ARTIGO ORIGINAL
ROSA, Joris Oliveira [1], AZEVEDO, Wagner Felipin [2], FLORÊNCIO, Rodrigo Pereira de Souza [3]
ROSA, Joris Oliveira. AZEVEDO, Wagner Felipin. FLORÊNCIO, Rodrigo Pereira de Souza. Epidemiologia do trauma ortopédico pediátrico em um hospital público. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 03, Ed. 12, Vol. 01, pp. 166-173 Dezembro de 2018. ISSN:2448-0959
RESUMO
Objetivos: o desenvolvimento deste trabalho foi motivado pela escassez de estudos que tratam do trauma na população pediátrica brasileira. Nessa perspectiva, temos como objetivos: 1) analisar a incidência de traumas ortopédicos em crianças tratadas cirurgicamente no maior serviço de traumatologia de Mato Grosso; 2) comparar o acometimento segundo a faixa etária, sexo, mecanismo de trauma, localização anatômica e a representação casuística da cidade de origem; 3) auxiliar no direcionamento político educativo e de prevenção de traumas pediátricos. Materiais e métodos: trata se de um estudo retrospectivo transversal e observacional, onde os dados foram colhidos a partir de prontuários do setor pediátrico do maior hospital de referência em trauma do estado de Mato Grosso, no período de janeiro de 2017 a agosto de 2018. Resultados e discussão: a parcela de adolescentes entre 12 a 15 anos foi mais frequente (66,48%), sendo o maior fator de preocupação a taxa de acidentes no trânsito (24,79%). Enquanto nas crianças de 0 a 12 anos a quantidade de traumas foi um pouco menor (33,52%), sendo a maioria nesta faixa etária relativos a queda da própria altura (57,38%). Analisando os dados, e confrontando com outras pesquisas, observamos que os traumas pediátricos da nossa região são equivalentes aos registros de outros trabalhos feitos pelo país e pelo mundo. Partindo desta premissa, podemos implementar medidas de segurança já difundidas em outros centros e até mesmo desenvolver novas estratégias que evitem grande parte dos acidentes. Conclusão: tão importante quanto o tratamento precoce e adequado do trauma, a prevenção é imperativa. As crianças menores devem sempre estar acompanhadas de um adulto responsável a fim de evitar acidentes domésticos, e os adolescentes precisam ser conscientizados sobre a educação no trânsito.
Palavras chave: traumatologia ortopédica, epidemiologia, crianças, adolescentes.
INTRODUÇÃO
O traumatismo é a principal causa de morte em jovens no mundo[1], e para cada morte, quatro crianças desenvolvem sequelas permanentes[2]. Apesar de raramente serem fatais (quando isoladamente), os traumas ortopédicos podem acarretar sérios danos funcionais[3], prejudicando diretamente o desenvolvimento biopsicossocial da criança. Considerando estes fatos, torna-se necessário um melhor entendimento sobre o assunto, identificando fatores causais, perfil epidemiológico do paciente e da lesão, para que possamos traçar melhores estratégias para sua prevenção e tratamento. Nosso trabalho foi realizado com amostra de pacientes atendidos entre janeiro de 2017 e agosto de 2018, e foram considerados apenas os casos que evoluíram para tratamento cirúrgico. Observamos que a maioria dos pacientes são adolescentes, e nestes, o número de acidentes de trânsito é bem maior em relação as crianças. Os membros superiores foram mais acometidos e a lesão mais frequente é a fratura de antebraço. Apesar do hospital receber pacientes de todo o estado, a grande maioria é originada da capital. Diante as dificuldades que encontramos num serviço custeado pelo SUS (Sistema Único de Saúde), achamos relevante elaborar este estudo, inédito em nossa região, a fim de identificar os problemas e propor soluções práticas.
