REVISTACIENTIFICAMULTIDISCIPLINARNUCLEODOCONHECIMENTO

Revista Científica Multidisciplinar

Pesquisar nos:
Filter by Categorias
Administração
Administração Naval
Agronomia
Arquitetura
Arte
Biologia
Ciência da Computação
Ciência da Religião
Ciências Aeronáuticas
Ciências Sociais
Comunicação
Contabilidade
Educação
Educação Física
Engenharia Agrícola
Engenharia Ambiental
Engenharia Civil
Engenharia da Computação
Engenharia de Produção
Engenharia Elétrica
Engenharia Mecânica
Engenharia Química
Ética
Filosofia
Física
Gastronomia
Geografia
História
Lei
Letras
Literatura
Marketing
Matemática
Meio Ambiente
Meteorologia
Nutrição
Odontologia
Pedagogia
Psicologia
Química
Saúde
Sem categoria
Sociologia
Tecnologia
Teologia
Turismo
Veterinária
Zootecnia
Pesquisar por:
Selecionar todos
Autores
Palavras-Chave
Comentários
Anexos / Arquivos

O movimento negro e a educação na primeira metade do Século XX

RC: 100115
1.041
5/5 - (1 vote)
DOI: ESTE ARTIGO AINDA NÃO POSSUI DOI
SOLICITAR AGORA!

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

JESUS, Fernando Santos de [1], SILVA, Erivelton Thomaz da [2], MEDEIROS, Fabrícia Cristina Araújo de Souza [3]

JESUS, Fernando Santos de. SILVA, Erivelton Thomaz da. MEDEIROS, Fabrícia Cristina Araújo de Souza. O movimento negro e a educação na primeira metade do Século XX. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 06, Ed. 10, Vol. 08, pp. 86-104. Outubro 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/o-movimento-negro

RESUMO

Este estudo disserta sobre as estratégias dos movimentos negros na primeira metade do século XX para a melhor inserção de negros no sistema escolar brasileiro, dado o fato que se trata do período em que o Brasil estruturou o seu sistema escolar, através das reformas educacionais, e que os negros, recém egressos do sistema escravocrata, ansiavam por cidadania. Nesse sentido, se impõe a pergunta: quais as estratégias do movimento negro da época para combater o racismo e escolarizar a população negra? Também investigamos sobre as contradições dos próprios movimentos e como se deu a política educacional do referido período. Partimos de pressupostos teóricos diversos, construindo uma colcha de retalhos epistemológicos, girando em torno da sociologia e da história, utilizando autores que refletem sobre os processos educativos e os respectivos diálogos com a sociedade. O objetivo geral foi analisar o contexto histórico a partir da ótica do movimento negro da época. Utilizamos como metodologia a análise de conteúdo, que consiste na leitura de livros e artigos, extraindo os conteúdos explícitos e implícitos como objeto de construção narrativa. Consideramos que no panorama educacional da época os movimentos negros fizeram o que foi possível para promover cidadania para os negros, utilizando o sistema educativo como lugar chave para que emergisse uma nova proposta de sociedade, na qual os negros pudessem ascender socialmente com dignidade e em pé de igualdade com as demais raças existentes no país.

Palavras-chave: Negros, Sistema Escolar, Movimento Negro.

1. INTRODUÇÃO

Este estudo analisa um período que marca substancialmente a educação brasileira, pois nele estão inscritas as diversas tentativas de modernização da sociedade, que passa pela crescente industrialização, urbanização, criação dos sistemas de saúde e educação[4]. Nada disso descolado da ambiência internacional, que influencia diretamente no modo com que alguns setores dos movimentos negros se articulam, e que perdura, inclusive, até a décadas posteriores. O EUA se torna, portanto, a grande aspiração ideológica de movimentos negros e do modelo educacional.

