REVISTACIENTIFICAMULTIDISCIPLINARNUCLEODOCONHECIMENTO
Livros Acadêmicos

11. Contribuições da antropologia para a construção dos saberes na disciplina de ensino religioso

4.8/5 - (18 votos)

Antonio Renaldo Gomes Pereira [1]

 Antonio George Lopes Paulino [2]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/1732

Introdução

O Ensino Religioso está regulamentado na Base Nacional Curricular Comum (BNCC), “documento […] que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, […], em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação” (BRASIL, 2017, p. 5).

A crítica à BNCC elaborada por diversos movimentos de educadores, estudantes e outros segmentos sociais ressalta o retrocesso que se materializa com a implantação dessa nova base normativa, sinalizada na tendência de priorizar uma formação mais orientada para os interesses mercadológicos e tecnicistas do que para uma formação que contribua para desenvolver os diversos potenciais criativos e transformadores dos sujeitos sociais, violando, assim, o direito à educação em direitos humanos, desvalorizando ainda mais a formação em artes e humanidades.

Não obstante esse retrocesso identificado na nova base normativa e que atinge mais contundentemente o Ensino Médio, a crítica também observa que nesse contexto o Ensino Religioso, tema deste artigo, desconecta-se das amarras às quais esteve subjugado, ao longo dos séculos, haja vista que a BNCC apresenta, em suas diretrizes, uma disciplina renovada, ao passo que sua constituição parte da censura ao proselitismo, a fim de promover um ambiente de discussão e interlocução de saberes que possibilitem a promoção do “respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil” (BRASIL, 1996).

Ao pautar o diálogo e o respeito à diversidade religiosa, o currículo da disciplina de Ensino Religioso apresenta, entre as habilidades a serem adquiridas pelos alunos, os fundamentos, costumes e valores das diferentes religiões, desplugando-se da ideia de catequização ou doutrinação religiosa, característica da disciplina em seus primórdios. Os conteúdos, explorados de forma interdisciplinar, buscam estimular o diálogo pelas vias do conhecimento científico (BRASIL, 1996).

A Religião, ao ser pensada como objeto de conhecimento, encontra na Antropologia aparato em conceitos e métodos de trabalho, tanto teóricos como empíricos, para sedimentar uma disciplina capaz de promover reflexões que abordem a diversidade religiosa combatendo a intolerância e o preconceito religioso.

Assim, o questionamento que norteia este trabalho paira na intenção de saber: quais as contribuições da Antropologia para o currículo da disciplina de Ensino Religioso? Nesse intento, verificar como conceitos e métodos antropológicos podem ser utilizados na disciplina de Ensino Religioso é o objetivo geral deste texto.

Para tanto, apresentamos alguns conceitos-chave da Antropologia relacionando-os à disciplina de Ensino Religioso nos anos finais do Ensino Fundamental. Empiricamente, esboçamos o percurso e resultados de um trabalho de campo realizado em conformidade com os métodos da Antropologia junto aos alunos da Escola de Ensino Fundamental Maria do Socorro Gouveia (EMSG), município de São Gonçalo do Amarante, Ceará.

O ensino religioso e a antropologia

O Ensino Religioso, ao longo dos séculos, tem sido polemizado pelo fato de ter assumido entre suas funções, a catequização de índios e negros na religião católica; sistema de crenças dominantes no processo de colonização. Com o passar do tempo, em razão de transformações políticas e sociais, o Ensino Religioso vai se adequando a outras ideias, ao passo que o Estado brasileiro se torna laico (BRASIL, 1891; 1988), ao menos na lei. A estrutura da disciplina há tempos submetida ao caráter confessional ou interconfessional se abre aos conhecimentos científicos ao compor um novo eixo na BNCC.

Com a homologação da BNCC, em 20 de dezembro de 2017, o Ensino Religioso se desliga da área de Ciências Humanas e se torna, no Ensino Fundamental, “uma área do conhecimento específica” (BRASIL, 2017, p. 27). Em consonância com os marcos normativos a que a BNCC está submetida, a proposta para o Ensino Religioso prevê o atendimento a quatro objetivos que se coadunam com um aprendizado pautado na diversidade e pluralidade religiosa, livre do proselitismo.

