REVISTACIENTIFICAMULTIDISCIPLINARNUCLEODOCONHECIMENTO

Revista Científica Multidisciplinar

Pesquisar nos:
Filter by Categorias
Administração
Administração Naval
Agronomia
Arquitetura
Arte
Biologia
Ciência da Computação
Ciência da Religião
Ciências Aeronáuticas
Ciências Sociais
Comunicação
Contabilidade
Educação
Educação Física
Engenharia Agrícola
Engenharia Ambiental
Engenharia Civil
Engenharia da Computação
Engenharia de Produção
Engenharia Elétrica
Engenharia Mecânica
Engenharia Química
Ética
Filosofia
Física
Gastronomia
Geografia
História
Lei
Letras
Literatura
Marketing
Matemática
Meio Ambiente
Meteorologia
Nutrição
Odontologia
Pedagogia
Psicologia
Química
Saúde
Sem categoria
Sociologia
Tecnologia
Teologia
Turismo
Veterinária
Zootecnia
Pesquisar por:
Selecionar todos
Autores
Palavras-Chave
Comentários
Anexos / Arquivos

Segundo gênero de conhecimento: a tradução na América Latina

RC: 70176
74
5/5 - (1 vote)
DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/traducao-na-america

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

RAYEL, Mara Lafourcade [1]

RAYEL, Mara Lafourcade. Segundo gênero de conhecimento: a tradução na América Latina. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 12, Vol. 15, pp. 57-84. Dezembro de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/traducao-na-america, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/traducao-na-america

RESUMO

Neste artigo estabelecemos aproximações entre a obra Ética, de Espinosa (século XVII), e a obra teórica de Amálio Pinheiro. Nosso principal objetivo é efetuar relações entre o segundo gênero de conhecimento proposto por Espinosa e os procedimentos de tradução barroquizantes e mestiços abordados por Amálio Pinheiro em seus textos. Essa estratégia de aproximação dialogante visa demonstrar que esse modo de conhecimento já se encontra em operação nos modos de viver e de se relacionar dos povos latino-americanos. Defendemos que é por meio da capacidade de ser multiplamente afetado e da seleção dos afetos de alegria, propostos por Espinosa, que se pode entrar em contato com maneiras de conhecer que terminam por operar nos signos uma modificação ativa. Temos por hipótese que o segundo gênero de conhecimento de que nos fala Espinosa já está presente nos modos de viver que se valem da tradução e da incorporação de diversos fazeres e sentires. Nosso método é constituído pela análise das obras dos autores acima citados, de modo a evidenciar situações em que o conhecimento das noções comuns (segundo gênero de conhecimento) e, para além do escopo deste artigo, das essências singulares (terceiro gênero), já se fazem perceber nos modos de conhecimento dos povos da América Latina.

Palavras-Chave: gêneros de conhecimento, tradução, mestiçagem, América Latina.

1. INTRODUÇÃO

Ver o mundo como um continuum. É isso o que ressalta do pensamento de Pinheiro[2] (2013); é isso o que ressalta do pensamento de Espinosa. Visão dos interstícios e das relações que se fazem, diz o primeiro. Visão da extensão não como unidades discretas, mas de fato indivisível, o que só pode ser concebido pelo intelecto, diz Espinosa (CHAUI, 1999, p. 721). E o intelecto aqui, entenda-se, já é o modo de pensar do próprio Deus ou Substância ou Natureza. Mas isso não é uma escolha. Não se dá como um ato da vontade. Para ver a Natureza inteira como um continuum, é necessário um esforço em consonância com nossa potência de existir. Potência em ato: conatus. Conatus igual a esforço. É necessário tomar posse da sua potência de agir. É preciso pensar.

Aqui entra então uma surpreendente fórmula adotada por Espinosa: pluralidade simultânea (CHAUI, 2016, p. 246). Quanto mais capacidade tivermos de sermos afetados por múltiplas coisas simultaneamente, mais capacidade terá nossa mente para perceber muitas coisas ao mesmo tempo (É., II, esc., prop. 13)[3]. Por essa razão somos remetidos ao pensamento de Amálio Pinheiro, que fala dos modos mestiços de conhecimento e de atuação aqui na América Latina.

Continuum, dizíamos. Poderia ser uma simples concordância de termos entre os autores. Mas, pelo modo como se desdobram as ideias em uma e em outra obra, trata-se de mais que isso: de uma acepção muito próxima. Quando Espinosa fala em continuum, refere-se à extensão indivisível e infinita com suas partes só podendo ser concebidas como partes intra partes (CHAUI, 1999, p. 721). Quando Amálio cita o continuum, ativa em sua expressão a relação síncrono-diacrônica e a aglutinação de elementos alógenos (termo que, Pinheiro nos informa, foi usado por Severo Sarduy) que se friccionam, estabelecendo assim um modo de relação não descontínuo, mas conexo e articulado (PINHEIRO, 2013, p. 21; 86).

Continuum/simultâneo/múltipla pertença foi a tríade de expressões usadas pelo autor brasileiro[4] para caracterizar o modo mestiço como se dão os processos culturais aqui na América Latina. Nessa concepção poderíamos, de saída, assumir que está embutido o pensamento de Espinosa sobre a relação Natureza Naturante–Natureza Naturada. Contudo, as expressões usadas por Pinheiro procuram explicar a mestiçagem cultural havida em nosso continente; já em Espinosa, continuum é o conceito concebido por ele em sua defesa da imanência, feita de maneira vigorosa ao longo da Ética e em suas cartas (ver referência a Chaui, acima). Tal defesa é preparada desde a parte I (De Deus) da Ética.

Tudo está em Deus. Nada existe sem que Deus seja primeiro. Deus se expressa por meio de infinitos atributos, cada um dos quais infinito em seu gênero. Tais atributos expressam a essência de Deus e igualmente se expressam por meio de modos infinitos. Os modos finitos (dentre os quais nós) são determinações desses modos infinitos, mas têm sua causa em Deus (É., I). Como se vê, estamos implicados em Deus sem mediação, nossa essência sendo uma parte da essência de Deus.

Quando Pinheiro se refere às relações que se dão entre as diferentes culturas e a natureza (natureza/cultura/corpo), na América Latina, com a tríade continuum/simultâneo/múltipla pertença, está também enxergando o modo imanente como as coisas existem; e aqui no continente latino-americano de maneira mais evidente. O que Pinheiro ressalta é a necessidade de conceber a continuidade e a pertença entre os corpos (natureza inteira e nós) e o fato de que essa continuidade se dá simultaneamente entre tais corpos e sua produção cultural. Nada se separa: “o que deve ser ressaltado é o fluxo encadeado do fragmentário múltiplo, não sintetizado nem disjunto, num continuum” (PINHEIRO, 2013, p. 21). Não “sintetizado nem disjunto”, portanto, implicados um no outro, como descreve Espinosa na parte I da Ética, sobre Deus e os modos finitos. Pinheiro está com a atenção voltada para a Natureza Naturada, mas traz à tona o modo mesmo como, segundo Espinosa, se devem ver as coisas: num continuum. Porque o continuum, para o filósofo holandês, é o modo de o terceiro gênero de conhecimento conceber o atributo extensão (corpos); o discreto é o modo como vemos as coisas quando estamos no primeiro gênero do conhecimento, ou seja, enxergando-as de maneira mutilada e confusa.

O que esse continuum defendido por Pinheiro revela? Revela que a concepção do autor brasileiro acerca dos aspectos intrínsecos entre natureza/cultura/corpo na América Latina é eminentemente imanente e abarcante, o que leva suas análises a se aproximarem do pensamento de Espinosa. Mais do que isso, a abordagem de Pinheiro concerne também aos modos de conhecimento latino-americanos e desenvolve seu estudo sempre escapando e criticando, como já o dissemos, as concepções binárias. Seu texto considera sobejamente outros modos de conhecer; tal procedimento acaba por se transformar num esforço por ampliar, aliás, de maneira exemplar, o espectro por onde devem se dar os debates sobre gnosiologia e epistemologia. Embora de maneira diferente da empreendida por Espinosa, Pinheiro se aproxima do filósofo porque considera, por exemplo, a separação corpo–mente como algo a se desprezar. Isso encaminha o autor brasileiro a expor seu pensamento sempre voltado para a conjunção desses elementos, num movimento abrangente e complexo capaz de subverter as visões que se costuma ter sobre a América Latina e de apresentar um campo mais vasto de apreensão dos fatos culturais do continente.

O pensamento de Pinheiro compele o leitor de seus textos, e seus alunos, a se desacomodar e a assumir uma forma radicalmente diferente de pensar e de se comportar. Reforçamos: Pinheiro, assim como Espinosa, convoca quem entra em contato com sua obra a ver as relações e as forças de maneira a alterar seu modo de percepção e seu modo de estar no mundo. O pensamento de ambos os autores, cada um a seu modo, obriga a um desvencilhar-se de concepções dualistas e pautadas nos aspectos mais tendenciosos de um certo pensamento centro-europeu. Obriga a um olhar do miúdo e do contínuo, prática que não é frequente nas maneiras panorâmicas e generalizantes de conceber o continente latino-americano.

