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Concepções de professores da primeira etapa do Ensino Fundamental sobre sexualidade infantil

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

MINALI, João Alexandre [1], PRIOSTE, Cláudia Dias [2]

MINALI, João Alexandre. PRIOSTE, Cláudia Dias. Concepções de professores da primeira etapa do Ensino Fundamental sobre sexualidade infantil. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 01, Vol. 01, pp. 114-133. Janeiro de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/concepcoes-de-professores

RESUMO

A sexualidade infantil é um tema que envolve polêmicas, principalmente quando relacionado ao ambiente escolar e à formação dos docentes. Este artigo busca descrever as concepções de professores do Ensino Fundamental I sobre a sexualidade infantil, bem como o contato com esta temática em seus percursos formativos. A coleta de informações ocorreu em um grupo focal e entrevistas semiestruturadas com cinco professores de uma escola pública. Os resultados demonstraram que, embora a maioria dos professores entrevistados considerem a sexualidade como algo presente no desenvolvimento humano desde a infância, percebem que seus conhecimentos teóricos estão parcialmente desatualizados. Além disso, consideram que suas formações foram insuficientes para atuarem nas questões complexas que emergem no cotidiano escolar. Concluímos sobre a importância de formações continuadas que considerem a complexidade teórica e dos contextos escolares.

Palavras-chave: Sexualidade infantil, formação de professores, educação sexual.

1. INTRODUÇÃO

O tema da sexualidade infantil é polêmico e alvo de inúmeras controvérsias quando se trata de educação escolar. De um lado, há os que defendem o silêncio da escola por se tratar de assunto delicado e supostamente de foro íntimo das famílias. De outro, há os que consideram as questões sexuais como parte natural dos seres humanos e defendem a importância de uma abordagem educativa, sobretudo no sentido de prevenção de abusos, prevenção de gravidez precoce, doenças sexualmente transmissíveis e conscientização quanto aos preconceitos em função de gênero. Independente de os educadores serem favoráveis ou contra, é inegável que cotidianamente se deparam com manifestações sexuais, dúvidas dos alunos e das famílias, além de inúmeros conflitos que envolvem a dimensão sexual, tanto no que se refere às questões corporais, como relacionais e de papéis de gênero. Como abordar esses problemas considerando a diversidade de valores familiares? Quais são as concepções de sexualidade na infância, na visão dos professores?

2. SEXUALIDADE INFANTIL E EDUCAÇÃO

As concepções freudianas sobre a sexualidade causaram grande impacto no início do século XX, principalmente por colocar em debate a visão preponderante no mundo médico e científico: a concepção naturalista de um instinto genital que despertaria somente com o advento da puberdade. Considerando que a vida sexual tem seu início logo após o nascimento, Freud estabelece uma distinção entre os conceitos de “sexual” e “genital”, o que possibilita pensar o primeiro destes como um conceito mais amplo, o qual inclui muitas atividades que nada teriam a ver com os órgãos genitais (FREUD, 1939/1996).

A sexualidade, tal como Freud concebe em seu campo, não começa na puberdade com a entrada em função dos órgãos genitais, mas desperta muito cedo após o nascimento. Como ele lembraria em 1938 no “Esboços de psicanálise”, a palavra sexual designa para a psicanálise um conjunto de atividades sem ligações com os órgãos genitais, não se devendo, portanto, confundir o sexual com o genital. A finalidade de satisfação do sexual assim compreendido não coincide necessariamente com uma finalidade de reprodução (DESPARTS-PÉQUIGNOT, 1996, p. 467).

Em “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud (1905/1996) reconhece a existência de uma sexualidade presente já na infância, onde a pulsão ainda não encontrar-se-ia, como na idade adulta, organizada sob a primazia dos genitais, mas atuando por meio de pulsões parciais dissociadas entre si e que partiriam de zonas erógenas que levariam a criança à obtenção de prazer através de múltiplas partes de seu corpo em um processo de satisfação auto erótica. Desse modo, Freud (1905/1996) reconhece uma disposição perverso-polimorfa na sexualidade infantil.

Ao constatar atividades que demonstram uma organização no desenvolvimento sexual infantil, Freud (1905/1996) estabeleceu quatro fases para esse desenvolvimento. A etapa oral, na qual o prazer é fixado na mucosa labial, constituindo-se como principal exemplo a atividade de sugar. A fase sádico-anal, cuja a satisfação seria obtida por meio da mucosa intestinal, com a retenção das fezes. A fase fálica, na qual o conjunto das aspirações sexuais infantis convergiriam para um primeiro tempo da escolha objetal, aproximando-se da forma sexual definitiva assumida na vida adulta e sendo interrompida pelo longo período de latência. E, por fim, a fase genital, que surgiria com o advento da puberdade, com a concentração e subordinação das pulsões parciais sob a primazia da genitália, representando um segundo momento da escolha objetal na forma sexual considerada definitiva. Entretanto, a propósito das três primeiras fases, Freud (1938/1996) adverte que não há uma sucessão clara entre elas, podendo estenderem-se, sobreporem-se ou aparecerem presentes lado a lado.

Contudo, ainda nos dias atuais, é significativa a análise de Freud (1905/1996) sobre a ideia de a sexualidade ser ausente na infância e que se tornaria presente no ser humano apenas com o advento da puberdade.

A opinião popular faz para si representações bem definidas da natureza e das características dessa pulsão sexual. Ela estaria ausente na infância, far-se-ia sentir na época e em conexão com o processo de maturação da puberdade, seria exteriorizada nas manifestações de atração irresistível que um sexo exerce sobre o outro, e seu objetivo seria a união sexual, ou pelo menos os atos que levassem nessa direção (FREUD, 1905/1996, p. 128).

