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Livros Acadêmicos

2. O esvaziamento político-curricular e a emergência da divulgação científica para a sala de aula

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Brenno Gomes de Barros [1]

Hugo José Coelho Corrêa de Azevedo [2]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/1622

O Currículo

O currículo é o conjunto de experiências e conhecimentos planejados e organizados para serem oferecidos aos estudantes em uma escola ou instituição de ensino. Em outras palavras, o currículo é o guia que determina o que será ensinado, como será ensinado e quando será ensinado (COSTA; LOPES, 2018).

É importante assinalar, que o currículo e os conhecimentos científicos que são sistematizados no corpo curricular não são artefatos neutros, são construções históricas, políticas e econômicas da luta entre classes hegemônicas que selecionam o que se torna importante para ser lecionado para a sociedade (YOUNG, 2018).

Apple (2016), argumenta que o currículo é uma expressão da ideologia dominante em uma sociedade, e que ele é frequentemente usado para reforçar as relações de poder e as estruturas sociais existentes. Ele acredita que o currículo deve ser desenvolvido de maneira a questionar essas estruturas e a promover a igualdade, a justiça social e a democracia.

A Reforma do “Novo” Ensino Médio e o Esvaziamento Curricular 

A reforma do ensino médio é uma iniciativa do governo brasileiro para modernizar e melhorar a qualidade da educação secundária no país. A reforma foi implementada em 2017 e tem como objetivo principal preparar os estudantes para o mercado de trabalho e para a continuidade dos estudos (DA SILVA; BOUTIN, 2018).

Entre as principais mudanças implementadas pela reforma estão a ampliação da carga horária de 200 para 400 horas por ano, a inclusão de disciplinas como Empreendedorismo e Educação Financeira, e a flexibilização do currículo, permitindo que escolas e professores tenham mais liberdade para escolher as disciplinas a serem ensinadas.

A reforma também incluiu a introdução de percursos formativos, que permitem aos estudantes escolher uma área de concentração de acordo com seus interesses e habilidades. Esses percursos são divididos em três categorias: Ciências Humanas e Sociais, Ciências da Natureza e Matemática, e Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.

O esvaziamento curricular é uma preocupação comum entre críticos da reforma do ensino médio no Brasil. De acordo com esses críticos, a reforma do ensino médio pode levar a um esvaziamento curricular, ou seja, uma diminuição da quantidade e da qualidade de conteúdo ensinado na escola (LINO, 2017; FERRETTI, 2018).

Isso pode ocorrer porque a reforma enfatiza a oferta de trilhas temáticas, como saúde, meio ambiente e tecnologia, e permite que as escolas ofereçam menos disciplinas tradicionais, como matemática, história e ciências. Além disso, a reforma também permite que as escolas priorizem a oferta de disciplinas profissionalizantes, como administração e tecnologia da informação, em detrimento de disciplinas mais gerais, como literatura e filosofia (CÁSSIO; GOULART, 2022).

Esse esvaziamento curricular pode ter um impacto negativo na formação dos estudantes, pois eles podem perder a oportunidade de adquirir conhecimentos amplos e profundos sobre assuntos importantes, como os de origem científica. Além disso, também pode prejudicar a preparação dos estudantes para o ensino superior e a carreira, já que eles podem não ter uma formação sólida em disciplinas importantes (LIMA; MACIEL, 2018). Todavia, precisamos destacar o link que existe entre a reforma do “Novo” ensino médio com a crescente demanda das políticas neoliberais para o processo educacional. Uma vez que, a hegemonia empresarial atua na construção curricular e na seleção dos saberes a serem sistematizados no currículo (ESQUINSANI; SOBRINHO, 2020).

A forma como um estudante enxerga o mundo exerce uma forte influência sobre seu pensamento, influenciando diretamente em sua habilidade de questionar, tomar decisões e aceitar os eventos que ocorrem à sua volta. A Ciência, por sua vez, deve ser entendida como uma forma de pensamento que se dedica a investigar tanto os eventos mais insignificantes quanto aqueles que são grandiosos e complexos durante a vida e formação desse cidadão (AMARO, 2020).

Posto isso, de que forma as competências gerais poderão ser desenvolvidas, considerando a ausência de aplicação das disciplinas tradicionais preconizadas na BNCC? O desenvolvimento de competências gerais, como a supracitada, exige a capacidade de aplicar conhecimentos e habilidades de diferentes áreas em situações diversas e complexas. De que maneira o estudante pode promover a integração de suas ideias e hipóteses em um contexto interdisciplinar, caso não possua conhecimento dos conceitos básicos, nem domínio sobre as habilidades desenvolvidas nas áreas correspondentes? A falta de integração e interdisciplinaridade pode causar a fragmentação e o sucateamento da educação básica em decorrência do esvaziamento curricular ocasionado pela reforma do novo ensino médio.