O pensamento de Espinosa e o de Pinheiro se erigem como severos críticos do pensamento ocidental cartesiano. É preciso, portanto, mudar o corpo e as concepções se quisermos colher de tal pensamento o que de mais precioso ele traz: um mundo aquém dos signos ou além dos signos. Mundo em que ressaltam as relações, o corpo em contato, o fluxo fluido das essências singulares. Chegaremos com Pinheiro até as essências singulares de Espinosa? Não sabemos. O que temos é de proceder a um exercício rigoroso de não lançar mão, meramente, de recursos vinculados ao signo e a seu referente. Um escrever formal/conteudista, com uma linguagem presa a recursos discursivos caros a pensamentos rígidos. Algo deve se criar no modo de pôr as relações, aprendemos com Amálio. Algo deve se mostrar dentro de nós, quando estamos “interiormente determinados”, que revele todas as causas desse afeto, aprendemos com Espinosa.

Então, como prosseguirmos? Faz-se necessário explicitar o pensamento, o momento mesmo com que se engendram e se encadeiam as ideias expressivas e traçar um modo de fala/escrita modificado pelas ideias adequadas (Espinosa), abalroados pela natureza (Pinheiro). Porque está implícito no pensamento de ambos que o importante é mudar a vida, nossa, pequena, cotidiana, para mudar os modos de conhecimento/relação diante/com das/as coisas da natureza/cultura/corpo/objetos. Mas como fazer isso implica saber: qual prática adotar? É preciso sempre experimentar.

2. CONTINUUM / SIMULTÂNEO / MÚLTIPLA PERTENÇA

 Não há como atribuir outro nome a esse item, posto que essa relação se impõe. “A mestiçagem respira com a tradução” (PINHEIRO, 2020, p. 19). Intercomunicação, interseção, incorporação antropofágica. Porque desse continuum ressalta a relação entre as coisas da paisagem/coisas da cultura. Não se dá apenas por aglomeração, mas por múltipla pertença, conexão. Não se dá escandido no tempo, mas simultaneamente em processo constante de inter-relação, contaminação. Um convuir, conluir, conluio, sabe-se lá que palavra pôr para mastigar tudo o que vinga dessa efervescência em transformação.

Continuum/simultâneo/múltipla pertença como modo tradutório mestiço por excelência. Porque os processos estão vivos e quando se fala em relação não se quer representar algo traduzível por verbetes de dicionário. Relação num sentido engolfante, fagocitante, assimilativo sem deixar de fora nada que não seja o um, mas englobar o outro em si num processo de transformação mais afim com aquele que as plantas fazem: “Luz do sol, que a folha traga e traduz, em verde novo, em folha, em graça, em vida, em força, em luz” (Caetano Veloso). Agir porque se está em meio. Meio aqui como ambiente entre que atua como senda e se vale do “em” para expressar o que se configura. Gesto de estar entre a natureza, com seus seres complexos, entre a cultura, com seus objetos e gestos. Gesto de estar em contato, em interação, em modo assimilativo efervescente.

Antropofagia é um termo que Pinheiro usa para acentuar as forças que estão postas nos termos mestiçagem e tradução. Assim, ele cita Viveiros de Castro:

A semiofagia guerreira dos Tupi estava longe de ser um desenvolvimento inusitado dentro da paisagem ameríndia. O tema da existência de uma filosofia política indígena do canibalismo, que era ao mesmo tempo uma filosofia canibal do político, havia sido esboçado em seus grandes traços na teoria clastreana da guerra […]. Sua generalidade e complexidade etnográfica só começaram a ser reconhecidas, entretanto, graças aos esforços de diversos colegas amazonistas […]. Esses trabalhos apontavam para uma economia da alteridade predatória como constituindo o regime basal da sociedade amazônica: a ideia de que a “interioridade” do corpo social é integralmente constituída pela captura de recursos simbólicos – nomes e almas, pessoas e troféus, palavras e memórias – do exterior. Ao escolher como princípio a incorporação de atributos do inimigo, o socius ameríndio é levado a se definir – determinar – segundo esses mesmos atributos. (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 161-162.)

… e comenta:

Por aí se vê que a ideia de incorporação antropofágica das linguagens dos vários outros é fundante nas nossas sociedades, e não depende de uma lógica binária “anterior” a ser superada. O que surge daí é um devir-outros decorrente da aglomeração superabundante dos inúmeros materiais alógenos. (PINHEIRO, 2013, p. 121.)

 O que se destaca desse comentário, além da menção à “incorporação antropofágica”, é seu final: “aglomeração superabundante dos inúmeros materiais alógenos”. Como se, ao reconhecer a antropofagia (ou, nas palavras de Viveiros de Castro, o canibalismo), Pinheiro não estivesse simplesmente aludindo à assimilação simbólica entre os ainda humanos, mas deixando entrepassar algo mais além do humano nessa incorporação. Isso fica claro ao longo de todo o desenrolar de América Latina: barroco, cidade, jornal.

[…] é preciso insistir que, nas culturas onde os sistemas discretos de inclusão e exclusão não funcionam por completo […], o que deve chamar a atenção do pesquisador são as microrrebeliões na objetosfera, esse espaço mestiço de cruzamentos síncrono-diacrônicos contínuos, dentro de uma paisagem natural extensível e coparticipante. (PINHEIRO, 2013, p. 86.)

A natureza coparticipante vindo modificar as relações que se dão entre os povos que, na América Latina, se tiveram de encontrar. Encontrar num sentido amplo dado por Deleuze em relação à Ética, de Espinosa: occursus (DELEUZE, 2002, p. 70). Encontrar, pois, no sentido de se afetar mutuamente. E desse encontro se criaram ações capazes de transformar o modo mesmo de dar ao mundo seus objetos. Isso quer dizer tradução.

Tradução, pois, para Amálio Pinheiro tem um sentido mais amplo do que o de tradução linguística ou mesmo intersemiótica. Daí que Pinheiro se serve do conceito de Haroldo de Campos (2015) e o aplica em muitos sentidos, deixando à mostra o movimento constante não só de linguagens mas de elementos da natureza entrando em co-criação com os sujeitos. Seu pensamento se aproveita dos processos realizados pelas plantas com o ambiente para explicar o modo como se dão as incorporações de culturas e da paisagem, seja ela urbana ou da mata:

As plantas estabelecem uma grande capacidade tradutória nessa comunicação, que tem que ver com uma poética da cultura ligada à natureza, que muitos humanos perderam ao se autovalorizarem demais.[5]

A presença da natureza e a multiplicidade de culturas neste continente desencadearam um movimento de vaivém em zigue-zague (termos usados por Pinheiro) que pode ser traduzido pela palavra tradução, desde que esta seja concebida de maneira mais abrangente.

Assim, mestiçagem é um processo que se deu aqui na América Latina sempre se valendo de outro procedimento chamado por Pinheiro, “à falta de nome melhor”, de Barroco (PINHEIRO, 2020, p. 20). Esse Barroco é por ele considerado Barroco de partida, porque já praticado pelos autóctones. Barroco plumário, exemplifica Pinheiro juntando também os modos de incorporação dos povos andinos (live realizada em 9 de outubro de 2020[6]; PINHEIRO, 2015, p.7-8).

Não cabe, portanto, falar de retorno ou ressurgimento do barroco: sua presença não depende só de autores, tendências, grupos ou escolas que o renovem, mas de uma espécie de sensibilidade e inteligência anônima e ainda não catalogada na cultura, que implica a ação mútua de plantas, bichos, objetos, corpos e sujeitos. (PINHEIRO, 2015, p. 8.)

Barroco, como insiste Pinheiro inúmeras vezes ao longo de seus textos, por efetuar uma fricção de elementos alógenos. Incorporação, acumulação de elementos díspares colocados em relação. Vemos aqui uma orquestração em que os elementos participantes se antropofagizam enquanto interagem e geram uma maneira modificada de apreensão do mundo e da natureza e das subjetividades. Processo que se explica pela própria força de estar vivo e de ser abalroado pelo ambiente e pelo outro estranho, respondendo com invenção nos modos de agir e de viver.

Com tudo isso, Pinheiro não se cansa de enfatizar, a América Latina não pode ser analisada simplesmente lançando-se mão de pensamentos estrangeiros ocidentalizantes e ocidentalizados. Não se trata de ignorá-los, mas de incorporá-los, de traduzi-los, para que possam auxiliar a pensar os processos culturais e procedimentos criativos latino-americanos. Somente assim eles se tornarão habilitados a descrever o que aqui se deu de maneira insuspeitada. O próprio autor opera essa tradução, mesmo em autores que se propõem pensar de modo diferenciante:

A figura da trepadeira, com seus filetes e molas que se enroscam em vaivém helicoidal, para o lado, para baixo e para cima, parece mais apropriada para dar conta dessas relações interativas entre natureza/cultura (vegetação/linguagem) do que a dupla deleuziana árvore/rizoma (Deleuze e Guattari, 1980), que parte de uma prévia dualidade a ser superada. As trepadeiras e seus similares (juncos, cipós, samambaias etc.) “sobem” pelas palavras, cujas seivas se alimentam dessa base deslizante e dessas ramagens enovelantes. (PINHEIRO, 2013, p.132.)

