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Fatores estressantes para tripulação de cabine do transporte aeromédico em companhia aérea não regular

RC: 86124
560
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-aeronauticas/transporte-aeromedico ‎

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

RAGGIOTTO, Henrique Rodrigues [1], COSTA, Nagi Hanna Salm [2]

RAGGIOTTO, Henrique Rodrigues. COSTA, Nagi Hanna Salm. Fatores estressantes para tripulação de cabine do transporte aeromédico em companhia aérea não regular. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 05, Vol. 12, pp. 76-96. Maio  de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-aeronauticas/transporte-aeromedico, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-aeronauticas/transporte-aeromedico ‎

RESUMO

O transporte aeromédico tem sido utilizado para a remoção ou resgate de pacientes e para o transporte de tecidos e órgãos para transplante. O processo de remoção aeromédica se dá quando um paciente está em uma localidade com pouca infraestrutura hospitalar e precisa ser transportado para um centro clínico apto a atendê-lo ou quando um órgão precisa chegar até o paciente que está em local diverso. Esse serviço vem se desenvolvendo muito ao longo dos anos e tem ganhado ainda mais destaque em função do contexto de pandemia causado pelo alastramento do Coronavírus (SARS-CoV-2), que causa a doença COVID-19. O presente estudo teve como objetivo mapear os fatores estressantes para tripulação de cabine do transporte aeromédico em companhia aérea não regular. Para a coleta de dados, além da pesquisa documental e bibliográfica, foram entrevistados por Skype 12 pilotos que realizam voos aeromédicos. Entre os fatores estressantes apresentados pelos participantes estavam o pré-voo – momento que vai desde o aviso da missão até o acionamento dos motores da aeronave, quando todos já estão embarcados e prontos para o voo ; os atrasos das ambulâncias; a dificuldade de estabilizar o paciente antes do voo; o embarque, o desembarque e, por vezes, o próprio voo, visto que transporta uma pessoa com saúde fragilizada; o medo de contaminação; e até mesmo o uso de limitantes Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Os resultados obtidos sugerem que os voos de transporte de enfermos parecem ser mais estressantes do que os voos executivos, principalmente quando se trata do transporte de pacientes em situação crítica ou com quadros contagiosos. Ao final, sugere-se a condução de estudos mais abrangentes acerca dos fatores apontados pelos pilotos como os mais estressantes no contexto do transporte aeromédico, com vistas a evidenciar os gargalos desse serviço tão essencial para toda a sociedade, reduzir os fatores estressantes e garantir, em última análise, mais segurança de voo.

Palavras-Chave: Transporte Aeromédico, Transporte Aéreo de Pacientes Críticos, Estressores do Voo Aeromédico, Remoção Aérea de Pacientes com COVID-19, Transporte de Passageiros Potencialmente Contaminados.

1. INTRODUÇÃO

O transporte aeromédico é um serviço da área da saúde que tem salvado muitas vidas, removendo ou resgatando pacientes de localidades com pouca infraestrutura para atendimento em grandes centros hospitalares, ou levando tecidos e órgãos para transplante. Esse serviço de transporte aéreo vem se desenvolvendo sobremodo ao longo dos anos, assim como a aviação de maneira geral, e tem ganhado ainda mais destaque em função do contexto de pandemia causado pelo alastramento do Coronavírus (SARS-CoV-2) que causa a doença COVID-19.

A literatura que aborda questões referentes ao estresse proveniente de voos que se caracterizam como transporte aéreo de enfermo é relativamente escassa. Dificilmente são encontrados dados que discorram sobre esse estado emocional ao qual os tripulantes de voos aeromédicos são submetidos e seu impacto na saúde do aeronauta.

Sabe-se que o estresse, a fadiga, o esgotamento e a exaustão podem ser fatores contribuintes para a ocorrência de incidentes e acidentes tanto na aviação civil, quanto militar. Desse modo, o mapeamento de estímulos estressores que afetam a tripulação de transporte aeromédico é importante para que se possa prevenir intercorrências e fortalecer os pilares de segurança de voo. Por certo, estudos nesse sentido podem auxiliar companhias e empresas de aviação a desenvolverem estratégias para diminuírem, na medida do possível, a quantidade de estressores aos quais a tripulação de cabine é exposta.

Esta pesquisa tem como objetivo mapear, no âmbito da aviação civil, possíveis estressores com os quais a tripulação de voo lida no transporte aeromédico e verificar se a carga de trabalho é maior no transporte de enfermos. Para responder a estas questões, realizou-se uma pesquisa de campo com auxílio de um questionário sociodemográfico on-line por meio da condução de entrevistas semiestruturadas com pilotos de transporte aeromédico. A pesquisa se pautou também em uma revisão bibliográfica e documental sobre o tema.

Estruturalmente, o estudo foi dividido em seis seções. A primeira delas discorre sobre o transporte de pacientes via solo e suas características. A segunda seção versa sobre o transporte aeromédico de pacientes em estado crítico. A terceira seção discorre sobre os estressores presentes no voo aeromédico. Em seguida é apresentada a seção do método que abordará os participantes da pesquisa de campo, os materiais e equipamentos utilizados para a coleta de dados, assim como o procedimento detalhado. Após, é apresentada a seção de resultados e discussão e, por fim, as considerações finais do estudo.

2. O TRANSPORTE DE PACIENTES VIA SOLO

O transporte de paciente via solo é feito por ambulâncias, modal mais barato e propagado atualmente. Este transporte é considerado seguro para percursos que levem menos de 45 minutos e, em caso de duração maior, torna-se caro e, por vezes, desconfortável para o paciente devido à gravidade do quadro clínico. O uso de ambulâncias para transporte de enfermos também pode ser limitado devido ao trânsito das cidades e às condições meteorológicas, entretanto, ainda é o mais recomendando para operações urbanas (PEREIRA JÚNIOR; NUNES; BASILE-FILHO, 2001).

A regulamentação dos serviços da equipe médica e as características necessárias para o veículo e equipamentos presentes em cada tipo de ambulância estão previstos na portaria nº 2048/GM do Ministério da Saúde, de 5 de novembro de 2002 (LACERDA; CRUVINEL; SILVA, 2008).

