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Tecendo a clínica com crianças: especificidades da escuta em psicanálise

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

FRANCO, Aline Susie de Moraes [1]

FRANCO, Aline Susie de Moraes. Tecendo a clínica com crianças: especificidades da escuta em psicanálise. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 01, Vol. 03, pp. 121-140. Janeiro de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/tecendo-a-clinica

RESUMO

Este artigo traz especificidades do trabalho clínico com crianças, a fim de oferecê-las escuta pelo viés da psicanálise. Remetendo à reflexão de como a ideia de infância surge e se modifica no decorrer da história até que a criança seja concebida em sua particularidade. Com isso, investigam-se os diferentes lugares que ela ocupava no decorrer da história da família até ganhar espaço na psicanálise com Freud e ser reconhecida como sujeito do desejo, à quem precisa ser escutada e tratada em sua especificidade. Para isso, o artigo se valerá das obras de Philippe Ariès, Sigmund Freud, Charles Melman e recortes de casos clínicos, de forma a colaborar com o tema acordado. É proposto, ainda, que se pense sobre os possíveis efeitos do lugar ocupado pela criança na sociedade e o modo como na prática, a ética da psicanálise atravessa a vida da criança e de seus responsáveis, oferecendo-a um espaço em que é recebida em sua particularidade e escutada para além da criança ideal de seus pais

Palavras-chave: criança, escuta, especificidade, idealização, psicanálise.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo pretende convidar o leitor a refletir, através de Costa-Moura(2015), sobre a temática das especificidades quanto ao oferecimento de escuta à criança e demonstrar a importância de construir um caminho onde esse sujeito criança é protagonista. Apontando a ética da psicanálise como mantenedor de um trabalho sério que envolve não apenas a criança, mas também seus pais/responsáveis.

Para a escrita deste texto, a autora lança mão da experiência como psicóloga-estagiária ao longo da graduação ao discorrer sobre um caso clínico. Pois, desde aquele momento, na prática clínica, encontravam-se crianças em busca de um lugar ao qual pudessem ser escutadas, seja pela linguagem verbal ou através da brincadeira, permitindo-as que construíssem possibilidades de se fazerem sujeito do desejo. O trabalho clínico com crianças foi assim se apresentando a partir do estabelecimento de um vínculo e do reconhecimento de suas particularidades.

Realizar uma discussão sobre essa escuta oferecida à criança remete a apontar e refletir sobre como o sentimento de infância surgiu e se modificou em função das transformações sociais. Sendo o conceito de infância, segundo Philippe Ariès, determinado socialmente e intimamente relacionado ao modo como o ser humano produz modos de existência e o vir a ser da criança. Nesse sentido, a infância pode ser considerada como um advento histórico que repercutiu na imagem que atualmente temos sobre uma criança.

A clínica com crianças retira o analista de certa superficialidade, ao mostrarem, antes mesmo de um conhecimento teórico, que são construídas por um discurso. Mas diferente dos adultos, precisam de um olhar diferenciado e que as condições de trabalho se adaptem as suas especificidades.

Há consenso entre psicanalistas e psicólogos no que se refere a dificuldade da clínica com crianças, pois em todo tempo devem-se questionar quanto a influência da sociedade inferir práticas normatizantes na relação do adulto com a criança, mas é um privilégio poder recebê-las a cada nova sessão. Então, a autora segue adiante na busca por ser alguém que como disse um pequeno paciente, “tem um orelhão e escuta tudo” (sic).

Cabe acrescentar que, naturalmente, o verdadeiro nome dos pacientes e de suas famílias foram omitidos em respeito ao sigilo de suas narrativas pessoais.

2. UM OLHAR SOBRE A CRIANÇA

Seria uma tarefa um tanto incompleta a proposta de falar sobre a especificidade da escuta da criança na psicanálise, sem ater-se a contextualizar minimamente o lugar que ela ocupava conforme as mudanças que ocorreram na história da família ocidental e o surgimento do sentimento de infância.

Contudo, um sentimento superficial da criança- a que chamei “paparicação” –  era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida, enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha. As pessoas se divertiam com a criança pequena como um animalzinho, um macaquinho impudico. Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois uma outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato. (ARIÈS, 1978, p.10)

No prefácio do livro, História Social da Criança e da Família (1978), no qual traz a infância como uma construção social a partir da percepção do adulto sobre ela, Philippe Ariès aponta a transformação da função familiar e da criança na sociedade com o passar dos séculos. Iniciando sua análise a partir da época em que a família não tinha uma função afetiva e o amor não era visto como necessário nas relações conjugais ou entre pais e filhos.

Na Idade Média, em meados do século XVI, o índice de mortalidade infantil era bastante elevado, as condições de saúde eram precárias e as crianças eram direcionadas a curandeiros ao ficarem doentes. Não havia médicos especializados em crianças, pediatras, o que sugere um lugar periférico a elas naquela época.

A criança até então não era concebida como alguém em um período de vida diferente ao do adulto e importante para seu desenvolvimento. O primeiro sentimento de infância foi denominado de “paparicação” e era limitado a fase no qual a criança ainda dependia do manejo físico dos pais, ao que Ariès (1978) identifica como o período no qual a criança ainda não consegue “se bastar”, mas que passando a atravessar essa condição logo era misturada aos adultos e vista como um mini adulto, o que lhe colocava na situação de compartilhar todas as experiências daqueles, já que não havia restrições morais ou legais à ela.

O trecho destacado acima revela que as crianças eram como um ser inacabado, como um animal pequeno e a quem se corrigida normalmente através da agressividade seja física ou verbal, valendo ressaltar que a violência não era algo estranho a elas, sendo o costume de tal época a convivência delas com as tramas do mundo adulto. A criança era algo com um grau elevado de pertencimento aos pais, não era individualizada, e a ela era esperado que desse continuidade a família e a honrasse, como diz um mandamento bíblico, “crescei e se multiplicai”.