Circunscrita a esta concepção, a própria sexualidade pouco ultrapassaria sua determinação biológica, permanecendo atrelada apenas à noção de genitalidade em detrimento da sua compreensão como uma dimensão ontológica fundamentalmente humana, cujas significações e vivências também são determinadas pela subjetividade de cada indivíduo e, principalmente, pela cultura, tendo seu condicionamento influenciado por diferentes momentos históricos, econômicos, políticos e sociais (FIGUEIRÓ, 2006).

Tal concepção torna-se motivo de preocupação quando relacionada à escola, já que, segundo Ribeiro (2013, p. 11),

a escola é um espaço sexualizado que acolhe todo tipo de manifestação sexual, ainda que na maioria das vezes de forma negativa, vigorando em seu espaço a dificuldade de se lidar com quaisquer comportamentos ou atitudes que exprimam curiosidade, desejo e prazer decorrentes da sexualidade.

No Brasil, diversos estudos têm sido empreendidos no sentido de contribuir com uma formação docente que aborde temas relacionados à sexualidade. Na década de 1990, houve um crescimento expressivo das pesquisas sobre temas voltados à formação de professores em um contexto de educação sexual, principalmente devido à inserção da temática da Orientação Sexual como tema transversal dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). E, embora a adoção dos PCN nos estados brasileiros não fosse obrigatória, simbolizou um grande avanço por ser o primeiro plano nacional de educação a reconhecer a educação sexual como um direito de todos os alunos (MAIA & RIBEIRO, 2011).

No entanto, segundo Bedin (2016, p. 140),

o processo de construção da Educação Sexual no Brasil foi interrompido em 2015 a partir de uma reação conservadora organizada por setores religiosos mais fundamentalistas que têm conseguido forçar a exclusão de todas as propostas e ações educativas envolvendo sexualidade e gênero.

Decorrente disto, cria-se um cenário de embate entre pesquisadores e setores contrários à inserção da temática da sexualidade nos espaços de formação docente. Para estes setores contrários, segundo Ribeiro (2013, p. 11), “negar a sexualidade é como se ela pudesse ser afastada dos contextos escolares”. Acrescenta-se a isto a precarização dos contextos de formação e de atuação profissional dos docentes, já que o professor, em seu ambiente de trabalho, segundo Figueiró (2006, p. 63), “necessita dividir a utilização do seu tempo com variadas atividades de planejamento, organização e execução do trabalho pedagógico e com o estabelecimento de prioridade entre as várias tarefas e solicitações dos alunos, pais e colegas”.

Entretanto, embora compreenda-se que tais fenômenos se constituam como entraves à possibilidade de ações formativas sobre questões relacionadas à temática da sexualidade infantil, assim como se compreende, igualmente, a importância de uma formação nesse sentido para os professores, crê-se importante considerar que, sob uma perspectiva psicanalítica, a relação entre educadores e questões ou situações ligadas à sexualidade infantil iria além dessa formação. Segundo Freud (1905/1996), em um dado momento da infância, por volta dos cinco anos, ocorreria a chamada amnésia infantil, responsável por ocultar, de cada um, os primórdios de nossa própria vida sexual. Deste modo, os adultos tornar-se-iam, não somente estranhos à sua infância, mas à infância em geral (MILLOT, 1987).

Nesse sentido, a pesquisa apresentada neste artigo tem o objetivo principal de descrever as concepções de sexualidade infantil de um grupo de professores da primeira etapa do Ensino Fundamental de uma escola pública.  Além disso, buscou-se identificar se os docentes tiveram algum tipo de formação, inicial ou continuada, que respaldasse suas concepções para uma atuação diante das problemáticas enfrentadas.

Contudo, cremos ser importante acrescentar que, ao abordarmos professores da primeira etapa do Ensino Fundamental, estamos interagindo com profissionais que atuam com crianças cuja faixa etária vai dos 6 aos 11 anos de idade e que, sob o enfoque psicanalítico, estariam compreendidas pelo chamado período de latência.

2.1 O PERÍODO DE LATÊNCIA

 A elaboração do conceito de latência por Freud (1905/1996) está relacionada à concepção de um período caracterizado pela suspensão da atividade sexual por meio do surgimento de formações reativas no psiquismo infantil, as quais, à maneira de diques, conduziriam a pulsão sexual a formas alternativas de descarga através do processo de sublimação. Entendendo-se a sublimação como um processo de dessexualização da energia pulsional por meio do seu investimento em atividades de grande valor em uma determinada sociedade, a latência apresentar-se-ia como um período no qual a pulsão se distanciaria da sua finalidade sexual e passaria a ser empregada em metas de descarga socialmente aceitas, como jogos, brincadeiras e atividades intelectuais, inserindo a criança, gradativamente, na compreensão dos códigos de sua cultura e preparando-a para a maturidade sexual prevista na adolescência.

Embora Freud tenha, ao longo de sua obra, oscilado quanto à latência ser uma determinação biológica ou produto da cultura, autores posteriores, como Charles Sarnoff (1995) e Rodolfo Urribarri (2012), têm assinalado a latência como um processo desencadeado pelas sociedades que incluem, em seus programas educacionais, a repressão da atividade sexual infantil. Tratar-se-ia de um período de submissão da criança às defesas egóicas que, além de resguardarem-na contra o incessante assalto pulsional, a inseririam em um intenso trabalho de congregação de mecanismos para fins sublimatórios de modo a harmonizar as solicitações socioculturais e as exigências do superego (URRIBARRI, 2012).  Contudo, ainda que a latência possa ser um processo viabilizado pela cultura, é importante salientar que as mudanças ocorridas nesse período encontrariam apoio em uma maturação neurobiológica, a qual se completaria por volta dos 10 anos (ARAÚJO & FERREIRA, 2001).