Ainda que os movimentos negros estivessem balizados pelos negros estadunidenses como modelo a ser seguido, e, por conseguinte, não tivessem percebido que as particularidades nos fazeres culturais sofreriam prejuízos ao serem enquadrados em um ordenamento moral e sistêmico construído longe da complexa história dos negros brasileiros, o acerto se dá pela insistência em requerer acesso à educação formal, ainda que o incipiente sistema escolar da época fosse aderente a teses que inferiorizavam aos negros[5].

Segundo Risério (2012), o que acena para essa perspectiva são as necessárias reflexões sobre os motivos que apontam determinadas diferenças entre os negros nos EUA e no Brasil. Para o autor, o domínio de saberes educacionais negados aos negros durante o regime escravocrata no Brasil tem particularidades não encontradas nos EUA e produziram efeitos de maior dispersão em relação aos códigos sociais que deveriam dominar para melhor organizar a luta contra o racismo.

As contradições e as linhas que se desenham em um painel totalmente complexo, cheio de contradições, apresentam possibilidades para a melhor compreensão do painel social que margeia as experiências de vida dos indivíduos, ou da coletividade em que esses se inscrevem se tornando instrumento de amplificação das teorias cunhadas, as quais os grandes estudiosos desse período tentavam provar, ou seja, a inferioridade biológica e moral dos negros em relação aos brancos.

Por este motivo, a pergunta que se impõe é: quais as estratégias do movimento negro da época para combater o racismo e escolarizar a população negra? Portanto, o nosso objetivo é apresentar, de modo geral, um panorama do recorte temporal que selecionamos, analisando fatos e sinalizando possibilidades, de forma crítica e imparcial, utilizando ferramentas teóricas de diversas vertentes para que as investigações estejam enquadradas dentro da multiplicidade necessária para que o tecido analítico seja o mais abrangente possível.

2. O PANORAMA GERAL

Este período da história é realmente marcado por diversas contradições e investidas institucionais, que se nutrem do modelo estético e comportamental para impingir um ethos a ser perseguido, por meio da aquisição de um habitus que encurta o caminho do sucesso e do acesso aos bens sociais. De modo geral, a centralização do gosto e da noção positiva dos dispositivos simbólicos que devem ser adotados como princípios de modernidade, não possuíam critérios bem sistematizados que justificassem a adesão brasileira a estes códigos, basta conceber que existe uma cultura positiva e que ela seja o passaporte para o ingresso do país em um novo estágio da humanidade, para se acreditar que o infortúnio do período escravocrata seja superado.

Com isso, até mesmo os espíritos dotados de maiores suspeições, acabam sendo ludibriados pelas teorias e pelas políticas encobertas por trás de todos os arranjos sistêmicos racistas. Nesse sentido, é possível entender que os primeiros anos de república, no Brasil, houve propostas positivas em alargar a oferta da educação, mas que não estavam despidas dos operativos racistas que lastreavam o pensamento social brasileiro, ancorado em teses que se ocupavam em demonstrar ou encaminhar soluções que tinham por finalidade o desaparecimento do “elemento negro”[6] do território nacional.

Recuperando um pouco essa história, e de acordo com Müller (2003), ao final do século XIX se observa que a população brasileira era composta majoritariamente por negros e indígenas, e a esperança das elites nacional era que a importação de estrangeiros europeus para o Brasil cumprisse o objetivo de propiciar ao país o progresso e a modernidade, improváveis aos negros, dadas as inferioridades congênitas dessas pessoas. Nesse sentido, a autora afirma que o processo de integração dos negros na docência seria um grande entrave, pois, como seria possível um “ser” inferior instruir alguém?

É importante considerar que havia negros educadores, professores, inclusive, de respeitadas instituições de ensino. A reflexão a ser feita é a seguinte: se a educação é colocada como sinônimo de preparação para o desenvolvimento tecnológico, econômico e social de um país, logo passará pelo crivo da escola o tipo ideal de povo que se pretende formar. Dessa maneira, o elemento identificado como fonte de atraso, não pode estar na dianteira de uma tarefa de gigantesca envergadura como essa.

