevalecia a visão de um universo imutável e hierarquizado, onde a ação humana era vista como um contínuo a adaptar-se a uma ordem predeterminada por fora de seu poder. O conhecimento era visto como algo contemplativo (não ativo), cabendo ao sujeito (filósofo) apenas explicar o que já estava posto pelo objeto (realidade). Sinalizado pela transcendência, pela a-historicidade e pela exterioridade entre o ser humano e os universos natural e social do qual fazia parte, tal percepção presente na mitologia, nas religiões e na metafísica ainda imperava de uma apreensão do real como totalidade. Todavia, essa perspectiva de totalidade foi abandonada na virada do Renascentismo ao Iluminismo, sob o empiricismo/tecnicismo da ciência moderna (TONET, 2005).

O surgimento da industrialização, do Estado moderno e da mobilidade social e as rápidas transformações advindas desses fenômenos provaram como nunca a infinitude do mundo e a ausência de uma ordem cosmológica hierárquica. Mesmo a natureza sendo tomada numa relação de exterioridade frente à ação humana, esta assumia agora um papel ativo, como exploradora e dominadora das propriedades. A economia, por outro lado, era compreendida como uma projeção de leis da natureza, cabendo ao ser humano liberdade de ação apenas na esfera da política, do direito, da educação ou da arte (TONET, 2005).

Marx e Engels, no século XIX, perceberam claramente que tanto à objetividade determinista de Descartes e Newton quanto à filosofia do sujeito, e a da história de Kant e Hegel, faltava um “princípio unificador que permitiria a efetiva apreensão da realidade natural e social como totalidade” (PINTO et al., 2018, p. 115). Como solução para o problema chegaram ao princípio unificador que é a derivada da categoria trabalho.

Concebida como as mais variadas mediações dos seres humanos nas relações que estabelecem entre si junto à natureza, a práxis é uma atividade racional, não porque se baseia na depuração de uma razão abstrata ou no aperfeiçoamento de um saber como pura cognição subjetiva, mas porque tem seu fundamento na categoria trabalho, resposta prática do ser humano às próprias necessidades, estabelecendo relações sociais organizadas (e não simples somas de individualidades) por meio das quais mobiliza as forças da natureza visando fins previamente definidos (MARX, 2013, p. 113).

O materialismo histórico-dialético não apreende, portanto, o real como totalidade a partir de uma questão metodológica, mas sim ontológica, uma vez que parte do princípio unificador que vai para além da relação entre neutralidade e objetividade científica, mostrando que o […] intercâmbio com a natureza não pode ser separado da construção da história humana pelo ser social, o que não significa que essa construção é determinada de um polo, pela objetividade da natureza ou pela subjetividade do mundo social (PINTO et al., 2018, p. 116).

O conceito de práxis social refunda as bases do conhecimento sem, no entanto, negar seu movimento na história. Quando o real é concebido como […] síntese dialética entre teleologia e causalidade, de fato coloca epistemologicamente a ontologia como guia metodológico, restituindo à ciência o seu papel filosófico ao mesmo tempo em que elimina da filosofia toda metafísica (PINTO et al., 2018).

Eis, portanto, um apelo ontológico à interdisciplinaridade, que não se limita a uma reunião de especializações ou ecletismos, delegando a uma ou mais áreas a liderança paradigmática entre as demais; tampouco visualiza ou sugere “isomorfismos” em processos cujas bases fundantes são distintas. Por fim, ao tomar o conhecimento e a ação como momentos inseparáveis, o sistema marxiano atribuiu à filosofia e à ciência um papel ativo na orientação do ser humano no devir histórico, não apenas enquanto “descrição” (filosofia clássica) ou “explicação” (ciência renascentista) da realidade, mas, sobretudo, como meio de “transformação” da mesma na direção de um mundo “novo” e livre de quaisquer formas de exploração, tanto da natureza, quanto dos próprios seres humanos, para fins imperialistas ou de dominação entre classes sociais (PINTO et al., 2018, p. 117).

Pensando nisso, o presente artigo fundamentou-se na questão norteadora: como a formação e a emancipação do ser humano podem ser alcançadas através da construção do conhecimento utilizando-se da Teoria Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico Crítica? Tendo, portanto, como objetivo demonstrar o processo da construção do conhecimento à educação e apresentar os conceitos da Teoria Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico Crítica, com vista à emancipação do ser humano. Logo, para tanto, realizou-se uma pesquisa bibliográfica, tendo sua análise respaldada no materialismo histórico dialético a partir de uma crítica ontológica. 

2. A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL NO MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO

Lukács faz um esforço para construir no marxismo uma ontologia, considerando que o mesmo assume essa importância no sentido de apresentar o fundamento ontológico do pensamento marxista, pois se as representações ontológicas são incontornáveis e centrais na práxis social dos sujeitos, elas possuem um poder social real, evidenciando que a crítica ontológica se impõe para essa análise. Considerando que os sujeitos em sua práxis reproduzem as estruturas sociais, e que estas estruturas produzem e precisam de representações ontológicas falsas por parte dos sujeitos, apenas uma crítica ontológica pode quebrar o círculo vicioso que frustra os projetos de um mundo mais humano. Portanto, chega-se à conclusão de que a crítica genuína é a crítica ontológica, e que a restauração da dimensão crítica do pensamento marxista, de acordo com Lukács, pressupõe a restituição de sua dimensão ontológica (DUAYER, ESCURRA e SIQUEIRA, 2013).