Para Cunha (2018, p. 900), “ela continha a especificação dos objetivos de aprendizagem para cada um dos nove anos desse nível, pressupondo a gradação de um componente curricular insinuado como obrigatório para todos e em todos os anos”. Dentre os quatro objetivos, o que nos parece mais próximo da ideia central apresentada neste texto, é: “Proporcionar a aprendizagem dos conhecimentos religiosos, culturais e estéticos, a partir das manifestações religiosas percebidas na realidade dos educandos” (BRASIL, 2017, p. 436).

O Ensino Religioso pode ser visto como uma forma de educação intercultural, que permite aos estudantes conhecer e compreender as diferentes crenças e práticas religiosas presentes na sociedade. Além disso, o Ensino Religioso pode contribuir para o desenvolvimento da tolerância religiosa e para a formação de uma consciência crítica em relação à religião e suas implicações sociais.

“O conhecimento religioso, objeto da área de Ensino Religioso, é produzido no âmbito das diferentes áreas do conhecimento científico das Ciências Humanas e Sociais, notadamente da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões)” (BRASIL, 2017, p. 436). Entre essas ciências, a Antropologia nos parece mais próxima da disciplina esboçada pela BNCC. A Antropologia tem entre seus objetivos estudar a religião como um fenômeno cultural e social. Nesse sentido, a Antropologia tem buscado compreender a diversidade de crenças e práticas religiosas existentes em diferentes culturas e sociedades, bem como os significados e funções que elas desempenham na vida das pessoas. Conforme Geertz (1978), a religião pode ser vista como um sistema simbólico que dá sentido ao mundo e às experiências humanas, fornecendo orientação moral e identidade para os indivíduos e grupos sociais.

Nesse sentido, a religião também se define como um sistema de crenças e ritos que reúne numa mesma comunidade moral aqueles que compartilham de tais crenças e se orientam no mundo em conformidade com as mesmas. Portanto, segundo Peter Berger (1985), a religião é uma força ordenadora e mantenedora do mundo de acordo com suas cosmologias. Acontece, todavia, que a sociedade contemporânea estrutura-se, mormente, no Estado de Direito, laico, e, em grande parte das nações, democrático e assegurador da liberdade de culto e do pluralismo religioso (BERGER, 2017).

Desse modo, quando falamos antropologicamente em religião, observamos o plano das religiosidades, que se caracteriza pela presença da diversidade religiosa, de expressões plurais, de onde não é aceitável que uma dada cosmologia se imponha como força de lei num mundo secularizado.

Inter-relações no trabalho de campo

A BNCC delineia a disciplina de Ensino Religioso conforme demandas estabelecidas pela Constituição Federal (BRASIL, 1988), bem como pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), adotando “a pesquisa e o diálogo como princípios mediadores e articuladores dos processos de observação, identificação, análise, apropriação e ressignificação de saberes, visando o desenvolvimento de competências específicas” (BRASIL, 2017, p. 436).

Atendendo às diretrizes que norteiam a disciplina, realizamos na EMSG, no âmbito do Ensino Religioso, um trabalho de pesquisa de campo com intuito de conhecer um pouco mais sobre os locais sagrados situados na sede do município de São Gonçalo do Amarante. Consideramos, no momento, que os alunos matriculados na instituição residem no distrito sede.

A Antropologia, bem como as Ciências Humanas, investiga “a manifestação dos fenômenos religiosos em diferentes culturas e sociedades enquanto um dos bens simbólicos resultantes da busca humana por respostas aos enigmas do mundo, da vida e da morte” (BRASIL, 2017, p. 436). Subsidiados pelos conceitos e ideias advindos desse universo, implementamos nossa atividade.

