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Livros Acadêmicos

10. Memórias e histórias de vida: possíveis pesquisas e estudos acadêmicos e científicos nas ciências humanas[1]

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Filomena Luciene Cordeiro Reis [2]

Wenceslau Gonçalves Neto [3]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/1727

 

Estudo, de acordo com Ferreira, significa “Ato de estudar. Aplicação do espírito para aprender. O conjunto dos conhecimentos adquiridos com essa aplicação. Trabalhos que precedem a execução de um projeto. Trabalho literário ou científico sobre um assunto. Exame, análise” (FERREIRA, 2001, p. 299).

Estudar implica em agir, atuar, operar, ou seja, colocar-se em movimento para aprender e aplicar os conhecimentos produzidos. Para tanto, faz-se necessário um projeto visando que, objetos e sujeitos sejam examinados e analisados na perspectiva científica nas escolas e universidades.

Um estudo científico emana e demanda de inquietações do estudante/pesquisador ao observar o mundo e as pessoas ao seu redor se relacionando, problematizando-o com a finalidade de conhecê-lo. Entretanto, é preciso métodos e técnicas científicas para que a temática se constitua em uma narrativa e/ou descoberta em alguma área do saber.

Em relação à relevância dos estudos e pesquisas científicas é possível verificar, nos dias atuais, sobretudo por causa das experiências vividas desde 2020 com a Covid-19, o papel da ciência nas suas diversas áreas. O campo do conhecimento da saúde exigiu dos seus profissionais, nos diversos aspectos, em especial dos pesquisadores, atenção e dedicação para encontrar o antivírus da Covid-19.

Para além da área da saúde, outras ciências se mobilizaram, pois essa realidade provocou transformações nas pessoas, vivenciadoras de diferentes dimensões – sociais, políticas, econômicas, culturais, morais, afetivas, religiosas, etc. -, nesse momento caótico mundial. Nesse sentido, nossas pesquisas nos campos do saber das Ciências Humanas e Sociais, especificamente História, Educação e Direito, direcionaram-se para analisar questões voltadas para gênero, raça e classe.

Realizamos algumas pesquisas, as quais refletiram sobre violência contra as mulheres, crianças, adolescentes e afrodescendentes, entre eles, feminicídio, racismo, lares para proteção de crianças e adolescentes, patrimônio cultural, etc. Esses estudos apontaram a importância da universidade para, a partir das suas pesquisas, mostrarem possibilidades de políticas públicas transformadoras da sociedade.

Nessa direção, apresentamos um estudo, em particular, das Ciências Humanas, desenvolvida através das vivências nas orientações de trabalho de conclusão de curso, aulas na graduação e atuação no Grupo de Pesquisa e Estudo de Gênero e Violência da Universidade Estadual de Montes Claros e Grupo de Pesquisa Direitos humanos, Violência de Gênero e Identidades do Centro Universitário Funorte, que nos despertaram sensibilidade e consciência referentes aos assuntos acerca de gênero, raça e classe.

Ressaltamos que, essa análise foi executada no Programa de Pós-doutorado em Educação da Universidade de Uberaba, Minas Gerais, intitulada “Educação, raça, classe e gênero: histórias de vida de mulheres professoras e estudantes negras do ensino fundamental, em Montes Claros/MG, nos tempos pandêmicos da Covid-19”, apresentada, em um dos seus aspectos, porque viabilizou observações, nos moldes a seguir.

METODOLOGIA E TÉCNICAS: UM CAMINHO PARA PRODUZIR CIÊNCIA

A pesquisa nos direcionou para procedimentos metodológicos específicos, a História Oral, prevista no projeto, pois, “[…] cumpre múltiplas funções e finalidades no trabalho de Pesquisa. Ele procura antecipar algumas perguntas fundamentais relacionadas à pesquisa proposta” (BARROS, 2008, p. 6). Para delinear o recorte temático:

 […] responde de antemão às seguintes perguntas […]: O que se pretende fazer? Por que fazer? Para que fazer? A partir de que fundamentos? Com o que fazer? Como fazer? Com que materiais? A partir de que diálogos? Quando fazer? (BARROS, 2008, p. 6).

Com essas indagações fizemos uma trajetória metodológica, procurando respondê-las e, para alcançar esse objetivo, trilhamos leituras referentes ao arcabouço teórico e metodológico. Fundamentada teoricamente por meio da revisão de literatura (BARROS, 2008) era necessário pensar como fazer a pesquisa e com que materiais seriam possíveis estabelecer diálogos a partir da proposta do estudo, ou seja, trabalhar com História Oral e História de Vida.