Somos lembrados, assim, de que estamos num continente, vivendo abarcados pela natureza e por uma quantidade enorme de culturas, e que somos mestiços por força; e em algum lugar de nosso viver, mesmo que não queiramos, isso se manifestará de um modo ou de outro. Em alguns, de maneira mais incidental, tomando chimarrão, deitando-se em redes; em muitos outros, sobretudo os que estão situados mais ao rés-do-chão – como habitantes das periferias, moradores de favelas, populações ribeirinhas e outras comunidades não necessariamente vinculadas ao ocidente – de modo mais preponderante, o que os faz capazes de produzir/traduzir sua relação ambiente/múltiplas culturas por meio de criações orais, gestuais, rítmicas etc. Exemplo disso são o tango, o samba e o son cubano (PINHEIRO, 2013, p. 19).

Os intelectuais da classe média, olhos de gabinete voltados para o crescimento progressivo do mundo clássico ocidental “evolutivamente” “vencedor”, nunca puderam compreender nem aceitar que produtos nativos agarrados a acontecimentos cotidianos e espetáculos de alegria urbana, tidos como menores e corriqueiros porque externos, pudessem traduzir e enviesar os modos de leitura e conhecimento estéticos. (PINHEIRO, 2013, p. 104.)

2.1 PENSAMENTO/CORPO, A NÃO-DUALIDADE VICEJANTE

Por tudo o que ficou escrito até aqui faz-se claro que o pensamento de Pinheiro não considera a dualidade pensamento e corpo posta pela concepção ocidental-cartesiana. O autor brasileiro, assim como coloca a barra entre natureza/cultura, lança mão do mesmo recurso quando quer tratar do modo de apreensão necessário na América Latina:

As sociedades mestiças que palmilhava [Euclides da Cunha] eram compostas por séries (culinária, mobiliário, repostaria, louçaria, arquitetura, espaços urbanos etc.) de objetos configurados na nervura da paisagem (igreja/ouro/luz, voz/sílaba/fruta etc.) que desencadeiam uma microtextura (mutuamente vinculante do vegetal/mineral no gráfico-sonoro) de dobras e redobras para a leitura dos quais se necessita um pensamento/corpo sintaticamente também mestiço, que não necessite apenas “superar” dialeticamente a lógica dual previamente instalada. (PINHEIRO, 2013, p. 110.)

Ou seja, a América Latina é um ambiente “muito perigoso” para aqueles que se instalam comodamente no pensamento binário do ocidente. A experiência de Euclides da Cunha, tal como a relata Pinheiro, é prova disso. Seu pensamento formado por uma importação do positivismo dual ocidentalizante se vê confrontado. Seus pareceres sobre a população de Canudos são vigorosamente críticos (como diz Nelson Werneck Sodré, citado por Amálio Pinheiro) mas sua descrição da paisagem vivenciada contradiz fragorosamente a avaliação sociológica baseada em teorias alienígenas.

Compreendemos assim por que pensamento/corpo. Porque ambos imersos num ambiente inquietante/exuberante operam em modo uníssono, quando se trata de descrever a paisagem, mas não só, não deixando prevalecer a cisão cartesiana preconizada pelo pensamento dominante da época do cronista. Digamos que Euclides se compõe com a paisagem e gera, à maneira dos cronistas da época do descobrimento (PINHEIRO, 2013, p. 112), um texto complexo, barroquizante, a traduzir a experiência de vivenciar o que testemunha.

Pensamento/corpo, diz Pinheiro, traduzindo assim de modo imanente o processo que se opera no autor dos Sertões e expressando dessa maneira a relação necessária que se dá, nessas paragens latino-americanas, entre elementos vistos pelo pensamento ocidental de modo dicotômico. Cultura em trepadeira que se agarra pelos corpos e linguagens e obriga-os a dizer a imanência entre essas partes. E não é um movimento de plasmar ou de fusionar como um mero exercício de estilo componentes como corpo/pensamento, mas de aglutinar em cadeia complexa e conexa o que se tinha como oposições no pensamento cartesiano.

Daí que se mostra uma espécie de triagrama, digamos, para não bidimensionalizar as relações. Imbricação, materialidade, confluência, modos de assimilação que trabalham com a concomitância pensamento/corpo. A experiência do concreto se inscreve de modo inarredável. Corpo e mente passam aqui na América Latina, segundo vimos em Pinheiro, a confluir, operar e criar de modo conjunto, inseparável. Nesse entrelaçado entre corpo/mente, natureza/cultura, códigos naturais e orais/escrita não cabe perscrutar oposições. O que importa é o que se cria dessas relações, a despeito dos discursos dominantes ocidentalizados.

Não precisamos meramente assimilar imagens forjadas em edifícios espelhados de grandes avenidas pretensamente cosmopolitas. Temos em nosso cotidiano um manancial dessas imagens cerzidas às produções culturais que vão além do que se costuma denominar cultura letrada. A distinção cultura popular e cultura erudita, inclusive, não faz sentido, uma vez que se produzem imagens e textos que se tocam e se ampliam, acrescentando à paisagem a própria paisagem modificada. Segundo Pinheiro, ainda, “[…] não há uma obra dada e o mundo fora dela; cada obra forma um conjunto complexo e interativo com as linguagens e objetos do mundo” (PINHEIRO, 2016, p. 25).

Pensamento/corpo captados por Amálio assim juntos a modo de expressar o movimento de conhecer aqui na América Latina. É preciso, pois, nestas nossas terras, desenvolver uma nova sensibilidade capaz de entrever e de se deixar absorver pelos elementos da natureza/cultura. Tudo isso escrito/dito por Pinheiro de modo que enseja na própria linguagem as imbricações e interações que descreve. Pensamento/corpo numa ligação extraordinária que se aproxima de maneira inesperada daquilo que Espinosa propõe na Ética, II, prop. 7: “A ordem e conexão das ideias é o mesmo que a ordem e conexão das coisas”.

2.2 RÍTMICO/ERÓTICO/LÚDICO

Tudo corre como o corpo embebido pela seiva da cultura em trepadeira. A relação rítmico/erótico/lúdico[7] expressa bem o modo como se interpõem os elementos na América Latina. Ritmo da paisagem-natureza e da paisagem-cidade. Ritmo dos saberes tocados a modo de canções variadas, dos quais o tango, o samba e o son cubano são apenas três das miríades de ritmos que se alastram e dialogam pelo continente. Ritmo de instrumentos mestiços para cada caso de canção. Ritmo a modo de poemas que emergem da cidade, de um “chacoalhar de árvore” ou de “um trinar de pássaro” (PINHEIRO, 2013, p. 40). Ritmo do andar dos povos do continente. Ritmo do roçar de coisas e bichos e plantas e pessoas no entreluzir das cidades e dos rios e dos mares. Mas não é prudente separar o sintagma, constituído por Pinheiro para mostrar/evocar uma relação determinante e intercomplementar à relação continuum/simultâneo/múltipla pertença. Aliás, não só a essa. Migrante/mestiço/externo solar também entra nesse triagrama de relações que se entrelaçam e se modificam. Movimento em intervalos, roçar de corpos, alegria. Poderíamos traduzir assim sem brilho ou encanto a relação. O que pretendemos mostrar, contudo, é que os conceitos que Amálio aproxima criam novas relações e pedem uma acurada percepção. Não se trata de explicar simplesmente termo a termo, mas de traduzir a relação no que ela eviscera dos modos de ser latino-americanos. Apreensão-enlace que procura evidenciar que as coisas se dão aquém da linguagem e dos conteúdos, quase sempre em quase-linguagens.

Não cabe mais aqui a separação entre signos e coisas e entre noções abstratas e materiais concretos de todo o dia. Importam agora as variadas instâncias de tradução entre voz e paisagem. O mundo, as imagens pré-palavra invadem e convivem com as palavras. (PINHEIRO, 2013, p. 42.)

A relação rítmico/erótico/lúdico expõe o corpo e suas habilidades em meio à mata e à urbe. Desnuda e dessubjetiva também, arriscamos. Porque, quando ocorre tal relação, o que prevalece é uma carnalidade gozosa em cadência, despreocupada dos nomes e dos eus. Instaura-se um jogo que apreende a natureza/cultura desvencilhado de qualquer peso sisudo ou douto. A relação descreve uma interação complexa que se orienta pelo concreto. Corpos em relação em que se interseccionam elementos de um a outro sem que o vínculo incorra em qualquer tipo de rigidez ou fixação. Trânsito de forças que se abalroam em consonância e combinação. Composição, diria Deleuze para explicar o que descreve Espinosa quando menciona as noções comuns, propriedades comuns entre corpos.