Conforme o trecho, “Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso pois, uma outra criança logo

a substituiria” (Ariès, 1978, p.10), o autor relata que o falecimento de uma criança na Idade Média não era nada que atravessava em sofrimento profundo seus familiares, pois logo outra iria nascer e ocupar o lugar dela. O sentimento triste de seus pais não tinha espaço e logo estes se voltariam as outras crianças da família, sendo a falecida “mais uma” em meio a tantas que nascem e morrem numa época em que os índices de natalidade e mortalidade eram muito altos e a fragilidade nessa etapa de vida não era compreendida.

Segundo Philippe Ariès (1978), não pode-se alegar, contudo, que o amor as crianças não existia, mas pode-se dizer que não havia a valorização deste sentimento, era um sentimento “abafado”.

Quando se tinha indícios de que a criança começava a ganhar um pouco mais de independência, passado o tempo de “paparicação”, ela passava a ser vista como um adulto. O que tornava sua infância, sentimento conferido somente as crianças pequenas, um breve momento de vida, sem muito valor para seus pais e sociedade. Não havia garantias de uma passagem gradual a vida adulta, já que sua juventude era ignorada.

Se tornando um pequeno adulto, a criança deixava de conviver com sua família de origem e sua educação se configurava pelo seu contato com outros adultos. Nesse contexto, a família tinha por função conservar os bens e a proteção da honra, enquanto as manifestações e trocas afetivas se davam em meio a comunidade com todo tipo de pessoas e eventos.

Somente no final do século XVII e início do XVIII, a morte de crianças passou a ser auferida com sofrimento e dor, época em que a criança era definida como ingênua e a responsabilidade de educar estava sob a própria família, assim o sentimento de apego a ela passou a ser maior, mesmo que essa ainda fosse considerada como um entretenimento aos pais.

A mudança com relação ao sentimento de infância ocorre devido ao cristianismo, que através do que estudavam nas sagradas escrituras passaram a discutir e enxergar as crianças como seres angelicais e os mais próximos a alcançarem salvação. Nesse momento, a infância se tornou um tempo de zelo, amor, apego e proteção que se estendia às crianças maiores. Assim, o amor passou a ser discursado, valorizado e o movimento da Igreja e das famílias se endereçavam à primeira comunhão, à educação e à moral.

Era preciso ter domínio sob os aprendizados considerados nesse momento como imorais, aprendizados que elas haviam adquirido em sua convivência com os adultos enquanto não eram particularizadas pois, a importância da moral se inscrevia, e a Igreja com os moralistas tomavam partido de sua importância na educação.

3. UMA CLÍNICA DE ESPECIFICIDADES

Na experiência clínica com crianças, pode-se perceber e encontrar na literatura psicanalítica de Costa-Moura (2015) que o atendimento à criança não se constitui como uma especialidade, mas como uma clínica que possui especificidades. Sendo essas especificidades que possibilitam a criança enquanto sujeito, iniciar e dar continuidade ao trabalho clínico.

Pires (2016) em “Precisamos falar com as crianças”, diz que na clínica, os profissionais são confrontados frequentemente por pais que buscam soluções e explicações sobre a causa dos sintomas dos filhos, demanda que acompanha outra que se torna com o passar do tempo tão angustiante quanto a primeira, eles costumam esperar que o tratamento dure um breve intervalo de tempo. O que Pires (2016) alega como causa dessas demandas, o afeto. Já que a sociedade contemporânea é afetada pela ideia de preservar e proteger a criança.

Nesse ponto, uma das especificidades é a não-demanda de atendimento pela própria criança que é trazida, porque interpretam que algo não vai bem em seu desenvolvimento, comportamento. Estando a demanda de atendimento evidentemente relacionada aos pais, que também enfrentam dificuldades ao não ter em seu filho a imagem correspondente a sua idealização.

Para a psicanálise é importante a implicação dos pais no tratamento de seu filho para que seja possível o trabalho terapêutico, além de ser eles os responsáveis, em geral, por levar a criança que ainda não tem autonomia o suficiente para ir ao psicólogo, desacompanhada. Somado a isso, é fundamental, no trabalho com os pais, ouvi-los; escutar de onde falam e qual lugar a criança ocupa em sua fala.

Sendo assim, considera-se que o manejo do vínculo transferencial com os responsáveis pela criança é de suma importância para a continuidade do trabalho clínico. Além disso, de forma alguma poderia ser omitido aqui, que estes têm certa relação com os sintomas da criança.

Compreende-se a partir de Lacan (2003) que a criança manifesta um sintoma que é o representante da verdade familiar, mesmo ela tendo parte neste sintoma. Então, para que o tratamento caminhe é importante oferecer escuta a esses responsáveis e possibilitar que em algum momento eles se questionem quanto a sua posição, quanto ao que surgiu como demanda por atendimento, o que nem sempre é fácil e requer vínculo.

É na experiência com criança, que pode-se observar a partir da inclusão dos pais, do trabalho de escuta, uma mudança em relação à forma que essa família se coloca frente as suas questões. Mas para isso é preciso assegurar que o espaço e o tratamento são da criança.

Ainda sobre o sintoma apresentado pela criança, podemos dizer que além da preocupação e toda ordem de sentimentos afetivos por ela, o mesmo remete a uma verdade que circula na organização familiar, o que favorece a busca pelos responsáveis de tratamento para seus filhos e também o surgimento de resistência.

A criança expressa pelo sintoma essa verdade que “não deveria” ser vista e estes responsáveis serão convocados ao questionamento de suas respectivas posições. A autora lembra-se que há um tempo a mãe de um menino se queixava diversas vezes sobre seu filho querer sempre estar dormindo, por não se interessar em ter relações sociais e remeter a ela ações que facilmente poderiam fazer como, por exemplo, pegar ao seu lado um copo d’água, que não lhe sendo entregue em mãos, optava por ficar o dia inteiro com sede.