Foi paulatino o processo de formatação da escola para assumir essa tarefa [criar um povo], principalmente no que se refere a cooptação de pessoal (no caso de professoras). De certa maneira, ocorreu um processo de branqueamento do magistério do Rio de Janeiro e, com muito mais ênfase, um processo de branqueamento do alunado dos cursos de formação de professores. Esse processo se inicia na década de 1920 e atinge seu ponto máximo quando a Escola Normal desaparece para dar lugar ao Instituto de Educação em 1932. (MÜLLER, 2003, p.77)

Fica evidenciado que com o embranquecimento do alunado, não tardaria para formar quadros essencialmente de professores brancos. Outro dado importante de ser examinado consiste no fato de que ainda que a profissão docente oferecesse baixos rendimentos, ela possibilita segurança, ou seja, em uma sociedade sem direitos trabalhistas e sem garantias de contratação, a atividade que daria estabilidade financeira era perseguida por parcela significativa da sociedade (MÜLLER, 2003).

Segundo Müller (2003), a Escola Normal teve seu início em 1880 e abrigava pessoas de baixos rendimentos financeiros e concebeu em seu quadro profissional os professores com graus limitados de instrução. Seu funcionamento alternava entre noturno e diurno, o que facilitava o ingresso das pessoas menos abastadas. Nesse sentido, a autora considera que não havia diferença entre professores negros e brancos em relação à questão de rendimentos. Inclusive relata a existência de um professor chamado Hemetério José dos Santos (1858-1939), filólogo e professor de duas importantes escolas: o Colégio Militar do Rio de Janeiro e a Escola Normal no mesmo estado.

Assim, como os indicadores sociais não eram animadores no final do século XIX, o exercício docente foi o subterfúgio para aqueles que possuíam maior nível de escolarização. Segundo a autora, isso está acrescido às outras vantagens oferecidas pelos sistemas municipais e estaduais de ensino. Ainda que desde o ano de 1890 o exercício da docência estivesse reservado para as pessoas portadoras de diploma de Ensino Normal, aprovados em concurso público, as sobras de vagas poderiam ser preenchidas por pessoas sem formação, mas que, no entanto, mediante concurso, se mostrassem idôneas para o magistério (MÜLLER, 2003, p.82). A autora ainda destaca outra possibilidade.

A forma de organização do quadro de professores era bastante elástica. Permitindo àqueles que necessitam concluir seus estudos, o fizessem exercendo o magistério em funções hierarquicamente inferiores, caso dos adjuntos. Não obtendo vaga no serviço público, a professora normalista ainda poderia exercer o magistério, mesmo não tendo sido aprovada no quadro regular do município, caso dos professores subvencionados. Esses recebiam da municipalidade uma pequena quantia para ministrar aulas em suas casas. Os professores que haviam trabalhado cinco anos no ensino municipal obtinham a vitaliciedade. (MÜLLER, 2003, p.82)

A lei municipal de ensino do ano de 1893, criou uma divisão entre professores urbanos e suburbanos, mantendo, também, as diferenciações entre catedráticos e adjuntos[7].  Segundo Müller (2003), aos professores suburbanos eram ofertadas as alocações distantes dos centros mais urbanizados e de melhor acomodação de infraestrutura, uma vez que o critério seria dado por ordem de colocação no concurso. Segundo a autora, também havia docentes que ingressavam por meio de um período de trabalho gratuito no município até que, posteriormente, recebessem uma carta de recomendação da direção da escola, atestando a necessidade de absorção desse professor.

Müller (2003) e Dávila (2005) concordam que o as zonas periféricas estão em franco crescimento na passagem do século XIX para o XX em decorrência de políticas específicas que visavam a higienização das grandes cidades, buscando atenuar os efeitos colaterais de um país que cresceu sem planejamento urbano e sob a (in)gerência de colonizadores aventureiros, modo com que Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) adjetivou os portugueses em seu clássico “Raízes do Brasil”, lançado em 1936.

