REVISTACIENTIFICAMULTIDISCIPLINARNUCLEODOCONHECIMENTO

Revista Científica Multidisciplinar

Pesquisar nos:
Filter by Categorias
Administração
Administração Naval
Agronomia
Arquitetura
Arte
Biologia
Ciência da Computação
Ciência da Religião
Ciências Aeronáuticas
Ciências Sociais
Comunicação
Contabilidade
Educação
Educação Física
Engenharia Agrícola
Engenharia Ambiental
Engenharia Civil
Engenharia da Computação
Engenharia de Produção
Engenharia Elétrica
Engenharia Mecânica
Engenharia Química
Ética
Filosofia
Física
Gastronomia
Geografia
História
Lei
Letras
Literatura
Marketing
Matemática
Meio Ambiente
Meteorologia
Nutrição
Odontologia
Pedagogia
Psicologia
Química
Saúde
Sem categoria
Sociologia
Tecnologia
Teologia
Turismo
Veterinária
Zootecnia
Pesquisar por:
Selecionar todos
Autores
Palavras-Chave
Comentários
Anexos / Arquivos

Mapeamento da síndrome de Burnout em pilotos de asas fixas e asas rotativas no Brasil

RC: 82024
524
4.8/5 - (6 votes)
DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-aeronauticas/asas-fixas

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

CARMO, Guilherme Lourenço do [1], COSTA, Nagi Hanna Salm [2]

CARMO, Guilherme Lourenço do. COSTA, Nagi Hanna Salm. Mapeamento da síndrome de Burnout em pilotos de asas fixas e asas rotativas no Brasil. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 04, Vol. 03, pp. 71-90. Abril de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-aeronauticas/asas-fixas, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-aeronauticas/asas-fixas

RESUMO

O presente estudo tem como objetivo mapear aspectos que podem se relacionar à Síndrome de Burnout, ou Síndrome do Esgotamento Profissional, em pilotos de asas fixas e asas rotativas no Brasil. Essa síndrome é entendida como um fenômeno ocupacional multidimensional que compromete o bem-estar do indivíduo, degradando sua saúde, sendo resultado da exposição constante a estímulos estressores no ambiente laboral. O indivíduo poderá apresentar sintomas fisiológicos e psicossociais, como mudanças de humor e de comportamento, estresse, cansaço, fadiga, dificuldade de concentração, exaustão e perda de motivação. Foi realizada uma pesquisa de campo que utilizou um questionário eletrônico desenvolvido na plataforma Google Forms para coleta de dados. Participaram do estudo 70 pilotos de asas fixas e asas rotativas que estavam ou já estiveram empregados na aviação como pilotos. Os resultados mostraram que a maioria dos participantes sente aumento dos níveis de cansaço físico e mental proporcional à carga de trabalho e teve queda em seu desempenho devido ao cansaço. Os participantes também notaram alterações em seu ciclo circadiano e imunidade, possivelmente devido à falta de rotina no trabalho. A maioria deles declarou priorizar o trabalho em detrimento da vida pessoal e que se sente isolada em função do alastramento da doença Covid-19, ainda que suas atividades laborais estejam fora do contexto de pandemia, e que a falta de rotina compromete, em algum grau, seus relacionamentos interpessoais e o contato familiar. Assinalaram também dificuldade de delegar funções a outros membros da equipe e de negar solicitações provenientes de seus superiores. Os resultados obtidos sinalizaram alguns fatores que podem gerar o adoecimento do aeronauta em função do esgotamento profissional proveniente das diversas demandas presentes em seu ambiente laboral. Ao final do estudo, sugere-se a condução de novas pesquisas que auxiliem tanto na discriminação de estímulos estressores aos quais os aeronautas são expostos, quanto no desenvolvimento de estratégias de prevenção do adoecimento do trabalhador no modal aéreo, de modo a reforçar os níveis de segurança na aviação e promover a melhoria contínua no gerenciamento do fator humano.

Palavras-Chave: Síndrome de Burnout na Aviação, Esgotamento Profissional, Saúde do Aeronauta, Segurança na Aviação, Qualidade de Vida no Trabalho.

1. INTRODUÇÃO

O primeiro voo mais pesado que o ar ocorreu em 1906, no campo de Bagatelle, na França. Desde então, o meio aeronáutico passou por grandes e inúmeros avanços, tanto no que diz respeito às tecnologias empregadas nas aeronaves quanto no desenvolvimento de treinamentos que capacitam cada vez mais os profissionais envolvidos no modal aéreo, considerando que na aviação a segurança operacional é buscada de maneira incansável. A ideia é que se possa diminuir, a cada dia, erros e falhas tanto relacionadas ao funcionamento e à operação das aeronaves como aos fatores humanos.

No aspecto humano, a saúde laboral tem sido objeto de atenção crescente nos últimos anos, sendo cada vez mais necessário o desenvolvimento de pesquisas que versem sobre aspectos psicológicos das vivências dos trabalhadores. Nesse contexto, diversos estudos têm se dedicado à aviação enquanto atividade laboral com o objetivo de melhor compreender a dinâmica das relações humanas presentes no meio aeronáutico e de prevenir o adoecimento do trabalhador inserido nesse meio.

Tais estudos têm abordado temas como incidência de ansiedade, depressão, fadiga, estresse, Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), entre outros, em comissários de bordo e pilotos. Algumas pesquisas buscam mapear a ocorrência desses aspectos nos profissionais que trabalham no modal aéreo, enquanto outras buscam propor estratégias de intervenção, visando mitigar o aparecimento dessas condições.

Nos últimos anos, a aviação tem se atentado para uma condição denominada Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional. Essa síndrome é classificada como uma doença laboral que ocorre devido ao contato contínuo com estímulos estressores presentes no ambiente de trabalho. Entre suas principais características estão a exaustão emocional e a despersonalização associada à reduzida satisfação profissional.

Ao se identificarem fatores estressores que podem desencadear a Síndrome de Burnout, atividades preventivas poderiam ser desenvolvidas por gestores de aviação para promover. ainda mais, a qualidade de vida no trabalho, aumentando, ao mesmo tempo, a segurança operacional da atividade aérea.

Desse modo, o desenvolvimento de estudos que visem avaliar a rotina de pilotos, identificando estressores que possam levar ao desenvolvimento da Síndrome de Burnout nesses profissionais ou que busquem identificar métodos que evitem o esgotamento profissional, é de suma importância para que se possa promover de forma contínua o aumento da segurança de voo.