Neste período, seriam observadas notáveis mudanças no desenvolvimento cognitivo e afetivo-sexual da criança. O interesse pelo corpo e seu funcionamento cederia espaço para a compreensão de novos fenômenos culturais. Haveria uma ampliação das relações interpessoais na busca de novos modelos de identificação. O narcisismo da primeira infância, exigente de satisfações, daria lugar à capacidade de suportar limites, frustrações e de renunciar ao seu objeto em troca da aceitação de outrem (ENCK, 2007). Os jogos e a busca de conhecimento constituir-se-iam em uma tentativa de conhecer o outro e a si mesmo, suas atitudes, sua capacidade física, suas preferências, suas tendências nas relações com seus pares. Como afirma Souza (2014, p. 159),

trata-se de uma criança, agora taciturna, que busca estabelecer comparações, observar as diferenças; que compara seus pais com os pais de seus amigos, que estabelece as primeiras percepções das diferenças econômicas, estéticas e sociais. Trata-se de um processo de discriminação e diferenciação.

Em termos de linguagem, seria a superação da ação pela verbalização, a busca das coordenadas por meio da linguagem, do significante, não mais pela via do objeto. Portanto, antes de tratar-se de um tempo inexpressivo, de adiamento e espera, no qual haveria um entorpecimento da vontade, o que ocorreria é justamente o contrário. O que seria posto em suspenso, na latência, seria apenas a finalidade sexual. A busca pelo prazer continuaria, no entanto, inscrita no âmbito cultural (LEÃO, 1990).

Entretanto, como bem assinalou Freud (1905, p. 179), “vez por outra irrompe um fragmento de manifestação sexual que se furtou à sublimação, ou preserva-se uma atividade sexual ao longo de todo o período de latência, até a irrupção acentuada da pulsão sexual na puberdade”.

2.2 PERÍODO DE LATÊNCIA E ESCOLA

 A concepção de um período de latência durante o desenvolvimento infantil, elaborada por Freud (1905/1996), está intimamente associada ao momento em que a criança inicia seu percurso no Ensino Fundamental. A escola, segundo Araújo e Ferreira (2001, p. 113), responde a uma necessidade própria e real da criança desse período que é “a possibilidade de uma formação efetiva de laços de amizades e a avaliação de seu self em relação aos outros”. Também seria atribuído à instituição educacional o papel de reforçar a incumbência social de repressão pulsional, concomitantemente, com a prescrição de determinadas atividades e vias de descarga para a pulsão sexual e agressiva (URRIBARRI, 2012).

É o âmbito privilegiado mediante o qual a sociedade promove a renúncia à satisfação pulsional direta e a derivação para outras atividades. Reforça as proibições, como aliada do Superego, portanto é temida e acatada (não sem certo grau de conflito e dificuldade). Ao mesmo tempo é cuidadora e sustentadora, substitutiva da função parental (tanto como Superego protetor, como de Ego auxiliar), portanto, enfrentada com ambivalência (URRIBARRI, 2012, p.199).

Sendo assim, a escola revelar-se-ia para a criança como um lugar e um tempo com características peculiares, reconhecendo a diferença entre ela e o adulto e possibilitando um tempo de espera e preparação em que está sendo gestado o cidadão que ela será (DRÜGG, 2007).

Entretanto, de acordo com Urribarri (2012), paralelamente às teorias que abordam uma diminuição fisiológica da pulsão, construiu-se uma tendência de representação da criança do período de latência ligada a um ideal de evolução baseado na harmonia, na docilidade, paciência e devoção aos estudos, desconhecendo-se que, por trás da aparente calmaria, existiria uma torrente de inquietações, inseguranças, desequilíbrios e ansiedades resultantes do incessante assalto pulsional, à procura de descarga,  e do equilíbrio ainda precário do aparelho psíquico infantil.

A amnésia infantil que se instala a partir do desenlace do Édipo produz na criança um efeito de perplexidade, estranhamento com ela mesma, posto que o que foi tornado inconsciente deixa no Ego consciente uma sensação de vazio de conteúdos e nexos, sentido tanto como um deslocamento e perda de referências a respeito de si, como um desajuste interno com sensações de incômodo, ansiedade e sinais vagos de perigo (URRIBARRI, 2012, p. 99).

Assim, a latência seria um período em que a criança iniciaria sua trajetória rumo à independência, mas que necessitaria da mediação do adulto nesta jornada. Ainda que as novas tarefas desse período proporcionassem a ela certa satisfação por se sentir aprovada, útil e desejada, a nova realidade também a oprimiria e, em muitos momentos, ela se sentiria desalentada de se perceber tão longe de seus desejos mais primitivos (LEÃO, 1990).

Essa condição da criança latente evidencia a importância, para a escola, do investimento em formações embasadas em referenciais teóricos relacionados ao desenvolvimento sexual infantil. Principalmente, para seus professores, já que, segundo Freud (1914), estes profissionais seriam reconhecidos por seus alunos como os substitutos parentais mais próximos e para os quais, ainda que na mesma relação de ambivalência que mantinham com seus pais, lhes transfeririam seu respeito e expectativas.

No entanto, para Pedroza (2010), essa formação deveria promover uma reflexão sobre a formação pessoal dos próprios professores, sobre os processos que influenciam a sua constituição como sujeitos sociais da construção de uma proposta educacional. Ou seja, a formação dos professores deveria também abranger o entendimento das concepções que os norteiam em sua prática, de modo que se possa prepará-los para que assumam a sua condição de sujeitos de saber em atuação na escola.