Um grande exemplo dessas medidas se inscreve no movimento “bota-abaixo”, promovido pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro Francisco Pereira Passos (1836-1913), quando buscou modernizar aquela cidade aos moldes franceses. Essas reformas tiveram o início desde o ano de 1903, quando Pereira Passos determinou o alargamento de avenidas, a demolição de antigos casarões, a abertura de ruas e o combate às epidemias de cólera, varíola e febre amarela (DÁVILA, 2005). Com efeito, os custos da modernização das áreas centrais fariam os preços dos imóveis subirem, empurrando as pessoas de menor poder aquisitivo para as zonas periféricas. Nessa “diáspora interna” a maioria era composta por pessoas negras.

Esse fato é assinalado por Dávila (2005) no que concerne à divisão regional brasileira. É possível observar que há um investimento maior do erário público nas zonas urbanas das cidades que se desenvolvem com maior velocidade, que são os casos de Rio de Janeiro (Distrito Federal) e São Paulo. Esses recursos se mantinham concentrados na construção, na compra e na melhoria de imóveis que funcionariam como escolas. Cabendo aqui ressaltar que se tratava de um sistema que não recebia grandes investimentos e que impactou, posteriormente, em disparidades gigantescas entre os espaços urbanos e rurais.

Além dessas questões estruturais mais “técnicas”, Dávila (2005) afirma que por dentro do sistema educacional que se inicia no Brasil (com as reformas educacionais do Ceará entre 1922 e 1923, Distrito Federal – Rio de Janeiro em 1928 e São Paulo entre 1931 e 1932), um exercício contínuo de tentar embranquecer a população utilizando o sistema educacional como campo de combate ao que acreditavam ser motivo de atraso para o Brasil. Isto significa dizer que o exercício da higiene e de modelos de alfabetização, importados da pedagogia estadunidense, deveriam ser introduzidos e testados no ambiente escolar, sob a esperança de obter resultados no conjunto da sociedade.

Não podemos deixar de considerar que os sujeitos, ainda hoje celebrados e vistos como os expoentes máximos da educação brasileira, se consolidaram enquanto lideranças políticas sendo partícipes e gestores de políticas educacionais que tinham como princípio a consolidação daquilo que podemos chamar de “eugenia de estado”. Por esse motivo, se torna imprescindível traçar uma pequena biografia de cada um dos indivíduos que compunha a tríade mentora do pleito pela Escola Nova da segunda década do século XX[8].

Iniciamos por Lourenço Filho. Nascido em 10 de março de 1897 em Porto Ferreira-SP, estudou em Pirassununga entre 1912 e 1914, e se diplomou em São Paulo, na escola normal secundária Praça da República, em 1916.  Em 1921 foi nomeado professor de Psicologia e Pedagogia na Escola Normal de Piracicaba. Entre 1922 e 1923 dirigiu a reforma da instrução pública no Ceará e lecionou na escola normal de Fortaleza. Em 1925 e 1930 retornou para a Escola Normal de Piracicaba e depois foi para a escola normal Caetano de Campos em São Paulo, onde lecionou Psicologia e Pedagogia. No final desse período publicou, em cinco lições, o livro “Introdução ao Estudo da Escola Nova”.

O segundo escolanovista[9] seria Fernando de Azevedo. Nasceu em São Gonçalo do Sapucaí-MG em 20 de abril de 1894. Estudou o preparatório para o ginásio em sua cidade de origem, entre 1901 e 1902, ingressando posteriormente no colégio Anchieta, na cidade de Nova Friburgo-RJ, que era uma escola jesuítica. Isto ocorreu entre os anos de 1903 a 1909. De 1909 a 1914 fez parte da ordem dos jesuítas e durante esse período lecionou no Colégio Luiz Gonzaga, uma escola em Itu-SP. Em 1914 ingressou na faculdade de direito no Rio de Janeiro e se formou posteriormente em São Paulo (1918 – Faculdade Largo São Francisco). Exerceu o magistério a partir do ano de 1914. Foi professor catedrático de sociologia em 1931 e membro da Sociedade Eugênica de São Paulo.