As ambulâncias de suporte básico mais usadas no Brasil são as dos tipos B e D. As ambulâncias tipo B, em sua maioria, contam com socorristas que, usualmente, são o(a) motorista da ambulância e o(a) técnico(a) de enfermagem. Possuem suprimento para resgate e transporte do paciente e dispõem de cilindros de oxigênio, equipamentos para imobilização, punção venosa e hidratação endovenosa. As ambulâncias do tipo D são de suporte avançado, usadas para o transporte de paciente crítico. Contam com médico(a), enfermeiro(a) e socorrista e com material de ventilação mecânica, equipamentos de monitorização, tubos endotraqueais, bombas de infusão, material de drenagem pleural, acesso venoso profundo, talas para imobilização, material para pequenas cirurgias e medicações variadas e padronizadas (PEREIRA JÚNIOR; NUNES; BASILE-FILHO, 2001).

O trânsito dentro de uma metrópole, de outra parte, torna, não raras vezes dificultoso o transporte de pacientes. Levando em conta esse aspecto, o Código de Trânsito Brasileiro (1997) estabelece que as ambulâncias devem atender às ocorrências com o máximo de agilidade. Para tanto, elas gozam da livre circulação, tendo prioridade de passagem, estacionamento e paradas – quando em serviço de urgência e devidamente identificadas com alarme sonoro e iluminação vermelha intermitente. Quando esses dispositivos estão ligados, os motoristas, em sua maioria civis, devem dar-lhes livre acesso, caso contrário, podem ser multados.

3. O TRANSPORTE AÉREOMÉDICO DE PACIENTES

Durante a I Guerra Mundial, os balões eram utilizados para fins bélicos como bombardeiros e para o reconhecimento de área, transporte de equipamentos e soldados. Em 1870, na Guerra Franco-Prussiana, iniciou-se o primeiro registro de transporte aeromédico. Com a invasão em Paris, os franceses tiveram que transportar 160 feridos para que recebessem atendimento hospitalar com segurança. Esses balões foram conhecidos como Balões de Fuga (GOMES et al., 2013).

Assim como os balões, os aviões foram muito usados para operações militares durante as I e II Guerras Mundiais. No mesmo passo, o transporte aéreo de enfermos foi igualmente fundamental para guerra. Desde então, a aviação tem se desenvolvido ano após ano e, consequentemente, o transporte aéreo para resgate e remoção de enfermos (GOMES et al., 2013).

O transporte aeromédico é caracterizado pela remoção aérea por helicópteros (asas rotativas) ou aviões (asas fixas), tendo cada um sua peculiaridade e funcionalidade, a depender da situação. Os helicópteros são mais acionados para remoção de pacientes em lugares inacessíveis por avião e para situações de resgate. Já os aviões são utilizados para remoções de média a longa distância; costumam causar menos desconforto e apresentam menos vibrações se comparados aos helicópteros (JOHNSON; LUSCOMBE, 2011; DIAS; FERREIRA; CARVALHO, 2017).

Em geral, os aviões utilizados para o transporte aeromédico não são fabricados exclusivamente para este fim. Em sua maioria, são adaptados e homologados pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), órgão que também autoriza a operação aeromédica nas aeronaves no Brasil (ANAC, 1999).

Dentro do avião, cada profissional tem sua função. A equipe de voo, geralmente composta por um(a) comandante e um(a) copiloto, gerenciam o voo para que seja o mais estável e menos turbulento possível. Já a equipe médica é constituída pelo(a) médico(a) e enfermeiro(a) que gerenciam o estado do paciente, mantendo-o estabilizado até o hospital de destino (MARTIN, 2006; HERNÁNDEZ, 2007; PALHARINI, 2012).

O processo de remoção aeromédica, como já acenado, ocorre quando um paciente está em uma localidade com pouca infraestrutura hospitalar ou que não possui os recursos necessários aos cuidados de sua saúde, e, portanto, precisa ser transportado para um centro hospitalar capacitado e apto para atendê-lo. Estando o enfermo em uma cidade precária, o transporte aeromédico é considerado a melhor opção, devido à sua rapidez e agilidade (JOHNSON; LUSCOMBE, 2011; MARTIN, 2006; PALHARINI, 2012).

Contudo, apesar da nobreza e da missão gratificante de ajudar a salvar vidas, transportar um paciente em situação grave pode gerar muito estresse na equipe, a depender da natureza da ocorrência, como as que envolvem pacientes com fraturas expostas, bebês recém-nascidos ou pessoas com doenças contagiosas, como Ebola, H1N1 e COVID-19. O risco de ser contaminado por alguma doença pela qual o paciente foi acometido e o fato de usar desconfortáveis Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), que podem ocasionar inclusive a desidratação, como será visto adiante, podem ser fatores que elevam o estresse da operação (MARTIN, 2006).

O transporte de pacientes apresentando perda de funções de órgãos e sistemas essenciais ao corpo pode ser ainda mais delicado, uma vez que a probabilidade de o quadro clínico se desestabilizar é alta. É preciso que haja monitoramento do seu estado de saúde e, às vezes, até o uso de equipamentos que auxiliam a equipe médica a manter o paciente vivo. Tais fatores tornam, como se vê, esse tipo de transporte complexo e desafiador (LACERDA; CRUVINEL; SILVA, 2008; MARTIN, 2006).

Antes, porém, que o transporte do paciente crítico aconteça, o médico do hospital de origem faz uma análise clínica. Normalmente é recomendado que o paciente esteja estável por 48 horas antes da remoção. Existem ocasiões, no entanto, em que ele precisa ser transportado antes deste tempo, por estar em estado altamente crítico. Contudo, durante todo o trajeto, deve-se evitar ao máximo vibrações e trocas de temperaturas, principalmente em se tratando de recém-nascidos, uma vez que são muito sensíveis a esses estressores que, por vezes, causam agravamento e complicação do seu quadro (MARTIN, 2006).

