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O papel das plataformas de redes sociais na subversão do conceito de comunidade virtual: elementos para a compreensão da construção da subjetividade contemporânea

RC: 141532
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/papel-das-plataformas

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

OLIVEIRA, Thais da Conceição [1], COSTA, Rogério da [2]

OLIVEIRA, Thais da Conceição. COSTA, Rogério da. O papel das plataformas de redes sociais na subversão do conceito de comunidade virtual: elementos para a compreensão da construção da subjetividade contemporânea. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 03, Vol. 01, pp. 128-150. Março de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/papel-das-plataformas, DOI:10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/papel-das-plataformas

RESUMO 

O presente artigo tem como objetivo analisar o papel das novas plataformas de redes sociais na reformulação do conceito de comunidades virtuais. Nos apoiando nos estudos de Howard Rheingold (1996) e Rogério da Costa (2002), entende-se as comunidades virtuais como espaços de compartilhamento e construções colaborativas de conhecimento. Do ponto de vista metodológico, fez-se o uso da teoria dos autores: Mocellim (2011), Bauman (2003), Maffesoli (2006), Guattari e Rolnik (1996), Lazzarato (2014), Xavier e Lacava (2017), entre outros, no que se refere à comunidade virtual e à produção de subjetividade. Trata-se de uma questão de relevância, analisar as consequências dos impactos causados pelas plataformas de redes sociais, bem como a sua lógica de estímulo à reputação individual, seguidores e avaliações, entre outros, e, a partir desse ponto, lançar reflexões sobre o futuro dos espaços digitais de cooperação.

Palavras-chave: Comunidade virtual, Rede social, Subjetividade, Plataformas digitais.

1. INTRODUÇÃO

O objetivo principal deste artigo é investigar os caminhos percorridos pelas comunidades virtuais e a interferência das redes sociais neste percurso. A análise inicia-se na conceituação do termo comunidade e, para isso, utilizou-se o trabalho de Alan Delazeri Mocellim (2011), “A comunidade: da sociologia clássica à sociologia contemporânea”. Neste texto, o autor apresenta as divergências entre a sociologia clássica e a sociologia contemporânea.

A pesquisa contempla, também, as reflexões de Zygmunt Bauman (2003) que, no livro “Comunidade: a busca por segurança no mundo atual”, apresenta dois conceitos de comunidade: as estéticas e as éticas. Através destes dois sentidos, o autor busca expandir a compreensão em relação às comunidades físicas, a ponto de alcançar o objeto desta pesquisa, que são as comunidades virtuais.

Michel Maffesoli (2006), também, contribuirá na aproximação destas duas análises ao discorrer sobre o paradigma das redes como sendo uma tentativa de revitalizar o mito das comunidades, partindo do entendimento de grupos que colaboram mutuamente em um determinado espaço.

Em um segundo momento, aborda-se sobre a história das comunidades virtuais, sob o ponto de vista de Howard Rheingold (1996), utilizando como referência o trabalho “A comunidade virtual”, no qual o autor relata a trajetória da Whole Earth’ Lectronic Link (WELL) e, também, as características e dinâmicas fundamentais para a estruturação e manutenção de uma das primeiras comunidades virtuais.

Apoiou-se, ainda, na obra de Rogério da Costa (2002), que, além de aprofundar o entendimento sobre as especificidades da WELL ao citar o trabalho de Rheingold, também apresenta as características de outras comunidades que fizeram parte da história do ciberespaço e, principalmente, da sonhada inteligência coletiva.

A partir dos apontamentos de Costa (2002), segue-se relembrando as comunidades e plataformas que apresentaram elementos ou dinâmicas utilizadas até os dias de hoje.

Na sequência, é traçada uma linha imaginária, a fim de delimitar o espaço das comunidades virtuais e das redes sociais. Apresenta-se as características de cada uma e os efeitos sofridos pela transposição dos avanços tecnológicos.

Por fim, observa-se as comunidades virtuais e as redes sociais sob a luz das novas tecnologias e tudo que as permeia. Investigou-se, ainda, a possibilidade de virtualizar a vida, mediante a conexão de um smartphone e, consequentemente, olha-se para a construção arquitetônica das redes e a sua lógica operante, tendo como base o texto de Steven Johnson (2001), “Cultura da Interface”, onde faz-se uma leitura semiótica da intencionalidade dos métodos operacionais empregados na estruturação dos espaços, visando a imposição de determinadas necessidades.

Concomitante a isso, apoia-se nas observações de Félix Guattari e Suely Rolnik (1996) acerca da produção de uma subjetividade capitalística. As respectivas observações se fazem fundamentais mediante a constante interação dos sujeitos e suas máquinas. Por essa razão, também, soma-se o texto de Maria Rita Pereira Xavier e Vyullheney Fernandes de Araújo Lacava (2017), pois, nele, os autores, indicam os modelos de vigilância e controle como sendo, em parte, responsáveis pela aceleração da produção de subjetividade.

Ao estabelecer uma conversa entre autores que passaram anos debruçados sobre o tema do compartilhamento de espaços virtuais e da possibilidade de construir espaços de colaboração e convivência coletiva, visa-se lançar luz sobre a possibilidade de vislumbrar um futuro para as transformações das comunidades virtuais que ainda estão por vir.

2. UMA BREVE HISTÓRIA SOBRE A COMUNIDADE VIRTUAL

2.1 O QUE SE ENTENDE POR COMUNIDADE 

Faz-se a leitura do termo comunidade sob a perspectiva da sociologia contemporânea, ainda que não haja uma definição hegemônica a respeito deste conceito. Desta forma, recorre-se ao trabalho de Alan Delazeri Mocellim (2011), onde o autor procurou debater o conceito “comunidade” do lastro da sociologia clássica até a sociologia contemporânea. Neste trabalho, o autor investiga o uso comum e cotidiano da palavra comunidade. Para isso, ele evoca a definição do dicionário,

[…] em que se encontra definida como: 1) estado ou qualidade das coisas materiais ou das noções abstratas comuns a diversos indivíduos, comunhão; 2) concordância, concerto, harmonia; 3) conjunto de indivíduos organizados em um todo ou que manifestam, geralmente de maneira consciente, algum traço de união; 4) conjunto de habitantes de um mesmo Estado ou qualquer grupo social cujos elementos vivam em dada área, sob um governo comum e irmanados por um mesmo legado cultural e histórico (MOCELLIM, 2011, p. 106).