MATERIAIS E MÉTODOS
Realizamos um estudo retrospectivo transversal e observacional durante janeiro de 2017 e agosto de 2018 no maior centro de traumatologia do estado de Mato Grosso, Hospital e Pronto Socorro Municipal de Cuiabá. Analisamos os prontuários do setor de ortopedia pediátrica da instituição e os critérios de inclusão no estudo foram: crianças com 1 dia de vida a 15 anos de idade, pacientes atendidos e internados com proposta de tratamento cirúrgico. Foram excluídos os pacientes cujo diagnóstico não foi decorrente de trauma e os casos onde o tratamento foi conduzido conservadoramente.
Todos os 182 pacientes incluídos na amostra, foram tabulados em planilha digital e classificados de acordo com a faixa etária, sexo, tipo de lesão, bem como foram descritos os mecanismos que levaram à ocorrência do trauma e a cidade de origem. Baseado nestes dados, foi levantado o perfil da lesão conforme o sexo do paciente, o mecanismo de trauma mais frequente para a faixa etária e a prevalência da cidade de origem.
Tabela 1 – Frequência das lesões separadas por diagnóstico conforme o sexo.
Diagnóstico | Feminino (%) | Masculino (%) | Total das lesões (%) |
FCC no antebraço | 2 (1.10) | 2 (1.10) | 4 (2.20) |
FCC na mão | 2 (1.10) | 5 (2.75) | 7 (3.85) |
FCC no pé | 0 (0.00) | 1 (0.55) | 1 (0.55) |
FCC no joelho | 0 (0.00) | 2 (1.10) | 2 (1.10) |
FCC na perna | 0 (0.00) | 2 (1.10) | 2 (1.10) |
Ft no antebraço | 5 (2.75) | 32 (17.58) | 37 (20.33) |
Ft na pélvica | 1 (0.55) | 0 (0.00) | 1 (0.55) |
Ft na clavícula | 5 (2.75) | 3 (1.65) | 8 (4.40) |
Ft no cotovelo | 3 (1.65) | 5 (2.75) | 8 (4.40) |
Ft no fêmur | 6 (3.30) | 13 (7.14) | 19 (10.44) |
Ft no joelho | 2 (1.10) | 3 (1.65) | 5 (2.75) |
Ft na mão | 2 (1.10) | 10 (5.49) | 12 (6.59) |
Ft no pé | 4 (2.20) | 2 (1.10) | 6 (3.30) |
Ft no punho | 4 (2.20) | 16 (8.79) | 20 (10.99) |
Ft no quadril | 1 (0.55) | 4 (2.20) | 5 (2.75) |
Ft sup. de úmero | 1 (0.55) | 7 (3.85) | 8 (4.40) |
Ft na tíbia | 4 (2.20) | 15 (8.24) | 19 (10.44) |
Ft no tornozelo | 2 (1.10) | 6 (3.30) | 8 (4.40) |
Ft no úmero | 2 (1.10) | 5 (2.75) | 7 (3.85) |
Politrauma | 0 (0.00) | 3 (1.65) | 3 (1.65) |
Total de lesões por sexo | 46 (25.27) | 136 (74.73) | 182 (100.00) |
Fonte: Prontuários do setor pediátrico de janeiro de 2017 a agosto de 2018, Hospital e Pronto Socorro Municipal de Cuiabá.
FCC: ferimento corto contuso; Ft: fratura; Ft sup. de úmero: fratura supracondiliana de úmero.
RESULTADOS
No período de abrangência do estudo, observamos 182 lesões traumáticas em crianças e adolescentes, compreendidos na faixa etária de 0 a 15 anos, que precisaram ser internadas para tratamento cirúrgico ortopédico. De toda essa amostra, contabilizamos 136 (74,73%) pacientes do sexo masculino e 46 (25,27%) do sexo feminino (Tabela 1). Dividimos os pacientes por faixa etária separando as crianças (0-11 anos) dos adolescentes (12-15) e verificamos a maior incidência de trauma ortopédico entre os adolescentes com 121 (66,48%) casos contra 61 (33,52%) crianças. Os membros superiores foram mais acometidos, somando 111 (60,99%) casos contra 69 (33,52%) dos membros inferiores e 2 (1,10%) casos de politraumatismo em que houve lesões múltiplas envolvendo mais de um sistema corpóreo.