Somente o trabalho é a categoria essencialmente intermediária, o vínculo material e o objetivo entre o ser humano e a natureza e, por esse motivo, é a categoria fundante e mediadora por excelência, assinalando a transição do ser biológico ao ser social. A essência do trabalho, “[…] em primeiro lugar, […] surge em meio à luta pela existência” e, “em segundo lugar, […] todas as suas etapas são produtos de sua atividade autônoma”. O caráter intermediário constitui a inter-relação entre o ser humano (sociedade) e a natureza (tanto inorgânica quanto orgânica) para a produção de objetos úteis à vida (valores de uso). (LUKÁCS, 2004, p. 58).

Para Lukács (2012), o trabalho dá lugar a uma dupla transformação. Por um lado, o próprio ser humano que trabalha é transformado por seu trabalho, atua sobre a natureza exterior e modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve “[…] as potências que nela se encontram latentes […]” e sujeita às forças da natureza “[…] a seu próprio domínio” (LUKÁCS, 2012, p. 199). Por outro, os objetos e as forças da natureza são transformados em meios de trabalho, em objetos de trabalho, em matérias-primas etc. O homem que trabalha “[…] usa as propriedades mecânicas, físicas e químicas das coisas para submeter outras coisas a seu poder, atuando sobre elas de acordo com seu propósito” (LUKÁCS, 2012, p. 199). Os objetos naturais, todavia, continuam a ser em si o que eram por natureza, na medida em que suas propriedades, relações e vínculos, dentre outros, existem objetiva e independentemente da consciência do homem. Portanto, é somente através do conhecimento e do trabalho que podem ser postos em movimento e convertidos em coisas úteis. Para Lukács (2004, p. 80), a categoria do trabalho “[…] constitui a realização de um pôr teleológico que dá origem a uma nova objetividade (produtos do trabalho), o que implica sua tendência a um continuado desenvolvimento e evidencia o caráter não epifenomênico da consciência”.

O mundo das formas de consciência e seus conteúdos não são vistos como produto imediato da estrutura econômica, mas da totalidade do ser social. A determinação da consciência pelo ser social é entendida em seu sentido mais geral (MARX, 2008).

A ontologia marxiana está precisamente direcionada a refletir e expressar o homem em sua forma real. O ser social é compreendido como ser real, concreto, histórico e fundado na vida em oposição à concepção idealista. Concepção que, por sua vez, existe e se baseia na experiência cotidiana e na atualidade, em uma sociedade que é dividida pelas relações de classes, determinadas pela divisão social do trabalho, que é resultado da própria lógica de produção e reprodução do capital, instigada principalmente com o surgimento da Revolução Industrial (MARX, 1985).

Gramsci (2011, p. 67), por sua vez, também afirma que a história não pode ser apreendida apenas como um evento, posto que se tornaria atividade puramente prática (econômica e moral). De acordo com o autor, para se conhecer com exatidão as finalidades históricas de uma sociedade, “[…] é preciso conhecer, antes de mais nada, quais são os sistemas e as relações de troca daquele país, daquela sociedade”.

Alicerçada no trabalho, a complexificação da sociedade constitui novos problemas, situações e necessidades, mostrando, assim, que são necessárias outras dimensões sociais para seu enfrentamento. O ser social é, assim, na expressão de Lukács (1979), um complexo de complexos que se origina no trabalho, ficando evidente que a categoria da totalidade, antes mesmo de ser uma categoria epistemológica, é uma categoria ontológica, ou seja, pertencente à própria natureza essencial do ser social. A análise a partir do trabalho também possibilita perceber que esta é uma categoria que sempre se destina para além de si mesma, que abre a possibilidade da criação permanente do novo e não somente a reposição dele, como ocorre no reino animal. É uma característica do ser social em se tornar cada vez mais complexo e universal, o que significa dizer que a complexificação não é uma imperfeição, mas uma determinação ontológica do ser social (LUKÁCS, 1979).

3. BREVE RELATO HISTÓRICO SOBRE A ONTOLOGIA E A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO

O processo de conhecimento ocorre por meio de uma relação dialética entre o sujeito que pretende conhecer e o objeto a ser conhecido. Esse processo, alvo de investigação científica e filosófica, é compreendido em muitas situações como sendo possível a existência de um só caminho entre o sujeito e o objeto. E esse caminho gnosiológico é apenas uma abordagem específica, constituído a partir da realidade objetiva (SOUZA, 2020).