Rítmico/erótico/lúdico descreve a dança alegre, aconteça ela em que local acontecer. Descreve o trançar de corpos pela calçada que, a despeito de poderem carregar um destino, naquele movimento estão comprometidos com o fluxo anônimo e humano entre os veículos e os objetos da cidade (DELGADO, 2007). Descreve, enfim, um modo de conhecimento que se instaura em que os códigos são muito outros e contam com elementos imagéticos-sonoros-táteis que transbordam a linguagem. “O ritmo aqui como algo que impede que nos fixemos nos conteúdos”[8]. Uma relação que descreve a festa entre os componentes da natureza, da cidade, da cultura. Uma festa voltada eminentemente para o corpo, protagonizada pelos corpos todos conjuntos que compõem a paisagem:

Daí que se desdobrem aqui essas situações multi-informacionais de bairro a bairro, com complexas permutas entre vozes e ritmos, a partir de uma habilidade e oportunidade sintáticas dadas pelo caráter migrante-externo solar de tais sociedades, que só podem ser descritas por quase-conceitos flutuantes. (PINHEIRO, 2013, p. 102.)

“Quase conceitos flutuantes” para desenhar de modo não-ortogonal ou rígido o entremeio que se metamorfoseia constantemente e de modo imprevisível carregado pelo riso e pela alegria, a despeito das conjunturas macroestruturais presas ao progresso e à concepção capitalista voltada para um suposto fim vencedor.

2.3 MIÚDO INCLUSO QUE VARIA

O que não se vê nem se viu com o pensamento logocêntrico europeizante são as modificações minúsculas entre os elementos que se entrecruzam em relação de forças aqui na América Latina. A extrema natureza, a miríade de povos autóctones, a miríade de imigrantes, a presença de africanos, alguns arabizados, os ibérico-arábigos, os sefarditas, os cristãos novos, os árabes em si (por mais generalizante que possa ser esse nome). Tudo isso simultaneamente em relação colocados no mesmo plano que os espanhóis e portugueses que para cá vieram como colonizadores. Corpos, opacidade, volumes, carnes a se verem imersos num ambiente tomado pela natureza. É preciso sempre pensar na força de existir (conatus, como diz Espinosa, É., III, prop. 7). É preciso sempre pensar que o povo está vivo e que inventa (BAKHTIN, 1987). E nesse viver precisamos incluir as “ramificações proliferantes do miúdo incluso que varia, esse devir-outro-mirim em marchetaria cromática, sonora ou gráfica, no reino dos objetos” (PINHEIRO, 2013, p. 15). E marchetaria, rendilhado, bordado, arabesco descrevem bem esse movimento do diminuto que se inscreve de corpo a corpo, de objeto a objeto. É preciso cerzir, diz Pinheiro[9] todos esses elementos que se dão. Melhor, como Pinheiro diz, esses elementos invisíveis já estão encadeados como partículas nos movimentos da cultura.

Não só de gestos se trata, mas “de assimilação do heterogêneo inscrita de modo germinativo, desde as primeiras províncias da América Latina, nos processos micro e macroestruturais, ponhamos, fractal-metonímicos” (PINHEIRO, 2013, p.19). Invisibilidade em que os fractal-metonímicos se fazem vivos e presentes sem que os personagens humanos, sujeitos, se deem conta. “Protoplasma incorporativo” (LEZAMA LIMA, 1988a, p. 81) mencionado por Pinheiro e explicado “como uma espécie de metabolismo fundante (criação comum entre coisas da natureza e objetos da cultura)” (PINHEIRO, 2013, p. 21). As coisas aqui, dentre elas os seres humanos, se interligam de maneira imprevista e imprevisível e acabam por criar modificações significativas que, no entanto, invariavelmente passam despercebidas pelo olhar daqueles que estão mais preocupados em estabelecer oposições. E não deixa de ser curioso que tais invisibilidades sejam detectadas muitas vezes por estudiosos estrangeiros quando vêm para o nosso continente (como Bastide e Laplantine, por exemplo). Estariam no ar essas partículas que poucos veem? E com que força se propagam, a ponto de modificar obras, cidades, convívios, culinária, andares, olhares! Há que se reconhecer o que nos faz específicos, embora muitas vezes embutido (e enrustido) por muitos que aderiram ao habitual/convencional dos grupos localizados na chamada classe média.

É preciso ter olhos de ver, esmiuçar relações improváveis, como a presença árabe nos africanos escravizados que foram enviados para as Minas Gerais (ALFONSO-GOLDFARB, 1993, p. 125). Sem contar inúmeras outras migrações acontecidas em outras regiões deste continente. Lezama Lima as chamou “arribada de confluencias” e Pinheiro insiste que aí não se dão, nunca, influências (PINHEIRO, 2020, p. 9), porque o que transitava entre os ambientes (natureza) e as cidades e povoados encontrou povos ativos, em pleno processo de mestiçagem cultural. É importante ressaltar tal atividade nesse quadro que se descreve. Porque a ação é o que explicita o movimento dos povos que para cá vieram, bem como dos povos que estavam aqui. “Miúdo incluso que varia” molecularmente, em filigrana, como diz Pinheiro, num entretrançar de afetos, carnes, corpos, seivas, saberes e movimentos das mãos. Pensamento/corpo, como já dissemos com Pinheiro, que se vê na circunstância de alteração metabólica, mas de um metabolismo que inclui, ainda que sem perceber, o outro estranho, seja paisagem, objeto, bicho ou gente.

Interstícios, incrustações, apliques, todas palavras que o autor brasileiro usa, para dar a ver o que não se vê a olho nu, o que só se vê a olhos despidos de pensamentos opositivo-binários centro-europeus. Isso se dá na entonação da voz, na forma de deglutir o português no brasileiro (ou o espanhol), no modo de se vestir, de cozinhar, de construir catedrais, de escrever poemas, de fazer festas. Isso se traduz com as palavras sensibilidade vibrante, inventividade. Mas isso, por estar nas costuras, encadeamentos e dobradiças, nos diz Pinheiro, “do bordado ou mosaico”, continua sendo miúdo. Mas é vivo e varia. E atua.

3. IDEIA ADEQUADA E NOÇÕES COMUNS

3.1 INTRODUÇÃO

Movimento e repouso, velocidades e lentidões: modo infinito imediato da extensão. Isso é a noção comum entre os corpos mais universal. Mas concreta, não abstrata. Os corpos têm em comum as propriedades de estarem em movimento e repouso. Com velocidades e lentidões. Por essa noção comum mais universal vemos como “Todos os corpos estão em concordância quanto a certos elementos” (É., II, lema 2 após a prop. 13). Todos os corpos são modificações determinadas do atributo extensão. Isso significa que elas estão ligadas, no mínimo, por suas relações de movimento e repouso. Conceber essa relação é ter uma ideia adequada, isto é, ter uma ideia que expressa suas causas. Uma ideia adequada é uma ideia que explica a natureza das coisas que nos afetam (É., II, prop. 18, esc.). Mas há noções comuns menos universais. Noções comuns a todos os homens e noções comuns entre os corpos afetantes (É., II, corol. da prop. 38; prop. 39). Por meio dessas noções entre um corpo e outro é que podemos chegar a ter ideias adequadas de segundo gênero de conhecimento. Essas ideias adequadas estão em Deus “enquanto Deus constitui a natureza da mente humana” (É., II, prop. 39, dem.). Isso é o mesmo que dizer que Deus pensa através de nós. Quais as implicações disso?

Estamos no âmbito das relações entre corpos. Quando um corpo me afeta é porque tem algo em comum comigo, eu posso ter uma ideia explicativa ou adequada. Mas isso sob certas condições. É preciso estar internamente arranjado para ter uma ideia que tem em nós mesmos (ou seja, em Deus) a causa adequada. Estamos em relação constante com uma miríade de coisas, mas, por sermos uma parte finita (modos finitos), não temos uma ideia adequada de todos esses corpos que nos afetam simultaneamente. Por se constituir como uma parte, o corpo só tem condições limitadas de formar imagens, ideias inadequadas. Como esse número de afecções ultrapassa constantemente nossa capacidade de perceber, formamos imagens confusas que dão origem a ideias mutiladas (É., II, prop. 40, esc. 1). Nossa mente só tem capacidade de conhecer o próprio corpo à medida que está internamente “determinada, por considerar muitas coisas ao mesmo tempo, a compreender suas concordâncias, diferenças, oposições” (É., II, prop. 29, esc.). Vemos por aí o quanto é necessário aplicar-se ao trabalho de “considerar muitas coisas ao mesmo tempo”. Mas como considerar muitas coisas ao mesmo tempo sem ser por elas arrastado a ter ideias confusas, ideias inadequadas? Já o dissemos, é necessário estar “interiormente disposta” a deduzir ideias adequadas de ideias adequadas; em outras palavras: é preciso tomar parte no intelecto infinito, o que é o mesmo que dizer que o que importa é ter Deus como causa de nossas ideias. Tomar parte no intelecto infinito não “enquanto [Deus] é infinito (como atributo pensamento), nem enquanto é afetado pelas ideias de muitíssimas coisas singulares (na inadequação), ‘mas apenas enquanto constitui a essência da mente humana’” (CHAUI, 2016, p. 243). A causa da ideia adequada somos nós tomando parte na natureza, o que significa dizer tendo a essência da mente constituída por Deus. “A mente é uma ideia que produz ideias”, ela é “expressão singular da potência de agir e de pensar de Deus” (CHAUI, 2016, p. 244).