Conforme pode ser observado, a definição do dicionário eletrônico Houaiss (2001 apud MOCELLIM, 2011) da língua portuguesa exprime a imprecisão a respeito do sentido da palavra comunidade. Contudo, este termo, por si só, carrega a sugestão de relações pautadas por intimidade, vínculos emocionais e longevos, continuidade e coesão social, além de comprometimento moral.

Mocellim (2011), partindo dos estudos de Bauman (2001; 2003; 2005), sobre o entendimento de comunidade na sociedade moderna, busca ampliar a compreensão quanto a impossibilidade da vida comunitária. Para ele, “a comunidade depende da “mesmidade” e, dessa forma, é alheia à reflexão, à crítica e à experimentação. Ela tem sempre que manter certa imutabilidade, caso almeje manter-se comunitária ao longo do tempo”. O autor, ainda, afirma que, devido à relativização das distâncias, tomando como base os meios de transporte e de comunicação, “a vida comunitária se torna cada vez mais insustentável”. Todavia, a impossibilidade de conceituar o termo se apresenta, na sociologia contemporânea, através dos reflexos da vida moderna incididos sobre a imagem da comunidade, pois a vida contemporânea transforma o sentido comunitário, uma vez que reconfigura o que pode ou não ser classificado como grupo.

 A distância, outrora a mais formidável das defesas da comunidade, perdeu muito de sua significação. O golpe mortal na “naturalidade” do entendimento comunitário foi desferido, porém, pelo advento da informática: a emancipação do fluxo de informação proveniente do transporte dos corpos. A partir do momento em que a informação passa a viajar independente de seus portadores, e numa velocidade muito além da capacidade dos meios mais avançados de transporte (como no tipo de sociedade que todos habitamos nos dias de hoje), a fronteira entre o “dentro” e o “fora” não pode mais ser estabelecida e muito menos mantida (BAUMAN, 2003, p. 18-19).

Em face de tais afirmações, o ato de pensar a comunidade se aproxima ainda mais do conceito contemporâneo, atravessado pela digitalização das formas de interação, pois a ideia de comunidade inicialmente apresentada, em quase nada, representa aquela discutida neste artigo, a comunidade virtual.

Com o passar dos anos, surgem, na rede, novas plataformas ou, em alguns casos, atualizações de plataformas já conhecidas, porém adaptadas aos modelos vigentes da época. Essas são dinâmicas que privilegiam a projeção das novas identidades, conferindo à plataforma um espaço de exposição identitária.

Segundo Bauman (2003), diante da impossibilidade de encontrar uma comunidade, uma nova forma de haver entendimento e segurança, o conceito de identidade ganha importância. A identidade é substituta contemporânea da comunidade. Ela incorpora a individualidade ao pertencimento a grupos ou filiações a estilos de vida, mas, de forma nenhuma, esse pertencimento pode ser similar ao pertencimento comunitário – é sempre um pertencimento temporário, revogável e precário e também incapaz de trazer a segurança trazida pela comunidade (MOCELLIM, 2011, p. 119).

Ainda que a identidade tenha se transformado em uma espécie substituta da comunidade, tal mudança não é suficiente para decretar seu fim, que, neste novo cenário, passa a figurar uma nova forma de comunidade.

Ferdinand Tönnies (1995), descreve as comunidades sob duas classes: as comunidades estéticas e as comunidades éticas.

Segundo a interpretação de Bauman (2003, p. 56-68), a respeito das descrições de Tönnies sobre as comunidades estéticas e éticas, o autor ressalta que, enquanto as comunidades éticas são pautadas pelas normas, tradições e compartilhamento dos destinos, as estéticas são maleáveis e dispensam a orientação rígida da moral.

De acordo com Bauman (2003), as comunidades estéticas ainda vivem sob a ameaça permanente de se desfazer. “Há um deslocamento da ética para a estética, no qual as autoridades não são mais os líderes morais, mas o exemplo das celebridades e a liberdade que representam” (MOCELLIM, 2011, p. 119).

Uma coisa que a comunidade estética definitivamente não faz é tecer entre seus membros uma rede de responsabilidades éticas e, portanto, de compromissos a longo prazo. Quaisquer que sejam os laços estabelecidos na explosiva e breve vida da comunidade estética, eles não vinculam verdadeiramente: eles são literalmente “vínculos sem conseqüências”. Tendem a evaporar-se quando os laços humanos realmente importam — no momento em que são necessários para compensar a falta de recursos ou a impotência do indivíduo. Como as atrações disponíveis nos parques temáticos, os laços das comunidades estéticas devem ser “experimentados”, e experimentados no ato — não levados para casa e consumidos na rotina diária (BAUMAN, 2003, p. 67-68).

Há diversos pontos de similaridade das comunidades estéticas com os modelos atuais das comunidades virtuais. Ainda que, na formação de uma comunidade virtual, haja uma pauta capaz de engajar os envolvidos, este fator não é determinante a ponto de excluir a possibilidade de os participantes ingressarem em comunidades completamente divergentes e, consequentemente, adotar linhas editoriais opostas em cada comunidade virtual que o sujeito venha a ingressar.

Outro termo utilizado por Bauman (2003) para exemplificar as características da comunidade estética é: comunidades-cabide. Para este termo, pode-se fazer duas interpretações: a primeira seria que os indivíduos podem escolher, de acordo com a necessidade, aquele que melhor lhe veste em determinada situação, podendo ser retirado quando não houver mais utilidade; a segunda, se refere ao cabide, por se tratar de um suporte temporário, onde o sujeito pode pendurar seus medos, angústias e preocupações para que a identidade possa ser vivida sob a força do coletivo, com apoio e segurança do todo, ainda que por pouco tempo (MOCELLIM, 2011).

O que as comunidades estéticas definitivamente são incapazes de gerar são responsabilidades éticas e compromisso de longo prazo. Elas são apenas comunidades passageiras, cujo objetivo é muito mais a composição de uma identidade individual do que a construção de uma coletividade. Dessa forma, o deslocamento das comunidades éticas para as comunidades estéticas evidencia uma fase de maior individualização nas sociedades modernas (MOCELLIM, 2011, p. 121).