Deste modo, a pesquisa com os professores do Ensino Fundamental 1 de uma escola pública, como já mencionado, visou a obtenção de relatos desses profissionais de modo a descrever suas concepções sobre a sexualidade infantil, bem como sua formação sobre esse tema, de modo que tais relatos pudessem ser problematizados junto a um referencial teórico sobre sexualidade infantil e formação de professores.

Importante salientarmos que o presente estudo faz parte de uma pesquisa mais ampla que tem o objetivo de analisar as interpretações de professores sobre manifestações da sexualidade infantil no âmbito escolar, precisamente no contexto da primeira etapa do Ensino Fundamental. Apresentamos aqui os resultados preliminares da investigação no que tange às concepções de sexualidade infantil na perspectiva dos docentes, bem como as informações que obtiveram sobre essa temática em seus percursos formativos.

A escolha por professores que atendem alunos na faixa etária entre 6 e 11 anos, ou seja, crianças que, sob a perspectiva psicanalítica, estariam no período de latência, deu-se mediante o entendimento de que, comparado às pesquisas no âmbito da Educação Infantil e em contextos envolvendo adolescentes, ainda são poucas as pesquisas sobre sexualidade que abordam professores atuantes nesta etapa da vida escolar das crianças.

3. ASPECTOS METODOLÓGICOS

3.1 DELINEAMENTO DA PESQUISA

Este estudo faz parte de uma pesquisa mais ampla que visa uma análise de interpretações docentes sobre manifestações da sexualidade infantil na primeira etapa do Ensino Fundamental. Optou-se pela abordagem qualitativa de pesquisa em Educação por se considerá-la mais adequada a esta pesquisa, já que, segundo André (2013, p.97), “as abordagens qualitativas em pesquisa se fundamentam numa perspectiva que concebe o conhecimento como um processo socialmente construído pelos sujeitos nas suas interações cotidianas, enquanto atuam na realidade, transformando-a e sendo por ela transformados”.

Trata-se de uma pesquisa de caráter descritivo, por se tratar de uma descrição das concepções de professores da primeira etapa do Ensino Fundamental sobre a sexualidade infantil, bem como o seu contato com esta temática em seus cursos de formação.

3.2 PARTICIPANTES DA PESQUISA

Participaram da pesquisa um grupo com quatro professoras e um professor que atuam na primeira etapa do Ensino Fundamental atendendo alunos na faixa etária entre 6 a 11 anos. Embora a maioria dos participantes da pesquisa pertençam à categoria 1, comumente atuante nas salas de aula da primeira etapa do Ensino Fundamental, uma das professoras atua como professora de Educação Física de alunos pertencentes a esta etapa de ensino. Cremos ser importante salientar que a aproximação com os participantes da pesquisa, segundo Neto (2002), fundamental à consolidação de uma relação de respeito às pessoas e às suas manifestações no âmbito da comunidade pesquisada, foi facilitada pelo fato do pesquisador atuar profissionalmente na mesma etapa de ensino escolar.

Apresentamos abaixo um quadro com a formação dos cinco professores, o seu tempo de atuação na primeira etapa do Ensino Fundamental e os anos para os quais já lecionaram. Optou-se por incluir apenas essas informações a respeito dos professores, juntamente com suas nomenclaturas fictícias, de modo a preservar ao máximo as suas identidades.

Tabela 1. Características profissionais dos participantes da pesquisa

Professores Formação Tempo de atuação no Ensino Fundamental 1 Anos de ensino nos quais atuou
Professora R1 Graduação em Pedagogia. 13 anos 1°, 2°, 3°, 4° e 5°
Professora R2 Graduação em Pedagogia com habilitação em Educação Especial e Educação Infantil; Pós-Graduação em Psicopedagogia (EaD). 10 anos 1°, 2°, 3°, 4° e 5°
Professor R3 Graduação em Pedagogia; Pós-Graduação em Psicopedagogia (EaD); Pós-Graduação em Neuroeducação (EaD); Pós-Graduação em Educação Ambiental (EaD). 10 anos 1°, 2°, 3°, 4° e 5°
Professora R4 Graduação em Ciências Sociais; Graduação em Pedagogia com especialização em Educação Infantil. 18 anos 2°, 3°, 4° e 5°
Professora R5 Graduação em Educação Física. 3 anos 1°, 2°, 3°, 4° e 5°

3.3 INSTRUMENTOS DE PESQUISA

Para esta pesquisa, foram utilizadas as modalidades de grupo focal e de entrevista individual semiestruturada, ambas orientadas por um roteiro de 13 perguntas, tendo estas sido elaboradas em acordo com o objetivo da pesquisa.  A escolha pela inclusão da modalidade de grupo focal como instrumento para a coleta de informações decorreu do entendimento de que essa modalidade poderia trazer contribuições heurísticas aos participantes da pesquisa, já que, segundo Barbour (2009), essa estratégia pode promover insights sobre soluções dos problemas investigados. Diferentemente de uma entrevista coletiva, nos grupos focais o pesquisador dinamiza algumas questões, provocando debates e reflexões entre os participantes.

3.4 PROCEDIMENTOS DE COLETA DOS DADOS

A proposta da pesquisa foi apresentada à direção e aos professores da escola que serviu de campo para a coleta dos dados, de modo a um planejamento das ações envolvendo a disponibilidade dos professores, espaços e horários, avaliação dos procedimentos e instrumentos de coletas de dados.

A coleta de dados deu-se, em um primeiro momento, por meio de um grupo focal com os professores e, posteriormente, por meio de entrevistas individuais semiestruturadas.

Tanto o grupo focal como as entrevistas individuais foram orientados por um roteiro de treze perguntas acrescidas de eventuais questionamentos durante o decorrer das entrevistas com o objetivo de obter maior clareza a respeito de alguns relatos fornecidos pelos professores.