Somos partes da natureza (É., I, def. 5, prop. 15; prop. 25, corol.) e por essa razão temos um conhecimento confuso e mutilado das coisas (É., II, prop. 40, esc. 2), como já dissemos. Todavia, podemos, mediante o aumento da capacidade de ser afetados por múltiplas coisas e fazer delas uma ideia ou ideias adequadas, nos tornar habilitados a tomar parte na natureza.

Mas isso tudo avança de modo muito veloz e reiterante, e, quando vimos, fizemos um “remelexo” na Ética com termos espinosanos e apressamos as coisas sem dizer de fato o que viemos dizer. É preciso voltar ao começo.

3.2 CONTINUUM

Tudo o que foi descrito acima é um primeiro modo de atingir a concepção do continuum. Sim, porque Espinosa ressalta que temos condição de enxergar as coisas como elas se dão, pelo menos nos atributos que conhecemos: extensão e pensamento. No entanto, precisamos nos esforçar para isso, porque o pensamento não está dado. Espinosa, segundo Deleuze (2002), escreveu uma filosofia prática. E é por essa razão que nos arriscamos a abordá-la.

Pensar pelos pés. Pelas plantas no chão. Não fazer caso das lógicas. Contrair o músculo e estendê-lo. Considerar muitos mundos. A minúscula parte de uma flor. E o que a abelha vem procurar nela. Considerar as coisas todas em ação, intermovendo-se, entrelaçando-se. Indivíduos que formam indivíduos que em conjunto de mesmo esforço geram efeitos. Indivíduos que compartilham corpos em interação. Não há fenda. Ou, se há, ela está incrustada na confluência de coisas díspares que se dão vazão. A Natureza inteira é um único indivíduo formado por uma coparticipação múltipla de indivíduos. É claro que é contínuo. É claro que comum. Somos em modos determinados uma modificação de modos determinados uma-modificação. O finito dando ocasião de existir ao finito, mas todos tocados, ou melhor, todos imanentes. Deus não se retirou. É a Substância causa por meio de seus atributos e causa por ela mesma causa de corpos (É., V, prop. 36, esc.). Causa de infinitos corpos. Causa de infinitas ideias. Causa de si que se expressa por meio de infinitos atributos. Causa de transformação. Que está ali nos corpos. Que está ali nas ideias, que está ali imediatamente sem se retirar. Implicados na Substância-Natureza, somos partes que a Substância compreende em si. Não há disjunção. A descontinuidade é apenas um modo de ver dos corpos na duração, é apenas um modo de ver do corpo na duração quando acossado por inúmeras afecções e quando ainda incapaz de conceber as relações que o vinculam a outros corpos e a potência que o vincula a outras potências.

Tudo está no corpo, entanto, e é tendo este auto-apropriado e mais próximo que devemos nos aproximar das coisas desse mundo. Devemos nos servir delas para alimentar nosso corpo e nossa mente e exercitá-los a reconhecer aquilo que é bom porque aumenta nossa potência de existir. Nosso contato com as coisas do mundo é fundamental para nos levar a compreender que somos partes intra partes em relação e movidos pela essência de Deus que nos coloca na existência, mais uma vez frisamos, sem se retirar. Somos explicações de Deus e é por isso que podemos afirmar que no segundo e terceiro gêneros de conhecimento Deus pensa através de nós. Na Filosofia prática, Deleuze nos diz que “explicar” é um termo forte em Espinosa: “A substância explica-se nos atributos, e os atributos explicam a substância; e eles explicam-se por sua vez nos modos, os modos explicam os atributos” (2002, p. 81).

Imaginamos porque somos afetados constantemente pelas coisas sem conhecer as causas que nos levam a aumentar ou a diminuir nossa potência de existir. Padecemos. Paixões tristes e alegres preenchem nossa força de existir sem intervalo. E como não temos condições de conhecer as causas de nossos afetos reagimos constantemente determinados de fora.

Somos partes finitas. Estamos na existência e duramos na existência por tempo indeterminado. Mas temos, porque estamos em Deus, em nosso existir uma existência sem relação com a duração, uma existência eterna que integra a Natureza Naturante; na duração, nossa existência é Natureza Naturada (CHAUI, 2016, p. 575-576).

Não podemos abandonar o esforço por conhecer as coisas, mas principalmente a nós mesmos pelo segundo e terceiro gêneros de conhecimento: noções comuns e essências singulares. Nosso maior esforço deve ser conhecer nossos próprios afetos o mais profundamente possível. Quando não estamos sendo determinados de fora por afetos que levam a nossa potência a variar, temos condições de compreender mediante nossa mente internamente arranjada a conexão ou relação entre as coisas e a causa de nossos próprios afetos.

Movimentados constantemente pelas afecções que sofremos, temos de encontrar um meio de não viver ao sabor das nossas paixões, ao sabor de nossa ignorância. Primeiro passo: acertar o passo. Voltar-se para si mesmo e reconhecer o que aumenta a sua potência de existir (É., IV, prop. 59, dem.). E não deixar de se saber em relação. Alimentamo-nos de nosso estar no mundo e é desse alimento que devemos nos nutrir. Nossos sentidos e percepções devem reconhecer em primeira instância aquilo que nos torna mais capazes e livres, alegres. Malhas do devir, constituir-se sempre afirmando seus afetos e procurando reconhecer em si mesmo a causa desses afetos. Aguentar os instantes para conhecer-se na eternidade. Confluir com suas sensibilidades e afirmar sua potência de existir. Partir de si: este é o grande começo.

Continuum, dizemos, encontrar-se meio em meio. Reconhecer-se como passagem de afetos, mas de potência de agir. Agir como força, esforço por perseverar na existência de posse de seus próprios afetos. Determinar-se. Condensação constante variada por relações físico-químicas e biológicas (DELEUZE, 2002, p. 120). Condensação em circunstâncias que nos modificam, mas, se estivermos conhecendo o que em nós é causa dessa modificação, estaremos agindo e não mais padecendo. Reações químicas que entoam um canto. Que fazem poesia, que dançam. Até achar o passo, o justo momento em que as diferenciações se fazem ouvir, sentir, se fazem tato. Sair do arrastão e ser carregado pela correnteza fazendo-se um com o que corre. Corpo em homeostasia. Mais do que isso. Variar, mas em compasso de corpo a corpo e de ideias-afetos ativos que se dão conforme apreendemos a nossa potência de pensar, apreendemos nossa força no mundo. Mais do que o mundo, o universo. Mais do que o universo, uma vez que há outros atributos além de pensamento e extensão que se mostram sem mostrar o que são (DELEUZE, 2017, p. 128, citando o Breve tratado, de Espinosa, I, cap. 1, 7, nota 3).

3.3 SEGUNDO GÊNERO DE CONHECIMENTO

Há que conhecer o eterno. O segundo gênero de conhecimento é a razão. Mas uma razão formada de afetos. Precisamos aprender a desvincular os afetos das coisas exteriores. Quando fazemos isso, temos uma ideia que é um afeto.

Em troca, o afeto que provém da razão está necessariamente referido às propriedades comuns das coisas […]. Por isso, esse afeto permanece sempre o mesmo e, consequentemente, os afetos que lhe são contrários, e que não são reforçados por suas respectivas causas exteriores, deverão, cada vez mais, ajustar-se a ele, até que não lhe sejam mais contrários (É., V, prop. 7, dem.).

As noções comuns são propriedades comuns a todas as coisas. Nesse sentido, o segundo gênero de conhecimento ou razão considera as coisas da Natureza como necessárias e não como contingentes. A Natureza, ou Deus, age segundo sua própria necessidade livre. E não determinada por nada exterior a ela. Se a razão consegue vislumbrar a necessidade do modo de agir da Natureza, ela consegue “considerar as coisas sob essa perspectiva da eternidade” (É., II, prop. 44, dem. do corol. 2).

Espinosa, na Ética, não explicou com detalhes o que seriam as noções comuns. Mas explicou o que elas podem. As noções comuns, como propriedades comuns a todos os corpos, nos fazem conceber a Natureza e o modo mesmo como ela age. Eternidade, fora do tempo, fora dos encontros que parecem fortuitos. Vemos as relações entre as coisas da Natureza e seu modo de agir e entendemos sua necessidade intrínseca. Isso movidos por afetos ativos de alegria, porque quanto mais deduzimos ideias adequadas de ideias adequadas, segundo a ordem do intelecto, mais nossa potência aumenta e mais nos alegramos com isso. Agimos com a Natureza, quer dizer, nosso corpo enxerga concordâncias e é capaz de agir, ou seja, de ter ideias adequadas estando entre as coisas da Natureza. Desse modo, estamos aptos a considerar muitas coisas ao mesmo tempo, que é a condição para tornar nossa mente cada vez mais apta. Entre os corpos, com ideias adequadas, podendo ser afetados de muitas maneiras ao mesmo tempo e reconhecendo as diversas causas implicadas numa afecção. Internamente determinados porque sabemos compreender o fluxo das coisas. Como elas ocorrem e, sobretudo, como nós agimos em meio a elas (É., V, prop. 11, 12, 13).