Contudo, na contramão das teorias evidenciadas por Bauman (2003), Michel Maffesoli (2006), indica que, atualmente, vive-se o hibridismo dos diversos estilos de vida, entre os quais está o tribalismo, que, segundo o autor, parece representar a necessidade de autopreservação e, por diversas vezes, a necessidade de reprimir a fragilidade ao tripudiar a tribo diferente, colocando-se em posição de superioridade. Busca-se a identificação com aqueles que estão em degrau elevado, ainda que a elevação seja ilusória.

Os membros de uma tribo têm um sentimento comum para com a sua região e, portanto, para com os demais membros. Este sentimento evidencia-se no orgulho com que falam de sua tribo enquanto objeto de lealdade, na depreciação jocosa de outras tribos e na indicação de variações culturais em sua própria tribo como símbolo de sua singularidade (EVANS-PRITCHARD, 2007, p. 132 apud MOCELLIM, 2011, p. 122).

Maffesoli (2006), acredita que, em grandes metrópoles, há a incidência de tribos, conforme descrito por Mocellim (2011). Essas tribos, por sua vez, apresentam uma nova forma de sociabilidade, completamente contrária à apresentada anteriormente, ou seja, ao invés de comunidades individualizantes, deparamo-nos com comunidades desindividualizantes, isto é, comunidades efêmeras, com perfil cambiantes, onde não há organização formal, contudo há inscrição local e estrutura cotidiana (MOCELLIM, 2011).

O autor, ainda, salienta que não se trata de um novo modelo social, mas sim do retorno de um modelo, que seria o tribalismo adaptado aos novos contextos. Para ele, a releitura do tribalismo, diferentemente dos anteriores, possibilita a integração em outras tribos e, consequentemente, há uma convergência das demais identidades adotadas nos diferentes espaços, as quais são as diversas identidades que compõem a identidade individual.

O paradigma da rede pode, então, ser compreendido como a revitalização do antigo mito da comunidade. Mito, no sentido de alguma que, talvez, jamais tenha existido, age, com eficácia, no imaginário do momento. Daí a existência dessas pequenas tribos, efêmeras, mas que nem por isso deixam de criar um novo estado de espírito que parece destinado a durar (MAFFESOLI, 2006, p. 239).

Na tentativa de aproximar tais afirmações ao contexto das redes digitais, pode-se fazer uma inicial e breve comparação com as plataformas de interação social. Se no início das “redes sociais”, de maior popularidade no Brasil, tais como: Orkut e Facebook, o foco eram os grupos de discussão e os fóruns de debate, com o passar dos anos, despontou-se, cada vez mais, as plataformas focadas no indivíduo, no perfil, na produção de “conteúdo” sobre o personagem online e na construção de uma imagem, o EU S/A.

Atualmente, acompanha-se a movimentação das plataformas sobre as disputas de narrativas acerca do debate político, o empenho de personalidades, candidatos e anônimos em transformar as redes em espaços de apresentação de propostas, ferramenta para a conversão eleitoral, disseminação de fake news, espaço de checagem de fake news e plataforma para a apresentação de candidatos, que, por sua vez, engajam as efêmeras comunidades em torno do seu objetivo e, ainda, encontram um lugar comum de identificação e apoio.

Esse grupo de pessoas vinculadas através do ciberespaço, independentemente da plataforma, é o que Pierre Lévy (2002) chama de comunidade virtual.

Nesse cenário, não se leva em consideração que esta comunidade trata-se de uma simples lista de contatos temporária ou se havia algum tipo de relação intelectual ou afetiva. O tempo cronológico entre as relações, também, não deve ser utilizado como critério para classificar as comunidades virtuais (LÉVY, 2002, p. 68).

Ainda assim, tendo em vista a dinâmica das plataformas de interação digital: quais elementos das comunidades virtuais ainda podem ser encontrados nas novas redes? Como as construções narrativas e as disputas culturais corroboram para o engajamento ou desinteresse do usuário? Que tipo de comunidade virtual se está construindo? O que esperar das comunidades do futuro virtual?

2.2 O CAMINHO DAS COMUNIDADES VIRTUAIS 

Um dos primeiros autores a se debruçar sobre este tema foi Howard Rheingold. Para ele, a comunidade virtual é muito mais do que um lugar de encontro: é um meio para que internautas possam atingir determinados fins (RHEINGOLD, 1996), ou seja, ocupar o mesmo espaço digital com parentes ou conhecidos não é suficiente para que nos sintamos parte de uma comunidade. É preciso compartilhar, também, zonas de conhecimento, gostos e preferências, pois o que importa é saber que existem outras pessoas anônimas constituintes dessa mesma constelação e que podem colaborar umas com as outras (COSTA, 2002).

Rheingold (1996), participou ativamente de uma das primeiras comunidades virtuais, se tornando um entusiasta e divulgador dessa invenção. As comunidades virtuais de hoje têm, portanto, a sua origem nos estudos de Rheingold e na criação da WELL.

A WELL foi fundada no ano de 1985 pelos editores da revista Whole Earth Review, como um braço da Whole Earth Catalog. Ela era voltada para a construção de um lugar comum, promovendo a conferência e a troca de informações com os mais variados temas, sobre os mais diversos objetivos.

A comunidade operava como uma espécie de fórum e cada tema possuía sua lista de interessados, os chamados utentes. Muitos usuários faziam da plataforma a sua residência digital, regulavam, cuidavam do espaço e fiscalizavam as mensagens. Apesar de haver moderadores, os demais utentes se sentiam parte daquela comunidade, denunciavam, controlavam comportamentos inapropriados e ajudavam a construir as regras da plataforma.

A relação dos participantes não ficava restrita apenas à WELL, eventualmente os usuários atravessavam estados e até mesmo continentes para promover encontros. Com alguma periodicidade, conheciam os familiares de alguns participantes, se hospedavam na casa de outros e não mediam esforços para promover ajuda a qualquer integrante que estivesse precisando de auxílio, não importando a hora. Muitos usuários entravam em contato com seus ciclos sociais, que não tinham relação com a WELL, para poder oferecer ajuda a quem estivesse precisando. O poder de conexão dos participantes desta plataforma extrapolava o ciberespaço.