Tendo em vista a inquestionável relevância da manutenção da saúde do aeronauta tanto para sua qualidade de vida quanto para a segurança operacional no modal aéreo, o objetivo deste trabalho é realizar uma pesquisa com profissionais da aviação com vistas a identificar possíveis fatores que concorram para o desenvolvimento da Síndrome de Burnout. Assim, serão mapeados, em uma amostra de pilotos de asas fixas e asas rotativas no Brasil, alguns estímulos que podem ser relacionados à Síndrome. Para tanto, foi realizada uma pesquisa de campo, submetida ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da PUC/GO com seres humanos. A coleta de dados foi feita com auxílio de um questionário on-line desenvolvido na plataforma Google Forms. Além disso, realizou-se uma pesquisa bibliográfica e documental sobre o tema.

Estruturalmente, a pesquisa é composta por cinco seções. A primeira delas irá discorrer sobre a Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional e apontará suas principais características. A segunda seção tratará da aviação enquanto ambiente laboral e a inserção do piloto nesse contexto. Na terceira seção, será descrita a metodologia do presente estudo, com informações sobre os participantes da pesquisa e sobre a coleta de dados. Na quarta seção serão apresentados os Resultados e a Discussão e, por fim, feitas considerações finais sobre o estudo.

2. SÍNDROME DE BURNOUT

Desde meados dos anos 70, a dinâmica de mercado começou a se estabelecer de uma nova forma que fez com que os indivíduos se dedicassem ainda mais à atividade laboral, buscando melhor remuneração financeira, conquista de objetivos profissionais, entre outros benefícios. O modelo de mercado que a partir de então se estabeleceu acabou por exigir cada vez mais esforços dos indivíduos, e essa sobrecarga de trabalho fez com que algumas pessoas tivessem sua satisfação reduzida em relação ao ambiente laboral (CARLOTTO; CÂMARA, 2008) e passassem a desenvolver doenças ocupacionais.

A maioria das doenças ocupacionais se relaciona, em algum grau, ao estresse. A Síndrome de Burnout, também conhecida como Síndrome do Esgotamento Profissional, acontece em decorrência da exposição do indivíduo a fortes tensões emocionais e devido ao estresse crônico provocado pela alta carga de trabalho. Segundo Matias Filho (2018), diferencia-se, entretanto, do conceito de estresse, uma vez que este envolveria respostas físicas, psicológicas e/ou fisiológicas a estímulos que podem ou não ser relacionados à atividade laboral; já o Burnout está necessariamente associado à atividade laboral, sendo, desse modo, um fenômeno ocupacional.

O conceito de Burnout, assim, passou a ser utilizado na literatura para classificar indivíduos em condição de exaustão ou esgotamento profissional (MENDANHA; BERNARDES; SHIOZAWA, 2018). A Síndrome de Burnout pode colocar em risco o bem-estar do indivíduo, degradar sua saúde e até levá-lo à incapacidade profissional em casos extremos (SOUZA; BEZERRA, 2019). Para Lautert (1995), as principais características da Síndrome de Burnout são a exaustão emocional e a despersonalização associadas à reduzida satisfação profissional.

A Burnout possui, ainda, caraterísticas multidimensionais. O indivíduo poderá apresentar sintomas fisiológicos e psicossociais, como mudanças de humor e de comportamento, elevado nível de estresse, fadiga, dificuldade de concentração, cansaço, exaustão, irritabilidade, perda de motivação, desânimo, apatia, isolamento social. O diagnóstico é realizado por meio da combinação das análises clínicas, sendo necessário acompanhamento com profissionais de saúde e psicólogos. Pertinente pontuar que os sintomas da síndrome podem ser parecidos com outras condições, como a depressão. Desse modo, a intervenção a ser adotada é específica para cada caso, sendo necessário um diagnóstico adequado e que leve em conta a peculiaridade de cada um (DIEHL; CARLOTTO; SANDRA, 2015; MASLACH; SCHAUFELI; LEITER, 2009).

De maneira geral, o indivíduo começa apresentando sintomas leves que frequentemente são confundidos com outros quadros. O surgimento dos primeiros sintomas pode ser gradual, acumulativo e, muitas vezes, o trabalhador não discrimina os sintomas ocasionados pela síndrome e acaba não buscando auxílio (SIMÕES; BIANCHI, 2017).

Pode-se encontrar na literatura uma categorização da síndrome de Burnout em dois perfis. O primeiro deles refere-se ao indivíduo que possui sintomas leves, geralmente de mal-estar associado a cansaço e fadiga, mas isso não afeta ou compromete o desenvolvimento de suas atividades. Já no segundo perfil, o indivíduo desenvolve sintomas mais intensos que se acrescentam aos fatores citados acima, como aversão ou compulsão pelo trabalho, o isolamento social e o esgotamento propriamente dito. Nesse caso, assim como no primeiro perfil, ele consegue desenvolver suas atividades profissionais; porém, enfrenta maior comprometimento na execução das tarefas e, quando não realizadas da maneira esperada, pode apresentar sentimento de culpa e fracasso (DIEHL; CARLOTTO; SANDRA, 2015).

A legislação brasileira contempla, desde 1999, via Decreto 3.048/99 (BRASIL, 1999), a Síndrome de Burnout como transtorno mental e do comportamento relacionado ao trabalho. Ela consta na Classificação Internacional de Doenças (CID), publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como estado de exaustão vital. Sua caracterização é descrita no Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001) e seu diagnóstico formal abre a possibilidade de afastamento, tratamento e compensação financeira (MASLACH; SCHAUFELI; LEITER, 2009).

O tratamento, usualmente, integra três níveis de intervenções: as estratégias organizacionais aplicadas ao ambiente de trabalho propriamente dito; as estratégias individuais focadas na mudança de comportamento do indivíduo e na instalação de repertórios que o auxiliem no manejo de respostas de estresse, raiva e ansiedade e que promovam o desenvolvimento de habilidades sociais, por exemplo; e, no último nível de intervenção, o uso de estratégias combinadas centradas na interação do indivíduo com o contexto ocupacional. Essas intervenções médicas e psicológicas podem reduzir o desgaste do profissional (MORENO et al., 2011).