Portelli acerca da História Oral afirma que:

[…] as narrativas orais e os testemunhos que constituem história oral não são mais do que uma ferramenta adicional na panóplia de fontes do historiador – e, assim, estão sujeitas ao mesmo escrutínio crítico que todas as outras fontes, a fim de averiguar sua confiabilidade e usabilidade (PORTELLI, 2016, p. 9).

Explica a História Oral como uma ferramenta, cuja análise crítica dessa fonte para o historiador viabiliza narrativas históricas extraídas de relatos individuais e informais advindas das memórias, nessa pesquisa específica, da colaboradora. A utilização desse método possibilitou a construção da história de vida de uma das nossas depoentes, denominada Palma, um cacto do sertão nordestino e mineiro. A escolha desse nome para representar a colaboradora deriva das lutas dos seus ancestrais que proporcionaram condições dignas de vida e, consequentemente estudos, sobretudo no período da pandemia.

Palma, plural, palmas, significa “Ato de bater com as palmas da mão uma na outra, e com o qual se demonstra aplauso, se chama a atenção para que abram a porta, etc” (FERREIRA, 2001, p. 510). Essa definição é pertinente no sentido de ressaltar que, a nossa colaboradora, apesar do percurso dos seus ancestrais no Brasil, desde o período colonial até os dias de hoje , através de muitas lutas obtiveram conquistas e vitórias, colocando-a em outro lugar como estudante no período da pandemia, cujas portas abertas viabilizaram crescimento intelectual por meio do processo ensino e aprendizagem.

Esse cacto, Palma, oriundo do México, se encontra no sertão norte mineiro, caracterizado como rústico e resistente, cujas práticas de cultivo proporcionam o alimento de animais (ROCHA, 2012, p. 8, 10, 11). Sua força possibilita a existência de outras vidas e, por esse motivo, o nome dado a depoente.

As memórias são organizadas segundo uma lógica subjetiva que seleciona e articula elementos que, nem sempre, correspondem aos fatos concretos, objetivos e materiais (MEIHY, 2005, p. 63). Entrevistamos, neste estudo, seis professoras e três estudantes de escolas públicas de Montes Claros.

Essa narrativa histórica conta as memórias e experiências de Palma, aluna que não demonstrou dificuldades para os estudos referentes a questões de gênero envolvendo raça e classe e, por essa razão, muitas indagações perpassaram nossa pesquisa, entre elas: seriam conquistas do grupo social ou individual que colocou Palma nesse lugar? ou seriam os estudos que pensam sempre na perspectiva de vítima desse grupo social? Seria alienação ou falta de percepção?

PALMA: UMA HISTÓRIA DE VIDA EM MUITAS MEMÓRIAS

Palma compõe uma família de cinco membros: mãe, pai e três filhos. Ela é a caçula de dois irmãos. O pai é corretor de imóveis; a mãe é pedagoga; um irmão com necessidades especiais e o outro estudando o ensino médio; e ela no ensino fundamental, aluna de uma escola pública e periférica. Relata enfrentamentos contornados com o acompanhamento familiar, entretanto, de acordo com os padrões da “normalidade”. Descreve o processo inicial do surgimento da Covid-19 no âmbito escolar da seguinte forma:

Foi tranquilo. A escola já orientava para usar máscara e dizia da preocupação com o vírus. Um dia, na aula, a professora repassou um bilhete avisando para não ir à escola no dia seguinte. Fiquei assustada primeiro, mas, depois achei bom, pois pensei que seria pouco tempo, temporário, e depois fiquei preocupada em não voltar (Fala da entrevistada, 2022).

Verifica-se que, no primeiro momento, março de 2020, Palma não se incomodou, no entanto, posteriormente, compreende a realidade e repercussão no seu processo educacional. Esclarece as providências da gestão escolar e professores:

No primeiro mês, a escola não disse nada, mas, depois pediu para buscar uma apostila impressa com atividades bimestrais. Os pais foram buscar o material e não era tão difícil fazer sozinha e quando precisava pedia ajuda pra minha mãe ou irmão. Os pais que devolviam o material com as respostas e às vezes eu ia junto para sair um pouco de casa e voltar na escola, pois sentia falta de lá (Fala da entrevistada, 2022).

Palma trata do retorno das atividades pelos professores e as notas atribuídas, revelando a atenção dos pais e efetivação do processo ensino e aprendizagem:

Minhas notas eram boas, de 10 pontos tirei de 7 a 10. Não achei cansativo, pois tinha uma organização para os estudos e disciplina. Estudava pela manhã como se estivesse na escola e a tarde fiz outras atividades como aula de violão (Fala da entrevistada, 2022).