Rogério da Costa (2002), em seu trabalho “As Comunidades Virtuais”, traz alguns exemplos que marcaram a história das comunidades virtuais. Segundo o autor, outra importante comunidade é o The-Park, que permaneceu no ar entre os anos de 1994 até 2001. Na comunidade, era possível encontrar diferentes ferramentas de interação, fóruns e salas de bate-papo, além de artigos e notícias. A plataforma fazia a arrecadação de mensalidades simbólicas dos usuários. Assim como na WELL, no The-Park, os usuários também tinham a possibilidade de se tornar moderadores dos fóruns e das salas de bate-papo. Eles podiam, ainda, construir um perfil, onde inseriram o endereço eletrônico (COSTA, 2005, p. 57).

Nos anos 2000, o The New York Times criou a plataforma Abuzz.com, com a finalidade de direcionar perguntas para pessoas interessadas em determinados temas e que pudessem ou soubessem responder. Os criadores da plataforma entenderam que muito mais do que utilizar o reforço positivo para incentivar a participação dos assinantes, era fundamental estimular a participação, a interação e a reciprocidade através dos aplausos, da contagem de tempo médio de resposta ou do incentivo para reformular a pergunta.

Dadas as proporções das tecnologias dos anos 2000, onde apesar destes recursos ainda serem mecanismos embrionários para a época, eles foram responsáveis pela captação da atenção, aquilo que hoje chamamos de engajamento, e que acabou se tornando objeto desejado por diversos profissionais e empresas que utilizam as plataformas digitais como veículo de capitalização para a sua respectiva marca/conteúdo. Em consonância, Costa (2005) aponta que:

Para o agente inteligente de Abuzz.com, tudo que auxilia na construção do perfil dos membros e na melhor troca possível entre perguntas e respostas é importante. Assim, as respostas recebem aplausos, o que estimula a participação; o tempo que alguém leva para responder é computado, para que aqueles que perguntam tenham idéia do tempo médio de resposta; caso o usuário não receba uma resposta no tempo médio, o agente lhe propõe refazer a pergunta etc. Esses e outros recursos fazem de Abuzz.com um excelente exemplo de comunidade que é movida exclusivamente pela partilha de conhecimentos, por uma inteligência coletiva (COSTA, 2005, p. 62).

Os desenvolvedores da Abuzz.com compreenderam o tamanho do potencial que a comunidade virtual possuía ao estabelecer pontes entre os que precisam e os que possuem algo a oferecer. O estímulo que a plataforma desenvolveu para envolver os donos da resposta e os proprietários das perguntas transforma um simples auxílio e a inteligência coletiva em uma dinâmica que pode ser muito mais atraente do que a própria resposta. Isso porque ao utilizar um sistema de recompensas (como: o reforço positivo, as notificações sobre a contagem de tempo de resposta, os aplausos e a reciprocidade), a plataforma adentra a camada onde está estacionada a carência ou, por vezes, a insegurança do sujeito que anseia por retornos advindos de outros usuários, ainda que não os conheça pessoalmente.

Os anos 2000 serviram como período teste para a aplicação e reformulação das ferramentas utilizadas nas primeiras comunidades virtuais. Foi neste período que houve a eclosão das plataformas de interação social. Surgia, naquele momento, protótipos dos novos modelos de comunidade virtual. Dentre as plataformas está o Fotolog, que chegou ao Brasil em 2003. A comunidade foi criada por Sholl Heiferman e Adam Seife. O Fotolog operava como uma espécie de blog voltado a publicação e visualização de fotos, com espaços para adicionar perfis amigos a uma lista de contatos e receber comentários dos visitantes, havia, também, a contagem das visualizações na foto publicada.

Outra plataforma voltada a publicação de fotos, que surgiu no início dos anos 2000, e que teve como inspiração o próprio Fotolog, foi o Flogão, criado no ano de 2004, pelo carioca Cristiano Costa.

O Flogão possuía layout e funcionalidades similares às do Fotolog, porém algumas características inclusivas destacavam a comunidade brasileira. Enquanto o Fotolog possuía um número limite de novos usuários diários e separava as contas pagas das contas gratuitas, o Flogão, em contrapartida, era completamente gratuito – pelo menos nos anos iniciais -, não havendo limite de novos usuários por dia e de publicações diárias.

Ainda, no ano de 2004, surge outra plataforma, o Orkut, com uma proposta completamente diferente das anteriores, pois ele reunia diversas ferramentas de interação em apenas uma plataforma. O Orkut revolucionou o conceito de “rede social”.

No Brasil, a plataforma disponibilizava álbum de fotos e lista de amigos, além de perfil robusto com mais informações do usuário e comunidades, que poderiam ser interpretadas, inicialmente, como fóruns ou assuntos de interesse para debate.

Nos primeiros anos de operação da rede social, o usuário só poderia criar uma conta/perfil caso tivesse recebido um convite, via e-mail, para adentrar ao ciclo restrito de participantes da rede. Ao receber o convite, o usuário deveria preencher seu perfil com informações pessoais, como: nome, data de nascimento, instituição de ensino, profissão e hobby. Também, era possível entrar ou criar uma comunidade de interesse comum com outros usuários, onde podia-se visualizar as conversas que aconteciam no espaço destinado aos comentários.

Através das comunidades, os usuários tinham a possibilidade de se conectar com outros usuários desconhecidos até então e adicioná-los à sua rede de contatos. Também, era possível buscar e adicionar pessoas conhecidas à lista de “amigos”.

Alguns anos após o surgimento desta rede social, foi descartado, pela própria rede, a necessidade de convite para criar um perfil no Orkut, ou seja, a plataforma perdeu o caráter restritivo e excludente e passou a aceitar novos usuários.

A essa altura, as empresas de tecnologia já compreendiam que o negócio dependia de usuários, clientes ou fornecedores e informações dos que fossem adeptos, ou seja, que pertencessem à comunidade. Por este motivo, escancararam os acessos e possibilitaram que os utentes fizessem uso das plataformas de maneira irrestrita.

3. REDES SOCIAIS VS. COMUNIDADES VIRTUAIS

 As redes sociais empregam um sentido comum no imaginário dos usuários. Sabe-se que elas são plataformas que proporcionam interação dos usuários através de suas respectivas páginas. Muito mais do que uma lista de contatos, elas oferecem ferramentas de auto divulgação, além de proporcionar a experiência da apresentação pessoal na construção do perfil digital.