3. A AVIAÇÃO ENQUANTO AMBIENTE LABORAL

O órgão máximo na aviação mundial é a International Civil Aviation Organization (ICAO), ou Organização Internacional da Aviação Civil, em português, entidade que estabelece diretrizes gerais sobre limites de jornadas de trabalho, base salarial e outros assuntos inerentes à tripulação e à segurança de voo. No Brasil, país signatário da ICAO, há, como normativo cogente, o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) — Lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986 — e a Lei do Aeronauta (Lei n° 13.475/2017) que rege, ao lado da legislação complementar e de outros regulamentos infralegais (como os regulamentos e instruções da ANAC), os assuntos inerentes à aviação civil, estabelecendo regras e limites relacionados a tripulantes e empresas aéreas, pautados em acordos e tratados internacionais (ICAO, 2019).

O CBA apresenta, entre outras disposições, alguns dos direitos e deveres do aeronauta no Brasil, em atendimento a esses tratados e convenções. Para ser piloto de aeronaves no Brasil, por exemplo, é necessária a realização de testes de aptidão técnica e de saúde (BRASIL, 1986).

Já a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) estabelece no Regulamento Brasileiro de Aviação Civil número 67 (RBAC 67) as normas e critérios de avaliação do candidato para obtenção do Certificado Médico Aeronáutico (CMA) — critério mínimo para a contratação e obtenção do Certificado de Habilitação Técnica (CHT). O CMA tem o intuito de avaliar a capacidade física e psicológica do candidato e verificar se ele se enquadra nos quesitos de segurança exigidos para operação de aeronaves. Sua validade varia de acordo com a idade, classe e função do profissional (VENDRAMIM, 2018).

A aviação, que segundo Riberio (2009) é um dos setores de atividade humana que mais se desenvolveu no último século, tem-se preocupado cada vez mais não só com o desenvolvimento de equipamentos, tecnologia, novos modelos de aviões e treinamentos para os pilotos, mas também com a saúde (e o adoecimento) do aeronauta. Sabe-se que o desempenho do piloto está relacionado ao seu conhecimento técnico, às suas habilidades não técnicas e a fatores físicos e emocionais que possuem relação direta com sua atuação profissional (ALMEIDA et al., 2016; VENDRAMIM, 2018).

Dentre esses fatores, destacam-se os estímulos estressores, intrínsecos ao ambiente laboral da aviação. Pilotos lidam, não raras vezes, com longas jornadas de trabalho e com a falta de uma rotina fixa que não lhes permitem estar presentes em momentos sociais e familiares importantes, além de enfrentarem situações de fadiga, privação de sono, entre outros desgastes (PALMEIRA, 2007), assim, é possível afirmar que a jornada de trabalho irregular gera prejuízos no repouso do tripulante (QUINTINO; SANTOS, 2020).

As vibrações provocadas em função do deslocamento do ar em contato com a superfície das aeronaves; a incidência de radiação solar em excesso na cabine de comando; o ruído dos motores; a compressão e descompressão às quais o corpo é exposto; a baixa umidade relativa do ar; eventuais despressurizações da cabine, que podem alterar os níveis de saturação de oxigênio na corrente sanguínea; as variações de temperatura; e a mudança de fusos horários são alguns dos estressores com os quais os pilotos entram em contato durante o voo. Eles podem provocar perda auditiva gradativa, bem como tontura, náuseas, problemas de postura e cefaleia, e, ainda, elevar o nível de cansaço e promover irritabilidade e mudanças no humor (RIUL; VABONI; SOUZA, 2012).

Até mesmo a automação da aeronave, que visa reforçar os critérios de segurança operacional, é capaz de gerar estresse no profissional. Isto porque a automação, por exigir menos esforço manual dos pilotos na condução do voo, torna a cabine um ambiente monótono e entediante, o que pode desencadear sonolência e sensação de insuficiência ou insatisfação profissional, por sentirem-se “meros apertadores de botões” (RIUL; VABONI; SOUZA, 2012, p. 3).

Feijó, Câmara e Raggio (2014) consideram que as demandas do trabalho se referem às exigências técnicas e psicológicas que o trabalhador enfrenta na realização das suas atividades. Tais exigências envolvem pressão temporal, nível de concentração, interrupção de tarefas e necessidade de esperar pelas atividades realizadas por outros trabalhadores. As relações interpessoais presentes nesse ambiente laboral também podem influenciar diretamente a vida do profissional (CRUZ, 2016). A alta rotatividade de profissionais em um curto período — mudança de tripulação — e os déficits de habilidades sociais na interação com a tripulação ou com superiores também são potenciais fatores estressantes para os aeronautas (PALMEIRA, 2007).

A saúde dos profissionais, assim, tem sido, como já enfatizado, objeto de crescente preocupação no meio aeronáutico, sendo urgente a realização de pesquisas que versem sobre aspectos psicológicos das vivências do trabalhador (RUVIARO; BARDAGUI, 2010). Segundo Amorim, Bruscato e Nogueira-Martins essas pesquisas podem auxiliar na preservação da saúde dos pilotos na medida em que a sua qualidade de vida está atrelada à sua saúde física e psicológica, o que se reflete nos índices de segurança operacional. Dito de outro modo, assegurar o bem-estar do profissional garante que este produza com mais qualidade e eficiência, o que se traduz na segurança de voo (KANNANE, 1994). Cabe complementar que essa qualidade de vida almejada no contexto laboral envolve, ainda, a satisfação pessoal do profissional (SAMPAIO, 2012).

Compreender o ambiente de trabalho e suas caraterísticas são, portanto, de suma importância para a avaliação da rotina profissional no modal aéreo. Isto porque as condições de trabalho, que refletem sobremodo a cultura da organização, têm impacto direto sobre o indivíduo, aumentando ou diminuindo a probabilidade do desenvolvimento da síndrome de Burnout.

4. METODOLOGIA

Esta pesquisa foi submetida à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, via Plataforma Brasil, no dia 22 de setembro de 2020 — Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) nº 38317020.2.0000.0037 —, e aprovada. Todos os participantes declararam estar de acordo com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) on-line, submetido ao CEP, atestando a voluntariedade e a concordância em participar do estudo. Em virtude do atual cenário epidemiológico, para resguardar a segurança dos participantes e dos pesquisadores, os dados foram coletados por meio da plataforma digital Google Forms. Para a construção do questionário on-line foi utilizado um notebook da marca Lenovo, com processador Intel Core i3, sistema operacional Microsoft Windows 10, tela de 14 polegadas. Os dados dos participantes foram tabulados no editor de planilhas Microsoft Excel.