Por último, Anísio Teixeira. Nascido em Caetité, no estado da Bahia, em 1900, estudou na escola de Dona Teodolina Lobão (primeira mulher a lecionar em classe de homens em Caetité), passando depois pela escola de sua tia, Prescila Spínola. Realizou o ensino secundário em escolas jesuítas. Posteriormente, formou-se em bacharel em direito, curso iniciado na Bahia e concluído no Rio de Janeiro em 1922. Fez mestrado em Columbia em 1929, tendo estudado com Dewey, de quem traduziu ensaios quando retornou ao Brasil.

Traçadas as biografias, é importante ressaltar que todos seguiram as tendências políticas e epistemológicas da época. Viveram sob os auspícios da eugenia e participaram da administração pública em várias frentes. Suas maiores aspirações eram pela expansão do ensino laico e gratuito, visando a necessidade de dinamização de um sistema de ensino democrático e moderno. Estavam inspirados nas tendências pedagógicas estadunidenses e realizaram parte de suas trajetórias naquele país.

Os maiores gestores e formuladores de políticas educacionais do período eram racistas. Essa afirmação pode soar contraditória e agressiva, mas o fato é que o modelo de ingresso no sistema de educação, adotado por eles, continham elementos de eugenia, submetendo aos negros uma série de testes e acompanhamentos higienistas que tinham por finalidade a transformação de seus hábitos, e até a modificação estética, na esperança de enquadrá-los nos ideais prescritivos de boa educação e honorabilidade que acreditavam ser indispensáveis para a formação do povo brasileiro.

Se levarmos em consideração que os três pioneiros faziam parte da elite brasileira naquele período, não é de se estranhar tais anseios. Todos eles receberam cargos políticos por nomeação, garantindo-lhes prestígio e livre trânsito em outras atividades. Anísio Teixeira chegou a ser empresário e explorador de minério no Amapá, após se sentir saturado das atividades do mundo da política educacional. Além disso, foi professor em Columbia, onde fizera mestrado, e tradutor de obras estrangeiras, bem como Lourenço Filho, que, igualmente, se dedicou às traduções de clássicos da sociologia europeia, e na potencialização de estudos de Montessori (1870-1952) e Decroly (1871-1932).

Fernando de Azevedo não era diferente, tendo em vista que desenvolvia atividades similares e em conjunto com os seus companheiros. Foi jornalista, sociólogo e economista. Carreiras desenvolvidas através de formação heterodoxa, ou seja, pelo notório saber, adquirido pelo autodidatismo. Fernando talvez tenha sido o mais ativo dos três, no que concerne ao campo curricular, foi ele quem introduziu a disciplina de sociologia no ensino normal desde a reforma do ensino público no Distrito Federal em 1928. Dele também partiu a ideia de dar obrigatoriedade ao ensino de educação física nas escolas.

Inegavelmente contribuíram bastante para a expansão do ensino público e para o avanço de possibilidades pedagógicas, entretanto, sem se distanciar das tendências racistas do referido período, corroborando com elas. Dávila (2005) afirma que o pleito eugenista era documentado e fazia parte das exigências formais de ingresso nas escolas públicas da época.

Uma ficha antropométrica continha o registro do desenvolvimento fenotípico e físico do aluno, enquanto uma ficha de higiene mental registrava sua evolução psicológica. Esses registros acompanhavam os alunos durante todo seu aprendizado e eram utilizados pelos funcionários do sistema escolar para classificar as crianças em diferentes classes ou programas. (DÁVILA, 2005, p.70)

Baseado nessas informações, fica fácil identificar que o estado brasileiro estava ávido por formular um povo, e todos os canais de experimentos, os quais poderiam filtrar aptos e não aptos, que seria a plataforma de implantação de políticas eugênicas. Desse modo, florescem pesquisas que encaminham para a criação de bancos de dados que permitiriam observar mais atentamente os aperfeiçoamentos a serem adotados, na esperança de que nada saísse do controle.