Ainda que as redes possibilitem o debate de algum tema, o foco central é o personagem, quem ele é ou quem ele diz ser. O que ele pensa exercerá influência sobre os outros usuários a depender da ferramenta utilizada e da contextualização de seu posicionamento com a imagem construída na plataforma. Aborda-se, neste caso, a construção da marca de uma webcelebridade, que passa a se comportar como tal independentemente do número de contatos ou seguidores. A sensação de ser visto, ainda que o utente possua uma conta com configurações de privacidade restrita aos seus respectivos contatos, e a preocupação com o conteúdo publicado, altera a linha editorial, bem como as interações que porventura ele venha a ter, estimulando a coerência estética das postagens, massageando o ego e transformando os usuários em caçadores de atenção. Afinal, não há sentido em mostrar algo sem o objetivo de ser visto. Prova disso é o declínio e desaparecimento do Orkut, bem como da queda do Facebook, que, apesar de ter se mantido por muitos anos em ascensão, começa a perder espaço e, principalmente, receita publicitária para plataformas, cujo modelo de negócio é a publicação de imagens e vídeos.

Isso só aconteceu devido a aceitação do público. As redes sociais carregadas de texto e outras informações perderam espaço ou tiveram que se adaptar, pois o foco agora são os vídeos, de preferência os de curta duração, como é o caso do TikTok ou dos Reels do Instagram.

Não é novidade que as plataformas digitais e o ciberespaço se transformaram ao longo do tempo, e que essas alterações têm ocorrido, pelo menos, ao longo das últimas 3 décadas. Antes, participar de um grupo ou fórum implicava, no mínimo, no interesse por determinado tema ou vontade de discutir algum ponto sobre o assunto, o que exigia um certo envolvimento, seja emocional ou intelectual, pelo tópico abordado. Além disso, se antes a dinâmica comportava listas de amigos, álbuns de fotos, páginas e publicações pessoais, grupos de interesse ou fóruns de discussão, agora o espaço foi dominado pela timeline, pelo seguidor e por uma enxurrada de fotos e vídeos com aplicação de filtros estéticos.

Adicionar um perfil à lista de amigos exigia reciprocidade, conexão ou, em algum nível, uma espécie de vínculo. Ao contrário da legião de seguidores que sobrevoam, como moscas, sem muito interesse, a timeline. Na maioria das vezes, a visualização é rápida e sem atenção, geralmente não há vínculo entre o perfil que posta e o perfil que consome a postagem sem perceber. Quando os amigos são substituídos pelos seguidores, não é apenas a nomenclatura que está mudando, mas sim a maneira de encarar o meio e tudo que o permeia. Tão logo, as interações são convertidas em engajamento, deixando de lado o propósito sobre a troca entre os usuários e passando a discutir a performance.

A lógica de seguir também é aplicada aos portais de informação e de notícia, onde os leads estão cada vez mais curtos e os assuntos não são postos para a discussão, pois as plataformas, apesar de conferir espaços para comentários e de também estimular e desejar o engajamento, não sustentam estruturas de debate de ideias. Quando muito, desejam a exposição de opiniões para que os embates aconteçam sem nenhum tipo de mediação ou conciliação. As discussões acontecem, os usuários se digladiam e, com isso, estimulam os algoritmos através do engajamento. Sob essa lógica, quanto maior a polêmica, maior será o número de visualizações e maior será o alcance da publicação.

Os fundadores das comunidades virtuais acreditavam na potência da internet e, principalmente, das comunidades, como meio de unir pessoas e colocá-las em prol de causas que pudessem, efetivamente, ajudar uns aos outros. Havia a crença da possibilidade de transportar as comunidades do mundo físico para o mundo virtual e, principalmente, expandir o território. Não existiam muros ou demarcações geográficas capazes de limitar a identificação e o pertencimento dos participantes. Acreditavam na promessa de uma inteligência coletiva, milhares de usuários conectados à rede e capazes de compartilhar conhecimento em escala mundial.

A lógica das comunidades virtuais criava no sujeito o interesse pelo tema abordado, a finalidade dos grupos de discussão, a presença de mediadores e a ausência da ênfase sobre o perfil conferiam aos diálogos o protagonismo na interação. Não havia escalas de hierarquia entre os usuários, todos entravam no assunto com certa equivalência e construíam juntos um espaço de conversa e convivência virtual.

Encontram-se dois pontos centrais que sintetizam distinções entre as redes sociais e as comunidades virtuais: a transição dos amigos e a rede de contatos para seguidores, atribuindo o sentido similar ao da palavra fã. O outro ponto está na divergência de entendimento a respeito do espaço ocupado. Nas comunidades, a compreensão do espaço compartilhado é fundamental para a convivência, sobretudo, para a colaboração.

4. TEMPO ATUAL – O SMARTPHONE E A RECONFIGURAÇÃO DA VIDA VIRTUAL NA SUBJETIVIDADE CONTEMPORÂNEA

Da mesma forma que os arquitetos das catedrais ajudavam a moldar as crenças e as perspectivas dimensionais a partir da organização, os arquitetos da informação atuam, desde o lançamento dos desktops, na construção de espaços capazes de instituir e moldar a perspectiva do usuário sobre o mundo, sobre a dimensão espacial e, inclusive, sobre ele mesmo.

Numa era da informação, as metáforas que usamos para compreender os zeros e uns são tão centrais, tão significativas, quanto as catedrais da Idade Média. A vida social daquele tempo girava em torno das espirais e arcobotantes da “infinita imaginada”. Em nossas próprias vidas, agora, giramos em torno de um texto mais prosaico: o desktop do computador. Compreender as implicações dessa metáfora – sua genialidade e suas limitações – é a chave para a compreensão da interface contemporânea (JOHNSON, 2001, p. 38).

Atualmente, tanto a sociedade, quanto os arquitetos da informação, giram em torno de smartphones, da sua usabilidade e de sua potencialidade que, além de ser um mistério, é, também, um vasto campo aberto e pouco explorado. Nesse sentido, compreender as implicações deste aparelho na vida contemporânea auxilia a interpretar os aspectos da remodelação das comunidades virtuais mediante a produção da subjetividade, graças a virtualização da vida.

Atualmente, os smartphones desempenham muito mais do que a simples funcionalidade das chamadas de voz. Estes aparelhos não podem ser classificados como a evolução dos palmtops (personal digital assistant) ou então serem interpretados como a junção dos computadores com os telefones móveis. Muito mais do que a união de dois aparelhos, o smartphone desempenha diversas funcionalidades, desde ligações até a geolocalização.