Em linhas gerais, o caminho gnosiológico pode ser entendido como aquele cujo polo regente no processo do conhecimento é o sujeito. Por meio da razão é ele (o sujeito) que constrói o objeto ou seja, ele (sujeito) institui o que julga necessário para defini-lo. Destacamos a necessidade de esclarecer que o caminho (ou abordagem) gnosiológico não é o mesmo que gnosiologia: “Como se sabe, gnosiologia é o estudo da problemática do conhecimento […] portanto, o conhecimento é o objeto a ser estudado, [que] pode ser abordado de um ponto de vista gnosiológico ou de um ponto de vista ontológico” (TONET, 2013, p. 12).

Em outra perspectiva, a abordagem gnosiológica aparece apenas como uma abordagem, à qual se opõe a abordagem ontológica, que prioriza a objetividade no processo de conhecimento. Tem-se como ponto de partida a ideia de que existe na coisa um ser em si e que, ao tomá-la como objeto de estudo, deve-se subsumir a razão sobre a mesma na busca pela revelação de sua essência. Trata-se de uma preocupação voltada para a captura das determinações gerais do objeto. Dessa forma, ressalta-se que não há identidade entre ontologia (estudo do ser) e o caminho ontológico, uma vez que pode-se ter um estudo que busca alcançar a essência de dado fenômeno, fazendo-o por meio dos autos movimentos da razão, deixando de lado a objetividade no processo de conhecimento de maneira a trilhar um caminho gnosiológico (LARA, 2011; TONET, 2013).

Com o surgimento do sistema capitalista, o sujeito foi levado à condição de polo regente social. Em relação ao processo de conhecimento, isto levou a concepção de que o caminho para a ciência seja o gnosiológico, centrado na subjetividade, o que evidencia que a ciência no mundo moderno passa a se sustentar na organização do mundo fenomênico (empírico) sob uma lógica que é definida pelo próprio sujeito, na busca de se contrapor à passividade que lhe era designada. Desde então aquela concepção de um mundo estático e imutável – das sociedades anteriores – se diluiu, dando lugar a um mundo dinâmico que é suscetível de ser transformado pela ação humana (TONET, 2013).

O sujeito cognoscitivo é o ser humano, entendido como sujeito coletivo, social e histórico, que produz conhecimento num determinado modo social de produção da existência, que, na atualidade, é o capitalista. Neste modo de produção, imperam as relações sociais de dominação e se efetiva a contradição entre capital e trabalho, determinação histórica da qual faz parte a produção do conhecimento. O conhecimento humano produzido pelo ser social não está isento da tensão existente entre os pólos da citada contradição. No caso do materialismo histórico-dialético, busca-se a objetividade do conhecimento como contributo para a superação de uma realidade que, em sua essência, almeja acumular capital em detrimento do ser humano (ABRANTES e MARTINS, 2007).

Assumir a prioridade ontológica da objetividade não significa colocar o sujeito do processo de conhecimento ou do processo histórico social como um todo, como ser contemplativo e passivo. Marx rompe com a separação entre a subjetividade e a objetividade, constituindo um novo método de abordagem do real, pois, na contramão das ontologias anteriores, reconhece que o sujeito transforma a realidade (portanto, os objetos). Sendo a realidade fruto da ação humana, sua transformação estará sempre vinculada aos seres humanos. O homem é autor e ator de sua história, sendo esse processo orientado pelo seu confronto com a realidade, que possui caráter objetivo, e externa à sua consciência (LARA, 2011; TONET, 2013).

Segundo Frigotto (2011), para que se possa compreender a chegada até a fragmentação do conhecimento é necessário apreender a trajetória do ser social a partir de suas bases originais, em termos históricos e ontológicos. A questão é verificar a origem da fragmentação do saber, que, ao que parece, deu-se com o advento da propriedade privada e das classes sociais, com a divisão social do trabalho, a alienação, a divisão entre os que pensam e os que fazem, entre trabalho manual e intelectual, e se aprofundou com o positivismo, o desenvolvimento da sociedade capitalista e a divisão entre capital e trabalho que reforça a divisão entre os que pensam e os que executam o trabalho e aprofunda a alienação. Ou seja, a divisão e a fragmentação do saber guardam nexos diretos com a forma de organização social e produção da vida material fundada na divisão de classes, “[…] a cisão que se produz e desenvolve no plano das relações de produção do homem social, enquanto uma totalidade concreta, explicita-se necessariamente no plano da consciência, das representações e concepções da realidade” (FRIGOTTO, 2011, p. 60).

Frigotto (2011) afirma, ainda, que as ideias e concepções não têm vida própria, mas emergem a partir do momento histórico e da maneira como se organiza o modo de produzir a vida material em cada momento. Essa fragmentação que se dá no plano das relações sociais de produção repercute no plano do pensamento e das representações. Quando ainda não existiam classes sociais, o saber e o conhecimento aconteciam pela vida e se voltavam à vida. Não era necessário privar ninguém de qualquer informação ou experiência, e não havia fragmentação. É nessa perspectiva que se compreendem a natureza mais profunda da práxis social e seus desdobramentos ao longo da história.