Os relatos foram gravados em áudio por meio de um aplicativo de celular e, em seguida, transcritos para análise. Os espaços utilizados para a gravação dos relatos, tanto durante o grupo focal como durante as entrevistas individuais, consistiram em espaços da própria escola, os quais foram selecionados considerando a mínima possibilidade de ruídos que pudessem interferir nas gravações.

3.5 ANÁLISE DOS DADOS

 A análise dos dados deu-se, primeiramente, pela transcrição dos dados coletados nas entrevistas e nos grupos focais. A organização dos dados coletados deu-se por meio da divisão destes em duas categorias, as quais já haviam sido definidas no período de elaboração dos instrumentos de investigação, de modo a facilitar a organização desses dados, entendendo-se que, de acordo com Gomes (2002, p. 70), “o pesquisador deveria antes do trabalho de campo definir as categorias a serem investigadas”. Sendo assim, as categorias demonstraram estar alinhadas ao objetivo desta pesquisa, o que possibilitou a sua discussão junto a um referencial teórico.

3.6 PROCEDIMENTOS ÉTICOS

Consideramos importante esclarecer que todos os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido e foram informados sobre o sigilo das informações e a codificação dos seus nomes verdadeiros. Todos os procedimentos da pesquisa seguiram os princípios da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e do Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara, cumprindo as normas estabelecidas pelas Resoluções 466/2012 e 510/2016. Portanto, durante a coleta de dados, garantiu-se o respeito aos participantes em sua dignidade e autonomia, não envolvendo riscos à sua dimensão física, psíquica, moral, intelectual, social, cultural ou espiritual.

4. DISCUSSÃO E RESULTADOS

4.1 CONCEPÇÕES DOS PROFESSORES SOBRE SEXUALIDADE INFANTIL

Nesta primeira categoria, apresentamos as concepções dos professores sobre a sexualidade infantil, inclusive, sobre suas manifestações no espaço escolar. Em algumas das falas, ficou evidente a concepção da sexualidade como uma manifestação inerente ao desenvolvimento humano, como percebido na fala da Professora R2:

As crianças são seres humanos e a sexualidade faz parte do desenvolvimento humano. Eu entendo que a sexualidade faz parte de qualquer ser humano e que ela vá se desenvolver durante a vida para culminar num comportamento adulto de sexualidade X. Às vezes saudável, às vezes não, mas que esse processo vai acompanhar toda vida.  (Professora R2).

Em uma fala do professor R3 encontramos a concepção de sexualidade infantil relacionada à pulsão de saber: É essa parte das descobertas, da curiosidade. Eu acho que, assim, se caracteriza muito por isso. Esse processo de descoberta é importante e eu entendo como sexualidade infantil. Pelo menos assim, no meu ambiente profissional que eu vejo é isso” (Professor R3).

Segundo Freud (1907/2019), a criança desenvolveria, em um dado momento da infância, por volta dos três anos, um grande interesse intelectual pelos enigmas da vida sexual. Já ao final do conflito edipiano, quando a criança ingressaria no período de latência, o interesse por questões referentes ao corpo e seu funcionamento passaria a deslocar-se para a compreensão de novos fenômenos da cultura, favorecendo o desenvolvimento intelectual e do pensamento (ENCK, 2007). Entretanto, segundo Kupfer (1989, p. 84), embora haja esse deslocamento dos interesses sexuais para os não-sexuais, “a matéria de que se alimenta a inteligência em seu trabalho investigativo é sexual”.

Já a professora R4, além de conceber a sexualidade infantil como o conjunto de “condutas sexuais” da criança, acrescenta que estas podem sofrer a influência tanto de fatores maturacionais quanto familiares:  “Eu acho que são as condutas, né, sexuais da criança. Então é…. Como eu te falei naquele momento, ela pode estar mais aflorada ou não. Depende da maturidade dessa criança, como está sendo trabalhado isso com ela em casa” (Professora R4). A mesma professora também destaca, em uma de suas falas, o reconhecimento da sexualidade infantil como parte do desenvolvimento humano: “Eu acho que isso é inerente do ser humano. Sexualidade é inerente ao ser humano.” (Professora R4).

Notou-se também a dificuldade de uma professora em formular uma concepção sobre o tema: “Porque é muito… ‘sexualidade’… Eu nunca pensei em uma definição…” (Professora R1). A hesitação presente na fala da professora conduz à suposição de que a dificuldade em se falar sobre sexualidade infantil no âmbito escolar decorreria, não somente da falta de conhecimentos e do tabu social em relação ao tema, mas também de questões de ordem pessoal ligadas à repressão, pois, de acordo com Freud (1905/1996), a dificuldade dos adultos em reconhecer um desenvolvimento sexual no período infantil guardaria íntimas relações com a amnésia infantil, a qual é gerada por processos de recalcamento operados já na infância e responsável por ocultar-lhes os primórdios de sua própria vida sexual. Deste modo, os adultos tornar-se-iam, não somente estranhos à sua infância, mas à infância em geral (MILLOT, 1987).

Por outro lado, a professora R2 demonstrou algum conhecimento sobre particularidades do período de latência referente à sublimação:  “O próprio Freud falava, né, que a energia sexual, ela é canalizada para outras coisas e funções até determinada idade, mas isso não quer dizer que ela não exista, que ela não esteja ali” (Professora R2). Essa fala condiz com a análise de Freud (1905/1996), no sentido de que ““a produção de excitação sexual de modo algum é suspensa, mas continua e oferece uma provisão de energia que é empregada, em sua maior parte, para outras finalidades que não as sexuais” (FREUD, 1905/1996, p. 219).