Por essa multifuncionalidade, os smartphones passaram a ocupar um espaço tão grande na vida de seus respectivos usuários que chegam a ser compreendidos como a extensão do corpo do utente (MCLUHAN, 1964). Eles organizam muito mais do que nossa agenda telefônica, vida social, profissional ou acadêmica, passando a englobar todas as esferas da vida humana, pois está presente em todas as horas do dia.

Segundo Johnson (2001), “O modo com que escolhemos organizar nosso espaço revela uma enormidade sobre a sociedade em que vivemos – talvez mais do que qualquer outro componente de nossos hábitos culturais”. O autor, ainda, retrata como a arquitetura foi capaz de construir visões de mundo, um senso de proporção e ordem sagrada a partir das construções das catedrais. Isso ocorreu em um momento em que a alfabetização da população geral era impossível, mas, ainda assim, a leitura e a interpretação da enormidade, da centralidade e da virtuosidade dos vitrais das catedrais, eram claras para todos.

A mesma “eloquência” pode ser atribuída aos arquitetos da informação, que utilizam suas respectivas linguagens para reprogramar a visão de mundo do usuário.

Na esteira da evolução tecnológica, os smartphones possuem a força capaz de acelerar a produção de subjetividade dos indivíduos através da sua relação direta e indireta com o consumo, colocando o sujeito em plena exposição e em relação direta com diversos elementos que podem alterar a sua subjetividade.

O sujeito, segundo toda uma tradição da filosofia e das ciências humanas, é algo que encontramos como um “être-là”, algo do domínio de uma suposta natureza humana. Proponho, ao contrário, a idéia de uma subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida (GUATTARI e ROLNIK, 1996, p. 25).

Guattari e Rolnik (1996), compreendem que há uma produção capitalística da subjetividade, ou seja, ela é encarada como um produto intencionalmente projetado e fabricado em diversas esferas da vida e tem como objetivo atender ao capital. Os autores, ainda, ressaltam que o sujeito é composto por diversos componentes de subjetividade, logo, a subjetividade capitalística não é a única, apesar de ser mais ampla.

O indivíduo, a meu ver, está na encruzilhada de múltiplos componentes de subjetividade. Entre esses componentes alguns são inconscientes. Outros são mais do domínio do corpo, território no qual nos sentimos bem. Outros são mais do domínio daquilo que os sociólogos americano chamam de “grupos primários” (o clã, o bando, a turma, etc.). Outros, ainda, são do domínio da produção de poder: situam-se em relação à lei, à política, etc. Minha hipótese é que existe também uma subjetividade ainda mais ampla: é o que chamo de subjetividade capitalística (GUATTARI e ROLNIK, 1996, p. 34).

A subjetividade capitalística é, portanto, modelada, produzida e consumida na sua relação com: outros sujeitos, objetos, espaços e trocas comunicacionais. Assim como já citado anteriormente, os smartphones estabelecem com os indivíduos uma relação profundamente dramática.

Com a rápida multiplicação dos smartphones e a expansão do acesso à internet, os usuários das plataformas digitais vivem mergulhados nas redes sociais. As notificações estimulam a ansiedade e incentivam as publicações estéticas, coerentes e, consequentemente, a caçada por atenção. Transformando, desta forma, as postagens em verdadeiros anúncios, cada dia mais atraentes, mais chamativos e com maior capacidade de captação da atenção alheia.

Mais do que a posse do equipamento, as diversas possibilidades de interação social, fazem com que os anúncios não se restringem a horários limitados em uma propaganda televisiva, mas se tornem algo que está presente a todo instante, divulgando: as plataformas que viralizam, as publicações que viram memes e as fotos que se espalham através de compartilhamentos. Apresentando uma infinidade de possibilidades de consumo, um tanto desenfreado e, por diversas vezes, narcotizado.

Há de se considerar, também, que a participação dos smartphones na construção da subjetividade capitalística não está restrita a hospedar e projetar passivamente elementos incorporados ao seu respectivo sistema operacional, pelo contrário, é necessário levar em consideração a relação do objeto para com o humano.

Os não humanos contribuem tanto quanto os humanos na definição, no enquadramento e nas condições de ação. Age-se sempre dentro de um agenciamento, um coletivo em que máquinas, objetos e signos são ao mesmo tempo agentes. Se a sujeição invoca a consciência e a representação do sujeito, a servidão maquínica ativa forças pré-sociais, pré-cognitivas e pré-verbais (percepção, sentido, afetos, desejo) tanto quanto forças suprapessoais (máquinas, linguísticas, sociais, midiáticas, sistemas econômicos, etc.) (LAZZARATO, 2014, p. 32).

Vale ressaltar que a subjetividade capitalística não está delimitando sua formação, mas sim a relação estabelecida com o consumo do objeto e com a infinidade de conteúdos disponíveis através da conexão à internet. Assim sendo, a formação da subjetividade capitalística tem sua capacidade expandida a ponto de envolver o sujeito e o objeto em uma relação cujo grau de relevância de ambos é o mesmo, tornando-se actantes neste processo, na iminência de transformar os mecanismos de autoidentidade do sujeito, uma vez que o atravessamento e a interpelação colocam o sujeito no centro da indagação sobre quem ele realmente é. Assim como afirma Judith Butler (2015), que os “momentos e desconhecimento sobre si mesmo tendem a surgir no contexto das relações com os outros”.

Se as relações agem de maneira a iniciar um processo de constituição da autoidentidade e ao considerarmos os objetos actantes em um processo de relação, não seria completamente incorreto afirmar que as plataformas digitais, os computadores e, em especial, os smartphones, estão reconfigurando a vida social sob a perspectiva da não necessidade de presença física de outro humano ou então do deslocamento dos indivíduos.

As diversas possibilidades de interconexão dos usuários, através dos smartphones, criaram um novo entendimento com relação ao pertencimento e, em especial, a respeito da identificação e participação.

Se em outros tempos havia a necessidade de ligar o computador ou notebook e, posteriormente, conectar a internet, atualmente, as pessoas vivem conectadas a um aparelho que não desliga e, através dele, podem estar em diversos lugares ao mesmo tempo.

É possível estar fisicamente em casa e virtualmente no trabalho, ao mesmo tempo em que se faz presente em uma discussão no twitter ou que transporta os temas da discussão para o trabalho virtual e para o convívio domiciliar.

Não há barreiras para a convergência dos espaços. As notificações e os avisos sonoros ou visuais no display conferem ao utente um constante estado de atenção, ainda que essa atenção seja compartilhada com outros estímulos.