Como não desenhar? Como não escrever? Como não tocar e dançar de alegria e júbilo ao vermo-nos assim vendo a Natureza e entendendo a necessidade das coisas e nós implicados nessa necessidade? Deleuze desenhou um plano comum de imanência (2002, p. 127) para dar conta de explicar como ocorrem as coisas na Natureza. Essa ideia nos agrada, mas ainda é uma imagem. Quando falamos das noções comuns e do segundo gênero de conhecimento (e sobretudo no terceiro gênero), já não recorremos mais a imagens. Ou as faremos tão compósitas que elas serão capazes de reverberar vida de si mesmas. É preciso pensar como Deus pensa, ou melhor, saber que Deus pensa quando pensamos.

Sob uma certa perspectiva da eternidade, dizia Espinosa, em relação ao segundo gênero de conhecimento. Porque apreenderemos o conhecimento de nossa eternidade mesmo no terceiro gênero. Mas já aqui, nas noções comuns de segundo gênero, concebemos as coisas do modo mesmo como se dão as relações entre os corpos na Natureza. Movimento e repouso, velocidades e lentidões dos modos em relação. Nossas ideias adequadas são a atividade da mente. Corpos e mentes em ação encontrando meios em meio à Natureza.

Que é dizer que alguém é ativo? É dizer que este não é determinado de fora a “agir”. Agimos como a própria Natureza age ou se auto-afeta; nós, como modificações, nos modificamos e efetuamos nossa potência de existir de maneira afirmativa. Somos expressões de Deus. Já temos uma certa perspectiva da eternidade em continuum como Natureza Naturada, quase como Natureza Naturante. Sabemos inteligir com a força de atuação do corpo e da mente.

O conatus, esforço por perseverar na existência, encontra na razão a si mesmo. Causa adequada de seus próprios afetos.

O preceito racional, afirmação do conatus mental, enquanto causa adequada, explicita simplesmente o fato de um homem ser capaz de por si mesmo como causa tornar-se efetivamente aquilo que ele é. Podemos resumi-lo numa frase: sermos a causa do que temos a potência para ser (CHAUI, 2016, p. 423).

E como é difícil, devemos concordar, quando estamos externamente determinados a falar, a “agir”, a consternar um mundo que não nos pertence! Afirmar a própria potência de existir sem nenhum (ou quase nenhum) resíduo externo, internamente movidos a sermos a nossa potência de existir, expressão como causa adequada de si mesmo, modo contínuo em condensação de seus próprios afetos que o definem como potência de pensar. Como potência de sentir.

Pausa para pensarmos no que isso significa. Significa um mundo outro mundo; sabemo-nos beira da beira; confluência de acontecimentos que se esforçam por chegar a si. E isso em combinação, mas de modo a perceber-se como curva única a conflagrar em si o que si mesmo é capaz de sentir. O que si mesmo é capaz de fazer com as combinações físico-químicas, biológicas, que se engendram como força, potência – diria Espinosa –, internamente arranjadas para sentir o múltiplo, o “miúdo incluso que varia” (PINHEIRO, 2013, p. 15).

4. MUITAS COISAS AO MESMO TEMPO E EM CONEXÃO

4.1 O DÍSPAR E O COMUM

“Chegou a hora, chegou, chegou”[10] de juntar Pinheiro com Espinosa. Pensemos nos elementos díspares, nos elementos alógenos, citados por Amálio. Pensemos nas noções comuns propostas por Espinosa: serão conciliáveis? À primeira vista, tudo indica que não. O autor brasileiro reforça em seus textos a aglomeração e a justaposição de elementos díspares aqui na América Latina. Mas ele também ressalta que “tudo o que é macro é micro e tudo o que é externo é interno, desde que bem tecido no mosaico, através de costuras que mapeiam a cadeia reticulada de conexões” (PINHEIRO, 2013, p. 37). “Todos os corpos estão em concordância quanto a certos elementos” (É., II, lema 2 após a prop. 13). Diríamos assim tão convictamente que ambos os autores falam a mesma língua? Não, claro que não. Mas sim, por força, sim. As noções comuns não estão aí evidentes. É preciso um esforço para inteligi-las. É preciso, como dissemos, um exercício para encontrá-las. Todos os corpos estão em concordância, mas é preciso estar movido pela alegria para encontrá-las (É., IV, prop. 59, dem.). É preciso, por meio das noções comuns, chegar às ideias adequadas, ideias explicativas que têm em nós sua causa, “por considerar muitas coisas ao mesmo tempo, a compreender suas concordâncias, diferenças e oposições” (É., II, prop. 29, esc.). Vemos aí que o importante é ter potência para considerar muitas coisas ao mesmo tempo. As noções comuns nos levam a fazer relações, ou melhor, elas mesmas são as relações a nos mostrar que as coisas estão interligadas. Desse modo os “estranhos, desconhecidos, inimigos” (PINHEIRO, 2013, p. 28) podem ser incorporados à sua cultura. Por quê? Porque eles podem ser resposta para o seu cotidiano, complementar. Digamos que a “arribada de confluências” de que falou Lezama Lima dispôs os povos aqui em convívio a enxergar as noções comuns e os tornou cada vez mais aptos a compreender as concordâncias, diferenças e oposições. O corpo latino-americano, “treinado em traduções” (PINHEIRO, 2013, p. 28) é um corpo exercitado a “considerar muitas coisas ao mesmo tempo”.

Pinheiro cita sempre as costuras, suturas, cerziduras entre os elementos. Cita a sua relação. O entre as coisas, as dobradiças. A natureza/cultura aqui neste continente inaugurou o gesto da incorporação, da antropofagia. Obrigou, digamos, os povos em convívio a enxergar as relações entre os díspares. Um exercício de razão, como diria Espinosa. O corpo do mestiço/migrante/imigrante/indígena/negro fez-se “internamente arranjado” e foi capaz de juntar os diversos dentro de si. Daí a potência das culturas latino-americanas em criar. Noções comuns entre os díspares é o que se pode cerzir. Tudo é conexão quando estamos no campo das essências. Mas o comum entre os corpos se descobre no contato. Força de convívio fez operarem-se concordâncias entre estranhos. Essas concordâncias não resolveram os conflitos, mas foram capazes de modificar os modos de conhecer. Muito conhecimento em trânsito mudou o continente e seus povos. Se bem que os autóctones já traziam em si o gesto de incorporar a cultura do inimigo pela antropofagia. Somos em intenso tecido e guardamos em nós essa capacidade de assimilar o alheio, apropriar-se do estranho e tecê-lo em si. Internamente arranjados a operar combinações. Tradução.

Um fluxo constante, ir e vir, contrastes e guerras. Estava dado o solo propício para o corpo operar. Foi preciso modificar-se para entrar em convívio. Mas sobretudo foi necessário afirmar a própria potência para sobreviver. Tornar-se apto a estabelecer relações. O rítmico/erótico/lúdico entra aqui como instrumento de aceleração do processo. A relação expressa por Pinheiro explica o modo como se deram os encontros aqui no continente e aponta, assim, para o pensamento de Espinosa.

Segue-se disso que a mente é tanto mais capaz de perceber mais coisas adequadamente quanto mais propriedades em comum com outros corpos tem o seu corpo (É., II, prop. 39, corol.).

Aqui ponderamos: do modo como Espinosa coloca esse corolário dependeríamos da sorte em ter um corpo com muitas propriedades em comum com outros corpos? Com certeza não é disso que Espinosa está falando. Não nos esqueçamos do “interiormente arranjada, por considerar muitas coisas ao mesmo tempo” (É., II, prop. 29, esc.). O exercício é considerar muitas coisas ao mesmo tempo. Tornar-se capaz de enxergar as noções comuns entre seu corpo e os corpos que o afetam. “É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras” ., IV, prop. 38). Marilena Chaui discorre sobre isso (2016, p. 594-600). Pierre Macherey (1997, p. 274-297; 2012, p. 237-249) também, embora não de modo tão acentuado como Chaui faz.

Mas, retomemos, o rítmico/erótico/lúdico são a expressão de como se dão essas muitas coisas ao mesmo tempo e de como o corpo, o corpo!, pode lidar com elas. Temos aqui, em linguagem espinosana, as noções comuns: movimento e repouso, velocidades e lentidões – ritmo; o corpo – erótico; as paixões alegres ou os afetos ativos de alegria – lúdico. Como considerar toda essa invasão de modo alegre? O corpo quer viver: conatus: esforço por perseverar na existência. Ele pode até se opor, mas ele encontra em si um modo de conjuminar as diferenças e de aproveitar-se delas. Torná-las multiplicidades, modos diferenciantes de viver na imanência. Rítmico/erótico/lúdico: o corpo internamente arranjado para “compreender, por considerar muitas coisas ao mesmo tempo, as concordâncias, diferenças e oposições” (É., II, prop. 29, esc.).

Rítmico/erótico/lúdico, aquilo que é útil ao corpo por dispô-lo “a ser afetado de muitas maneiras” (É., IV, prop. 38). Ao longo da Ética, como apontado por Chaui (2016, p. 594-600), Espinosa fará menção muitas vezes à pluralidade simultânea para a qual o corpo é apto. E quanto mais apto é o corpo para ser afetado simultaneamente por vários corpos, mais sua mente será capaz de ter ideias adequadas de segundo e terceiro gênero (É., II, prop. 13, esc.). Assim, por força, a “arribada de confluências” (Lezama Lima) favoreceu, e muito, o corpo/mente do povo latino-americano a se dispor de modo a poder ser afetado de múltiplas maneiras.