Foram analisados os dados de 70 pilotos de asas fixas (aviões) e asas rotativas (helicópteros) que se enquadravam nos seguintes critérios de inclusão: ser profissional de aviação civil; possuir, pelo menos, a licença de Piloto Privado; estar empregado ou já ter sido empregado na aviação enquanto piloto; e estar com o Certificado Médico Aeronáutico (CMA) válido. A coleta teve duração total de 17 dias, sendo iniciada no dia 27 de setembro e concluída no dia 13 de outubro.

Após a aprovação do projeto pelo CEP, os pilotos foram convidados a participar da pesquisa por meio das seguintes mídias sociais: WhatsApp, Instagram, Facebook, Telegram e LinkedIn. Foi compartilhado nessas mídias um link da plataforma Google Forms, dando acesso ao formulário desenvolvido para a coleta de dados da pesquisa. Esse formulário era dividido em três seções.

A primeira seção continha o TCLE on-line. Após a leitura do Termo, os pilotos deveriam assinalar a opção “Li e CONCORDO em participar desta pesquisa” ou a opção “Li e NÃO CONCORDO em participar desta pesquisa”. Caso assinalassem a opção “Li e NÃO CONCORDO em participar desta pesquisa”, eles eram direcionados para uma aba na qual aparecia a mensagem “Muito obrigado!”. Caso assinalassem a opção “Li e CONCORDO em participar desta pesquisa”, eram direcionados para a segunda seção, que contava com 13 questões sociodemográficas. Independentemente da opção selecionada, era enviada uma cópia do TCLE on-line ao e-mail indicado pelos participantes.

As questões sociodemográficas e respectivas opções de escolha foram as seguintes: 1) Identidade de Gênero: a) Masculino; b) Feminino; c) Outra; 2) Faixa etária: a) 18 a 25 anos; b) 26 a 33 anos; c) 34 a 41 anos; d) 42 a 49 anos; e) 50 anos ou mais; 3) Estado Civil: a) Solteiro(a); b) União Estável; c) Casado(a); d) Divorciado(a); e) Viúvo(a); f) Outro; 4) Grau de escolaridade: a) Ensino Superior Completo; b) Ensino Superior Incompleto; c) Ensino Médio Completo; 5) Certificado de Habilitação Técnica (CHT): a) Asas Fixas; b) Asas Rotativas; c) Asas Fixas e Asas Rotativas; 6) Certificado Médico Aeronáutico (CMA): a) 1ª Classe; b) 2ª Classe; c) Outro; 7) Tipo de Licença: a) Piloto Privado; b) Piloto Comercial; c) Piloto de Linha Aérea; d) Outra; 8) Possui, aproximadamente, quantas horas de voo? – resposta aberta; 9) Está ou esteve empregado na aviação como piloto?: a) Sim; b) Não; 10) Em qual/quais segmento(s) da aviação atua ou atuou?: a) Aviação Geral; b) Aviação Executiva; c) Aviação Militar; d) Linha Aérea; e) Agrícola; f) Resgate; g) Transporte Aeromédico; h) Instrução de Voo; i) Outra; 11) Reside na cidade de onde partem seus voos?: a) Sim; b) Não; 12) Possui alguma doença crônica comprovada?: a) Sim; b) Não; 13) Caso tenha respondido “SIM” na questão anterior, por gentileza, especifique – resposta aberta.

A seção seguinte era composta por 34 questões que podem ser vistas no Quadro 1. Estas questões abordavam aspectos que podem ser relacionados à Síndrome de Burnout. Nessa seção os participantes registravam seu nível de concordância com a afirmação apresentada de acordo com uma Escala Likert, muito utilizada em pesquisas para medir posturas e opiniões. Os participantes recebiam a seguinte instrução: Responda os itens a seguir de acordo com o quanto eles se aproximam da sua realidade. Caso, no momento, não esteja atuando como piloto de forma remunerada, procure se lembrar como era quando estava empregado(a). Para responder aos itens a seguir, assinale: 1 para “Discordo Totalmente”; 2 para “Discordo Parcialmente”; 3 para “Indiferente”; 4 para “Concordo Parcialmente”; 5 para “Concordo Totalmente”.

Quadro 1 – Questões de mapeamento de aspectos que podem estar relacionados à Síndrome de Burnout

Fonte: elaborado pelos autores (2020).

5. RESULTADOS E DISCUSSÃO

A pesquisa contou, em um primeiro momento, com 102 respostas ao questionário eletrônico disponibilizado na plataforma Google Forms. Alguns participantes, no entanto, responderam ao formulário mais de uma vez. Definiu-se, então, que só seria computado o primeiro formulário preenchido por cada participante. Dessa forma, 13 formulários foram de imediato excluídos da análise de dados, resultando em 89 questionários. Desse número, 19 eram de pessoas que não estavam empregadas ou que nunca estiveram empregadas na aviação como pilotos; sendo assim, esses dados também foram retirados da análise, restando o total de 70 participantes. Serão apresentados a seguir os dados sociodemográficos e os dados das questões de mapeamento da Síndrome de Burnout dos 70 participantes que preencheram todos os critérios da pesquisa.

5.1 DADOS SOCIODEMOGRÁFICOS

Dos 70 participantes que tiveram os dados analisados, 88,6% se identificavam com o gênero masculino e 11,4% com o gênero feminino. No que diz respeito à faixa etária, 25,7% declararam estar na faixa de 18 a 25 anos; 32,9%, de 26 a 33 anos; 28,6%, de 34 a 41 anos; 2,9%, de 42 a 49 anos; e 10,0% afirmaram ter 50 anos ou mais. Com relação ao estado civil, 54,3% declararam-se solteiros(a); 32,9%, casados(a); 10,0% dizem estar em uma união estável; e são 2,9% divorciados(a).