Para que esse transporte ocorra de maneira adequada, é necessário que haja um planejamento eficiente, visando mitigar atrasos, erros e outras intercorrências. Pondera-se, nesse sentido, que a remoção está sujeita: a problemas afetos à operacionalidade do hospital de origem, como o esquecimento de algum procedimento que deveria ter sido executado antes do voo ou esquecimento de algum equipamento médico; e a alterações nas condições meteorológicas que podem comprometer o voo, entre outras variáveis. A precariedade de planejamento pode causar, ainda, erros de rota e até mesmo o esquecimento de documentos pessoais do paciente – necessários para sua entrada em outro hospital (LACERDA; CRUVINEL; SILVA, 2008), tudo a contribuir com o estresse de todos os envolvidos, entre eles, do piloto.

Segundo Palharini (2012), os tripulantes de cabine do transporte aéreo de enfermo levam em conta que a missão realizada é para salvar vidas e, para tanto, devem chegar com o máximo de agilidade ao destino, mantendo a segurança de voo e tentando não agravar a saúde do paciente transportado. Em caso de uma aeronave não pressurizada, ela não deve exceder mais de 12.000 pés (3.600 metros) de altitude em relação ao nível do mar, pois a probabilidade de agravamento clínico do paciente é alta – reações do organismo, como expansão dos órgãos e tecidos, podem acontecer a partir desta altitude. O piloto deve ter cuidados ao usar do reversor de tração que, segundo Saintive (2015), é um mecanismo hidromecânico que inverte o sentido da tração do motor, desacelerando a aeronave rapidamente. Essa quebra abrupta de inércia pode ocasionar uma lesão ao paciente.

4. ESTRESSORES PRESENTES NO VOO AEROMÉDICO

De uma perspectiva fisiológica, um nível ótimo de estresse é necessário para que o indivíduo consiga conduzir suas atividades diárias. Abaixo desse nível, é possível que a pessoa fique mais apática e tenha dificuldade em executar suas tarefas cotidianas. No entanto, estresse em níveis demasiadamente elevados pode causar uma degradação da performance e do desempenho, trazendo prejuízos ao indivíduo em todas as instâncias de sua vida (EDWARDS, 1991).

O contato excessivo e constante com estímulos estressores pode provocar, de maneira geral, angústia, tensão, nervosismo, respostas ansiogênicas, entre outros, prejudicando não só o funcionamento do próprio corpo do indivíduo, mas comprometendo também a qualidade de suas interações sociais (SELYE, 1976).

Cada pessoa reage de forma diferente à exposição à estressores. Erbermann e Scheiderer (2012) apresentam uma situação hipotética na qual um piloto, executando um procedimento de aproximação por instrumento de precisão, pode sentir um estresse excessivo de forma a sentir-se desconfortável. No entanto, outro piloto na mesma situação pode experimentar até mesmo prazer e lidar muito bem com as informações apresentadas. Portanto, os fatores estressantes podem afetar a tomada de decisão e a consciência situacional do piloto, que envolve a discriminação dos estímulos presentes durante o voo.

Os mesmos autores classificam os fatores estressores como físicos, psicológicos e fisiológicos. Dentro da categoria de estressores físicos estão os ruídos e vibrações produzidos pela aeronave, pressurização da cabine, baixa umidade do ar, incidência de raios solares na cabine, mudanças de temperatura, contato com gases tóxicos, entre outros (ERBERMANN; SCHEIFERER, 2012). Alguns estressores podem, inclusive, vir a desencadear lesões. Situações com muita vibração ou ruídos – devido ao atrito do ar com fuselagem da aeronave – são capazes de, com o tempo, agredir o sistema auditivo. Podem, ainda, causar tonturas, diminuição auditiva, mal-estar e, de efeito, mudanças no humor, entre outros males (RIUL; VABONI; SOUZA, 2011; FAA, 2016).

Ainda para Erbermann e Scheiderer (2012), os estressores psicológicos são provenientes, por exemplo, de uma quantidade excessiva de tarefas a serem executadas – alta carga de trabalho, necessidade de tomada de decisão em um curto período de tempo, congestionamento do espaço aéreo, aproximação desestabilizada, sequência de voos contendo atrasos para embarque ou desembarque de paciente (em casos de voos aeromédicos), conflitos interpessoais e dificuldade em planejar o tempo livre devido ao voo.

Os estressores fisiológicos estão associados a mal-estar e ao estado de saúde – fome, sedentarismo, baixa quantidade de açúcar no sangue, desidratação, privação de sono ou sono de má qualidade, vigília estendida, alterações dos ritmos circadianos, fadiga, gripe (quando o piloto está gripado, por exemplo, não é recomendando voar em aeronaves pressurizadas devido a mudanças de pressão, pois isso pode causar dor de cabeça e fraqueza). Estes estressores podem prejudicar o estado de alerta dos pilotos e comprometer, naturalmente, a segurança operacional (HARRIS, 2011).

De acordo com Selye (1976), quando esses profissionais são expostos a tais estressores por muito tempo, ocorre um deterioramento do desempenho do tripulante, levando-o ao esgotamento. Nesta fase de fadiga, o processo de tomada de decisão pode ser comprometido, fazendo com que haja risco de prejuízos na segurança de voo (FAA, 2016). A fadiga proveniente da falta de descanso, da privação de sono ou da alta carga de trabalho pode reduzir a capacidade do piloto de discriminar estímulos presentes em seu ambiente, diminuindo também sua consciência situacional. O problema da exposição contínua a situações estressantes e da fadiga elevada é que esses fatores podem comprometer o desempenho dos pilotos e serem, assim, um fator contribuinte para acidentes e incidentes aéreos (MORIARTY, 2014; EBERMANN; SCHEIDERER, 2012).

As missões de voos aeromédicos podem ocorrer na madrugada e, por vezes, os pilotos não conseguem dormir o suficiente devido ao horário dos acionamentos. Alguns deles adotam o descanso controlado, já aprovado e regulamentado em muitos países, porém não no Brasil. No descanso controlado, um dos pilotos pode repousar (dormir) por um período que varia entre 30 e 45 minutos, enquanto o outro gerencia a cabine. Esse processo só pode ser realizado na fase voo de cruzeiro, quando a aeronave está nivelada na melhor altitude para performance e economia de combustível. (GRAEBER; RCURTIS et al., 1990; FLIGHT SAFETY, 2018).