Relatou que, “Também ajudava minha mãe com as tarefas da casa e a cuidar do meu irmão” (Fala da entrevistada, 2022). Em relação à socialização escolar, apesar do isolamento social, conta que, “Havia o grupo do WhatsApp, ferramenta para comunicação entre nós e os professores. Também tinham as aulas online, que aconteceram quando perceberam que o vírus demoraria pra acabar” (Fala da entrevistada, 2022).

Expõe acerca das aulas online que, “Nós não abríamos a câmera. Também os colegas não participavam das aulas, pois a maioria não tinha celular. Pra falar nessas aulas tornou difícil, quando aumentou o número de alunos” (Fala da entrevistada, 2022).

Palma analisa esse período com aulas online com alguns enfrentamentos, sobretudo dos colegas por falta de aparelho, internet, etc. Refere-se ao retorno das aulas presenciais como:

[…] oportunidade para aprender melhor, pois a professora estava presente, vendo, orientando o tempo todo. Também não foram todos os colegas no princípio, foram voltando aos poucos. Eu voltei logo. A sala tinha 3, 4, 5 alunos (Fala da entrevistada, 2022).

O retorno foi gradual para os colegas: “Era opcional. Voltava quem queria. Achei estranho no início, pois tinha que ficar distante dos colegas, usar máscara, álcool” (Fala da entrevistada, 2022). Ela aponta as medidas protetivas necessárias netse período de retorno às aulas na escola. Palma foi indagada sobre a situação dos colegas e respondeu que:

Vi que comigo era diferente. Eu tinha todas as condições, mas, alguns colegas, a maioria, não tinham como estudar. Alguns ajudaram os pais, trabalhando. Vi amigas em escolas particulares com o mesmo aprendizado que eu. (Fala da entrevistada, 2022).

Observa realidades diferentes da dela e “agradeço por não ter tido nenhuma dificuldade e todo o apoio dos meus pais” (Fala da entrevistada, 2022). Palma expõe que, durante a pandemia da Covid-19, com o confinamento e as atividades escolares sendo realizadas em casa, obteve êxito, contudo, constata que, estar na escola presencialmente é muito mais fácil de aprender, porque conta com profissionais da educação e colegas para auxiliar nas dificuldades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatou-se, através da narrativa de Palma que, nem todas as estudantes mulheres, negras e periféricas enfrentaram dificuldades para a concretização do processo de ensinar e aprender. Houve problemas, entretanto, apresentados no padrão do momento pandêmico. Palma, inclusive, era “melhor aluna da turma” (Fala da entrevistada, 2022), sendo indicada para a entrevista da pesquisa por esse motivo.

Gênero, raça e classe não foram consideradas nas vivências de Palma: “Essas questões nunca me empataram em nada. Tenho o que preciso para fazer as minhas coisas e estudar” (Fala da entrevistada, 2022). Observou-se que, esses conceitos foram perguntados a Palma com a finalidade de conhecer o que sabia sobre o assunto e, também explicado pelos pesquisadores, antes da entrevista.

Essa narrativa histórica é o resultado de uma pesquisa, constituindo possibilidades temáticas para estudos acadêmicos científicos. Faz-se necessário a problematizar e levantar hipóteses para trilhar as linhas da ciência e obter respostas baseadas na razão, entretanto, apresentando particularidades dos campos de saber, como é o caso das memórias na História.

REFERÊNCIAS

BARROS, José D’Assunção. O projeto de pesquisa em História.  Petrópolis: Vozes, 2008.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio século XXI escolar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

MEIHY, J.C.S.B. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 2005.

PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz. 2016.

ROCHA, Juliana Evangelista da Silva. Palma forrageira no Nordeste do Brasil. Sobral: Embrapa Caprinos e Ovinos, 2012.

[1] Aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade de Uberaba. Número do Parecer: 5.656.586.

[2] Doutora em História pela Universidade de Uberlândia e estágio pós-doutoral em Educação na Universidade de Uberaba. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2175-8390. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6184071456334110.

[3] Orientador. Doutor em História pela Universidade de São Paulo e estágio pós-doutoral em História da Educação na Universidade de Lisboa. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4374-0311. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6258906373771462.

Filomena Luciene Cordeiro Reis

Filomena Luciene Cordeiro Reis

Doutora em História pela Universidade de Uberlândia e estágio pós-doutoral em Educação na Universidade de Uberaba. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2175-8390. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6184071456334110.

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Ciências Humanas Atualização de Área janeiro e fevereiro de 2023

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