A construção práxica do conhecimento nos remete, portanto, à realidade histórica a se conhecer, visto que os indivíduos se desenvolvem em relações de apropriação da história contida nos objetos produzidos pelo homem e nas relações estabelecidas entre eles na base de tais produções. Mas para uma efetiva compreensão da dimensão práxica do homem, outro preceito deve ser levado em conta, qual seja, a unidade inicial existente entre sujeito e objeto do conhecimento (ABRANTES e MARTINS, 2007, p. 315).

Segundo Gramsci (2004), todo homem, fora da sua profissão, desenvolve uma ação intelectual qualquer, ou seja, é um artista, um filósofo, e assume uma concepção de mundo, contribuindo para manutenção ou modificação dessa concepção de mundo para suscitar novas maneiras de pensar.

O que consiste é que o objeto que se vai conhecer é a realidade na qual estão contidas as atividades humanas e as contradições internas essenciais que lhe determinam o movimento histórico. Mesmo que esse objeto se apresente ao pensamento como dado e acabado, ainda assim nele estão contidas as relações sociais de produção expressas na contradição ontológica entre aparência e essência, determinante na ciência e no método no momento de se conhecer o real. A unidade sujeito/objeto reafirma o papel do pensamento no processo de conhecimento da realidade, ao mesmo tempo em que afirma a primazia da realidade em relação ao pensamento (ABRANTES e MARTINS 2007, p. 316).

Gramsci (1999) destaca a importância de se criar uma nova cultura, a partir da vida social concreta dos simples, como um fato filosófico de grande importância, pressupondo o desenvolvimento da capacidade de pensar coerentemente e de forma unitária. Nesse sentido,

Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”; significa também, e, sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; e, portanto, transformá-las em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato “filosófico” bem mais importante e “original” do que a descoberta, por parte de um “gênio” filosófico, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais (GRAMSCI, 1999, p. 96).

Para a criação de uma nova cultura, Gramsci (1999) está dizendo que a apropriação crítica dos conhecimentos socializados se faz necessária para que a classe dominada domine as armas que a classe dominante usa para dominá-las. Contudo, o que inviabiliza a apropriação do conhecimento de forma universal são os interesses de determinados grupos em perpetuar as relações de dominação.

4. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO SOBRE A REALIDADE E O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO: FUNDAMENTOS NA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL E PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

O conhecimento sobre a realidade objetiva origina-se de sensações/percepções. É à base desses processos que se produz o conhecimento sensorial ou alicerce do pensamento. Quando se reflete aspectos da realidade, tem-se o surgimento de uma imagem sensorial do mundo, com o lastro no qual o homem inicia a aquisição da consciência ao conhecer os fenômenos da realidade, percebendo neles propriedades, origens, efeitos, relações, etc. Torna-se possível esse processo graças ao desenvolvimento da linguagem, quando o sensorial apresentado começa a ser representado em forma de palavras e ideias (ABRANTES e MARTINS, 2007).

De acordo com Kopnin (1978), as confusões existentes quanto ao movimento do conhecimento empírico ao conhecimento teórico, como transição do concreto difuso ao concreto pensado pela mediação da abstração, que fundamenta o método marxiano de construção de conhecimento, têm alterado a essência do pensamento teórico, desprovendo-o de sua objetividade e diminuindo-o à formação de abstrações (supostamente) vazias. É uma tentativa de compreender o conhecimento e o próprio pensamento humano de acordo com critérios e, nos limites do pensamento empírico, a experiência sensorial concreta. Como consequência, prioriza o conhecimento imediato em detrimento do conhecimento por conceitos, como se as abstrações fossem destituídas de objetividade.

O desenvolvimento do pensamento e, por consequência, da produção de conhecimentos surgem de finalidades práticas. Ocorre que os fins não provêm do que é perceptível pelos sentidos de forma imediata, mas da consciência que o sujeito possa dispor sobre ela. A determinação de finalidades, a identificação e/ou apresentação de problemas práticos revelam-se como atividades essencialmente teóricas. Contudo, para que as experiências práticas se operem como mobilizadoras da construção do conhecimento real e efetivo (concreto), elas requerem um tipo de conhecimento especial: o conhecimento sobre um desconhecido que se necessita conhecer (ABRANTES e MARTINS).

Em consonância com a teoria materialista dialética do conhecimento, a proposta da experimentação ou da problematização como ponto de partida para a construção do conhecimento exige, a priori, um domínio conceitual básico. Caso contrário, a decodificação dos dados identificados pode não chegar à superação de um conhecimento imediato, circunscrito ao pensamento empírico. Se colocou o desenvolvimento da fala como salto qualitativo decisivo na humanização do psiquismo, à medida que ela resulta do entrecruzamento do pensamento e da linguagem, funções que, em suas origens, seguem linhas distintas e independentes de desenvolvimento. O desenvolvimento do pensamento e da linguagem mantém estreita aliança com o processo de complexificação da palavra (ABRANTES e MARTINS, 2007, p. 318).