Quanto à escolaridade, 85,7% afirmam possuir o Ensino Superior Completo; 10,0%, o Ensino Superior Incompleto; e 4,3%, o Ensino Médio Completo. Com relação ao Certificado de Habilitação Técnica (CHT), 91,4% disseram possuir o de Asas Fixas; 1,4%, o de Asas Rotativas; e 7,1%, o de Asas Fixas e Asas Rotativas. No que tange ao Certificado Médico Aeronáutico (CMA), 95,7% possuem o de 1º Classe e 4,3% possuem outros. Quanto às licenças, 4,3% dos participantes declaram possuir a de Piloto Privado de Avião (PPA); 54,3%, a de Piloto Comercial de Avião (PCA); 32,9%, a de Piloto de Linha Aérea (PLA); e 8,6% afirmou possuir outro tipo de licença. Já a quantidade aproximada de horas de voo dos pilotos variou entre 72 e 23.000 horas.

Quando questionados acerca dos segmentos profissionais em que atuavam ou em que já haviam atuado (sendo possível múltiplas escolhas), 11,4% assinalou linha aérea; 11,4%, aviação militar; 10,0%, outros; 7,1%, instrução de voo; 5,7%, aviação executiva; 4,3%, aviação geral; 2,9%, transporte aeromédico; 2,9%, aviação agrícola; e 2,9%, resgaste.

Dos 70 participantes analisados, 67,1% afirmaram residir na cidade de onde partem seus voos (base), enquanto, 32,9% declararam não residir na cidade de onde partem os voos. Por fim, 98,6% declararam não ter doença crônica comprovada e 1,4% declararam a possuir, no caso, hipertensão arterial.

5.2 MAPEAMENTO DE ASPECTOS QUE PODEM SE RELACIONAR À SÍNDROME DE BURNOUT

Foi utilizada a escala Likert para que os participantes pudessem selecionar a opção que mais se aproximava de sua realidade. A escala apresentava valores de 1 a 5, sendo 1 “Discordo Totalmente”, 2 “Discordo”, 3 “Indiferente”, 4 “Concordo” e 5 “Concordo Totalmente. Para fins de análise de dados, foram agrupadas as opiniões concordantes (4 “Concordo” e 5 “Concordo Totalmente) e as discordantes (1 “Discordo Totalmente”, 2 “Discordo”).

Ao serem questionados se sentiam aumento dos níveis de cansaço físico proporcional à jornada de trabalho, 72,9% dos participantes declararam concordar com a afirmativa, 22,9% afirmaram ser indiferentes e 4,3% discordaram. Quando indagados se sentiam aumento dos níveis de cansaço mental proporcional à jornada de trabalho, 85,7% dos participantes declararam que sim, 7,1%% afirmaram ser indiferentes e 7,1% disseram que não. 80,0% afirmaram perceber queda no desempenho quando estão cansados, 11,4% afirmaram não perceber e 8,6% disseram ser indiferentes à relação de desempenho e cansaço.

Quando perguntados se sentiam cansaço mesmo estando fora do seu ambiente de trabalho, 40% dos participantes discordaram, 31,4% concordaram e 28,6% afirmaram ser indiferentes. Ao serem indagados se sentiam-se cansados mesmo após as folgas, 70,0% dos participantes disseram que não, 20,0% declararam sentir-se cansados mesmo após as folgas e 10,0% disseram ser indiferentes. 54,3% disseram ser capazes de se desligar do trabalho, 30% disseram ser incapazes e 15,7% disserem ser indiferentes. A diminuição da imunidade conforme a demanda de trabalho não é percebida por 57,1%, enquanto 24,3% a percebem de maneira diretamente proporcional à carga de trabalho e 18,6% disseram ser indiferentes.

Os dados evidenciam que os pilotos possuem uma jornada irregular tanto de trabalho quanto de repouso (ITANI, 2009). Assim, é necessário um bom manejo da carga de trabalho, de modo a permitir períodos de repouso, descanso e refazimento, para manter preservada a saúde do aeronauta e, ao mesmo tempo, manter elevados os níveis de segurança de voo que estão diretamente relacionados ao desempenho deste profissional (DIEHL; CARLOTTO; SANDRA, 2015). Sabe-se, ainda, que níveis muito elevados de cortisol, hormônio relacionado ao estresse, pode, de fato, comprometer a regulação imunológica, renal e muscular do indivíduo (SOARES; ALVES, 2006).

A maioria dos participantes declarou sentir aumento dos níveis de cansaço físico e mental (72,9% e 85,7%, respectivamente) proporcional à jornada de trabalho, o que seria esperado. A duração da jornada de trabalho dos aeronautas é uma variável que influencia, inclusive, na segurança de voo, como já acenado. Entre os participantes, 80% verificaram que há uma queda em seu desempenho no trabalho quando cansados. O piloto fadigado aumenta o tempo de latência de sua resposta, que consiste no tempo da emissão de um comportamento após a apresentação de um estímulo. Em emergências, o tempo para tomada de decisão e resolução de problemas precisa ser o mais breve possível. O cansaço em excesso também pode comprometer a qualidade das relações interpessoais (DIEHL; CARLOTTO; SANDRA, 2015; QUINTINO; SANTOS, 2020), o que também impacta a segurança de voo, já que a interação e a comunicação em cabine são primordiais nesse sentido.

Um aumento da carga de trabalho implica aumento do contato com estressores fisiológicos presentes na aeronave ― como ruídos, vibrações, alterações de temperatura ―, fatores estes que podem resultar, inclusive, na alteração de saturação de oxigênio na corrente sanguínea, devido à rarefação do ar na aeronave, entre outras consequências, conforme apontam Riul; Vaboni e Souza (2012). A própria falta de rotina, as alterações de fuso horário, a alta rotatividade das tripulações, questões ergonômicas ― como permanecer muito tempo sentado dentro da cabine, ou até mesmo o fato de se sentar muito próximo a outro piloto no cockpit ―, e a necessidade de manejar eventuais conflitos interpessoais, todos esses estímulos também podem ser estressores para o indivíduo em seu contexto laboral.

Ainda quanto aos incômodos relatados, 90% dos participantes informaram não sentir sintomas físicos, como dores de cabeça, de forma recorrente durante o trabalho; 5,7% afirmaram ser indiferentes e 4,3% disseram sentir tais sintomas. Sobre as dores musculares, 81,4% afirmaram não as sentir de forma recorrente durante a realização de um voo, 10% disseram ser indiferentes e 8,6% afirmaram senti-las.