Um outro aspecto do período de latência, mencionado pela mesma professora, refere-se ao processo de identificação que a criança estabelece com os papéis sociais na construção de sua identidade: “A sexualidade enquanto experiência de descoberta, de gênero, de identificação de gênero com os papéis sociais, tudo isso desenvolve, né, principalmente nos últimos anos do ciclo.” (Professora R2). Esta fala remete a uma importante característica infantil da criança do período de latência pois, segundo Araújo e Ferreira (2001, p. 114), “embora o processo de formação da identidade de gênero se inicie aos três anos, nessa fase ele é muito influenciado e modulado pela escolha de papéis, modelos, amigos e pela socialização”.

Para Freud (1905/1996, p. 168), ainda que o emprego da sexualidade infantil no período de latência represente um ideal educativo, salutar para o ingresso da criança na cultura da sociedade da qual faz parte, “vez por outra irrompe um fragmento de manifestação sexual que se furtou à sublimação, ou preserva-se alguma atividade sexual ao longo de todo o período de latência, até a irrupção acentuada da pulsão sexual na puberdade”. Tais rupturas puderam ser exemplificadas em algumas declarações dos professores, nas entrevistas e no grupo focal, sobre manifestações sexuais por parte de crianças desse período envolvendo a curiosidade sexual infantil, na exploração do próprio corpo e de outrem no banheiro ou em outros espaços da escola onde pudessem se ocultar dos adultos, como é demonstrado em uma fala da professora R5: “Percebo esses momentos quando levo eles no banheiro, e os meninos mostram o “pipi” um para o outro, e com as meninas que começam a usar sutiã e tal”(Professora R5).

Em uma das falas da professora R2, referente a tais episódios, ela enfatiza a necessidade de abordar as crianças e explicar-lhes sobre a inadequação de tais comportamentos na escola.

E essa curiosidade é normal, mas as regras da escola não permitem que isso aconteça. Então, eles precisam aprender que eles não podem fazer certas coisas em qualquer lugar. Não é porque a gente considera normal, sabe, que eles têm essa curiosidade que a gente vai permitir que eles transformem o banheiro em observatório. Não é assim que a coisa funciona. Do mesmo jeito que pessoas adultas não podem ter relações sexuais em público, eles também não podem. Tem lugar para tudo, tem hora para tudo (Professora R2).

No depoimento supramencionado, evidencia-se sua concordância quanto a esse comportamento ser característico da etapa do desenvolvimento no qual a criança se encontra, mas também demonstra sua postura quanto à necessidade de instruir as crianças a adotarem um comportamento adequado em relação à sua sexualidade face aos ambientes de socialização, como a escola. Prosseguindo em sua fala, a professora enfatiza a necessidade de uma abordagem adequada por parte dos profissionais da escola, de modo que não se incuta na criança a concepção de que sua atitude esteja associada a algo sujo ou pecaminoso.

Mas também não dá para atribuir certos valores, por exemplo, “isso é pecado, isso é sujo, isso é…”. A gente tem que explicar que tem horário para tudo, hora para tudo e que ali não é adequado, mas tem que tomar cuidado para não transformar isso em um peso moral e dar a isso uma conotação de pecado. E é engraçado que a gente vê que os valores dos funcionários e dos professores da escola incidem diretamente sobre a forma como a sexualidade é tratada (Professora R2).

Esse depoimento está relacionado à postura considerada como adequada a um profissional escolar assinalada por Figueiró (2009, p. 195):

O que pode trazer repercussões negativas para a formação sexual das crianças, na vida adulta, são as atitudes dos adultos quando presenciam as brincadeiras ou cenas. Quando acontece, nos banheiros das escolas, por exemplo, é essencial a atitude serena dos adultos e o encaminhamento das crianças para a volta às suas atividades de sala, sem escândalos ou humilhações (FIGUEIRÓ, 2009, p. 195).

O comportamento exploratório, movido pela pulsão de saber, também apareceu na fala da professora R1, que mencionou o episódio de algumas de suas alunas que estavam no banheiro da escola observando mutuamente suas roupas íntimas. Sobre este episódio, comenta a professora:

Eu acho que não é a hora ainda, sabe? É a hora de ser criança, é a hora de ter curiosidade, hora de não saber o que é. E eu não acho isso negativo, você não saber o que é, o que está por vir, de ter a revelação na adolescência. Eu acho isso positivo, eu acho isso saudável. Você pode ser criança, ter um amigo sem pensar nisso, sem saber (Professora R1).

Diante desta fala da professora R1, entendemos que a escola, como instituição, detém o papel importante de colaborar com o emprego da energia sexual infantil em atividades de grande valor social. Entretanto, concordamos com Kupfer (1989) no sentido de que os professores, caso lhes seja possível, jamais escondam de seus alunos a verdade sobre a sexualidade. Cabe-nos também acrescentar, sobre este comentário, o que diz Freud (1905/1996, p. 168) sobre os professores ao se depararem com manifestações da sexualidade infantil:

Na medida em que prestam alguma atenção à sexualidade infantil, os educadores portam-se como se compartilhassem nossas opiniões sobre a construção das forças defensivas morais à custa da sexualidade, e como soubessem que a atividade sexual torna a criança ineducável, perseguem como “vícios” todas as suas manifestações sexuais, mesmo que não possam fazer muita coisa contra elas (FREUD, 1905/1996, p. 168).

4.2 FORMAÇÃO DOS PROFESSORES SOBRE SEXUALIDADE INFANTIL

Nesta segunda categoria, apresentamos os relatos dos professores sobre seu contato com a temática da sexualidade infantil em cursos de formação inicial ou continuada.