As fichas também forneciam a base para mais pesquisas psicológicas e antropométricas. Os pesquisadores utilizavam esses dados tanto para a sintonia fina dos programas eugênicos do sistema escolar quanto para expandir uma ciência nacional da eugenia que aplicava estrangeiras à mistura particular de raças e condições no Brasil (DÁVILA, 2005, p.70)

Dávila (2005) revela que Lourenço Filho solicitava instrumentos de medição craniana para classificar os estudantes a partir do diâmetro de suas cabeças. Esse fato foi constatado a partir de uma carta de Bastos D´Avila para Lourenço Filho no ano de 1936. Seguindo o caminho de Seyferth (1995), consideramos que Lourenço Filho repetia os preceitos do racismo científico do século XIX, pois, segundo a autora, é quando se estabelecem modos e instrumentos de medição anatômica, a fim de subdividir os grupos humanos em torno de critérios classificatórios, conforme dados antropométricos.

Ainda sobre essa perspectiva, é interessante considerar que o conceito de raça e de racismo estariam situados em momentos distintos no painel historiográfico da humanidade. Segundo Seyferth (2005), ainda que se possa constatar toda uma gama de intentos racistas, desde séculos anteriores ao XX, e até mesmo na antiguidade, como sinaliza Moore (2011), é possível conceber o termo racismo apenas a partir da década de 1930. A justificativa para esse termo surgir nesse período específico se dá pelo fato de que essa “doutrina” opera de modo a determinar a junção entre raça e cultura.

Nesse sentido, devemos considerar que a política educacional brasileira até os anos de 1930 comportava elementos racistas, ainda que o termo racismo não estivesse cunhado enquanto conceito. Se tratava de políticas que adotavam medidas eugênicas, ou seja, legalmente se propunha a fazer a junção de raça e cultura imaginando que fosse possível transformar toda a população brasileira em torno de ideais construídos simbolicamente em acordo com o que o cenário internacional apresentava como indispensável para criação de um povo moderno e produtivo.

3. ALGUMAS ESTRATÉGIAS DOS MOVIMENTOS NEGROS EM RELAÇÃO A EDUCAÇÃO NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Ao considerarmos que neste período a agitação dos movimentos negros se fazia presente, não é demais afirmar que o fato descrito acima estaria perceptível aos olhos das lideranças negras. Domingues (2003) sinaliza para os feitos das coletividades negras, desde o final do século XIX, ao tentarem instituir escolas voltadas para a população negra, antes mesmo do que acontecia nos EUA, mesmo que iniciativas como a de Booker T. Washington (1856-1915), um dos fundadores da Universidade de Tuskegee (1881), situada no Alabama-EUA, criada com o intuito de educar pessoas negras, tenha influenciado outras sinergias posteriores no cenário brasileiro (RISÉRIO, 2012).

Segundo Domingues (2003), algumas dessas escolas conseguiram prolongar sua existência até o início do século XX e educaram, com êxito, algumas pessoas negras. Entretanto, não perduraram como o que se chama de “escolas étnicas”, que surgiram na ambiência social na cidade de São Paulo no início do referido período. O motivo: falta de recursos para manter essas instituições funcionando, dadas as condições da maioria da população negra. Embora o autor tenha se debruçado na cidade de São Paulo, ele afirma que o primeiro colégio dessa envergadura surgiu em Campinas, no ano de 1860, que em 1876 encerrou suas atividades.

Logo após a abolição da escravatura, em 1888, a Sociedade Beneficente Luís Gama funda um colégio, que durou apenas até o ano de 1895 (DOMINGUES, 2003). Já nos primeiros anos do século XX surge a iniciativa de maior êxito, quando um educador negro chamado Francisco José de Oliveira (?-1936) funda uma escola de alfabetização de negros. Esse fato ocorreu no ano de 1902 e em 1903 se consolidou como Colégio São Benedito. No ano de 1910 o colégio passa a ser integrado à Federação Paulista dos Homens de Cor (DOMINGUES, 2003).