Quando questionados se apresentavam alterações no apetite ao lidar com assunto relacionados ao trabalho; 65,7% não perceberam alterações; 24,3% tiveram alterações e 10% foram indiferentes. Acerca das alterações no ciclo circadiano decorrentes da rotina de trabalho, 58,6% afirmaram percebê-las; 27,1% não perceberam tal mudança e 14,3% foram indiferentes. Já as noites de sono menores quando em alta demanda de trabalho, 54,3% percebem ocorrer tal diminuição, enquanto 32,9% disseram que não a sente e 12,9% declararam ser indiferentes. Sobre a dificuldade de concentração ao realizar atividades do voo, 75,7% dos participantes declararam não ter dificuldade, 15,7% disseram ser indiferentes e 8,6% percebem sentir dificuldade de concentração.

As respostas dadas pelos participantes sugerem que a maioria deles não sente sintomas físicos, como dores de cabeça recorrentes durante o trabalho ou dores musculares atribuídas à condução do voo, nem apresenta alterações no apetite em razão de questões referentes ao trabalho. No entanto, parecem perceber alterações no ciclo circadiano, que oscila, usualmente, entre turnos diurnos e noturnos, e acaba promovendo alterações no ciclo sono/vigília. Mudanças no horário de trabalho podem ser estressores fisiológicos para o indivíduo, além de alterarem o ritmo circadiano e a liberação de hormônios como cortisol e melatonina, responsáveis, em linhas gerais, pelo despertar e pelo sono, respectivamente. Também implicam mudanças na rotina de alimentação, nos momentos de lazer e nas interações sociais (RÉGIS FILHO, 2002).

Quanto às questões de ordem social, 45,7% afirmaram sentir-se distantes do contato familiar, mesmo fora do contexto de pandemia; 40% declaram não se sentir distantes e 14,3% disseram ser indiferentes. Já 44,3% dos entrevistados acreditam que a falta de uma rotina fixa prejudica, de alguma forma, seus relacionamentos interpessoais, ao passo que 42,9% discordam da afirmação e 12,9% são indiferentes. 47,1% concordaram que priorizam o trabalho em detrimento da vida pessoal, 34,3% disseram que não e 18,6% se declararam indiferentes a esse aspecto. Ao serem questionados se as demandas do trabalho tinham prioridade sob sua vida pessoal, 40% concordaram, 41,4% discordaram e 18,6% afirmaram ser indiferentes. No que diz respeito à vida pessoal, 70,0% disseram que não costumam se sentir isolados, mesmo fora do contexto de pandemia, 20,0% afirmaram que se sentem isolados e 10,0% disseram ser indiferentes.

Sabe-se que a falta de uma rotina fixa e até mesmo o cansaço devido às demandas da profissão podem ter impacto nas relações interpessoais e familiares do indivíduo (RÉGIS FILHO, 2002).

No presente estudo, a maioria dos participantes disse, como visto, sentir-se distante do contato familiar, mesmo antes da pandemia, e acredita que a falta de uma rotina fixa prejudica seus relacionamentos interpessoais.

Quando questionados se sentiam-se desmotivados frente a uma sobrecarga de trabalho, 55,7% declararam que não, 34,3% afirmaram sentir-se desmotivados e 10,0% disseram ser indiferentes. Ao serem questionados se sentiam-se desconfortáveis ao estarem sobrecarregados no trabalho, 47,1% disseram que não, 32,9% afirmaram que sim e 20,0% disseram ser indiferentes. 42,9% dos participantes sentem-se desmotivados quando não conseguem atender todas as demandas de seu trabalho, 31,4% disseram não se sentir dessa forma e 25,7% afirmaram ser indiferentes. Ao serem indagados se sentiam-se insuficientes quando algo fugia do planejado durante sua rotina de trabalho, 60,0% disseram não se sentir assim, 20,0% concordaram com a afirmativa e os outros 20,0% disseram ser indiferentes.

Quando questionados se sentiam-se melhores tendo que lidar com uma alta carga de trabalho, 44,3% assinalaram que não, 28,6% afirmam sentir-se melhor desta forma, e 27,1% afirmaram ser indiferentes; e, ao serem questionados se têm preferência por uma rotina de trabalho com alta demanda, 38,6% afirmaram que sim, a mesma quantidade de participantes disse que não (38,6%) e 22,9% declararam ser indiferentes.

Com relação à afirmação “Sinto que as demandas do trabalho nunca acabam”, 40,0% se identificaram com a situação, 45,7% discordaram e 14,3% falaram ser indiferentes. 32,9% dos participantes afirmaram que ficam impacientes ao terem que lidar com alta demanda de trabalho, 41,4% disseram não ficar e 25,7% declararam ser indiferentes. 32,9% afirmaram sentir que sempre existem pendências em seu trabalho, 54,3% disseram não sentir isso, e 12,9% disseram ser indiferentes.

Os resultados apontam que a maioria dos participantes não se sente desmotivada ou desconfortável frente à sobrecarga de trabalho. 28,6%, inclusive, relatam sentir-se melhor com alta carga de trabalho. No entanto, 40% assinalaram que sentem que as demandas do trabalho nunca acabam e 32,9% sentem que sempre existem pendências em seu trabalho. A análise desse resultado deve ser feita levando-se em conta o momento no qual a pesquisa foi realizada, em um contexto de pandemia causada pelo alastramento do Coronavírus (SARS-CoV-2), agente causador da doença Covid-19. Isso fez com que houvesse inúmeras mudanças no cenário econômico do país e do mundo, produzindo uma onda de instabilidade, insegurança e desemprego, com impacto grave, direto e imediato na aviação. Muitos profissionais perderam seu trabalho, outros tiveram sua jornada de trabalho e/ou salário reduzido, e outros enfrentaram e enfrentam insegurança quanto à permanência em seus empregos, pactuando com os contratantes acordos temporários e desvantajosos aos pilotos.

Esses fatores podem ter influenciado nas afirmações dos participantes quanto à preferência pela sobrecarga de trabalho. Outro ponto importante refere-se ao fato de existir uma remuneração fixa e outra variável na aviação. Alguns pilotos recebem um salário proporcional à sua jornada de trabalho ― quantidade de horas e/ou quilômetros voados ― e benefícios, como diárias e auxílio alimentação. Quando a remuneração está diretamente ligada à produtividade, isso faz com que o indivíduo tenda a se engajar cada vez mais no trabalho. Por outro lado, sabe-se que esse aumento da sobrecarga de trabalho pode resultar em um desgaste excessivo do piloto e, de efeito, fazer com que ele aumente seus níveis de estresse, cansaço, fadiga e, eventualmente, chegue a um nível de esgotamento profissional que caracteriza a Síndrome de Burnout. Ao ter seu desempenho comprometido, a segurança do voo passa a estar em risco (PIETRO, 2010).