Essa transformação foi apontada pelos cientistas sociais Xavier e Lacava (2017) quando afirmaram haver um movimento de escoamento do tempo/espaço e que o curso desse movimento acaba por convergir no aumento do número de smartphones ativos, uma vez que surgem novas necessidades de relação/interação pregressas que podem perder sentido ou ter seu sentido reconfigurado mediante a nova configuração permeada pelos smartphones.

De modo que se há um processo de esvaziamento do tempo espaço por meio do desencaixe das instituições sociais tradicionais – família, escola, igreja, etc. – e a modernidade é inseparável das suas próprias mídias, podemos levantar a hipótese de que a isso se deve um dos motivos do sucesso dos dispositivos móveis de comunicação. Há um preenchimento contínuo do espaço e do tempo deixados abertos pelo enfraquecimento dessas instituições (XAVIER e LACAVA, 2017, p. 05).

O enfraquecimento das instituições pode ser um processo natural e necessário, visto sob a ótica da necessidade do caos. É possível lucrar com a desorientação, em um mundo onde a vida parece passar mais rápido, não havendo tempo a perder. Qualquer elemento que proporcione desorientação cria também a necessidade de novos produtos e, por consequência, novos consumos (JOHNSON, 2001).

De acordo com esse raciocínio, assume-se do mesmo modo que o subjetivo dos indivíduos da modernidade tradicional se moldavam a partir da influência exercida pelas instituições tradicionais, é crível entender também a disseminação de dispositivos comunicacionais como mais um dos atores que interferem na modelação de subjetividade dos indivíduos contemporâneos (XAVIER e LACAVA, 2017, p. 05).

Os sujeitos, ao estabelecerem algum tipo de vínculo, são capazes de reconfigurar sua relação com o meio e seu entendimento sobre si. Isso posto, se em outros tempos as instituições tradicionais imperavam, invariavelmente elas ajudavam a moldar a constituição do sujeito e, possivelmente, sua respectiva subjetividade.

Vale ressaltar que nos anos 1990, Deleuze (2013) já falava sobre as transformações da sociedade contemporânea e da impotência das instituições em disciplinar os corpos, uma vez que a prisão, o hospital, a fábrica, a escola e a família, encontravam obstáculos e medidas alternativas que conferiam certa liberdade aos sujeitos. Atualmente, estes espaços não são mais capazes de limitar a ação do corpo. Por isso, a disciplina não permeia todo o período da vida de um indivíduo e a inserção do controle encontra caminhos silenciosos para vigiar, controlar e transformar as novas formas de vida social.

Sob o pretexto de facilitar a vida acadêmica e profissional, a necessidade de uso das máquinas, em especial dos computadores, no seio familiar, ganhou fácil adesão, criando a necessidade de maior praticidade da vida moderna. No decorrer das décadas, a evolução das máquinas transformou a necessidade que antes era coletivo para uma necessidade singular e pessoal, ressignificando o conceito de privacidade.

Se antes o maquinário estava apenas voltado para a produção industrial em grande escala, o que requeria a introdução de um tipo de subjetividade para os indivíduos, agora as máquinas se instauram para modelar a subjetividade a partir de “dentro” […] Desse modo, a produção de subjetividade talvez tenha se tornado mais importante do que qualquer outro tipo de produção, mais até do que a produção de petróleo e as energias. Visto que as mutações de subjetividade funcionam além da esfera das ideologias, pois estão no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo […] (XAVIER e LACAVA, 2017, p. 06 – 07).

Antes os sujeitos protegiam seus corpos e ações por detrás das paredes das instituições, restringindo o olhar de terceiros. Atualmente, seus corpos e suas informações estão expostos e se espalham pelo ciberespaço, tornando-se visíveis a tantos que é impossível contabilizar ou imaginar o alcance. Nesse cenário, o entendimento a respeito da privacidade está se configurando e a vigilância pouco a pouco começa a ser questionada por diversos usuários comuns. A subjetividade, em linha de produção, atinge escalas estratosféricas.

Dessa maneira, a roda capitalista gira em direção à produção de novos mundos, a partir do caos e da desorganização, surgindo, assim, novas ofertas que propõem soluções definitivas para problemas temporários. Com isso, novas relações são estabelecidas entre os sujeitos e o que nasce dessa relação é uma percepção inédita do mundo, criando-se uma cortina que não confere escuridão, mas transforma a incidência da luz, como um filtro.

O que se percebe a partir disso é a modelização da produção de subjetividade, onde, assim como os raios de luz, segue-se um curso pré-estipulado, das disciplinas ao controle, das instituições aos dispositivos. Nesse cenário, o sujeito é inserido prematuramente em um contexto que induzirá a subjetividade ao invés estimular a relação dele com a sua identidade.

A guerra da subjetividade não é ideológica. Ela se dá através de dispositivos, instituições, técnicas e saberes que, em conjunto, enquadram os indivíduos num sistema de identidades sem remetê-lo, a princípio, à consciência e ao seu jogo de (falsas) representações, que, ao contrário, dependem desse sistema (ALLIEZ e LAZZARATO, 2020, p. 128).

Assim como afirmam os autores Alliez e Lazzarato (2020), a produção de subjetividade é, possivelmente, uma das primeiras produções do capitalismo. Com a diferença que as escalas de produção chegam a níveis escandalosos por meio da inserção dos smartphones, aparelhos que, para além de acompanhar o corpo e controlar o comportamento, moldam a perspectiva do usuário sobre o mundo e, ainda, fornecem informações referentes a: geolocalização, gostos, preocupações, necessidades, dúvidas, desejos, ciclo social, poder aquisitivo, nível educacional etc. Fica cada dia mais distante a possibilidade de o usuário agir conscientemente, questionar o fornecimento de suas informações e ter ciência sobre a sua subjetividade, pois ele é afastado da chance de conhecer sua identidade e de compreender-se como sujeito.