De todas as lesões a mais frequente foi a fratura de antebraço com 37 (20,33%) casos, seguido de fratura de punho com 20 (10,99%) casos.
Sobre o mecanismo de trauma mais frequente obtivemos a contagem de 98 (53,84%) casos que envolvia a queda da própria altura (escorregão, tropeço, queda durante corrida ou prática esportiva), seguido de 35 (19,23%) casos de acidente de trânsito (atropelamento, colisões de veículos) que em sua maioria, em 21 casos (60,00%), envolvendo motocicletas e, em menor quantidade, 30 (16,48%) casos de queda de nível (escada, cadeira, sofá, árvore, muro…). Ainda tivemos 16 (8,79%) casos de acidentes com utensílios domésticos (facas, espetos, caco de vidro…) causando ferimentos corto contusos sem fratura associada e 2 (1,09%) casos de agressão física.
Considerando a procedência dos pacientes, verificamos que a grande maioria dos casos 133 (73,07%) são da capital, e o restante, 49 (26,92%), representam os casos das cidades do interior do estado somadas. (Gráfico 2).
Gráfico 1 – Frequência relativa dos mecanismos de trauma conforme a faixa etária.
*Acidente de trânsito (M): acidente de trânsito envolvendo motocicletas.
DISCUSSÃO
Cumprindo os objetivos propostos, após análise estatística, não há como negar que o trauma pediátrico é um problema de saúde pública[4] e, estudos epidemiológicos nessa perspectiva, escassos em nossa região, se mostram de grande importância para elaboração de programas de prevenção a acidentes.
Nosso trabalho demonstrou incidências equivalentes a outros trabalhos em relação ao sexo, onde verifica-se que os meninos são mais frequentemente traumatizados[5]. E o segmento mais acometido, o antebraço[5]. (Tabela 1). Da mesma forma, constatamos que quando o trauma gera fratura, na maioria das vezes é causada por queda da própria altura, seguindo o padrão encontrado em outros estudos no mesmo âmbito[6].
Devido às características relativas a faixa etária estudada, optamos por separar as crianças dos adolescentes, que segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069, de 1990, considera criança até 12 anos de idade incompletos e define a adolescência como a faixa de 12 a 18 anos de idade[7]. Sendo assim, entre os adolescentes observamos uma maior incidência de acidentes de trânsito (24,79%), em relação à pequena ocorrência entre as crianças (8,20%). (Gráfico 1). Fato este pertinente pois vai de acordo com estatisticas da OMS (Organização Mundial de Saúde), que diz que o acidente de trânsito é a maior causa de mortalidade entre os adolescentes de 10 a 19 anos[1,8], estatísticas que podem estar relacionadas com o aumento do número de motocicletas que foi em torno de 61% nas últimas duas décadas, proporcionadas pelo baixo custo, facilidade no financiamento e de manutenção[9,10].
Segundo Abib, a maioria dos acidentes são preveníveis[11] e, quando se trata de acidentes domésticos, podemos evitá-los utilizando medidas simples como grades e telas de proteção, não acomodar cadeiras ou assentos perto de janelas e escadas, instalar superfície antiderrapante em degraus, e principalmente, nunca deixar a criança sem companhia de um adulto. Entre os adolescentes e as crianças maiores, que já tem autonomia para andar sozinhas, a maior preocupação são os atropelamentos e, nesses casos, a melhor precaução é ensinar regras básicas de educação no trânsito como atravessar na faixa de pedestre e olhar para os dois lados da via[11].