A pesquisa consistiu na busca pelo conhecimento além dos muros da escola, ao tempo que, com isso, seria possível construir novos conhecimentos. Tal estudo se deu de forma qualitativa, tratando de redesenhar, na memória dos alunos, ruas e avenidas de São Gonçalo do Amarante, marcadas pelos locais sagrados, formando uma cartografia do sagrado, ao apresentar em sua composição diversos elementos que remetem às mais variadas formas de religiosidade.

Cada equipe escolheu livremente seu “local sagrado”, possibilitando, dessa forma, realizar as observações pertinentes e obter os dados necessários para a construção do objeto final e sua apresentação. Alunos de vinte e três turmas da EMSG estiveram em campo realizando as devidas observações, capturas de imagens e registros escritos.

Serviu-nos como instrumento de coleta de dados, um roteiro semiestruturado elaborado de forma a possibilitar aos alunos seguir com a proposta conforme o que o campo oferecia no momento da visita in loco. Nesse momento, “olhar, ouvir e escrever” (OLIVEIRA, 1996) tornou-se a centralidade do exercício, pois evitar conversas e não buscar qualquer tipo de informação pela oralidade era uma regra; tratava-se de uma atividade de observação e escuta, mas sem diálogo. Adotamos esta regra para evitar contato dos alunos com pessoas desconhecidas. Além de material para anotações, os alunos utilizaram seus smartphones e/ou tablets para captura de imagens dos/nos locais observados.

Foram produzidos, ao longo de um mês, setenta e quatro textos, elaborados pelos alunos, detalhando suas observações e o processo da pesquisa de campo. Conforme levantamento realizado ao final do trabalho de pesquisa, estão entre os locais visitados: a Igreja Matriz de São Gonçalo do Amarante (33 relatórios), o Cemitério Municipal de São Gonçalo do Amarante (24 relatórios), o Santuário de Nossa Senhora da Assunção (08 relatórios), as Igrejas Evangélicas – diversas (07 relatórios), o Patronato Cleide Alcântara (01 relatório), e uma Igreja Católica – capelinha (01  relatório).

Os textos foram construídos de forma diversificada, conforme os níveis de ensino e conhecimento prévio do local visitado, baseando-se em um modelo comum. Neles foram incluídos a localização, histórico, fotografias e desenhos dos sítios visitados. Os trabalhos apresentam as concepções dos alunos acerca dos locais visitados e a tradução de suas referências, tanto posteriores quanto anteriores à atividade de campo realizada.

O material produzido versa sobre as percepções dos alunos acerca do local escolhido, apontando suas impressões prévias e o que mudou em suas concepções após as visitas nas quais adotaram o papel de observadores das práticas e ações realizadas no local.

De acordo com os alunos do 7º ano, “a pesquisa tornou-se um elemento de descontração, de conhecimento. Por meio dela o jovem abre sua curiosidade e tem a possibilidade de descobrir coisas, compreendendo as que muitas vezes não ocorre no ensino baseado na reprodução”.

Para Ferreira e Brandenburg (2019, p. 517), “a pessoa docente de Ensino Religioso necessita estar preparada para dialogar com as diferentes interfaces que o Ensino Religioso faz com outras áreas”. Essa interface que os autores apontam como essencial é, de fato, fundamental, sobretudo pela fragilidade da disciplina dentro de instituições que tendem a priorizar aquelas que atendem diretamente às avaliações externas, categorizando as demais em segundo plano. 

Considerações finais

As contribuições da Antropologia para o currículo da disciplina de Ensino Religioso são objeto de um breve debate neste texto. Evidenciamos que a Antropologia pode contribuir para a formação dos alunos na disciplina de Ensino Religioso, fornecendo conhecimentos e metodologias para o estudo das diferentes religiões e suas relações com a cultura e a sociedade, num tempo marcado pela pluralidade de formas de pensar que coexistem e se tensionam, o que demanda uma formação contrária à intolerância religiosa. A Antropologia permite aos professores ampliar a compreensão dos alunos sobre a diversidade religiosa e cultural através do uso de métodos e técnicas de pesquisa para a construção de conhecimento significativo, na medida em que o próprio aluno contribui para a construção do conhecimento.