Em contrapartida, as plataformas que utilizam informações dos usuários, como: geolocalização ou a contribuição dos mesmos para identificar avenidas engarrafada, na cidade, como é o caso do aplicativo Waze; além de coletar informações dos usuários para fornecer as agências de mídia focadas em Análise e Desenvolvimento de Sistemas – Ads ou em gestão de Search Engine Optimization– SEO, também oferecem informações sobre os melhores trajetos ou trajetos mais rápidos, ou seja, há um jogo duplo contornando as plataformas de construção colaborativa de informação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante algumas décadas, a grande aposta para o ciberespaço e para as comunidades virtuais, segundo a visão de alguns teóricos como Pierre Lévy (2002) ou Howard Rheingold (1996), era de que elas seriam parte fundamental da construção da inteligência coletiva. A potência que as comunidades têm para diminuir distâncias, derrubar obstáculos e, com isso, aproximar indivíduos que não se conhecem pessoalmente, mas que podem contribuir uns com os outros no que se refere ao conhecimento, é enorme.

Os registros marcam a história das comunidades virtuais como sendo espaços de construção colaborativa de conhecimento e compartilhamento de experiências. Seja através da WELL ou da Abuzz.com, nos primeiros anos das comunidades online o que se pretendia era criar conexões. A construção dos perfis tinha o objetivo de disponibilizar e-mails de contato e assuntos de interesse, a fim de encontrar outros usuários que quisessem discutir determinados temas.

A arquitetura das comunidades foi estabelecida para proporcionar trocas colaborativas, respeitosas e diversas. Os moderadores, as regras das comunidades e a autogestão de cada participante, contribuíram para que os espaços mantivessem sua respectiva integridade e preservasse a relação entre os utentes.

Com o passar dos anos, a explosão da domesticação dos computadores e toda a sucessão de evoluções tecnológicas, tais como: a digitalização da imagem, a diversificação das plataformas de interação social e a expansão do acesso à internet, fizeram com que os modelos de comunidade se curvassem, proporcionando foco à identidade projetada nos perfis. Em decorrência disso, as comunidades começaram a reconfigurar o seu sentido. Os usuários passaram a fazer parte das comunidades com o objetivo de estabelecer relações digitais, redesenhando, também, os moldes das relações pessoais e os costumes. Aos poucos, as buscas por discussões e a preservação das comunidades digitais foram perdendo espaço para a necessidade de fazer novos amigos, encontrar um parceiro amoroso ou, até mesmo, um bom par de tênis.

Ainda houve plataformas que insistiram na criação de ferramentas capazes de propiciar espaços para construções colaborativas, tais como as comunidades virtuais, disponibilizando instrumentos e estruturas que, aparentemente, resgatavam os modelos das comunidades éticas, que segundo Bauman (2003), são aquelas cujos membros estabelecem algum grau de identificação e compromisso com o grupo. No entanto, a dinâmica das redes sociais foi ganhando cada vez mais espaço e o resgate das comunidades éticas começou a revelar o segundo sentido que havia por trás do favorecimento das comunidades digitais contemporâneas, relacionado à produção de subjetividade a partir do engajamento gerado pelo encontro.

Atualmente, os modelos de rede social em quase nada se parecem com as primeiras comunidades virtuais, dado que a metodologia a qual operam as redes desfavorecem o debate de ideias e as construções coletivas, sem falar que os longos textos perderam espaço para os vídeos, em linhas gerais, de curta duração.

A lógica atual das plataformas sociais visa promover a construção do perfil dinâmico, permeado por conteúdos audiovisuais. As pautas e os assuntos de interesse disputam a atenção dos seguidores com os vídeos virais e leads, ambos regidos pela timeline e pelos algoritmos. Logo, não há espaço para explanações, pois ao fazer isso o usuário perderá “audiência” e terá seu texto derrubado pela regra dos algoritmos.

Por fim, não se pode negar o lastro deixado pelas comunidades virtuais, desde a embrionária arquitetura das redes para desktop até os desenvolvedores de Apps para smartphones, pois não param de surgir plataformas e comunidades focadas no compartilhamento de informações e na produção coletiva, apesar de haver o atravessamento da lógica capitalista no início.

Durante ou após o desenvolvimento do projeto, os desenvolvedores compõem o plano de elaboração do Apps contando com o componente principal: a conexão entre os usuários e não os colocando, apenas, como público consumidor, mas sim como peças fundamentais da engrenagem. A partir de suas respectivas informações, a comunidade poderá alimentar o banco de dados da rede e, com isso, aperfeiçoar seu funcionamento.

Agora as comunidades de usuários se reconfiguram para interagir, contribuir ou consumir com apenas um botão, ganhando velocidade e praticidade ao mesmo tempo que perdem sociabilidade, senso de coletividade e, em especial, a capacidade de dialogar.

Perante o exposto, seria possível vislumbrar um futuro que fuja da lógica dos botões e da praticidade? Haverá maneiras de reforçar as culturas colaborativas dentro das plataformas? O que esperar das comunidades virtuais que estão por vir?

REFERÊNCIAS

ALLIEZ, Éric; LAZZARATO, Maurizio. Guerra e Capital. 1ª Ed. São Paulo: UBU, 2020.

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

COSTA, Rogério. A Cultura digital. 1ª Ed. São Paulo: Publifolha, 2002.

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DELEUZE, Gilles. Conversações. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2013.

GUATTARI, Félix; ROLNIK Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1996.

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LAZZARATO, Maurizio. Signos, máquinas e subjetividades. 1ª Ed. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2014.

LÉVY, Pierre. Ciberdemocracia. 1ª Ed. Lisboa: Epistemologia e Sociedade, 2002.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação com extensões do homem. 1ª Ed. São Paulo: Cultrix, 1964.

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RHEINGOLD, Howard. A comunidade virtual 1ª Ed. Lisboa: Gradiva, 1996.

TÖNNIES, Ferdinand. Comunidade e sociedade. In: MIRANDA, Orlando de. Para ler Ferdinand Tönnies. 1ª Ed. São Paulo: EdUSP, 1995.

XAVIER, Maria Rita Pereira; LACAVA, Vyullheney Fernandes de Araújo. Sobre a produção de subjetividade: uma análise a partir dos dispositivos móveis de comunicação. In: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação: XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Fortaleza: 2017. Disponível em: https://www.portalintercom.org.br/anais/nordeste2017/resumos/R57-0696-1.pdf. Acesso em: 11 out. 2022.

[1] Mestranda. ORCID: 0000-0003-4287-7428. CURRÍCULO LATTES: https://lattes.cnpq.br/4103776012167720.

[2] Orientador. ORCID: 0000-0002-6807-4263.

Enviado: Janeiro, 2022.

Aprovado: Fevereiro, 2022.

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Thais da Conceição Oliveira

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