[…] a marca diferenciante, o devir relacional, a absorção e tradução do outro como variação inclusiva, já estavam a caminho: o encaixe de elementos e materiais díspares, provenientes de inúmeras civilizações, favorece, concomitantemente, a inserção da natureza na cultura desde o artesanato doméstico e a culinária até os grandes espaços urbanos […]. (PINHEIRO, 2013, p. 17.)

Dessa aptidão, como vimos acima, deu-se a potência de criação em concomitância com a natureza, uma vez que os corpos em devir estavam em relação complexa, conexa, também com os elementos desta, que aqui se dão de modo vigoroso. A experiência de estar em relação e de ter de arranjar o corpo para ser afetado pelos inúmeros componentes culturais e naturais aumentou a potência de pensar e consequentemente de agir dos diferentes povos latino-americanos. Isso os torna capazes de pensar como Deus pensa, como vimos? Bem, isso os torna capazes de tomar parte na Natureza, o que é um procedimento de segundo gênero. Isso nos torna o corpo/pensamento mais disposto à pluralidade simultânea e ao contentamento de si (alegria) (É., IV, prop. 59), o que, sem dúvida, abre caminho para o segundo gênero de conhecimento.

A relação continuum/simultâneo/múltipla pertença, apontada por Pinheiro, descreve com agudeza como se deram os processos de conhecimento aqui neste continente; pense-se, por exemplo, no modo como se entrecruzam conhecimentos nos cordelistas do Nordeste (FERREIRA, 2019) e o modo como se constituiu o rock em espanhol (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 287-288). Não podemos deixar de apontar, como vimos fazendo até agora, as noções comuns entre o pensamento do autor brasileiro e o do filósofo do século XVII. É preciso enxergar, como incansavelmente defende Pinheiro, que algo de muito diverso se deu no continente latino-americano; tão diverso que talvez só seja apreensível se lançarmos mão dos instrumentos propostos pelo filósofo holandês. Quem sabe assim tenhamos mais condições de explicar que houve/há opressão e conflito por aqui, mas é indubitável que os povos aqui instalados, com ênfase para aqueles considerados mais ao rés-do-chão, souberam apreender o mundo, pelo menos em seu cotidiano e em suas obras, de modo a incluir muitas coisas ao mesmo tempo e a encadeá-las de maneira surpreendente porque soberanamente ativa, plena de alegria, jogo de cintura e cadência. É preciso enxergar as alegrias.

4.2 PENSAR COM DEUS SIVE NATURA

É muito audacioso dizer “pensar com Deus”, concordamos, mas pensar como a Natureza, com a Natureza, torna mais próximo o procedimento. E não é um procedimento. É algo que se dá quando estamos interiormente arranjados. Causa de seus próprios afetos. Causa adequada de seus próprios afetos. Sem mediação. Quando estamos no segundo gênero de conhecimento e temos uma certa perspectiva da eternidade estamos tomando parte da Natureza. Do seu modo de agir. E seu modo de agir é necessário. Está intrinsecamente relacionado a seu modo de existir e de auto-afetar-se. Causa de si, a Natureza age por necessidade livre. E, no segundo gênero de conhecimento, compreendemos as propriedades comuns entre nós e as coisas que nos afetam. Isto é, temos ideias adequadas. Já dissemos que a ideia adequada explica a causa necessária de seu ideado; é uma ideia expressiva (DELEUZE, 2017, p. 152). O que isso quer dizer? Já o vimos, a ideia adequada está em Deus enquanto este constitui a essência da mente humana (CHAUI, 2016, p. 243). Ela não é, portanto, uma ideia representativa; ela exprime a sua própria causa, o que quer dizer que ela não tem como causa o objeto ideado.

[…] O que distingue a ideia verdadeira da falsa não é a conveniência extrínseca ao ideado (a correspondência entre uma representação e a coisa representada) e sim as propriedades intrínsecas da ideia adequada (absoluta em nós, porque segue apenas da força pensante da mente; necessária, porque conhece a causa do ideado; e perfeita, porque conhece inteiramente a essência do ideado) […]. (CHAUI, 2016, p. 250).

As ideias de segundo gênero apreendem as propriedades comuns dos seus ideados, elas ainda não são perfeitas porque não conhecem inteiramente a essência de seu ideado. Mas são ideias que não são representativas, pois exprimem a sua própria causa. Temos uma ideia adequada quando estamos internamente dispostos, significa dizer que a ideia adequada não é extrínseca, ou seja, ela não representa seu ideado porque ela é causa intrínseca, estando referida à mente que conhece.

Exatamente da mesma maneira que a luz revela a si própria e as trevas, assim também a verdade é norma de si própria e do falso. […] É preciso acrescentar que nossa mente enquanto percebe as coisas verdadeiramente, é uma parte do intelecto infinito de Deus. Portanto, é tão necessário que as ideias claras e distintas da mente sejam verdadeiras, quanto é necessário que o sejam as ideias de Deus. (É., II, prop. 43, esc.)

Ideias de Deus em nós. Ideias da Natureza em nós. Conceber-nos como parte da Natureza tomando parte nela. Vimos que na América Latina a natureza tem um importante papel, e isso é marcado por Pinheiro pela relação natureza/cultura. Ora, estamos imersos na Natureza como Natureza. O homem na América Latina faz parte de um todo maior (se bem que não só na América Latina). Participa dos eventos não como protagonista, mas como mais uma voz “no coro da mata, da urbe” (PINHEIRO, 2013, p. 20). Faz parte de um povo que são muitos povos em relação consigo mesmos e com a natureza. Por essas condições vimos bem como o processo de tornar-se interiormente arranjado aqui se deu. Não afirmamos que o tempo inteiro seja assim, mas muitas das vezes é a natureza pensando através de nós e produzindo os objetos da cultura. As ideias adequadas encadeiam-se de modo tal que produzem seus objetos e jeitos, suas maneiras de viver e andar. Mesclados em sentido intenso, temos mais aptidão para o conhecimento das propriedades comuns entre os corpos; prova disso é que os entrelaçamos em nós e prosseguimos agindo.

Isso tudo também nos leva a afirmar que os modos de conhecimento dos povos latino-americanos estão aquém dos signos, porque suas ideias adequadas são a expressão da relação complexa que se cria. E tal relação não representa ou quer representar nada, mas manifesta-se de modo tão concreto que chega a modificar a relação signo-referente. O que se expressa são as noções comuns, “o miúdo incluso que varia, esse devir-outro-mirim, em marchetaria cromática, sonora ou gráfica, no reino dos objetos” (PINHEIRO, 2013, p. 15), insistimos.

Como já vimos, a marchetaria, o rendilhado e o bordado, aludidos por Pinheiro em sua obra (2013), expressam a relação complexa que se dá neste território; relação difícil de descrever, muitas vezes, porque se dá num âmbito em que os signos já não são comunicantes. A comunicação acontece por meio do corpo em interações físico-químicas e biológicas que modificam o encadeamento das ideias, porque elas não são mais representativas: “as ideias, tanto dos atributos de Deus quanto das coisas singulares, reconhecem como sua causa eficiente não os seus ideados, ou seja, as coisas percebidas, mas o próprio Deus, enquanto coisa pensante” (É., II, prop. 5). A mente ativa aqui na América Latina não prescinde dos signos, mas os modifica repetida e forçosamente. Quando falamos, muitas vezes, podemos expressar as relações entre os corpos. A fala popular algumas vezes, as canções populares, os poemas, romances como Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Pedro Páramo, de Juan Rulfo, Mar paraguayo, de Wilson Bueno, e tantos outros são tradução de como se erige esse pensamento complexo porque feixe de relações. Por meio de signos, sim, mas os signos já como quase não querendo representar nada. Ativados em um rendilhado que deixa evidentes as cerziduras. Labirintos de afetos-ideias que promovem reações químicas em seus leitores, mais do que entendimento. Corpos ativos, em entrelaçamentos que evisceram as propriedades comuns. Pensamento concreto, não abstrato, a obrigar o signo a submergir entre os corpos.

Ou seja: em qualquer escritura bem situada há uma voz que recupera os metais e matizes do coral da cultura reticulado pela natureza. Esta, antes reduzida, domada e explorada energético-comercialmente pelo impulso positivista da ciência moderna, que a queria como algo dado ou indiferenciado, retoma o seu posto na cultura: enrosca-se nos corpos e nas palavras, e os torna variação significante, arrastando os signos para baixo, para dentro das coisas. (PINHEIRO, 2013, p. 27.)