Os autores ainda relatam que a National Aeronautics and Space Administration (NASA) e a Federal Aviation Admistration (FAA) realizaram, nos anos 80 e 90, estudos – denominados de Cockpit Napping – que comprovaram que esta prática ajuda a evitar a fadiga e mitigar os riscos. A pesquisa teve como objetivo identificar a eficácia do descanso/sono controlado no gerenciamento da fadiga na cabine de comando, mantendo o nível de performance dos profissionais aceitável. A estratégia se baseava em um pré-planejamento do voo no qual os tripulantes combinavam o momento em cruzeiro que cada um iria dormir.

Os tripulantes experimentados tinham melhor performance e conseguiam ficar mais atentos nas fases críticas do voo, quais sejam, de decolagem e pouso. A medida ainda se mostrou altamente eficiente para aqueles que tinham muitas interrupções do ciclo circadiano, rotina de trabalho excessivo e voos na madrugada (GRAEBER; RCURTIS et al., 1990; FLIGHT SAFETY, 2018).

Ainda quanto à privação do sono, ela também está relacionada à jornada de trabalho dos pilotos aeromédicos. O apêndice B do Regulamento Brasileiro da Aviação Civil (RBAC) n° 117 discorre sobre os requisitos para gerenciamento de risco de fadiga humana, válidos para qualquer aviação, trazendo prescrições quanto à jornada de trabalho. Conforme o horário de apresentação para o voo, a jornada tem uma duração diferente. Em apresentações na madrugada, a jornada é menor (ANAC, 2019). Contudo, essa jornada nem sempre é cumprida, como será visto na discussão.

A tripulação de cabine do transporte aeromédico, além de trabalhar com o medo do desconhecido, como transporte de pacientes positivos para o vírus SARS-Cov-2 (Coronavírus), por exemplo, lida ainda com o desconforto do uso de EPIs, que são paramentações utilizadas para proteger os profissionais de doenças contagiosas. Os EPIs são compostos por macacões especiais, máscaras N-95, luvas, protetores para os olhos e botas. Essa paramentação, apesar de ser essencial, pode ser desconfortável para os profissionais ao dificultar a mobilidade e a troca de calor entre a pele e o ambiente. A vestimenta se torna tão quente que pode causar, inclusive, desidratação (LIEW et al., 2020; CARIUS et al., 2020; BHATTACHARYA et al., 2020).

5. MÉTODO

Participaram da fase de entrevistas do estudo 12 pilotos de transporte aeromédico de uma companhia brasileira de transporte aéreo não regular certificada pela ANAC, que oferece serviços de transporte aéreo com frequência e continuidade, sem a necessidade de executar voos de forma regular. Entre os critérios de inclusão dos participantes estavam: ser profissional de aviação civil com licença de Piloto Comercial de Avião (PCA); atuar como piloto de aeronave de asas fixas no setor de transporte de enfermo; atuar, ou já ter atuado, em voos executivos; estar com o Certificado Médico Aeronáutico (CMA) válido.

A pesquisa foi submetida à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Pontifícia Universidade Católica de Goiás no dia 10 de setembro de 2020 – Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) nº 37481820.2.0000.0037 – e foi aprovada.

A coleta de dados contou com um questionário sociodemográfico on-line desenvolvido na plataforma Google Forms e com um roteiro de entrevista semiestruturada. O questionário continha sete perguntas, a saber: 1) Identidade de gênero; 2) Faixa etária; 3) Escolaridade; 4) Há quanto tempo trabalha no setor da aviação? 5) Já atuou como piloto em quantas empresas aéreas?; 6) Possui, aproximadamente, quantas horas totais de voo?; 7) Possui, aproximadamente, quantas horas de voos caracterizados como aeromédicos?

Já o roteiro da entrevista semiestruturada era composto por 15 perguntas, apresentadas no Quadro 1.

Quadro 1 –Roteiro de perguntas da entrevista semiestruturada

1) Na sua opinião, o transporte aeromédico causa mais estresse que um voo executivo?

2) Quais fatores você citaria que deixam um voo aeromédico estressante?

3) Para você, qual parte do voo aeromédico traz mais tensão e estresse?

4) A demora para estabilizar um paciente torna o voo mais delicado e estressante?

5) A sequência de voos aeromédicos à qual vocês são expostos tornam o voo inseguro?

6) Quando o tripulante está cansado devido à sequência de voo ou devido à quantidade de horas voadas, você acha válida a aplicação do sono controlado dentro da cabine?

7) Qual voo exige mais habilidade e precisão nas atitudes: o aeromédico [de pessoas], o executivo ou o transporte de tecido e órgãos? Justifique.

8) Já se sentiu pressionado em terminar o voo ou evitar de alternar pois estava com paciente a bordo que precisava ser levado ao local de destino?

9) Já decolou de uma localidade mesmo sabendo que o destino estava com tempo ruim, mas decidiu decolar pois o paciente estava em grave situação?

10) Se pudesse mudar um fator que deixa o voo aeromédico muito estressante, o que você mudaria?

11) A falta de serviços essenciais de solo para embarque e desembarque de paciente torna o voo aeromédico estressante?

12) Voo aeromédico com paciente positivo para COVID-19 torna, de 0 a 10, quão mais estressante e delicado?

13) Os EPIs que os tripulantes de voo usam atrapalham no gerenciamento de cabine?

14) Os EPIs que os tripulantes de voo usam causam estresse e desconforto no voo?

15) Qual foi o momento mais marcante de estresse em voos aeromédicos e executivos que já passou? E por quê?

Fonte: elaborado pelos autores (2020).