Era visível que seu filho não se interessava por nada e por diversas vezes falava as mesmas palavras de sua mãe, além de quase todas as semanas vê-los dormindo juntos na sala de espera.

Um dia a mãe chega ao atendimento, envergonhada e assustada, e relata seus pensamentos mais profundos. Pegou-se pensando em quem iria ao enterro de seu filho, dizendo que por vezes pensa na morte dele, mas mesmo brigando com si mesma a respeito disto, não consegue se controlar. Freud desde a inauguração da psicanálise até suas últimas contribuições a ela não defendeu uma psicanálise propriamente infantil, mas sinaliza que assim como com os adultos seria possível um tratamento com crianças, em 1909 ao publicar o trabalho sobre o caso de fobia em um menino de cinco anos, o pequeno Hans, mostrando em riquezas de detalhes que a criança tem produções inconscientes, o que viabiliza o tratamento psicanalítico.

No entanto, Costa-Moura (2015) aponta que para efeito do trabalho psicoterapêutico com crianças é preciso adequar a técnica, criar condições na prática e compreender que a clínica com elas, produz suas particularidades, o que a diferencia do trabalho clínico com adultos.

A obra de Freud se tornou referência ao indicar que há possibilidades e limites na clínica com crianças, modulando a técnica da psicanálise e descobrindo uma possível relação dos pais no sofrimento psíquico de seus filhos. Sobre isso, Costa-Moura (2015) revela que, “esta constatação nos remete a uma dimensão temporal que exige dos analistas o trabalho de divisar em cada caso o que pode ser a singularidade da experiência analítica com aquela criança”. (n.p)

Segundo Costa-Moura (2015), Freud considera o caso Hans como um trabalho em psicanálise, o qual Hans era afetado e determinado pelo o que a palavra o causava, mas como dito anteriormente, entende que a clínica com criança se sustenta pelas singularidades, o que traz para a prática clínica diversas especificidades. A autora faz menção a uma diferença existente entre a criança e o adulto em análise, mesmo que na experiência analítica o que se trata é o sujeito do inconsciente, sendo este atemporal.

3.1 PAIS E FILHOS: UMA RELAÇÃO CONFLITANTE

O tempo da criança é o tempo de uma entrada no mundo, de uma construção marcada pelo momento em que tudo está “por se fazer” e, simultaneamente, por uma urgência que nos impõe passos enormes e tão decisivos como aprender a andar, a falar, a ler e escrever.  É um tempo de abertura, de titubeios, e também de precipitações e definições, que virão a se confirmar na adolescência, mas cujas premissas, as bases, se estabelecem aí. (PIRES, 2016)

Pires (2016) traz, em suas palavras, a infância como um momento de inauguração, transformações e construção de uma base para a vida do sujeito. Afirmando em seu texto, “Precisamos falar com as crianças” (2016), que essa entrada no mundo não é automática, ela caminha aos poucos pelas descobertas e desafios da vida.

Entretanto, nada que ocorre nesse momento se faz sozinho, sem a presença de um Outro. Tem-se então uma espécie de “parceria” com este Outro que é simbólico e também com o Outro real que se configura na figura de seus pais, tendo estes uma relação na constituição de seu filho enquanto sujeito desejante, sejam aqueles biológicos ou não.

Em “O adolescente e o Outro” (2004), Sonia Alberti diz que o tempo da criança é tido como a fase em que se inscreve os caminhos pelos quais ela vai andar no decorrer de sua vida, mas é na adolescência que estes caminhos podem se firmar, sendo a adolescência um momento difícil e de longa elaboração em que se tomam importantes decisões como, a carreira profissional, um posicionamento na partilha dos sexos e a elaboração da falta no Outro.

Ressalta, ainda, a importância dos pais para que eles consigam fazer uma travessia possível por essa fase não como pais perfeitos pois, basta que eles se coloquem junto a criança e mesmo que em sua concepção cometam falhas, persistam em estar com elas.

Sabendo, então, que a criança se acha no tempo em que tudo está “por se fazer”, como diz Pires(2016), cabe ao artigo falar das especificidades do atendimento com ela, a começar pela presença destes pais que promovem o cuidado desde o nascimento de seus filhos.

Meu caro Professor: estou-lhe enviando mais alguma notícia a respeito de Hans, só que desta vez, lamento dizê-lo, se trata de material para um caso clínico. Como o senhor verá, nesses últimos dias ele vem apresentando um distúrbio nervoso que nos tem preocupado muito, a mim e minha esposa, pois não temos sido capazes de encontrar meio algum de corrigi-lo. Tomarei a liberdade de ir vê-lo amanhã… mas por enquanto… junto os apontamentos que fiz sobre o material de que dispunha. (FREUD,1909, p,11)

Freud (1909) constrói uma narrativa sobre a vida de Hans, deixando explícito desde os primórdios da clínica com crianças, a importância da presença dos pais no tratamento.

Ainda que a análise de Hans não tenha se dado de um modo convencional, sendo possibilitada através dos relatos e intervenções do pai de Hans, um admirador da psicanálise, de certa maneira marca a forma peculiar da psicanálise com crianças. Freud não falou de um modo direto sobre as especificidades, mas elas podem ser encontradas nos diversos trabalhos de seus sucessores, são elas: a presença dos pais, a brincadeira, o sintoma e a ética no tratamento de crianças.

Em um determinado momento, Freud (1909) se viu convocado por muitos que se interessavam sobre a descoberta da psicanálise e pelo retorno ao infantil que ela apontava, passando a encorajar seus alunos a observarem e reunir relatos sobre o comportamento sexual das crianças. Dentre eles, surgiu relatos a respeito de Hans, um menino no qual Freud tempos depois publicaria um importante caso clínico, “Análise de uma fobia em um menino de 5 anos” (1909).