Analisando a procedência dos pacientes notamos que a maioria é da capital, porém a quantidade de pacientes vindo do interior é expressiva (Gráfico 2). Considerando a limitação de estrutura física e profissional do serviço, que já estaria defasada apenas com os pacientes do próprio município, a situação acaba piorando com a recepção dos pacientes do interior, o que causa uma frequente superlotação, tendo habitualmente pacientes acomodados nos corredores da instituição. Fato este que nos faz refletir sobre a necessidade urgente de criação de um plano de reestruturação da saúde pública visando descentralizar o atendimento de certas especialidades médicas e serviços de alta complexidade, corroborando assim para melhoria da qualidade e facilidade do acesso ao tratamento.
Gráfico 2 – Distribuição de pacientes por cidade.
*Os pacientes do interior do estados somaram 49 casos, representando 23 cidades.
CONCLUSÃO
Os traumas acometeram mais pacientes do sexo masculino, sendo as fraturas de antebraço a lesão mais frequente. O mecanismo de trauma mais relatado foi a queda da própria altura, tanto nas crianças mais jovens quanto em adolescentes. Nestes últimos, porém, os índices de acidente de trânsito é mais preocupante. Não houve divergência estatísticas comparando nosso resultado com outros trabalhos semelhantes. Observamos a necessidade de implementar políticas socioeducativas que previnam o trauma, uma vez que o tratamento frequentemente esbarra em déficits estruturais do nosso sistema de saúde.
REFERÊNCIAS
- 2018 Global Reference List of 100 Core Health Indicators (plus health-related SDGs). Geneva: World Health Organization; 2018, p. 21
- Yaster, M: Haller, J. A. Multiple trauma in the pediatric patient. In: Mark CR. Textbook of pediatrics intensive care. v.2. Baltimore: Willians & Wilkins; 1987. p.1265-322
- Fregoneze, M; Mecadante, M. T; Teixeira, A; Hungria, J. Neto. Atendimento ortopédico na emergência. In: Coimbra RSM, Solda SC, Casaroli JA, Rasslan S. Emergências traumáticas e não traumáticas. Manual do Residente e do Estudante. São Paulo: Atheneu; 1999. p 97-102.
- Dimeglio, A. Epidemiologia de las fracturas en el niño. In: DePablos J, Gonzalez Herranz, P. Apuntes de fracturas infantiles. Madri: Ediciones Ergon; 1999. p.11.
- Vittas, D; Larsen, E; Torp-Pedersen, S. Angular remodelling of midshaft forearm fractures in children. Clin Orthop Relat Res. 1988; 237: 190–195.
- Worlock, P; Stower, M. Fracture patterns in Nottingham children. J Pediatric Orthop. 1986; 6: 656–660.
- BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 2017. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências, Brasília,DF, jul 1990.
- United Nations Children’s Fund, Hidden in Plain Sight: A statistical analysis of violence against children, UNICEF, New York, 2014, p. 33.
- Vasconcellos, E.A. O custo social da motocicleta no Brasil. Revista dos Transportes Públicos 2008; 30/31:127-42.
- Mello-Jorge, M. H. P; Koizumi, M. S; Tuono, V. L. Acidentes de trânsito no Brasil: a situação nas capitais. São Paulo: Associação Brasileira de Medicina do Tráfego; 2008.
- Abib, S. C. V. Prevenção de Acidentes. In: 1° Fórum de prevenção de acidentes com crianças, São Paulo, 2004.
[1] Médico Residente de Ortopedia e Traumatologia, Hospital Geral Filantrópico Universitário – Universidade de Cuiabá
[2] Médico Residente de Ortopedia e Traumatologia, Hospital Geral Filantrópico Universitário – Universidade de Cuiabá
[3] Médico Ortopedista e Traumatologista, especialista em Videoartroscopia e Cirurgia do Joelho, preceptor do programa de residência médica em Ortopedia e Traumatologia no Hospital Geral Filantrópico Universitário – Universidade de Cuiabá
Enviado: Novembro, 2018
Aprovado: Dezembro, 2018