Após a aprovação do projeto pelo CEP, os pilotos foram convidados a participar da pesquisa por meio dos contatos fornecidos pela empresa de transporte aeromédico (e-mail ou telefone). Foram-lhes explicados os objetivos da pesquisa e como seria realizada a coleta de dados. Em função do momento atual de pandemia, para resguardar a segurança dos participantes e dos pesquisadores, ficou estipulada a realização remota das entrevistas. Caso aceitassem participar, os pilotos deveriam concordar com termos apresentados no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) on-line, submetido ao CEP, atestando a voluntariedade e concordância em participar do estudo de forma anônima. O TCLE on-line – disponível através de um link do Google Forms – foi enviado por e-mail ou WhatsApp aos pilotos que apresentaram interesse em participar.

Após a leitura do TCLE on-line, os pilotos deveriam assinalar ou a opção “Li e CONCORDO em participar desta pesquisa” ou a opção “Li e NÃO CONCORDO em participar desta pesquisa”. Caso assinalassem a opção “Li e NÃO CONCORDO em participar desta pesquisa”, eram redirecionados para uma aba na qual aparecia a mensagem “Muito obrigado!”. Caso assinalassem a opção “Li e CONCORDO em participar desta pesquisa”, eram redirecionados para uma aba no mesmo link contento as questões sociodemográficas.

Todos os participantes assinaram o (TCLE on-line), atestando a voluntariedade e concordância em participar do estudo. Ao concluírem esta etapa era agendada a entrevista semiestruturada.

O horário de agendamento das entrevistas semiestruturadas não podia chocar com os horários de voo ou de sobreaviso dos pilotos – período em que o tripulante permanece em local de sua escolha à disposição do empregador, devendo se apresentar no aeroporto ou em outro local determinado, no prazo de até noventa minutos. Durante o agendamento da entrevista era perguntado se o piloto possuía o aplicativo Skype da Microsoft instalado em seu computador ou celular. Caso não tivesse, era solicitado que ele fizesse o download do aplicativo antes da data da entrevista. Este aplicativo é gratuito e sua instalação leva cerca de 2 minutos.

As entrevistas foram realizadas individualmente e eram gravadas com o consentimento e anuência do participante e da empresa, pelo aplicativo Skype. Era solicitado que o participante estivesse sozinho em um ambiente (e.g., sala, escritório, quarto, carro) para que fosse preservado o sigilo durante a condução da entrevista. Era necessário também que houvesse conexão de internet em ambas as pontas no momento do encontro remoto. Ao final, era realizado o download da gravação para a condução da análise de dados. A gravação só foi analisada pelos pesquisadores responsáveis, de forma a preservar o sigilo dos participantes.

Para a condução da entrevista, foi utilizado um notebook da marca Lenovo, modelo Yoga 520, com processador Intel dual-core i5, sistema operacional Microsoft Windows 10, tela de 14 polegadas multitouch, resolução 1366 x 768 pixels. Foi utilizada ainda uma folha contendo o roteiro da entrevista semiestruturada impresso. A entrevista foi conduzida em um ambiente privativo, de forma a preservar o sigilo do participante.

6. RESULTADOS E DISCUSSÃO

As entrevistas tiveram duração média de 30 minutos, variando, portanto, entre 20 e 40 minutos, e foram realizadas com 12 participantes do sexo masculino, com faixa etária entre: 18 – 25 anos (29,4%); 26 – 33 anos (41,2%); 34 – 41 anos (17,6%) e 42 – 49 anos (11,8%). Dos participantes, 70,6% possuíam ensino superior completo, 23,5% ensino superior incompleto e 5,9% ensino médico completo, estando empregados no setor aeronáutico de 1,5 a 12 anos, com experiências de voos participantes variando entre 1.200 a 5.000 horas e, especificamente, de voos aeromédicos variando entre 400 horas a 4.000 horas. No que diz respeito à quantidade de empresas em que já estiveram empregados, 47,1% atuou apenas em uma empresa, 35,3% atuou em duas empresas e 17,6% atuou em três empresas.

Ao serem questionados se o voo aeromédico era mais estressante do que o voo executivo 7 dos 12 os participantes (P3, P4, P5, P8, P9, P10 e P12) declararam que sim, 3 afirmaram que não (P6, P7 e P11) e dois (P1 e P2) disseram que dependia da particularidade cada voo. A seguir, serão apresentados trechos da entrevista semiestruturada que ilustram o posicionamento de alguns dos participantes, foram escolhidos os trechos mais descritivos.

Segundo P10, “o voo aeromédico é mais estressante que um voo executivo, pois tem uma pessoa que está sendo transportada. A vida dela depende da gente e precisa que a gente faça bem feito, pois cada paciente tem uma reação diferente, podendo evoluir para um agravamento [do quadro clínico) mesmo em voo”. O participante P2, por sua vez, afirmou que “de uma forma geral não causa mais estresse, depende do voo em si – o voo aeromédico, ou executivo, ou de carga –; não dá pra dizer que é mais estresse, depende de cada missão, depende de cada situação, pois cada voo tem características dos estresses que são apresentados”. O participante P11 afirmou que “acho que o voo aeromédico é mais tranquilo, por ser mais objetivo, tem poucos atrasos no geral. O voo executivo tende a atrasar várias vezes. Já me fizeram esperar 12 horas”. P6 respondeu que “não, para mim os dois são iguais, algumas vezes o voo executivo é mais estressante, devido à falta de compromisso de horário dos passageiros”.

Os dados apresentados mostram que para mais da metade dos participantes entrevistados (P3, P4, P5, P8, P9, P10 e P12) o voo aeromédico parece gerar mais estresse do que o executivo, principalmente devido ao fato de transportar enfermos, por vezes em estado crítico. Segundo a FAA (2016), o transporte de enfermos pode exercer uma pressão externa adicional à atividade laboral do piloto, que, mesmo sob pressão, deve gerenciar a situação visando manter a segurança de voo.

Foi solicitado que os participantes citassem fatores que julgavam ser mais estressantes nas operações de voo aeromédico. Foram pontuados os seguintes aspectos: quadro clínico crítico do paciente; atrasos da ambulância; burocracia dos aeroportos; infraestrutura aeroportuária precária; turbulências; necessidade de agilidade; e tempo escasso para executar todos os procedimentos, do acionamento da tripulação até a decolagem. Serão apresentados a seguir alguns relatos sobre os estressores citados.