Para Gramsci (1981, p. 13), a linguagem envolve as ações simbólicas e materiais dos seres humanos, ela perpassa os planos de sociabilidade e participa da unidade do conhecimento que vincula os seres humanos entre si e à natureza, ou seja, “[…] da linguagem de cada um é possível julgar da maior ou menor complexidade a sua concepção do mundo”.

No que diz respeito a essa complexificação, Vigotski e Luria (2007) apontaram que, no início do desenvolvimento da fala, a palavra se apresenta como mera extensão do objeto ou como representação do “objeto em si”. Sendo assim, a complexificação da palavra se presume a transição de correlações mais diretas e imediatas entre objeto e palavra em direção às correlações mais gerais e abstratas – condição requerida ao desenvolvimento do pensamento abstrato e função precípua da educação que o tenha como objetivo. Essa proposição corrobora com uma das teses centrais da pedagogia histórico-crítica: à educação cabe promover a formação de conceitos, naquilo que apresentam como “[…] rica totalidade de determinações e de relações numerosas” (MARX, 2008, p. 229).

Com isso, a atividade de ensino alcança uma natureza específica que desponta como processo ao qual compete oportunizar a apropriação dos conhecimentos historicamente sistematizados, não fragmentados (MARTINS, 2013).

Nesse sentido, a internalização de signos[4], intermediação entre a teoria histórico-cultural e a pedagogia histórico-crítica, contribui com esse processo, uma vez que ambas as teorias colocam no centro de seus enfoques a socialização/transmissão do universo simbólico culturalmente formado e o desenvolvimento humano. Com isso, a atividade de ensino conquista uma natureza específica na forma de educação, que desponta como um processo ao qual compete oportunizar a apreensão dos conhecimentos historicamente sistematizados, levando em consideração a ascensão para além das significações mais imediatas e aparentes, dispostas pela cultura dos indivíduos e pelas dimensões empíricas dos fenômenos. Há que se reconhecer a educação com seu objeto e fins (SAVIANI, 2003a).

O grau de complexidade exigido nas ações dos indivíduos e a qualidade das mediações propiciadas para sua execução representam os condicionamentos primários de toda periodização do desenvolvimento psíquico, tendo em vista que as funções complexas não se desenvolvem na base de atividades que não as exija e as possibilitem. Nessa tarefa, se ressalta o objetivo maior da transmissão dos conhecimentos historicamente sistematizados, não fragmentados. Impossibilitar aos indivíduos as condições objetivas para o desenvolvimento significa usurpá-los da formação do pensamento em conceitos, que é, em última instância, a maneira mais adequada de conhecer a realidade. (MARTINS, 2013). Portanto, considerando que seu desenvolvimento é cultural, histórico e socialmente condicionado, sem um ensino fundamentado, o pensamento não alcança níveis mais complexos e abstratos, o que deixa de contribuir para a formação de uma ampla consciência. Esta supera as bases elementares e estruturais do psiquismo, incluindo os orgânicos, e o núcleo dessa superação acaba na formação de conceitos, sintetizando em suas diferentes formas o movimento evolutivo do pensamento. A formação de conceitos, por sua vez, perpassa todas as fases do desenvolvimento, e isso demonstra, novamente, o papel da educação escolar com bebês, crianças, jovens e adultos (MARTINS, 2013).

Para Vigotsky (2000), os conceitos científicos formam-se na tensão problematizadora de uma vasta gama de atividades que colocam o pensamento em curso. Outrossim, o ensino de conceitos científicos não passa a ser concebido como ação isolada, causal no processo didático, mas como expressão do processo de desenvolvimento psíquico articulado ao processo de transmissão do conhecimento. Vigotsky (2000) alertou, ainda, que a fronteira que separa a formação de conceitos científicos é extremamente tênue, possibilitando que ambos a atravessem e se interconectem muitas vezes. Assim, o desenvolvimento de conceitos científicos e cotidianos conflui em um mesmo e único processo, o de formação de conceitos, que se realiza em diferentes circunstâncias externas e internas. Caberá ao ensino confrontar os conceitos espontâneos por meio dos conceitos científicos, ampliando a decodificação abstrata do objeto (MARTINS, 2013).

Os princípios que sustentam a pedagogia histórico-crítica são aqueles que de fato são compatíveis com os preceitos da teoria histórico-cultural, não apenas em relação ao estofo filosófico comum, mas sobretudo pela defesa intransigente de uma educação que prime pelo ensino de conceitos científicos, sem os quais a capacidade de pensar dos indivíduos é comprometida. Dessa forma, a escola, de acordo com Saviani (2003a, p. 14), é “[…] uma instituição cujo papel consiste na socialização do saber sistematizado”, cabendo a ela trabalhar com relação “ao conhecimento elaborado e não ao conhecimento espontâneo; ao saber sistematizado e não ao saber fragmentado”.

5. PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: CONTRIBUIÇÕES AO CURRÍCULO

A pedagogia histórico-crítica se fundamenta nas bases teóricas do materialismo histórico, retratadas por Marx e Gramsci. Desde que foi formulada, entre os anos 1970 e 1980, até hoje, vem seguindo a orientação gramsciana que toma o marxismo, sob a compreensão de que o mesmo é uma filosofia integral, uma teoria completa que dispõe de todos os elementos necessários para dar conta dos problemas enfrentados (SAVIANI, 2013).

A base teórica da pedagogia histórico-crítica parte do entendimento da formulação contida em (MARX, 2008). Nesse texto, o movimento que vai da síncrise (“a visão caótica do todo”) à síntese (“uma rica totalidade de determinações e relações numerosas”) pela mediação da análise (“as abstrações e determinações simples”) constitui uma orientação segura tanto para o processo de descoberta de novos conhecimentos (o método científico) como para o de transmissão-assimilação de conhecimentos (o método de ensino). E o termo catarse, que denomina o quarto passo do método proposto, o qual se constitui no momento culminante do processo pedagógico, é entendido na acepção gramsciana como um salto qualitativo no processo de ampliação e enriquecimento das relações entre a subjetividade individual e a objetividade sociocultural, “[…] elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens” (GRAMSCI, 1981, p. 53).

De acordo com Ribeiro et al. (2018), a concepção de conhecimento é fundamental para a compreensão do legado que se pretende transmitir para as gerações futuras. Nestes termos, o currículo surge como valioso campo para a apresentação das várias concepções de conhecimento escolar e, consequentemente, possibilita o desnudamento da sociedade que se pretende construir. Conhecimentos são sempre históricos, isto é, o desenvolvimento destes é historicamente condicionado. Assim, o saber que interessa especificamente à educação é aquele que “[…] emerge como resultado do processo de aprendizagem, como resultado do trabalho educativo” (SAVIANI, 2003, p. 7). Mas para chegar a esse resultado é preciso tomar o saber objetivo, produzido historicamente, como matéria prima. Pressupõe, portanto, um engajamento na luta pela superação da forma de organização da sociedade contemporânea, levando em conta a necessidade de transformar as relações sociais de opressão, dominação e exploração que, para Marx, não constituem simplesmente um problema material e político, mas um problema humanista e pedagógico (MALANCHEN, DOLLA e DUARTE, 2007).

Segundo Duarte (2016), quando Dermeval Saviani define o saber objetivo como elemento central da pedagogia histórico-crítica, delimitando-o como saber que deve compor necessariamente o currículo, isso não quer dizer que se assume a defesa de um saber pretensamente neutro, baseado no raciocínio positivista. Ao contrário, Saviani (2003a) argumenta que é possível negar a neutralidade e afirmar a objetividade ao analisar a impossibilidade da neutralidade do conhecimento: “[…] não se trata de considerar que os interesses impedem o conhecimento objetivo nem que este exclui os interesses. Os interesses impelem os conhecimentos e, ao mesmo tempo, os circunscrevem dentro de determinados limites” (SAVIANI, 2012, p. 66)

Para Gramsci (1999, p. 134), o sentido de objetividade/subjetividade passa pela historicidade, pelo de vir ao afirmar que

O homem conhece objetivamente na medida em que o conhecimento é real para todo o gênero humano historicamente unificado em um sistema cultural unitário; mas este processo de unificação histórica ocorre com o desaparecimento das contradições internas que dilaceram a sociedade humana, contradições que são a condição da formação dos grupos e do nascimento das ideologias não universal-concretas, mas que envelhecem imediatamente, por causa da origem prática da sua substância. Há, portanto, uma luta pela objetividade (para libertar-se das ideologias parciais e falazes) e esta luta é a própria luta pela unificação cultural do gênero humano. O que os idealistas chamam de “espírito” não é um ponto de partida, mas de chegada: o conjunto das superestruturas em devir rumo à unificação concreta e objetivamente universal, e não um pressuposto unitário, etc.

De acordo com Gramsci (2004, p. 42), com o ensino, a escola luta contra todas as sedimentações de concepções do mundo a fim de difundir uma concepção mais moderna, cujos elementos primitivos e fundamentais são dados pela aprendizagem da existência de leis naturais como algo objetivo e rebelde, leis que implicam adaptação para serem dominadas, e de leis civis e estatais, produto de uma atividade humana, que são estabelecidas pelo homem e podem ser por ele modificadas, tendo em vista seu desenvolvimento coletivo.

O currículo é visto como um produto histórico, originado de uma luta coletiva no confronto entre as classes, que abarca questões ideológicas, políticas e pedagógicas. Aceitar isso, significa dizer que a organização do currículo deve não apenas abranger formas para que os conhecimentos nele colocados sejam compreendidos, mas também possibilitar que esses conhecimentos sejam assimilados ao movimento de contradição que existe na sociedade e ao modo como a classe trabalhadora nele se insere. Nessa perspectiva, o currículo passa a ser uma escolha intencional de uma porção da cultura universal produzida historicamente. Essa concepção de currículo se fundamenta numa perspectiva materialista, histórica e dialética do significado do conhecimento para uma prática social que busca construir um novo projeto societário (SAVIANI e DUARTE, 2012).