Falar sobre os caminhos pela psicanálise com criança, é falar ainda que não diretamente da presença de um outro, tendo em vista que por diversos fatores não se vê uma criança indo buscar pelo seu próprio atendimento e batendo às portas do consultório sem que tenha sido levada por um terceiro que, em geral é quem faz a queixa principal.

Lowenkron, indica isto como o primeiro aspecto da psicanálise com criança, “o atendimento não se inicia por iniciativa de quem vive subjetivamente o fenômeno que motiva a consulta” (2011, p.14). Seus responsáveis utilizam de sua percepção para avaliar se há alguma desordem no funcionamento da criança e com isto procuram atendimento, então são os primeiros a avaliarem.

A experiência no tratamento de crianças para Pires (2016) é marcada pela demanda não só da família, mas também de escolas e médicos nos quais comparece um pedido insistente de diagnóstico para tamponar algum comportamento difícil apresentado pela criança em vez de buscarem causas variadas que não sejam transtornos.

Pires (2016) compreende que os sintomas e o funcionamento do psiquismo não são reduzidos a um comportamento, ressaltando que a vida psíquica por sua complexidade requer uma leitura pelo viés da clínica.

Sendo assim, há algo a mais em que os pais tomam parte.

3.2 O TRABALHO COM OS PAIS: O IMPRESCINDÍVEL NA PSICANÁLISE COM CRIANÇAS

É incontestável que na clínica com crianças é preciso chamar os pais para alguns encontros iniciais a fim de situar a queixa que determinou a procura por tratamento. Além de realizar o contrato e rever, caso seja necessário, algumas considerações acerca do trabalho clínico com a criança.

Em muitos casos, ainda nas entrevistas preliminares, alguns pais já demonstram enxergar que sabem sobre sua participação nos sintomas apresentados pelos filhos, como também revelam através de seus atrasos e faltas sua dificuldade em dar início e continuidade ao tratamento destes. Sobre isto, nos vale lembrar que o real muitas vezes é amedrontador e a resistência desses pais não será algo ausente no tratamento, mas andará lado a lado com a transferência (Freud,1932-1936).

Mas, que coisa cria a resistência, e contra o que, ela se dirige? A resistência é, para nós, o sinal mais seguro de um conflito. Deve haver aqui uma força que procura expressar algo e outra força que se esforça por evitar sua expressão. (FREUD, 1932-1936, p, 24)

Segundo Priszkulnik (1995) ao psicoterapeuta confere a responsabilidade de proceder de forma singular a partir de cada relação transferencial com a família. Muitas vezes a resistência dos pais aparece em relação ao pagamento, ao ciúme do analista e neste ponto é preciso ter cautela e se dispor a escutar os pais com a finalidade de trabalhar suas resistências em relação ao tratamento da criança, manejando a transferência e fazendo intervenções de forma que este também consiga sustentar o tratamento clínico de seu filho.

A família não está imune de sentir dificuldades em lidar com as questões que surgem no decorrer da análise de seus filhos pois, as questões que a impulsiona a procurar tratamento para seu filho também a atravessa, fere seu narcisismo (PRISZKULNIK,1995).

Neste ponto, percebemos na escuta clínica que enquanto alguns pais buscam a psicoterapia para seus filhos com o apelo, “O corrija!”, outros se apresentam desimplicados, principalmente quando a demanda de atendimento foi devido a encaminhamentos judiciais ou escolares e ao serem questionados sobre sua procura, alegam: “A Vara da infância que mandou vir aqui” ou “A escola falou e eu trouxe”. Não demandam, não sustentam uma queixa, muitas vezes sua busca pelo atendimento é demarcada em sua fala como um cumprimento de um comando externo.

Sendo assim, o analista deve trabalhar com esses pais a fim de surgir uma demanda própria, deles se questionarem quanto ao que foi percebido pela instituição que o encaminhou. O que nem sempre se estabelece e está sujeito a acontecer em um momento indeterminado pelos analistas. Pois, como compreendido através de Costa-Moura (2015) a psicanálise é a clínica do “caso a caso”.

A partir desse entendimento, não se pode negar que a presença dos pais é algo peculiar à clínica com crianças, mas como manter a oferta de uma escuta a eles sem que o analista se transforme em analista dos pais?!

A psicanálise Freudiana revela que no decorrer do trabalho clínico, o analista deve saber manejar a transferência. Portanto, convidar os pais para entrevistas quando tiver alguma finalidade a respeito do tratamento da criança, colher informações sobre a gravidez, o nascimento, as relações sociais dela, e outras questões sobre o funcionamento dessa família são imprescindíveis. Através delas será possível ao analista, traçar as orientações necessárias às mudanças na realidade que favoreceriam à criança.

A escuta dos pais surge, então, com a utilidade de redimensionar os problemas que tanto o filho quanto eles próprios enfrentam ao procurar análise. Não se trata de responder a demanda sobre o motivo do sintoma, o que e quando fazer.

Se esta demanda não recebe resposta e se os pais começam a falar da vida deles, aos poucos surge a “outra” dificuldade, uma dificuldade deles em relação à própria vida; é a “escuta” psicanalítica permitindo re-situar a “dificuldade” que começa como sendo com o filho e termina sendo com a própria vida deles. (PRISZKULNIC, 1995, p, 100)

O papel do analista segundo Priszkulnic (1995) não é o de aconselhá-los a agir desta ou daquela maneira, e sim de tornar possível a potencialização dos pais, ressituando-os como os responsáveis da criança. É colocando-se ao nível do tratamento da criança que a mensagem dos pais deve ser recebida sem que haja julgamento e amparada pelo que concerne ao sigilo. De outra forma, o caminho mais breve seria o da interrupção e desistência do tratamento.

Ainda sobre essa questão é preciso favorecer que os pais encontrem no analista do filho, alguém com quem consigam dividir seus impasses, dificuldades da própria posição de ser pai/mãe.