O sentimento de insuficiência frente às demandas laborais é capaz de comprometer a percepção que o indivíduo tem de seu desempenho profissional. Ele pode se sentir desmotivado ao não conseguir atender a todas as solicitações do empregador. Uma das características da Síndrome de Burnout é exatamente a sensação de insuficiência diante das demandas do ambiente laboral. Exigências atreladas à pressão temporal e ao nível de concentração requerida passam a exigir cada mais do profissional. Sendo assim, sugere-se que a dinâmica de mercado pode ter relação com a percepção do indivíduo frente ao parâmetro de sobrecarga de trabalho, o que justificaria os dados em desacordo com a literatura (FEIJÓ; CÂMARA; RAGGIO, 2014).

Quando questionados sobre não perceberem a hora passar quando estão no trabalho, 57,1% afirmaram não perceberem, 21,4% disseram ser indiferentes e 21,4% disseram perceberem. Perguntados se apresentavam pensamentos negativos em relação ao trabalho 77,1% não concordaram, 12,9% concordaram e 10,0% disseram ser indiferentes. O fato de a maioria dos participantes declarar não perceber a hora passar no trabalho e de não ter, de maneira geral, pensamentos negativos em relação ao trabalho sugere que esta deve ser uma atividade laborativa reforçadora para os pilotos, não só no que tange à remuneração, mas à condução do voo em si. É uma característica recorrente no meio aéreo o profissional sentir-se realizado ao voar. Desta forma, pode-se inferir que há relação entre a atividade laboral e a satisfação profissional dos participantes (RUVIARO; BARDAGUI, 2010).

Entre os participantes, 57,1% afirmaram não ter dificuldade em se posicionar frente a seus superiores, 24,3% afirmaram ter dificuldade e 18,6% disseram ser indiferentes; no entanto, 44,3% registraram que se sentem desconfortáveis em negar uma solicitação aos superiores, 40% afirmaram que não e 15,7% disseram ser indiferentes. A respeito da capacidade de delegar funções a outros membros da equipe, 84,3% disseram ter dificuldade com esse aspecto, 8,6% pontuaram ser indiferentes e 7,1% afirmam ter dificuldade em delegar tarefas.

Entre os estressores com os quais os pilotos lidam em seu ambiente de trabalho estão aqueles relacionados às habilidades interpessoais. A maioria dos participantes afirmou sentir-se desconfortável em negar uma solicitação aos superiores e em delegar funções a outros membros da equipe. Isso faz com que o indivíduo assuma uma carga de trabalho ainda maior, o que acarreta maior desgaste do profissional e o deixa sobrecarregado/esgotado – um dos sintomas da Síndrome de Burnout.

No item que questionava se percebiam que a rotina de trabalho não permitia momentos de descanso, 68,6% discordaram, 15,7% concordaram e outros 15,7% disseram serem indiferentes. Quando indagados se percebiam que a rotina de trabalho não lhes permitia ter momentos de lazer, 58,6% disseram discordar, 27,1% concordaram com a assertiva e 14,3% disseram ser indiferentes. A maioria dos participantes avaliou que sua rotina de trabalho permitia momentos de descanso e lazer, o que é um ponto importante, uma vez que momentos de folga e repouso funcionam como fatores de proteção para o aparecimento da Síndrome de Burnout, prevenindo, desta forma, o adoecimento profissional (BORGES; DIEHL, 2015).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista que o objetivo desta pesquisa era o de mapear, dentro da realidade dos pilotos entrevistados, fatores que podem se relacionar à Síndrome de Burnout, verificou-se que os participantes declararam perceber a elevação dos níveis de cansaço físico e mental proporcionalmente às demandas de trabalho. O cansaço excessivo deixa o profissional exaurido, comprometendo sua atenção, concentração, tempo de emissão de resposta e interferindo no seu desempenho, fatores potencialmente capazes de afetar, inclusive, a segurança da operação. Por outro lado, verificou-se a importância das folgas e dos momentos de descanso e lazer para o reestabelecimento da saúde do aeronauta de maneira global. Esses momentos podem ser entendidos, inclusive, como fatores de proteção para o indivíduo, ajudando a prevenir o adoecimento.

A alternância de turnos de trabalho do aeronauta parece interferir no ciclo circadiano e reflete na qualidade do sono e até mesmo no sistema imunológico do profissional, gerando um desgaste no indivíduo que pode, a longo prazo, ser precursor de outros problemas de saúde. Além disso, a mudança constante de rotina e tripulação pode interferir nas relações interpessoais profissionais e pessoais do indivíduo.

A Síndrome de Burnout engloba diversas dessas condições estudadas que acabam conduzindo o indivíduo a um cenário de adoecimento devido a um esgotamento proveniente de sua atividade laboral. A presente pesquisa verificou alguns desses fatores.

Desta forma, ressalta-se a importância do desenvolvimento de outras pesquisas que investiguem tanto fatores de risco, quanto fatores de proteção para a saúde do trabalhador no modal aéreo.

Além disso, seria interessante o desenvolvimento de programas de suporte aos pilotos (Pilot Support Programmes/PSP) que utilizem a psicoeducação em saúde mental como instrumento de promoção da saúde do aeronauta. Nesse tipo de trabalho, o indivíduo é ensinado a observar seu próprio comportamento ― pensamentos, sentimentos, ações e respostas corporais ― frente a estímulos presentes em seu ambiente de trabalho e fora dele. Tal discriminação pode ajudar a prevenir a instalação e o agravamento de adoecimentos do profissional, caso seja feita uma intervenção já no início dos sintomas.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, L, A; MEDEIROS, I, S, DE S; BARROS, A, G; MARTINS, C, C, F; SANTOS, V, E, P. Fatores geradores da síndrome de Burnout em profissionais da saúde. Revista online de Pesquisa: cuidado é fundamental Online, Natal, 2016.