Segundo P5, “o que deixa o voo aeromédico mais estressante são as situações e a correria para fazer o voo. Muitas vezes, você embarca o paciente e ele desestabiliza e nisso tem que tirar ele do avião para poder estabilizar, e aí vêm as preocupações de atraso, se preocupar em adiar a hora de decolagem da autorização do plano de voo, tem que comunicar com a torre, o avião é apertado. Ou seja, o somatório dessas coisas pequenas vai deixando mais estressante”. Já o participante P4 afirmou que “a burocracia dos aeroportos é muito grande, muitas vezes demora a liberar a ambulância, o que causa estresse. A meteorologia torna estressante, pois temos que desviar para evitar turbulências devido ao paciente”.

Foi questionado a 11 participantes se a demora para estabilizar o paciente torna mais estressante o voo. Três participantes (P3, P7 e P11) disseram que não e oito (P2, P4, P5, P6, P8, P9, P10 e P12) disseram que sim. Seguem alguns trechos da entrevista.

Segundo P2, “sim, pois a transferência de equipamentos da ambulância para a aeronave pode desestabilizar, traz um estresse para toda equipe”. Já o participante P3 diz o contrário: “Para a tripulação não, pois não depende da tripulação, pra gente é indiferente”.

Na entrevista, solicitou-se que os participantes indicassem a fase mais estressante do voo. Os pilotos (P1, P2, P3, P4, P5, P6, P8, P9, P10, P11 e P12) afirmaram que eram o pré-voo – momento de preparação da aeronave para o voo, que se dá desde o aviso da missão até o acionamento dos motores da aeronave onde todos já estão embarcados e prontos para o voo – e os embarque e desembarque, sendo estes os momentos mais críticos e estressantes do voo. Para P7 os momentos de maior estresse acontecem durante os voos turbulentos. Seguem a trechos das falas de alguns dos participantes.

Segundo P10, “o embarque e o desembarque, pois para o paciente essas transferências geram um estresse; então, é sempre complicado, pois temos que esperar ele estabilizar com a troca de equipamentos; é uma das partes mais delicadas”. De acordo com P5, são “o embarque e o desembarque; esse momento bem feito deixa o voo bem mais tranquilo, é o momento em que se decide se o paciente realmente pode ir ao voo, pois haver uma desestabilização em voo é muito complicado”.

No que diz respeito à falta de suporte em solo, todos os participantes disseram que gera mais estresse. O suporte em solo envolveria, por exemplo, alguém que pudesse calçar o pneu da aeronave, energizar a aeronave, ou poder contar com o suporte de um hangar – em caso de chuvas – para embarque e desembarque dos passageiros, por exemplo. A carência desses auxílios torna o voo aeromédico mais estressante. Seguem os relatos dos pilotos quanto à essa questão.

O participante P9 afirmou que “com certeza, muitos locais que fazemos a remoção, a infraestrutura do aeródromo é muito reduzida, fica bem cansativo, pois o tempo em solo fica fora do controle e ter um lugar para poder esperar ou poder se alimentar ajudaria bastante para evitar a fadiga”. Para P1 “em parte sim, é mais cômodo e mais confortável, pois muitas vezes é complicado fazer o embarque e desembarque embaixo de chuva ou sol quente. A falta de apoio em solo deixa [a atividade] mais estressante, principalmente em locais de baixa infraestrutura”.

No relato dos participantes nota-se que o momento de acionamento, a apresentação no aeroporto e o momento da decolagem são bem estressantes, pois é necessário agilidade nos procedimentos das missões aeromédicas. Martinussen (2017) afirma que quando o profissional está com alta carga de trabalho, faz-se necessário o gerenciamento das tarefas para diminuir a probabilidade de erros.

Os atrasos para embarque do paciente, a falta de infraestrutura aeroportuária e mesmo a falta de equipamentos nas ambulâncias igualmente parecem gerar estresse e fadiga nos pilotos, caracterizando, conforme Harris (2011) a ocorrência de estressores físicos, vale dizer, provocados pelo ambiente externo. Isso porque, por vezes, nos aeródromos, não há lugar com sombra, ambiente climatizado ou restaurantes nos quais os pilotos possam fazer suas refeições. Não há, ainda, um lugar onde possam descansar enquanto esperam a chegada do paciente para o embarque. Além disso, existe ainda a pressa para preparar e abastecer o avião, planejar a rota e deixar tudo preparado para conduzir o paciente em segurança, e o mais rapidamente possível, ao destino. Esses fatores podem eliciar respostas ansiogênicas nos tripulantes de cabine, conforme preceituado por Selye (1976).

Quando questionados se a sequência de voos os deixava mais inseguros, quatro participantes (P2, P6, P10 e P11) disseram que sim, cinco (P3, P5, P7, P8 e P12) disseram que não e dois deles (P9 e P5) afirmaram que, se a jornada de trabalho foi cumprida corretamente, esse fator não prejudicaria a segurança. São apresentados alguns relatos dos tripulantes para ilustrar o assunto.

De acordo com P6, “com toda certeza, a nossa segurança de voo vai para o espaço e torna muito perigoso, é muito complicado, principalmente na madrugada”. O participante P9 diz que “muitas vezes acaba tornando, sim; quando não tem o descanso necessário, muitas vezes deixa inseguro; quanto mais voos você vai fazendo, mais fadiga, menos atenção você [tem]”. Já P8 afirma que “aumenta bastante a fadiga, mas não me sinto inseguro no voo; nas condições de limites a gente faz o voo mais padrão[3], aumentando mais critérios para aumentar a segurança, pois a respostas não estão as mesmas”. P5 entende que “não, se torna inseguro se a jornada não é respeitada se for ultrapassada”. P11, na mesma linha, comenta sobre a jornada: “algumas situações sim; muitas vezes a jornada é só no papel, já me fizeram ficar 36 horas fazendo missões.”