Negligenciar a demanda dos pais, não propiciar a transferência, não se colocar disponível a escutá-los ou agir de modo não compatível à psicanálise, faz com que eles responsabilizem o próprio analista pelo fracasso e interrupção do tratamento, mesmo sendo um movimento de resistência.

Assim, segundo Priszkulnic (1995) a intervenção na clínica com a criança irá depender do nível de transferência que foi estabelecido com os pais. Nesse sentido, é preciso trabalhar o comprometimento dos pais com o trabalho clínico dos filhos, mas assim como surge resistência na criança, também surge nos neles.

4. SINTOMAS NA INFÂNCIA: QUANDO O SINTOMA FAZ FALAR O SUJEITO

Na XVI conferência de Freud (1915-1916) sobre o sentido dos sintomas, ele inicia seu texto contrapondo a forma de olhar o sintoma pela abordagem psiquiátrica e psicanalítica, relatando que enquanto a psiquiatria pouco se atenta para o conteúdo manifesto do fenômeno, a psicanálise o valoriza.

Sigmund Freud aparece aqui sustentando sua afirmativa de que existe um sentido para o sintoma e este tem conexão com as vivências de cada paciente. Reconhecendo a singularidade de cada sujeito, bem como as diferentes características entre o neurótico obsessivo e o histérico.

O interesse preciso de Freud àquilo que seria o “resto” para a medicina, as histéricas, define um caminho para a psicanálise a partir do olhar sob os sintomas corporais que ganhavam tratamento na hipnose com Breuer. No entanto, foi pela sensibilidade e disponibilidade em escutar Anna O que Sigmund Freud funda a psicanálise.

Escutando os pacientes sobre seus sintomas, Freud em 1926 ao escrever, “Inibições, sintomas e angústia”, define o sintoma como um sinal substituto de uma satisfação pulsional que se manteve em estado latente, uma consequência do processo de recalque. O sintoma é esse verdadeiro substituto e derivado do impulso recalcado, executando o papel do que foi recalcado e renovando com o tempo suas exigências de satisfação.

Ao fazer uma correlação com o caso do pequeno Hans, tem-se que o medo por cavalos que era algo sem explicação lógica era o sintoma que desencadeou sua inibição em sair a rua, uma restrição que o Hans impusera a si mesmo para evitar que seu sintoma relançasse sobre ele sua ansiedade. Assim como foi relatado no caso Hans, o sintoma surge como uma tentativa de defesa ao eu.

Não estariam esses sintomas deficitários essencialmente ligados a uma neurose atual, ligada a esses Outros reais que são os pais, ainda que, como suspeitamos, caberia pensar que a neurose atual se acha de certo modo tecida(…). (MELMAN, 1986, p, 215)

Charles Melman (1986) em “Infância do sintoma”, se refere a Freud e Lacan, analisando o sintoma da criança a partir da relação com a neurose atual, uma neurose constitutiva da subjetividade dela que diz respeito à algo que surge do ideal de filho que os pais insistem em esperar ter. Tornando uma espécie de exigência feita a ela que, no entanto, se tudo ocorrer bem, receberá esta mensagem não como algo direto, mas uma mensagem invertida que não produz na criança uma realização total da idealização dos pais, criando muitas vezes formas de se proteger disto, como uma dificuldade em sua capacidade escolar, entre outros.

Em “O tratamento psicanalítico com criança” (2015), a relação constitutiva seria entre a criança e o Outro, este sendo da ordem do simbólico, encarnado pela cultura, pela lei, pela linguagem propriamente dita. No entanto, essa relação se estabelece em consonância com a relação da criança com seus outros reais — pais ou responsáveis, ressaltando a autora que pode-se dar em graus e intensidade diferente.

Aqui se encontra uma segunda peculiaridade na psicanálise com crianças, tudo se passa na sua relação com o outro, diz Costa-Moura (2015).

É na relação entre a família e a criança que algumas dificuldades surgem. Os conflitos de seus pais, seus desejos, são transmitidos à criança como uma mensagem não verbal, e esta então passa a expressar através de sintomas o que ocorre na relação familiar. Para Pires (2016), os sintomas falam do e pelo sujeito, eles dizem o que não cabe em palavras — o real.

A linguagem atravessa a criança antes mesmo dela conseguir emitir palavras. Em “A criança e a psicanálise: o lugar dos pais no atendimento infantil”, Mannoni (1971 apud PRISZKULNIK, 1995) é citado ao dizer que o discurso que se processa na linguagem sobre os sintomas apresentados pela criança, mesmo quando ela ainda não aprendeu a verbalizar, engloba ela; os pais; o analista, sendo denominado de discurso coletivo.

Em torno desta temática, Lowenkron(2011) em “Sobre o valor do sintoma na infância”, argumenta que oferecer escuta as referências da criança, não implica em ser o analista destes, esclarecendo que é preciso definir bem o lugar dessas referências como a quem deve auxiliar a se situar em relação a sua história e a dimensionar as questões de seus filhos, ou seja, que se questionem.

Esta direção conduz ao desaparecimento dos pais no atendimento com a criança, visto que aqueles se fazem presente não corporalmente, mas na linguagem expressa por esta, mesmo que quase imperceptível, o que Manonni (1977, apud PRISZKULNIK,1995) denomina de “palavra alienante”.

Certa vez ao receber uma mãe que demandou atendimento para filha de 2 anos, cujo caso chamou atenção da analista, esta pôde constatar o que Priszkulnik inferiu em sua escrita. Ana, a mãe, atribuía a sua filha Ellen o lugar de uma criança-adulta, “ela é como adulta, você vai ver. Já nasceu grande” (sic). Dizia que sua filha nasceu velha e era diferente de todas as outras crianças que estavam na incubadora.