De acordo com Cagliotto (2014), é importante não desconectar a sexualidade do mundo da cultura, sendo que toda ela está, também, contextualizada. No entanto, dada a precarização na oferta de formações pautadas no contexto empírico, ou seja, nas demandas concretas da escola, muitos professores terminam por se defrontarem, na sala de aula ou em outros espaços escolares, com situações que lhes suscitam conhecimentos e habilidades que extrapolam os conteúdos teóricos disponibilizados em sua formação inicial e continuada.

Os relatos apresentados pelos professores sobre sua formação no espaço acadêmico ou em outros cursos voltados à prática docente denotaram abordagens teóricas consideradas por eles como insuficientes para lidarem com situações envolvendo manifestações da sexualidade infantil no ambiente escolar. Em uma de suas falas, a Professora R1 relatou sobre a desatualização dos conteúdos apresentados em sua graduação frente às demandas do contexto escolar atual: “As informações foram teóricas, né? Bem distantes da realidade da prática, com exemplos bem ultrapassados, do tempo dos pensadores e do que eles escreveram naquela época deles… Então, bem distante de como tem que fazer ali” (Professora R1). Esse relato também encontrou eco em R2, sendo mais explicitado na fala da professora.

Na universidade eu não recebi nenhuma… nenhuma orientação específica como trabalhar em sala de aula, os cuidados que eu deveria ou a fala que talvez fosse interessante ter. Na universidade, sim, a gente tem acesso ao desenvolvimento sexual da criança, mas ninguém ensina como fazer na prática (Professora R2).

De acordo com Figueiró (2006, p. 92), “a manifestação da sexualidade dos alunos no espaço escolar ou, mais comumente, na sala de aula está exacerbada, tendo em vista a forma como a sociedade atual e os meios de comunicação, em especial, abordam-na”. Decorrente disto, segundo a autora, a sexualidade se tornou uma das questões que mais têm trazido dificuldades aos professores na sua prática cotidiana, pois, na maioria das vezes, esses profissionais não aprenderam sobre como se posicionar diante da manifestação sexual e do desejo de saber dos alunos. Os aspectos teóricos abordados nos cursos de Graduação não dão conta de promover uma reflexão sobre o que ocorre no ambiente escolar e de como atuar, levando-se em consideração que, quando falamos sobre a escola, nos remetemos a um contexto que abrange diversidade religiosa, política, concepções sobre sexualidade influenciadas por ideais pessoais, morais e comunitários. Essa preocupação foi evidenciada na fala do Professor R3:

Você ler, você discutir com alguém é uma coisa, mas quando você está na prática, é diferente você lidar. Porque aí você também…você considera outros fatores ali que acontecem, né? Você saber que você vai ter que lidar com um pai, com uma criança, às vezes, fragilizada, e que envolve um monte de coisa que assim, na teoria… fica meio difícil (Professor R3).

Portanto, em se tratando de uma formação que abrange o tema da sexualidade infantil para os professores, é necessário considerar a proposta de uma reflexão sobre o contexto no qual esses profissionais atuam, pois “é após estar inserido na prática profissional, deparando com possibilidades e limites seus, dos seus alunos e de todo o contexto educacional, em nível micro e macro institucional, que os professores poderão exercitar a reflexão” (FIGUEIRÓ, 2006, p. 88).

Segundo a Professora R4, que teve sua graduação em Pedagogia concluída em uma época anterior em relação aos outros professores, não houve nenhuma abordagem ou discussão sobre a temática da sexualidade infantil em seu curso de formação inicial: “É, na minha graduação não teve esse tipo de debate, conversa” (Professora R4). No entanto, ela relatou ter feito um curso sobre o tema, o qual foi oferecido pela Secretaria Municipal de Educação: “Mas eu fiz um curso, recentemente, lá na Secretaria de Educação que tratava sobre esse assunto” (Professora R4). A docente também manifestou a sua compreensão da necessidade da expansão e continuidade desse curso, lamentando que ele tenha sido ofertado apenas a uma diminuta parte dos professores da rede pública municipal para o qual trabalha.

Foi oferecido esse ano na Rede Municipal aos professores de quarto ano. E foi falado que nós achamos fundamental que isso, esse tipo de curso se expandisse para outras séries de toda rede uma vez que… nós percebemos que existe uma carência de formação dos professores com relação a esse assunto (Professora R4).

Segundo Figueiró (2006), embora tenham a sua parcela de contribuição na formação do professor, é necessário considerar criticamente os cursos esparsos, já que a formação de educadores necessita ser concebida como um processo e deve se dar em um tempo não exíguo, com margem para que os professores possam refletir constantemente sobre a sua prática pedagógica nas reflexões coletivas realizadas juntamente àqueles que integram a sua equipe no âmbito escolar. Para a autora, é preciso considerar os professores, não meramente como técnicos e transmissores, mas como profissionais que também produzem saberes em sua atuação na escola. Deste modo, enfatizamos que a formação continuada precisa ter uma ligação com o espaço da escola e com os problemas com os quais os professores lidam em suas salas de aula, já que a reflexão sobre a prática cotidiana atua, segundo Figueiró (2006), como importante elemento estruturador da formação desses profissionais. Entretanto, de acordo com Pedroza (2010, p. 87),

A formação do professor foi sempre influenciada pela abordagem da ciência positivista que tem se mostrado simplista e limitada para a prática social e para a ação do profissional que é chamado a enfrentar problemas de grande complexidade e incertezas no cenário escolar. A dimensão técnica da ação pedagógica reduziu a profissão docente a um conjunto de competências e de capacidades.