A Divulgação Científica: a Emergência em Frente a um Esvaziamento Curricular 

Num momento no qual se questiona o futuro da educação básica do país, a Divulgação Científica (DC) se destaca como uma importante ferramenta para contribuir com a formação de uma cultura científica entre os estudantes, incentivando o pensamento crítico e o interesse pela ciência e tecnologia. Nesse sentido, é possível incentivar a curiosidade em relação à ciência, promovendo a formação de indivíduos mais críticos, informados e engajados na busca por soluções para os desafios do mundo contemporâneo (CUNHA e GIORDAN, 2009). Uma das propostas para se desenvolver leitura crítica de textos é através de textos em DC. Autores como Martins et al. (2001) sugerem que o uso de estratégias didáticas que valorizam a exposição dos alunos a diferentes tipos de textos científicos pode trazer diversos benefícios. Entre esses benefícios, destacam-se o acesso a uma maior diversidade de informações, o desenvolvimento de habilidades de leitura, bem como o domínio de conceitos, formas de argumentação e terminologia científica. Ao conhecer uma variedade de tipos de textos científicos, desde reportagens de mídia até artigos originais de cientistas, os alunos se tornam mais aptos a se tornarem participantes da cultura científica, com capacidade para compreender e interpretar a linguagem técnica utilizada em diferentes contextos científicos.

Ferreira et al. (2012) demonstra que, classicamente, a DC tem papel histórico como um recurso complementar ao Ensino de Ciências na educação básica. Além desta aplicação dentro do ensino formal, também há outros locais – conhecidos como espaços não formais de ensino – onde a DC é protagonista (JACOBUCCI, 2008) como: Museus de ciência, Planetários, Centros culturais e Feiras de ciências. Contudo, destaca-se atualmente pela proporção de alcance a DC que ocorre em ambientes virtuais.

Sem a intervenção e a orientação da escola, em qual outro espaço seria possível reter a atenção desses alunos? Fato é que não é só a forma de comunicação desse público-alvo mudou, mas também a forma de consumo de informações online da sociedade em geral. É preciso estimular uma mudança atitudinal dentro das universidades e instituições de pesquisa com o objetivo de apoiar iniciativas em DC que busquem essa conexão com o público em geral, tendo em vista que já se vive uma crise epistêmica durante a era pós-verdade e agravada no cenário brasileiro a partir do desmonte da educação básica.

Evidentemente, não é a premissa nem a intenção da DC propor uma solução direta aos problemas gerais enfrentados na educação brasileira, tendo em vista que são problemas acumulados ao longo de várias décadas e que exigem soluções multidisciplinares. Por esse mesmo motivo, a DC não substitui as bases do ensino formal e não deve ser vista como uma atividade isolada, mas sim como parte integrante de um sistema educacional mais amplo e estruturado – haja vista que é inclusive utilizada como material complementar ao ensino de ciências .Entretanto, num contexto de déficit onde as competências e habilidades relacionadas às ciências da natureza não estão sendo desenvolvidas, a DC emerge como um “bote salva-vidas” frente a emergência de um esvaziamento curricular e ao consequente sucateamento do ensino formal. Paralelamente a isso, outros desafios são postulados atualmente com o advento das redes sociais. Diariamente esses cidadãos em formação continuam sendo bombardeados de informações a cada vez que rolam seu feed para cima – sem ao menos ter suas competências e habilidades completamente desenvolvidas no ambiente escolar para dar-lhes o mínimo de suporte possível para diferenciar se o que estão assistindo é verdade ou não. Este objetivo pode ser elucidado na quinta competência geral preconizada pela BNCC:

Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva. (BRASIL, 2018, p. 9).

Propõe-se, portanto, a sensibilização do público jovem através da DC em redes sociais neste momento emergencial de desenvolvimento de cidadãos em formação enfrentar desafios sociais e culturais relacionados à ciência e à tecnologia.

Considerações Finais

Diante do discutido, podemos compreender a importância da divulgação científica perante o processo de esvaziamento curricular nos espaços formais de ensino, dado o avanço das políticas neoliberais no constructo escolar. Tais políticas são negativas para a compreensão científica dos saberes, uma vez que, o neoliberalismo investe em processos rápidos e rasos, enquanto a construção dos saberes científicos em sala de aula ocorre de forma gradual.