Ao receber a criança, por diversas vezes nas sessões Ellen reproduzia a fala de sua mãe. Ora afirmando, ora negando, mas mesmo intercalando entre afirmar/negar, a mãe estava presente em sua fala que aparecia no atendimento de modo repentino, “Eu sou grande, você sabia?!”, “sou grande”, “Ah..eu só tenho 3 aninhos”(sic).

A presença dos pais é representada pelo discurso da criança, em que se acha a influência de sua relação parental em seu modo de ser, falar e agir a moral ensinada por seus responsáveis. Nessa relação complicada entre pais e filhos, encontramos fantasias pertencentes aos pais sob seus filhos.

A idealização, em alguns casos, faz a criança desenvolver sintomas. Sintoma que vimos ser familiar e que convoca o analista a ocupar um lugar de agente separador. Em que sua escuta e intervenção aos pais e aos filhos irá efetuar um corte entre a demanda dos pais e as questões da criança, retirando ela de uma posição alienada.

5. A BRINCADEIRA COMO RECURSO TERAPÊUTICO

A brincadeira ganhou um lugar, fazendo parte da psicanálise com criança a partir da clínica de Melanie Klein.

Costa-Moura (2015) salienta que a brincadeira deve ser entendida como parte de um todo que seria a clínica, ela se configura como uma técnica no tratamento ofertado à criança. Este aspecto precisa ser entendido pelo psicoterapeuta para que não se confunda a brincadeira que aparece no setting com o brincar do senso comum, aquele onde atividade em sua base se dá apenas por diversão.

Mas por que a brincadeira?! Vidal em” Questões sobre o brincar” (1991) assinala um aspecto que a torna importante. A brincadeira se constrói como uma espécie de linguagem, ocupando na vida da criança uma forma protegida de se falar daquilo que em outra condição se expressaria verbalmente, além de agir como associação livre onde o sujeito fala sem saber o que está sendo dito.

É nas entrelinhas do brincar que algo se escuta. Ela dá condições à criança de elaborar suas questões diárias, inclusive as pequenas, por meio de uma linguagem simbólica. Sobre isso Vidal (1991) relata que a condição psíquica das crianças impôs para a psicanálise a construção de novas técnicas a medida que a brincadeira se articula com a maneira pela qual elas estão no mundo. A brincadeira ganha uma permanência na vida das crianças.

Dessa forma, é preciso adaptar a técnica à brincadeira. Algo que não se via em Freud como uma psicanálise especificamente infantil, mas este a citou delicadamente como algo que demanda uma particularidade em 1909 o que auxilia na compreensão de que brincar com a criança na psicoterapia não vem a promover uma técnica “a mais”. Mas uma forma de comportar um discurso próprio delas em que deve se escutar as formações do inconsciente.

O pequeno Hans é visto pela psicanálise como a primeira criança a ser analisada. Freud nessa época estava preocupado em confirmar a questão teórica das teorias sexuais infantis que reapareciam na análise de adultos, deixando de lado a adaptação de seus métodos às novas técnicas. Mas Freud (1909) analisava Hans a partir de seus desenhos, jogos, relatos, todos através de um canal de informação que era o pai de Hans.

Freud (1909) enxerga os desenhos, a fala de seu jovem paciente como algo plausível de ser decifrado. Assim, Hans entra para a história da psicanálise inaugurando uma possibilidade da análise abarcar os pequenos sujeitos.

O acesso ao seu inconsciente devia realizar-se através da atividade lúdica que vai pontuando os diferentes tempos na direção da cura. É abordada enquanto formação do inconsciente, pois ela é expressão do desejo e da fantasia inconsciente. O brincar se torna uma tela onde é projetado esse universo fantasmático: fantasmas de destruição e de ataque se articulam com sentimentos de depressão e culpa. A dialética da introjeção-projeção é especialmente assinalada na transferência. (VIDAL, 1991, p,44)

Segundo Klein(1997) a brincadeira assume o lugar de um instrumento de linguagem da criança, indo ao encontro da teoria Freudiana de que a criança possui uma vida psíquica antes mesmo de conseguir falar. Então, a brincadeira surge como um modo da criança conseguir externar suas fantasias inconscientes e seus elementos psíquicos internos.

Independentemente de qual brincadeira se trata, para Klein(1997) ela está em acordo com a realidade psíquica da criança. Dessa forma, ao observar uma criança brincando é possível observar seu mundo interno.

Em 2016 foi encaminhado à autora um o caso clínico de uma criança de 8 anos, a qual haviam descrito como: “aquele que sobrou” (sic), diante de uma família que carregava os significantes de que nela não havia dialogo, só violência.

Quando o jovem Enzo foi atendido pela primeira vez, ele não se reportava verbalmente, mas organizou em frente a sua analista, alguns bonecos dentro de uma casa e de repente percebeu-se que ele estava montando uma cena, uma forma de se apresentar.

Nessa cena mostrou que todos os bonecos se agrediam, batiam, batiam e no final dizia: “morreu”. Em seguida, os ressuscitava, voltavam a brigar e o único som que Enzo fazia era, “Iahhh”; “Pow! Pow!”, para no fim sobrar apenas o boneco de um menino que até então não havia apanhado dos outros, mas ao ser quem restou, o colocou no meio da casa que abria e fechava, a casa (abrindo e fechando) batia de forma fugaz no boneco de um menino. Assim, ele contou o motivo de estar ali.

Vidal (1991, p,45) compara a clínica com adultos da clínica com crianças, destacando, “Existe uma demanda à criança para que brinque, mas esta demanda é o equivalente da demanda de associação livre em toda a análise com o adulto”.

A criança expressa pela brincadeira seus sentimentos, emoções, desejos, fantasias. Em questões sobre o brincar (1991) a brincadeira é comparada ao processo de associação livre na análise de adultos e assim como esta é sustentada pelo desejo do analista, o brincar se sustenta no desejo do analista, permitindo a continuidade do tratamento.