Um último aspecto dessa pesquisa, no tocante à formação de professores sobre sexualidade infantil, refere-se à formação pessoal dos mesmos. Segundo Maia e Ribeiro (2011), cada pessoa que chega à escola já carrega consigo valores sexuais que lhes foram transmitidos pela cultura e, consequentemente, a sua concepção sobre a sexualidade influenciada pela família e pelo grupo social do qual faz parte. Nesse sentido, a formação de um professor não se restringe somente à formação inicial e à formação continuada, já que ela se dá antes mesmo da formação inicial e prossegue durante toda a prática profissional (FIGUEIRÓ, 2006). Portanto, pensar em uma formação para professores exige pensar a formação pessoal dos próprios professores, compreender os processos envolvidos na constituição destes como sujeitos sociais da construção de uma proposta de educação (PEDROZA, 2010).

Durante os anos de vida anteriores ao ingresso no curso de formação inicial, a pessoa vai construindo suas representações sociais, seus significados do que seja a escola, o ensino, o papel do professor e o do aluno, e assim por diante. Portanto, as experiências de vida da pessoa, anteriores e posteriores à sua formação inicial, contribuem para o processo de formação do educador (FIGUEIRÓ, 2006, P. 90).

Sendo assim, as concepções sobre sexualidade infantil dos professores estão atreladas, não somente aos conteúdos com os quais tiveram contato em sua formação inicial ou continuada, mas às concepções pessoais, morais, éticas ou religiosas, que constituem suas próprias personalidades como sujeitos do meio ao qual pertencem. Esse fato evidencia-se em uma das falas da Professora R2, a qual afirmou que a atualização dos seus conhecimentos sobre sexualidade infantil advinha do seu contato com grupos feministas e materiais que ela procurava estudar por conta própria:

E o que eu acho mais, assim, interessante, é que a minha forma, principal, de como tratar a sexualidade, ela tem muito a ver como o movimento feminista se posiciona. Tudo o que eu fui lendo durante a vida de feminismo, né, do movimento feminista, desenvolvimento de gênero” (Professora R2).

Esta declaração demonstra que, mesmo com a ausência de contextos formativos apropriados para o exercício de uma reflexão sobre questões envolvendo a sexualidade infantil no ambiente escolar, alguns professores buscam, por seus próprios meios, conhecimentos que eles mesmos julgam serem mais adequados às demandas vivenciadas, com o intuito de melhorar sua prática pedagógica. No entanto, de acordo com Pedroza (2010), a importância de uma prática reflexiva abarca a necessidade da criação de espaços onde o professor possa ser ouvido, onde encontre suporte para realizar essa reflexão de modo que se atinja a superação da prática reflexiva espontânea, já que os indivíduos não são conscientes de todos os seus atos e necessitam de um outro que os faça contemplarem suas ações.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola é um espaço que acolhe, diariamente, uma quantidade significativa de sujeitos e, consequentemente, múltiplos desejos, curiosidades e necessidades. No entanto, diante da dificuldade em se falar sobre sexualidade e da formação insuficiente que recebem sobre esta temática no seu percurso acadêmico, a maioria dos professores demonstrou preocupação sobre como atuar em relação às expressões sexuais infantis na escola.  De um lado, devido aos tabus sociais sobre o tema e à falta de uma formação continuada e contextualizada às questões escolares, de outro, pela falta de apoio por parte da estrutura organizacional escolar.

Os resultados desta pesquisa demonstraram que as concepções docentes sobre a sexualidade infantil ainda se pautam nos conteúdos ministrados nos cursos de formação inicial desses profissionais, bem como provenientes, em alguns casos, de cursos esparsos e da sua própria formação pessoal e estudos particulares. Tais concepções, embora em alguns momentos tenham referendado importantes aspectos presentes em estudos teóricos sobre o desenvolvimento sexual infantil, como a compreensão da sexualidade como um elemento intrínseco ao ser humano e, portanto, à infância, denotaram ainda, a necessidade de uma formação teórica mais consistente sobre o tema. Alguns docentes demonstraram dificuldade ao responderem questões sobre a sua concepção de sexualidade infantil. Salienta-se, no entanto, que essa dificuldade poderia estar ligada, não somente à falta de conhecimentos teóricos sobre o tema, mas também ao pudor e à vergonha, já que isto remeteria à sua própria sexualidade e a processos de recalque iniciados já na infância desses educadores.

As descrições dos professores em relação à formação inicial também destacaram a aquisição de conteúdos descontextualizados, não condizentes com muitos fenômenos presentes na realidade da escola, evidenciando, deste modo, a necessidade de uma unidade maior entre teoria e prática, uma formação que possibilite aos professores desenvolverem maiores habilidades para lidarem com problemas de grande complexidade no cenário escolar, como é o caso da sexualidade infantil. Entretanto, essa formação também perpassa a necessidade de uma estrutura escolar que forneça apoio e suporte psicológico aos professores, pois atuar diante de manifestações da sexualidade infantil no espaço escolar implicaria em um reconhecimento de sua própria sexualidade e dos conflitos inconscientes que dela fazem parte.

Para finalizar, destacamos que a figura do professor é de grande importância para o aluno, já que este o toma como um substituto parental, transferindo a ele os seus afetos e suas expectativas. Desse modo, é necessário que haja uma valorização dos espaços de formação docente, não somente no sentido de se contemplar a sexualidade dos alunos, mas também dos próprios professores, já que a sexualidade de ambos se constitui como fator influente e de fundamental importância na relação professor-aluno.

REFERÊNCIAS

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[1] Mestrando em Educação Sexual, Graduação em Pedagogia.

[2] Doutora em Educação, Mestre em Educação, Graduação em Psicologia.

Enviado: Dezembro, 2019.

Aprovado: Janeiro, 2020.

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João Alexandre Minali

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