Continuum/simultâneo/múltipla pertença traduz à perfeição esse fazer que é mais do que um fazer: é uma composição encarnada que abalroa os corpos inaugurando novas relações. Pluralidades simultâneas, propõe Chaui (2016, p. 594-600) baseada no que propõe Espinosa ao longo das partes II, III, IV, V da Ética: “por considerar muitas coisas ao mesmo tempo” (É., II, prop. 29, esc.). E, na parte V, Espinosa escreve acerca das noções comuns:

Se um afeto está referido a muitas e diferentes causas, as quais a mente considera ao mesmo tempo que o próprio afeto, ele é menos nocivo, padecemos menos em virtude dele e somos menos afetados por cada uma de suas causas, comparativamente a um outro afeto, tão forte quanto o primeiro, mas que está referido a uma única causa ou a um número menor de causas. (É., V, prop. 9.)

Muitas causas para um afeto porque sempre estamos relacionados a um grande número de coisas. Aqui na América Latina isso concorre, conforme afirma Espinosa na demonstração da proposição acima, para aumentar a potência da mente a pensar. Porque um afeto é mau quando impede esse agir da mente. “Quanto maior é o número de causas que contribuem, simultaneamente, para suscitá-lo, tanto maior é o afeto” (É., V, prop. 8). Vemos que a pluralidade simultânea relaciona-se à capacidade do corpo de ser afetado e à potência da mente de ter ideias. Uma mente está interiormente determinada quando considera um número maior ou muitas coisas ao mesmo tempo (É., II, prop. 29, esc.). Isso implica dizer que o que muitos povos apreenderam neste continente os ajudou a tornar o corpo capaz de ser afetado de muitas maneiras.

Uma ideia está relacionada a várias causas. Ter uma ideia adequada é conhecer essas causas como estando vinculadas a si mesmo, o que torna a mente ativa. As obras que mencionamos acima trabalham nesse âmbito, ou seja, no âmbito da multiplicidade de causas que tornam ou podem tornar o corpo e a mente aptos a ser afetados por uma multiplicidade de coisas. Obras, falares, vozerio multiplicados a traduzir e a expressar a mente ativa, isto é, a mente que tem ideias adequadas, isto é, pensa com a Natureza. Um rumorejar, uma glossolalia como eventos pré-verbais, antes dos signos, carregados de muitos elementos capazes de tornar uma mente ativa, uma mente apta a afirmar a sua própria potência, a ser si mesma, “a sermos a causa do que temos a potência de ser” (CHAUI, 2016, p. 423).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como esperamos ter evidenciado por meio deste artigo, ao propor um exercício de aproximação entre a obra máxima de Espinosa, a Ética, e a obra teórica de Pinheiro, identificamos uma intrínseca relação entre o segundo gênero de conhecimento proposto por Espinosa e os procedimentos de tradução barroquizantes e mestiços de que nos fala Pinheiro.  A incorporação, pelos povos latino-americanos, da natureza e das diversas culturas que por aqui vicejaram pode ser descrita como um procedimento de segundo gênero em que estão implicadas as múltiplas interações, a organização interna no sentido de assimilar as relações e a capacidade de tradução dessas relações, que evidenciam nos objetos da cultura uma presença de múltiplos modos de ser e de apreender o alheio.

Consideramos, portanto, que o segundo gênero de conhecimento já está presente nos modos de se relacionar e nos fazeres e sentires dos povos latino-americanos. Procuramos também demonstrar que essa capacidade de ser afetado por muitas coisas ao mesmo tempo e de traduzir, por meio de criações que se valem do rítmico, do erótico e do lúdico, explicita um modo de fazer eminentemente alegre. Assim, pautados por um agir alegre, que leva em consideração a necessidade de encampar o ambiente como um todo, os povos que aqui habitam terminam por operar nos signos uma modificação ativa, erigindo obras diferenciadas, capazes de engendrar em si procedimentos que levam o próprio espectador/leitor a ter de lançar mão de afetos ativos como forma de se deixar modificar por aquilo que vivencia através das obras.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALFONSO-GOLDFARB, Ana Maria. La ruta Salvador-Calicut: un encuentro entre dos mundos. Universidad Autônoma de Madrid/Doce Calles, 1993.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987.

BASTIDE, Roger. Brasil, terra de contrastes. São Paulo-Rio de Janeiro: Difel, 1976.

CAMPOS, Haroldo de. Transcriação. Marcelo Tápia; Thelma Médici Nóbrega (org.). São Paulo: Perspectiva, 2015.

CHAUI, Marilena. A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. vol. I: Imanência. São Paulo: Companhia das Letras. 1999.

CHAUI, Marilena. A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. vol. II: Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. Tradução: Daniel Lins; Fabien Pascal Lins. São Paulo: Escuta, 2002.

DELEUZE, Gilles. Espinosa e o problema da expressão. Tradução: GT Deleuze – 12. São Paulo: Editora 34, 2017.

DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression. Paris: Les Éditions de Minuit, 1968, 2010.

DELGADO, Manoel. Sociedades movedizas: pasos hacia una antropología de las calles. Barcelona: Anagrama, 2007.

FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em cordel: o passo das águas mortas. São Paulo: Edusp, 2016.

FERREIRA, Jerusa Pires. Cultura das bordas: edição, comunicação, leitura. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2010.

FERREIRA, Jerusa Pires. Leituras imediatas. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2019.

LAPLANTINE, François; NOUSS, Alexis. A mestiçagem. Tradução: Ana Cristina Leonardo. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.

LAPLANTINE, François; NOUSS, Alexis. Mestizajes: de Arcimboldo a zombi. Tradução:  Víctor A. Goldstein. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007.

LEZAMA LIMA, José. A expressão americana. Tradução: Irlemar Chiampi. São Paulo: Brasiliense. 1988a.

LEZAMA LIMA, José.  Confluencias: selección de ensayos. Selección y prólogo Abel E. Prieto. La Habana: Letras cubanas, 1988b.

MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La deuxième partie ­­– La réalité mentale. Paris: PUF, 1997.

MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La quatrième partie ­­– La condition humaine. Paris: PUF, 2012.

MARTÍN-BARBERO, José. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Tradução: Ronald Polito; Sérgio Alcides. 7. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.

MARTÍN-BARBERO, José. Ofício de cartógrafo: travessias latino-americanas da comunicação na cultura. Tradução: Fidelina González. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

PINHEIRO, Amálio. América Latina: Barroco, cidade, jornal. São Paulo: Intermeios, 2013.

PINHEIRO, Amálio. (org.). O jornal e a cidade: um Barroco de viés. São Paulo: Intermeios, 2015.

PINHEIRO, Amálio. A condição mestiça. Pasquinagem, v. 10, p. 8-23, 2020.

PINHEIRO, Amálio.; SALLES, Cecilia Almeida. (org.). Jornalismo expandido: práticas, sujeitos e relatos entrelaçados. São Paulo: Intermeios/PUC-SP, 2016.

SPINOZA, Baruch de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: CosacNaify, 2015.

APÊNDICE – REFERÊNCIAS DE NOTA DE RODAPÉ

2. Amálio Pinheiro é poeta, tradutor e professor no Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Coordena o Grupo de Pesquisa “Barroco e Mestiçagem”, onde se investigam as relações entre as áreas de literatura, comunicação e cultura na América Latina, ao mesmo tempo em que se experimentam modos de conhecimento não dualistas para o continente. É autor da obra América Latina: Barroco, Cidade, Jornal (São Paulo: Intermeios, 2013), entre outras.

3. Neste trabalho, para facilitar a localização, as remissões à Ética (SPINOZA, 2007) se constituirão da referência à obra propriamente dita, indicada pela inicial É. (Ética), pelo livro (I, II, III, IV ou V) e por abreviações para as partes específicas (p. ex., def. para definições, ax. para axioma, prop. para proposição, dem. para demonstrações, corol. para corolário, esc. para escólio etc.) citadas dentro de cada livro, em lugar de citar as páginas de uma edição específica da obra.

4. Anotação de aula online, ministrada por Amálio Pinheiro em 2 de setembro de 2020, como parte do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

5. PINHEIRO, A. Reunião do Grupo de pesquisa Comunicação e Cultura: Barroco, Oralidades e Mestiçagem, da PUC-SP (DGP CNPq/Lattes), 18 ago. 2015.

6. PINHEIRO, A. “Conceitos deslizantes”. Instagram, Diálogos COS – Projetos, live de 09 out. 2020. Disponível em:   https://www.instagram.com/tv/CGI_Gw9nyC-/?utm_source=ig_web_copy_link. Acesso em: 31 out. 2020.

7. Anotação de aula, ministrada por Amálio Pinheiro em 18 de abril de 2018, como parte do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

8. Anotação de aula, ministrada por Amálio Pinheiro em 30 de outubro de 2019, como parte do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

9. PINHEIRO, A. “Conceitos deslizantes”. Instagram, Diálogos COS – Projetos, live de 09 out. 2020. Disponível em:   https://www.instagram.com/tv/CGI_Gw9nyC-/?utm_source=ig_web_copy_link. Acesso em: 31 out. 2020.

10. Verso inicial de “O samba e o tango”, de Amado Régis, samba-tango gravado por Carmen Miranda em 1937 e por Caetano Veloso em 1995.

[1] Doutoranda em Comunicação e Semiótica.

Enviado: Dezembro, 2020.

Aprovado: Dezembro, 2020.

5/5 - (1 vote)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pesquisar por categoria…
Este anúncio ajuda a manter a Educação gratuita