Portanto, precisamos repensar as políticas curriculares para o Ensino Médio e sua finalidade para a formação cidadã dos alunos. Posto isso, a compreensão científica é um direito. Construir e entender interfaces dialéticas da divulgação científica para o “chão de escola”, é de severa importância para o processo formativo e identitário do aluno enquanto cidadão acerca dos conhecimentos científicos, o qual fará uso no decorrer da sua vida em sociedade.

Referências

AMARO, Gracieli Cristina Guerra et al. Discutindo ciência e pseudociência com estudantes do ensino fundamental-anos finais. 2020. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências) – Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2020.

APPLE, Michael W. Ideologia e currículo. Artmed Editora, 2016.

BASSO, Jaqueline Daniela; NETO, Luiz Bezerra. As influências do neoliberalismo na educação brasileira: algumas considerações. Itinerarius Reflectionis, v. 10, n. 1, 2014.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.

CÁSSIO, Fernando; GOULART, Débora Cristina. A implementação do Novo Ensino Médio nos estados: das promessas da reforma ao ensino médio nem-nem. Retratos da Escola, v. 16, n. 35, p. 285-293, 2022.

COSTA, Hugo Heleno Camilo; LOPES, Alice Casimiro. A contextualização do conhecimento no ensino médio: tentativas de controle do outro. Educação & Sociedade, v. 39, p. 301-320, 2018.

CUNHA, Márcia Borin; GIORDAN, Marcelo. A divulgação científica como um gênero de discurso: implicações em sala de aula. In: Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências, 7. Anais… Florianópolis: UFSC, 2009.

DA SILVA, Karen Cristina Jensen Ruppel; BOUTIN, Aldimara Catarina. Novo ensino médio e educação integral: contextos, conceitos e polêmicas sobre a reforma. Educação, v. 43, n. 3, p. 521-534, 2018.

ESQUINSANI, Rosimar Serena Siqueira; SOBRINHO, Sidinei Cruz. O retrocesso da reforma do ensino médio, a BNCC, o neoliberalismo educacional e a marginalização dos Institutos Federais-IFs. Revista Inter Ação, v. 45, n. 1, p. 151-168, 2020.

FERRETTI, Celso João. A reforma do Ensino Médio e sua questionável concepção de qualidade da educação. Estudos avançados, v. 32, p. 25-42, 2018.

FERREIRA, L. N. A.; QUEIROZ, S. L. Textos de divulgação científica no ensino de ciências: uma revisão. Alexandria, Florianópolis, v. 5, n. 1, p. 3-31, 2012.

JACOBUCCI, Daniela Franco Carvalho.  Contribuições dos espaços não formais de educação para a formação da cultura científica. Emextensão, Uberlândia, v.7, 2008.

LIMA, Marcelo; MACIEL, Samanta Lopes. A reforma do Ensino Médio do governo Temer: corrosão do direito à educação no contexto de crise do capital no Brasil. Revista Brasileira de Educação, v. 23, 2018.

LINO, Lucilia Augusta. As ameaças da reforma: desqualificação e exclusão. Retratos da Escola, v. 11, n. 20, p. 75-90, 2017.

MARRACH, Sonia Alem et al. Neoliberalismo e educação. Infância, Educação e Neoliberalismo. São Paulo: Cortez, p. 42-56, 1996.

MARTINS, I.; CASSAB, M.; ROCHA, M. B. Análise do processo de re-elaboração discursiva de um texto de divulgação científica para um texto didático. In: Encontro Nacional De Pesquisa Em Educação Em Ciências, 3., 2001, Atibaia. Anais Atibaia, 2001.

YOUNG, M. F. D. A knowledge-led curriculum: Pitfalls and possibilities. Impact, n. 4, 2018.

[1] Mestrando em Ensino de Biociências e Saúde (IOC/FIOCRUZ). ORCID: 0009-0001-6215-7818.

[2] Doutorando em Ensino em Biociências e Saúde (FIOCRUZ/IOC). ORCID:  0000-0003-1744-4831.

Brenno Gomes de Barros

Brenno Gomes de Barros

Mestrando em Ensino de Biociências e Saúde (IOC/FIOCRUZ). ORCID: 0009-0001-6215-7818.

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Ciências Humanas Atualização de Área janeiro e fevereiro de 2023

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