Enquanto Melanie Klein discorre sobre a expressão da realidade psíquica da criança, Freud em “Além do princípio do prazer” de 1920, torna evidente que o brincar cumpre um papel importante no desenvolvimento emocional da criança, permitindo pelo seu efeito catártico que ela se livre de sentimentos ruins.

É claro que em suas brincadeiras as crianças repetem tudo que lhes causou uma grande impressão na vida real, e assim procedendo, ab-reagem a intensidade da impressão, tornando-se, por assim dizer, senhoras da situação. (FREUD,1920-1922, p 26)

Para Freud em “Além do Princípio do Prazer” (1920-1922) através da brincadeira a criança deixa de lado uma posição passiva para se tornar ativa, de modo a reproduzir e muitas vezes repetir situações nas brincadeiras que vivenciaram de forma traumática, dolorosa, experiências dolorosas. Mas mesmo revivendo isso na brincadeira, algo de prazer elas retiram dessa construção.

A brincadeira que torna a criança “senhora da situação”, através dessa posição ativa, a possibilita a elaboração de uma experiência desprazerosa, traumática.

Costa-Moura(2015) diz que o próprio nascimento de uma pessoa a coloca num lugar de desamparo, sendo totalmente dependente do Outro. Sobre isto Freud (1920-1922) sustenta a ideia de que é na e pela brincadeira que o sujeito elabora suas questões, como o próprio desamparo fundamental e se inscreve na linguagem.

É no contexto dessa temática que Lacan (1979 apud VIDAL,1991), faz sua primeira argumentação sobre o brincar, alegando que é neste momento que o bebê nasce para a linguagem— o brincar presentifica. É o ponto de entrada da criança no simbólico e na cultura.

6. CAMINHOS ÉTICOS NA PSICOTERAPIA COM CRIANÇAS

Costa-Moura (2015) relata que atualmente a relação da criança com a cultura e a família impõe sobre ela um lugar de idealização. A criança é submersa nas fantasias de seus pais, ficando a mercê também de nossa cultura que a coloca numa posição de pureza, de quem realizará todos os desejos não alcançados de seus pais. Desejos narcísicos que enlaçam as crianças em suas estruturas familiares.

Sobre isso, é preciso escutar a demanda que impulsionou os responsáveis à buscar tratamento para a criança, pois ouve-se deles um pedido, muitas vezes, de que seu filho seja tratado a fim de se tornar o filho ideal que eles projetaram. Pode-se constata através de Costa-Moura (2015) que é esperado uma posição ética que diz respeito a postura dos analistas que atendem crianças.

Sendo assim, duas possibilidades são levantadas em: “O tratamento psicanalítico com crianças” (2015), a primeira seria aprimorar através do caminhar na psicoterapia todo ponto que apresenta um avanço para se alcançar o cumprimento mais próximo de todo o ideal. Já a segunda opção seria fazer o que Costa-Moura (2015) chama de corte fundamental, acolher e dar voz ao que surge na análise, inclusive o que expressa a não concretização do ideal- o que escapa.

Ao analista cabe assumir esta última posição, de recolher e desvelar os efeitos da presença do desejo que é dito como um corpo estranho. Já que há algo em nós que é parcialmente desconhecido e se destaca dos ideais instituídos.

O que Costa-Moura(2015) e Melman (1986) dizem a respeito da relação precisamente ética que deve-se ter no contato com a criança, não garante que todo analista se ache sob a direção de ter uma postura de não trabalhar a favor do ideal e da normatização. Mas explora que de maneira contrária não há análise.

A análise faz falar quem for o sujeito, não a criança ideal, mas a criança na qual depositam toda espécie de desejo que é transmitido pela linguagem, assim ouve-se, o sujeito que é marcado pela falta. Sendo assim, como dito anteriormente, a direção adequada aos analistas é a de que eles não sejam um outro alguém que determina a criança o que se deve fazer, vestir, pensar, como ela deve ser.

Não se deve esperar que ela seja “completa” ou dar soluções estratégicas através do bom senso para alcançar um bem estipulado pela família do paciente ou por ele mesmo. É preciso que haja um lugar aos poucos construído pela relação transferencial onde a criança seja escutada e tida como um sujeito do desejo e singular. O que aponta segundo Moura (2015) para a clínica do caso a caso que é sustentada pela psicanálise.

Portanto Costa-Moura (2015) se faz ouvir que o objetivo da analise não é dar vida a criança ideal dos adultos que a circundam, mas contribuir para” (…) uma possível realização do sujeito a partir da instancia do desejo, em toda sua complexidade” (Moura, 2015, n.p).

A direção proposta aqui como a necessária ao analista faz com que este esbarre na postura daqueles que trabalham em prol da normatização, que se guiam pela esfera dos padrões de comportamento instituídos por cada cultura, sociedade, família, escola.

Sabe-se que padrões se inscrevem nessas instituições fazendo parte de sua construção, algo se espera de uma criança acolhida em uma instituição religiosa, assim como se espera que crianças nascidas em famílias ditas “tradicionais” sejam sujeitos que levem a cargo suas características, por exemplo.

Nesse sentido, o erro aos olhos da psicanálise o qual se acham os pais em relação à educação de seus filhos é que esperam uma resposta comportamental destes em sintonia com a mensagem que é transmitida por eles, com seu desejo.

Melman em “Sobre a educação das crianças” (2010) descreve esse retorno esperado dos filhos como uma resposta direta à essa mensagem transmitida pelos pais. Porém, o mesmo autor afirma que aqueles que respondem nessa forma direta, como papagaios, num momento posterior estão sujeitos a desenvolverem “sintomas perigosos”, sabendo que para que o indivíduo advir como sujeito a condição seria a desvinculação ao saber transmitido por seus pais.