AMORIM, S. F.; BRUSCATO, W. L.; NOGUEIRA-MARTINS, L. A. Síndrome de Burnout em enfermeiros captadores de órgãos de doadores cadáveres para transplante: um estudo preliminar. Arquivo Médico Hosp. Fac. Ciências Médicas Santa Casa de São Paulo, 2008.

BORGES, T. M. B; DIEHL, L. Fatores de risco e de proteção do adoecimento mental no trabalho na perspectiva de enfermeiros. Estudo e Debate, Lageado, v. 22, n. 2, p. 69-81, 2015.

BRASIL. Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986. Dispõe sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-7565-19-dezembro-1986-368177-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 20 set. 2020.

_______. Decreto nº 3048, de 6 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1999/decreto-3048-6-maio-1999-368532-publicacaooriginal-96753-pe.html>. Acesso em: 20 set. 2020.

CARLOTTO, M. S; CÂMARA, S. G. Análise da produção científica sobre a síndrome de Burnout no Brasil. Psico, Porto Alegre, v. 39, n. 2, p. 152-158, 2008.

CRUZ, R, M da. A. Importância da Relação Interpessoal no Ambiente de Trabalho. Rev. Psicologado, [S.l.]. (2016). Disponível em: <https://psicologado.com.br/atuacao/psicologia-organizacional/a-importancia-da-relacao-interpessoal-no-ambiente-de-trabalho>. Acesso em: 5 set. 2020.

DIEHL, L; CARLOTTO, M, S. Síndrome de Burnout: indicadores para a construção de um diagnóstico. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 161-179, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2015.

INTERNATIONAL CIVIL AVIATION ORGANIZATION (ICAO). Environmental report. 2019. Disponível em: <https://www.icao.int/environmental-protection/Documents/ICAO-ENV-Report2019-F1-WEB%20%281%29.pdf>. Acesso em: 24 out. 2020.

ITANI, A. Saúde e gestão na aviação: a experiência de pilotos e controladores de tráfego aéreo. Psicologia & Sociedade, v. 21, n. 2, p. 203-212, 2009.

KANAANE, R. Comportamento humano nas organizações: o homem rumo ao Século XXI. São Paulo: Atlas, 1994.

LAUTERT, L; AGUADO, A, M, P, Q. O desgaste profissional do enfermeiro. Tese (Doutorado em Psicologia) – Faculdade de Psicologia da Universidade Pontifica de Salamanca, 1995.

LEMES, C. B.; ODERE NETO, J. Aplicações da psicoeducação no contexto da saúde. Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, v. 25, n. 1, 2017.

MASLACH, C; SCHAUFELI, W, B; LEITER M, P. Job Burnout. Annu. Rev. Psychol 52:397–422, Califórnia, 2001.

MATIAS FILHO, A. T. Síndrome de Burnout em pilotos de aviação. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso. Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2018.

MENDANHA, M; BERNARDES, P; SHIOZAWA, P. Desvendando Burnout. São Paulo, LTr., 2018.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Doenças relacionadas ao trabalho: manual de procedimentos para os serviços de saúde. Brasília: Ministério da Saúde do Brasil, 2001.

MORENO, F. N et al. Estratégias e intervenções no enfrentamento da síndrome de Burnout. Rev. Enfermagem, UERJ, v. 19, n. 1, p. 140-145, jan. 2011.

PALMEIRA, L. F. Psiquiatria e Aviação: reflexões sobre a saúde psíquica dos aeronautas, 2007. Disponível em: <http://drpalmeira.blogspot.com/2007/04/psiquiatria-e-aviao-reflexes-sobre-sade.html>. Acesso em: 22 set. 2020.

PIETRO, M. A. S. A influência do treino de controle do estresse nas relações interpessoais no trabalho. 2010. Tese (Doutorado em Psicologia) – Centro de Ciência da Vida, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo.

QUINTINO, W, S; SANTOS, R, M, dos. Os riscos da fadiga humana para a segurança operacional de voo. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento, ano 5, ed. 9, v. 4, p. 18-34, set. 2020. Disponível em: <https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-aeronauticas/fadiga-humana>. Acesso em: 5 out. 2020.

RÉGIS FILHO, G. I. Síndrome da Má-Adaptação ao Trabalho em Turnos – uma Abordagem Ergonômica. Revista Produção, v. 11 n. 2, p. 69-87, abr. 2002.

RIBEIRO, M, F. Sistemas de Investigação de Acidentes da Aviação-Geral: uma análise comparativa. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Faculdade de Saúde Pública da USP, São Paulo, 2009.

RIUL, T; VABONI, A, F; SOUZA, F. Incidência de sintomas de ansiedade e depressão em aeronautas. Revista Psicologia.pt, 2012. Disponível em: <https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A0649.pdf>. Acesso em: 21 out. 2020.

RUVIARO, M. de F. S.; BARDAGUI, M. P. Síndrome de Burnout e satisfação no trabalho em profissionais da área de enfermagem do interior do RS. Barbaroi, Santa Cruz do Sul, n. 33, dez. 2010.

SAMPAIO, J, dos R. Qualidade de vida do trabalho: perspectivas e desafios atuais. Revista Psicologia: Organizações e Trabalho, v. 12, n. 1, p. 121-136, 2012.

SIMÕES, J, de O; BIANCHI, L, R. Prevalência da Síndrome de Burnout e qualidade do sono em trabalhadores técnicos de enfermagem. Saúde e Pesquisa, v. 9, n. 3, p. 473-481, 2017.

SOARES, A. J. A.; ALVES, M. G. P. Cortisol como variável em psicologia da saúde. Psicologia, saúde & doenças, v. 7, n. 2, p. 165-177, 2006.

SOUZA, L. F. S. C. de; BEZERRA, M. M. M. Síndrome de Burnout e os Cuidados da Terapia Cognitivo-Comportamental. Rev. Mult. Psic., 2019, v. 13, n. 47, p. 1060-1070.

VENDRAMIM, C. O exercício da aviação: a saúde da tripulação. Repositório Institucional RIUNI, Palhoça, 2018.

[1] Graduação em andamento em Ciências Aeronáuticas.

[2] Orientadora. Doutorado em Ciências do Comportamento.

Enviado: Fevereiro, 2021.

Aprovado: Abril, 2021.

4.8/5 - (6 votes)
Guilherme Lourenço do Carmo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pesquisar por categoria…
Este anúncio ajuda a manter a Educação gratuita