Nota-se que a jornada de trabalho é apontada como fator de preocupação entre os pilotos, o que sugere haver, por vezes, o descumprimento do apêndice B do RBAC ANAC n° 117.

Quando questionados sobre a prática do descanso controlado durante o voo de cruzeiro, a maioria dos participantes (P1, P2, P4, P5, P6, P7, P8, P9, P10, P11 e P12) diz concordar com tal prática em casos de muita fadiga, para que se possa aumentar a atenção nas fases críticas, principalmente em voos na madrugada. O participante P3 disse ser contrário a essa prática. O participante P9 afirma: “eu acho válido, pois os momentos de maior tensão são decolagem e pouso. No voo de cruzeiro um tripulante é o suficiente para desempenhar as funções; sendo bem coordenado entre os dois, acho válido. Esse sono controlado dá um up na tripulação”. Já P3 tem outro posicionamento: “eu não acredito que funciona, é uma falsa sensação de que dá certo, acho perigoso”.

As percepções dos pilotos corroboram com o levantamento feito pela NASA, o Cockpit Napping, que indicou o descanso controlado como uma possível estratégia para mitigar a fadiga encontrada nos tripulantes de voo que exerciam a função de piloto em voos longos ou com inúmeros trechos e demonstrou uma melhora na percepção e aumento de velocidade de resposta dos pilotos testados (GRAEBER; RCURTIS et al., 1990; FLIGHT SAFETY, 2018).

Ao serem questionados sobre o tipo de voo que exigia mais do piloto – se o aeromédico [de enfermos), o executivo ou o de transporte de tecidos e órgãos, a maioria dos participantes (P1, P2, P3, P4, P6, P7 e P10) disse que o voo aeromédico exige mais habilidade, porém, alguns pilotos (P8, P9, P11, P5 e P12) disseram que não percebem muitas diferenças ou depende de cada voo.

Segundo P1, “o voo aeromédico com recém-nascidos é o mais sensível e é preciso ser mais delicado. É necessário para evitar o agravamento do paciente e ser mais confortável. O transporte de órgãos deve ser mais rápido e ter maior agilidade ao invés de conforto”. P1 completa dizendo que “com certeza o voo aeromédico [exige mais]; dependendo do quadro clínico, precisa tomar cuidado com pouso mais duro, tomar cuidado com turbulência, desviar de formação, tomar cuidado com aceleração, decolagens e pousos”. Em contrapartida o participante P8 relata que “para mim não muda muito; os voos são iguais quando em voo. Somente nos voos aeromédicos você tem que fazer um voo mais fino, porém são detalhes pequenos”.

Martin (2006) afirma que a tolerância dos pacientes em estado crítico a vibrações, movimentos bruscos e mudanças de temperaturas é mínima. Desta forma, toda a equipe – tanto a tripulação de voo, quanto a equipe médica – tem o máximo de cautela. Os pilotos reportaram na entrevista que nestes casos devem ser feitos pousos mais longos, usando menos freio, desviando de formações meteorológicas, devido às turbulências. Existem situações, no entanto, em que o piloto está em uma pista curta que exige, por vezes, acelerações e desacelerações mais fortes. Isso pode aumentar as respostas de estresse e ansiedade por parte desses profissionais, pois precisam pousar a aeronave em segurança, sem desestabilizar o paciente.

Ao serem questionados sobre sentirem-se pressionados em terminar um voo ou ter que alternar para outra localidade com paciente a bordo, sete pilotos (P1, P2, P4, P6, P8, P9 e P10) relataram sempre pensar na segurança do voo e no gerenciamento da cabine em primeiro lugar, mas que se sentem pressionados devido à situação do paciente, da meteorologia e pela empresa de transporte aeromédico. Cinco pilotos (P3, P7, P11, P5 e P12) disseram que nunca sentiram esta pressão. Seguem alguns trechos das respostas.

Segundo P4, “quando o paciente está muito grave, acaba tendo pressão, pois se a gente retornar, ele pode morrer; mas tem que ter consciência no gerenciamento da cabine, para não afetar a segurança; então nunca forçar um pouso quando o teto está baixo, sempre pensando na segurança do voo”. De acordo com o participante P7, “não, dentro desta parte nós temos que pensar na segurança do voo, você tem que analisar todos os fatores com base na segurança do voo. Nunca forçar além do que nossos recursos nos proporcionam”.

Transportar um paciente frágil pode ser uma tarefa estressante para os pilotos. Segundo a FAA (2016) e Harris, Scheiderer (2011), os profissionais precisam apresentar o máximo de agilidade e, eventualmente, lidar com as condições meteorológicas precárias. Nesses momentos, é necessário o manejo de respostas emocionais ansiogênicas de forma a não afetar a segurança do voo. Otimizar e dividir tarefas nessas situações pode ser uma boa estratégia para diminuir a carga de trabalho e o impacto dos estressores no desempenho.

Ao serem questionados se já decolaram de uma localidade mesmo sabendo que o destino estava com tempo ruim, devido à gravidade do quadro do paciente transportado, a maioria dos participantes (P1, P2, P4, P6, P8, P9, P10 e P12) disse que sim. Quatro pilotos (P3, P5, P7 e P11) disseram que não. Seguem os relatos dos pilotos sobre o assunto.

De acordo com P12 “sim, já aconteceu devido à solicitação da empresa [de] apressar a decolagem para ir buscar um paciente em uma localidade com a meteorologia ruim. Nessa situação eu me senti tranquilo, eu vou fazer a minha parte, porque até esse momento estamos na margem de segurança, vamos tentar pousar sempre com segurança, se não deu, ok, vamos retornar ou vai para alternativa”. Segundo P2, “já decolei diversas vezes, pois depende do contexto da meteorologia; determinadas localidades eu tenho conhecimento que pode mudar no decorrer do voo”.