A disciplina de Ensino Religioso, atendendo às diretrizes da BNCC, constrói um novo currículo sob a aba do estado laico, alargando o espaço entre as atividades da disciplina e o proselitismo. Ao assumir a tarefa de aprofundar as temáticas religiosas de forma científica, o Ensino Religioso tende a aproximar-se das Ciências Humanas, sobretudo da Antropologia.

Ao utilizar conceitos e técnicas de pesquisa antropológicas na atividade mencionada, buscamos possibilitar aos alunos um avanço substancial no processo de ensino e aprendizagem, ao passo que nos afastamos dos modos de ensino que se encerram entre as paredes da escola e ocupamos a cidade a fim de produzir conhecimento.

Referências

BERGER, Peter. O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985.

BERGER, Peter. Os Múltiplos Altares da Modernidade: rumo a um paradigma da religião numa época pluralista. Petrópolis: Vozes, 2017.

BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1891. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em: 22 fev. 2023.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. LDB – Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular – Educação é a Base. Brasília, MEC/CONSED/UNDIME, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf Acesso em: 12 fev. 2023.

CUNHA, Luiz Antônio. Três décadas de conflitos em torno do ensino público: laico ou religioso? Educ. Soc., Campinas, v. 39, n. 145, p. 890-907, dez. 2018. DOI: 10.1590/ES0101-73302018196128. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/4TvfdByVQJ4Yq8F4cffsBVp/?lang=pt. Acesso em: 12 fev. 2023.

FERREIRA, Renan da Costa; BRANDEBURG, Laude Erandi. O Ensino Religioso e a BNCC: possibilidades de se educar para a paz. Caminhos. Goiânia, v. 17, n. 2, p. 508-522, maio./ago. 2019. DOI: 10.18224/cam.v17i2.7313. Disponível em: https://seer.pucgoias.edu.br/index.php/caminhos/article/view/7313. Acesso em: 12 fev. 2023.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do Antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista de Antropologia, [S. l.], v. 39, n. 1, p. 13-37, 1996. DOI: 10.11606/2179-0892.ra.1996.111579. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111579. Acesso em: 21 fev. 2023.

[1] Doutorando em Antropologia pelo PPGA/UFPB. Mestre em Antropologia pelo PPGA/UFC-UNILAB. Especialista em Ensino Religioso pela FUNIP. Licenciado em Pedagogia pela UNIDOMBOSCO. Licenciado e bacharel em Ciências Sociais pela UFC. Professor da Educação Básica. Membro da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Pesquisador do Laboratório de Antropologia e Imagem (LAI/UFC). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4832-8825. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7628264779459752.

[2] Professor Associado III, Departamento de Ciências Sociais, Antropologia, UFC. Professor permanente do Programa Associado de Pós-Graduação em Antropologia UFC-UNILAB. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC. Membro da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Coordenador e pesquisador do Laboratório de Antropologia e Imagem (LAI/UFC). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9287-1801. Lattes: https://lattes.cnpq.br/9438816902023564.

Antonio Renaldo Gomes Pereira

Antonio Renaldo Gomes Pereira

Doutorando em Antropologia pelo PPGA/UFPB. Mestre em Antropologia pelo PPGA/UFC-UNILAB. Especialista em Ensino Religioso pela FUNIP. Licenciado em Pedagogia pela UNIDOMBOSCO. Licenciado e bacharel em Ciências Sociais pela UFC. Professor da Educação Básica. Membro da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Pesquisador do Laboratório de Antropologia e Imagem (LAI/UFC). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4832-8825. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7628264779459752.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Capa do Livro

Ciências Humanas Atualização de Área janeiro e fevereiro de 2023

DOI do Capítulo:

10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/

1732

DOI do Livro:

10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/

1609

Capítulos do Livro

Livros Acadêmicos

Promova o conhecimento para milhões de leitores, publique seu livro acadêmico ou um capítulo de livro!