Duarte (2016) afirma que a apropriação dos conceitos científicos promove o desenvolvimento das funções psicológicas, o que possibilita a compreensão dos processos fundamentais da realidade, condição essencial para sua transformação pela prática social. A apreensão dos conhecimentos científicos propicia novas formas de conduta, transforma a atividade das funções psíquicas, produz novos níveis de desenvolvimento humano e possibilita uma compreensão mais articulada da realidade. Malanchen (2014, p. 163), ao defender o currículo sob o prisma histórico-crítico, reafirma o conhecimento mais elevado “[…] como aquele que deve ser transmitido nas escolas por meio dos currículos, defendendo o conhecimento que permite a objetivação do ser humano de forma cada vez mais livre e universal, sendo critério a emancipação humana”.

Tem-se na concepção savianista de currículo uma abordagem marxista e gramsciana que ultrapassa os limites do Iluminismo sem desprezar o caráter emancipatório do conhecimento e da razão; supera os limites da democracia burguesa sem, contudo, combater a necessidade da política; extrapola os limites da ciência colocada a serviço do capital sem negar o caráter fundamental da mesma para o desenvolvimento humano; e não aceita a concepção burguesa de progresso social sem negar a possibilidade de fazer a sociedade progredir na direção de formas mais evoluídas de existência humana. Tudo isso se traduz, no campo educacional, na defesa de uma pedagogia marxista que “[…] supere a educação escolar em suas formas burguesas sem negar a importância da transmissão, pela escola, dos conhecimentos mais desenvolvidos já produzidos pela humanidade” (DUARTE, 2016, p. 42).

6. CONCEPÇÃO DE EMANCIPAÇÃO NA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

Marx (s.d. p. 38) evidencia a diferença entre a emancipação política e a emancipação humana e indica a condição para que se realize a emancipação humana.

Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas “forces propres” como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana (MARX, s.d. p. 38).

Com essas afirmações, fica claro que a emancipação política, em outras palavras, a democracia formal, não é suficiente. É fundamental mover-se em direção à emancipação humana que acarreta a superação da democracia formal, instituindo a democracia real. A emancipação humana implica na superação da sociedade de classes e o desaparecimento do Estado ou, nos termos gramscianos, a absorção da sociedade política na sociedade civil (SAVIANI, 2017).

Gramsci (1976, p. 147-149), ainda em prosseguimento ao exame do problema da emancipação humana, reflete que o fim do Estado preconizado por Marx corresponde com a absorção da sociedade política pela sociedade civil. Ou seja, atingindo o estágio da sociedade sem classes, a sociedade política ou o Estado, em sentido estrito, resulta destinado à extinção na medida em que os interesses do proletariado passam a conformar-se com os interesses de toda a sociedade.

Não ocorrerá de forma espontânea a passagem da emancipação política à emancipação humana, e da mudança da democracia formal para a democracia real. Para que esse movimento seja efetivado é necessário a intervenção prática dos seres humanos direcionada a essa finalidade, pois são os homens que fazem a história. Contudo, “[…] não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX, 1981, p. 17). Assim, a atividade humana ocorre sempre em determinadas condições, independentemente do grau de consciência que os homens têm de sua ação. Mas “[…] a coincidência da modificação das circunstâncias com a atividade humana ou a modificação dos próprios homens, só pode ser concebida e compreendida racionalmente como práxis revolucionária” (MARX, 1974, p. 658).

Enquanto o idealismo, especialmente em Hegel, considera a atividade humana como sendo fundamentalmente teórica, dissolvendo a prática na teoria, o pragmatismo entende a atividade à luz da prática sensível, diluindo a teoria na prática. De modo diferente, o marxismo busca compreender a atividade humana como unidade essencial entre teoria e prática, traduzida no conceito de práxis, o que lhe valeu o nome, apropriadamente, de “filosofia da práxis”, como destacou Gramsci (SAVIANI, 2017).

Para Gramsci (1999, p. 101), a filosofia da práxis é uma atitude de superação da maneira de pensar sobre o mundo cultural existente, inovar e tornar crítica uma atividade que existe. Trata-se de uma crítica da filosofia dos intelectuais que deram origem à história da filosofia e propiciaram a “culminância” do progresso do senso comum e, através do mesmo, do senso comum popular.

A ideia defendida por Gramsci (1999) é a de que a filosofia da práxis, como filosofia da historicidade humana, “[…] continua a filosofia da imanência, mas depurando-a de todo o seu aparato metafísico e conduzindo-a ao terreno concreto da história” (GRAMSCI, 1999, p. 156). Desse modo, a filosofia da práxis se compromete com o projeto cultural de elevar as massas ao nível crítico do conhecimento: à compreensão da historicidade social e pessoal.