Foi perguntado aos participantes se, caso pudessem mudar um fator que deixava o voo aeromédico muito estressante, qual fator seria. Seis participantes (P1, P2, P3, P5, P7 e P12) afirmaram que seriam as atividades em solo do pré-voo e cinco participantes (P6, P7, P8, P9 e P11) mudariam os atrasos do embarque e desembarque ocasionado pelo atraso da chegada da ambulância ao aeroporto. Já P10 mudaria o estresse no embarque e desembarque do paciente. alguns É o que se vê nos relatos a seguir.

Segundo P5, “a correria do voo aeromédico em ter que agilizar demais pode [resultar em] erro, diferente do voo executivo [que] é muito mais calmo, você não precisa fazer com pressa. A gente acelera as coisas no aeromédico porque você está mexendo com vidas; acho que 120 minutos seriam ideal para não ter tanta correria. Mas, é claro, que o paciente precisa ser atendido, ele não está passeando; então, de toda forma, precisa ser mais agilizado”. O participante P6 mudaria o atraso das ambulâncias: “a coordenação das ambulâncias nos terrestres [seria um fator estressante]. Já deixar a ambulância coordenada, para diminuir os atrasos, pois muda os fatores de estresses em 70% a 80%”. O participante P10 sugeriu que houvesse uma maca automática: “a mudança de maca, a gente não precisar ajudar o paciente entrar dentro da aeronave, se pudesse ter uma maca automática que faz a transferência seria ótimo”.

Os relatos dos participantes P6, P7, P8, P9 e P11 sugerem certa frustração quanto aos atrasos das ambulâncias para embarcarem ou desembarcarem o paciente, o que pode, inclusive, aumentar o estresse e a fadiga dos tripulantes. Para Ebermann (2012), níveis elevados de estresse e fadiga podem comprometer a discriminação de estímulos, a consciência situacional e, consequentemente, o processo de tomada de decisão.

Quando questionados se os voos de pacientes com COVID-19 seriam mais estressantes e delicados, todos os pilotos informaram que gerava muito estresse e deram notas entre 5 a 10. Quando perguntados sobre os EPIs atrapalharem o gerenciamento de cabine, quatro pilotos (P3, P4, P5 e P8) falaram que não atrapalhava e oito pilotos (P1, P2, P6, P7, P9, P10, P11 e P12) disseram que afetava o gerenciamento de cabine. Seguem alguns trechos das entrevistas.

Segundo P12, “no começo eu diria 10, era tudo muito novo, a gente estava assustado, mas por agora eu diria 8 a 9, pois a gente já sabe os macetes do voo, com os procedimentos, sabemos como lidar com a situação; tem que tomar muito mais cuidado. O embarque é bem cuidadoso; [com] o paciente tossindo, você fica pensando que ele contaminou o avião inteiro. Os fatores com os desconfortos com EPIs atrapalham na fonia; eu não uso o óculo porque atrapalha muito na visibilidade; você tem que pensar no voo e pensar que tem que ser cauteloso com a roupa”. Segundo P10, “daria 8 porque aquela roupa é bem desconfortável, sua performance é reduzida, sua mobilidade é reduzida e é muito quente, parece que você saiu de uma sauna, você transpira muito, fica bem cansado”.

Todos os pilotos relataram que os voos com pacientes infectocontagiosos (com COVID-19, por exemplo) são muito estressantes e geram desconforto não só pelo medo do contágio, mas também pela necessidade do uso de EPIs. Bhattacharya et al. (2020), Carius (2020) e Liew (2020) afirmam que o uso de EPIs é essencial para proteção dos pilotos contra doenças contagiosas como a COVID-19, mas, ao mesmo tempo também tem sido um dos fatores que aumentam o estresse do voo. A perda de mobilidade, o desconforto e a desidratação contribuem para aumento do estresse, o que pode dar margem para erros e falhas.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados do presente estudo sugerem que os voos de transporte de enfermo parecem ser mais estressantes, se comparados aos voos executivos, principalmente quando se trata de um transporte de um paciente em situações críticas ou com quadros contagiosos.

A literatura que discorre sobre os estressores aos quais a tripulação de cabine dos voos aeromédicos é exposta ainda é escassa. No entanto, pode-se verificar que entre as situações mais estressantes para os pilotos estão: o transporte de uma pessoa em estado crítico, que pode se desestabilizar durante o voo; o transporte de pacientes infectocontagiosos, que podem colocar a vida dos profissionais envolvidos em risco; o transporte de recém-nascidos e de pacientes com fraturas na coluna vertebral; a necessidade de eficiência e agilidade; e o tempo escasso para executar os procedimentos do voo.

Sugere-se que novos estudos sejam conduzidos visando compreender os riscos da exposição continuada dos pilotos aos estressores do voo aeromédico e se os tripulantes podem chegar na fase de esgotamento com menos tempo voado em comparação aos voos executivos. Tais mapeamentos são importantes para que haja um aumento não só da segurança de voo, como também do paciente transportado.

Tendo em vista que muitas missões ocorrem na madrugada e que este fator pode desregular o ciclo circadiano dos pilotos – e, assim, propiciar o aumento da fadiga dos profissionais e diminuir a velocidade de suas respostas frente a estímulos que se apresentem durante o voo –, sugere-se a elaboração de um estudo voltado para o descanso controlado, sem prejuízo de outras pesquisas contendo o levantamento mais amplo dos demais gargalos desse serviço de transporte, aqui levantados, ampliando-se a amostragem para um número maior de pesquisados. Eventuais apontamentos decorrentes de novos estudos podem, por certo, impulsionar propostas de mudanças em nível nacional, com vistas à melhora das condições de trabalho dos pilotos, minimizando, assim, as chances de eventos aeronáuticos indesejáveis.

REFERÊNCIAS

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APÊNDICE – REFERÊNCIA DE NOTA DE RODAPÉ

3. O voo padrão pode ser entendido como aquele que segue mais à risca os procedimentos estabelecidos pela fabricante da aeronave, pela empresa e pelos órgãos reguladores.

[1] Graduação em andamento em Ciências Aeronáuticas.

[2] Orientadora. Doutorado em Ciências do Comportamento.

Enviado: Março, 2021.

Aprovado: Maio, 2021.

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Henrique Rodrigues Raggiotto

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