Poderíamos metaforizar, nesse momento, um dos papéis éticos do psicoterapeuta na clínica com crianças como a de um garimpeiro, aquele que sustenta em mãos um apanhado complexo e que aos poucos faz aparecer o que procura, neste caso, o sujeito.

7. CONCLUSÃO

O objetivo deste artigo foi apurar sobre como se faz possível a escuta na análise com crianças. Com a apresentação dos fatos, é inegável que a escuta clínica com crianças possui especificidades, o que é essencial para efeito do tratamento com crianças.

Com isso, e tendo em vista os aspectos observados, confirma-se que a escuta é o meio pelo qual constrói-se uma direção de tratamento. Pode-se fazer interpretações e respeitar de forma ética a singularidade do caso a caso, especialmente no que se refere as crianças, uma vez que estão numa condição onde expressar o que é sentido se passa mais pela via simbólica, com a brincadeira do que com a verbalização. É o tempo dela.

Ao fazer uma análise, observa-se que do lugar de anonimato elas se tornaram o futuro da humanidade, este jargão retrata bem o atual sentimento sobre as crianças. No decorrer dessa escrita fica claro com Ariès de que maneira a escola e a Igreja induziram modificações a respeito do sentimento de infância, do paparico à inocência e futuro da nação.

Com Freud a criança se torna mais uma vez objeto de estudo, mas agora pela psicanálise. Em 1909 ele escreve que a psicanálise com crianças seria possível, pois elas demonstravam ter uma vida psíquica, e que assim como os adultos, possuem inconsciente. Entretanto, Costa-Moura (2015) afirma que há especificidades na clínica com crianças, o que não distingue uma psicanálise propriamente infantil.

Ao analisar os fatos, percebe-se que não é possível tratar um sujeito sem particularizá-lo uma vez que na psicanálise cada caso é um caso e para traçar direções sobre cada paciente é preciso lançar mão da escuta clínica. Uma escuta que na psicanálise com crianças possui uma diferença contrastante dos atendimentos com adultos, fazendo lançar mão da brincadeira, da presença dos responsáveis, precisando estar atento ao que é possível a cada criança. A escuta clínica dá a direção para os passos que se deve dar.

Ainda com Freud é possível entender que quando alguém concretiza seu projeto de ter um filho, faz por algo que falta ao casal. Portanto há uma aposta narcísica no projeto que evidencia a busca da completude perdida quando da constituição de seu próprio infantil.

Costa-Moura (2015) diante desse contexto de idealização, levantou a questão sobre qual direção tomar na análise de crianças, definindo como o único caminho aquele ao qual há o afastamento da normatização e a aproximação da criança enquanto sujeito. O respeitando, o escutando como alguém marcado pelo Outro e com quem deve-se manter um compromisso ético.

Somente assim, a criança pode experienciar ter um lugar na análise e o tratamento pode alcançar um fim que não seja pela interrupção dos pais, mas um fim pela cura dos seus sintomas.

REFERÊNCIAS

ALBERT, Sonia. O Adolescente e o Outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

ARIES, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1978.

COSTA-MOURA, Fernanda. O Tratamento Psicanalítico com crianças. Tempo Freudiano, 2015. Disponínel em: <http://www.tempofreudiano.com.br/index.php/o-tratamento-psicanalitico-com-criancas/>. Acesso em: jul 2019.

FREUD, Sigmund. Duas histórias clínicas (O “pequeno Hans” e o “homem dos ratos”) 1909,  Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996ª, v. X.

FREUD, Sigmund. Novas Conferências Introdutoras sobre Psicanálise e outros trabalhos 1932-1936, Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996b, v. XXII.

FREUD, Sigmund. Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise (parte III) 1915-1916, Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996c, v. XVI.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do Prazer, psicologia de grupos e outros trabalhos 1920-1922, Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996e, v. XVIII.

KLEIN, Melanie. A psicanálise de crianças. Rio de Janeiro, Imago, 1997.

LACAN, J. Nota sobre a criança. Outros escritos. RJ: Jorge Zahar Ed., 2003.

LOWENKRON, Áurea Maria. Sobre o Valor do Sintoma na Infância. In: SAGGESE, E.; LEITE, L. C. (orgs.). Da Clínica à Reabilitação Psicossocial – Caderno IPUB Nº 1 Online.  Manual de Saúde Mental de crianças e Adolescentes – IPUB, v. 01. Rio de Janeiro, 2011, p. 13-20. Disponível em: < http://www.ipub.ufrj.br/portal/caderno/01/cadernos_ipub1_parte1_aurea.pdf>. Acesso em: fev, 2019.

MELMAN, Charles. Sobre a educação das crianças. In: JERUSALINSKY, A.; ARAGÃO, L.; FENDRIK, S. et al. Educa-se uma criança? Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2010.

MELMAN, Charles. Sobre a Infância do Sintoma. In: Apresentação das jornadas da Associação Freudiana, mar 1986. Disponível em: <http://agalma.com.br/wp-content/uploads/2014/09/sobre_a_infancia_do_sintoma1.pdf>. Acesso em: mar 2019.

PÍRES, Maria Cecília. Precisamos Falar com as crianças. Tempo Freudiano, 2016. Disponível em: <http://www.tempofreudiano.com.br/index.php/precisamos-falar-com-as-criancas/>. Acesso em: fev 2019.

VIDAL, Maria Cristina. Questões sobre o brincar. Direção da cura: psicanálise com criança e adolescente. In: Letra Freudiana Escola Psicanálise e Transmissão, n. 9, p. 43-50, v.V. Rio de Janeiro: Dumará, 1991. Disponível em: <http://www.escolaletrafreudiana.com.br/wp-content/uploads/publicacoes/57/letra9-5231.pdf>. Acesso em: fev 2019.

[1] Psicóloga e especialista em psicanálise e Saúde mental- UFF- Niterói.

Enviado: Outubro, 2019.

Aprovado: Janeiro, 2020.

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Aline Susie de Moraes Franco

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