Para entender o modo de ser dos seres humanos, ou seja, para compreender como se formaram historicamente, é preciso utilizar um modo singular de filosofar, aderindo sua história como forma de conteúdo. Esse modo de filosofar atinge sua expressão mais elaborada com a filosofia da práxis, que continua sendo o marco para a luta por outro modelo de sociedade. O capitalismo que se estende por todo o planeta, esgotou suas possibilidades e mergulha em uma crise profunda de caráter estrutural, onde as relações de produção fundadas na propriedade privada dos meios de produção e dos produtos do trabalho estão se convertendo em um freio que impede o avanço das forças produtivas. Eis a razão pela qual a produção capitalista é hoje uma produção destrutiva. Isso se revela pelos constantes desastres ambientais, conflitos bélicos, expansão da criminalidade e da violência, dentre outros, cujos resultados destrutivos movimentam o capital para sua reconstrução, sem que as forças produtivas avancem para além do nível atingido. Os elementos estão postos, o que permite considerar que está aberta, conforme os dizeres de Marx, uma época de revolução social. Ainda assim, para que seja desencadeada com alguma chance de êxito, é necessário também que se conte com as condições subjetivas que dependem, em grande parte, do trabalho educativo (SAVIANI, 2017).

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo como base a questão norteadora: como a formação e a emancipação do ser humano podem ser alcançadas através da construção do conhecimento utilizando-se da Teoria Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico Crítica? O presente artigo objetivou demonstrar o processo da construção do conhecimento à educação e apresentar os conceitos da Teoria Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico Crítica, com vista à emancipação do ser humano.

Dessa forma, foi possível constatar que a crise estrutural da atual forma de sociedade obriga sua transformação radical, o que implica uma práxis revolucionária que não se viabilizará sem o preenchimento das condições objetivas e subjetivas. Para isso, se faz necessário uma educação que dê conta da constituição de “formas de subjetividade e de consciência, no campo da objetividade”.

Trata-se de colocar uma pedagogia e uma teoria inspirada no materialismo histórico, que compõem a chamada “Escola de Vigotski”, identificada como teoria histórico-cultural, e se utilizar também da pedagogia histórico crítica, as quais explicitam teoricamente como os sujeitos são produzidos histórica e socialmente, evidenciando o papel estratégico da educação e da escola nesse processo de transformação das estruturas sociais vigentes.

Por esse caminho, a corrente da teoria histórico-cultural se articula com a pedagogia histórico crítica para fornecer uma orientação voltada para uma formação que assegure as novas gerações a apropriação dos instrumentos teóricos práticos, visando inseri-las ativa e criticamente na luta pela transformação da sociedade atual, colocando a educação a serviço da plena emancipação humana.

A atividade práxica se coloca ao ser humano, tanto no processo de produção do conhecimento como na sua aplicação prática, e fundamente-se sempre entre as dimensões teóricas e práticas, para que se apreenda o fenômeno de modo multilateral e profundo. Ambas as atividades dependem de que o pensamento teórico, possibilidade histórica objetivada, se expresse na existência dos indivíduos como força no sentido de conhecer o real. Não se efetivam, tanto a evolução ou o desenvolvimento do pensamento quanto a sua expressão epistêmica, senão em um contexto de ensino e de apreensão dos saberes constituídos historicamente, conferindo especial importância à educação no âmbito da filosofia da práxis para a emancipação.

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APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

4. Os signos são produtos do trabalho intelectual dos homens que se tornam ‘ferramentas’ ou ‘instrumentos’, através dos quais o próprio psiquismo se desenvolve e opera. Na qualidade de objetivação teórica, abstrata, eles se impõem como dados para a apropriação por parte de outros indivíduos, de modo que a historicidade humana se fundamenta, também, como um processo de criação e transmissão de signos, ou seja, como um processo mediado pelo ensino. Signo exerce o seu papel como um instrumento que favorece na atividade psicológica de forma análoga na função de um instrumento de trabalho (MARTINS, 2013, p. 57).

[1] Doutoranda em Educação pela Universidade Nacional de Rosário na Argentina. Especialização em Gestão e Controle Social de Políticas Públicas pela Universidade Federal de Alagoas; Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas. ORCID: 0000-0001-7866-5684.

[2] Pós-Doutorado em Humanidades e Tecnologias, Universidade Lusófona, Portugal. Doutorado em Ciências Odontológicas. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, São Paulo, Brasil. Mestrado em Ciências Odontológicas. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, São Paulo, Brasil. Especialização em Educação para as Profissões da Saúde. Universidade Federal do Ceará, UFC, Fortaleza, Brasil. Especialização em Gestão Pedagógica em Saúde. Universidade Federal de Alagoas, UFAL, Maceió, Brasil. Graduação em Odontologia. Universidade Federal de Alagoas, UFAL, Maceió, Brasil. ORCID: 0000-0001-9489-7602.

[3] Orientadora. Doutora em Ciências Biomédicas. Faculdade de Ciências Médicas. Universidade Nacional de Rosário. ORCID: 0000-0001-8742-361X.

Enviado: Novembro, 2021.

Aprovado: Julho, 2022.

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Izabella Regina Almeida Santos de Carvalho

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