Outras experiências da mesma natureza foram catalogadas por Domingues (2003), com destaque para a Escola Raimundo Duprat, datada do ano de 1917, e a escola Progresso e Aurora, fundada em 1908, por um antigo militante abolicionista, Salvador Luís de Paula. O autor assinala que no ano de 1919 essa escola – contrariando a normativa da época – instituiu classes mistas. Ele afirma que essa escola fechou as portas no ano de 1929 devido às dificuldades financeiras. Teria sido a instituição dedicada exclusivamente para a educação da população negra de maior durabilidade.

O painel demonstra que desde o século XIX já havia grande insatisfação em relação ao modelo educacional que se desenhava na realidade brasileira. Fica patente, também, que toda tentativa de organização negra em torno de gerir sua própria educação foi esvaziada pela situação estrutural a qual a população negra fora submetida. Também é possível perceber que essas escolas atravessaram o período das reformas educacionais nas grandes cidades brasileiras, certamente não sendo fruto de escuta dos pioneiros, e tendo seus pleitos e pedagogias suprimidas em nome de um sistema unificado.

Aqui se torna importante dizer que essas escolas negras possuíam uma pedagogia, no uso literal do conceito. Ancorado em Muniz Sodré (2012), é possível dizer que em toda sociedade ou agrupamento de pessoas, há pedagogia, já que a pedagogia se condensa em formas discursivas que encadeiam princípios linguísticos e lógicos que enunciam assuntos a serem desenvolvidos publicamente e no heterogêneo.

Por meio do discurso pedagógico, a educação, no limite, fala de si mesma. E pode falar tanto e de tal maneira que a pedagogia não raro envereda conceitualmente pelos caminhos de uma “teoria do ensino”, independente daquilo que se tem a ensinar. O discurso de algum modo “emancipa” o professor do conteúdo disciplinar específico, levando-o à capacidade suposta de “ensinar qualquer coisa”. (SODRÉ, 2012, p.112)

Nesse sentido, o que estava circunscrito ao modelo pedagógico desse período, encaminhava para a inviabilidade do diálogo com a perspectiva adotada pelos militantes negros, uma vez que a estrutura do estado se edificava em torno de uma possibilidade: a tentativa de apagar da sociedade brasileira tudo aquilo que remetesse aos negros ou se apresentasse como legado do continente africano. Até o livro “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, ser adotado como marco das novas relações raciais no Brasil, se preconizava pela conversão dos negros em cidadãos embranquecidos, físico e moralmente. A escola se tornara o maior laboratório desse intento, com uma poderosa pedagogia racista.

Portanto, e de acordo com o que foi apresentado, não teremos transformações vultosas nesse painel, no que se refere a uma mudança de atitude do estado brasileiro em relação às políticas ofertadas para a população negra. Ao contrário, os anos de 1930 foram de bastante perseguição e de consolidação das medidas eugenistas por dentro do aparato legal que norteava a pedagogia e política educacional. Esse panorama ensaia os anos 1940 e será resgatado em alguns traços, pois alguns demonstrativos são necessários e contribuem para a pavimentação da compreensão que projetamos a construir.

4. A EXTENSÃO DOS ANOS DE 1940 AOS ANOS 1950: UM SOBREVOO

Segundo Pereira (2005), o fim do Estado Novo conduziu o movimento negro para outras frentes reivindicativas e novas formas de organização. Tendo como base as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, manifestações de cunho político/cultural emergiram em meio ao cenário, que tinha o governo populista de Getúlio Vargas (1884-1952) em sua fase de transição para uma perspectiva mais amena e voltada para a gerência de um estado em franco desenvolvimento industrial e tecnológico, propiciado pelo panorama internacional, de tensão e conflito, em decorrência da Segunda Grande Guerra Mundial.

É nos anos de 1940 que surge no cenário nacional um dos maiores militantes do movimento negro brasileiro, o paulista Abdias do Nascimento (1914-2011). Abdias nasceu na cidade de Franca – SP, e foi dramaturgo, poeta, intelectual, escritor e artista plástico. Seu nome ficou eternizado com um grande feito histórico, de criar do Teatro Experimental do Negro – TEN, que tinha como objetivo central a valorização do negro, utilizando o teatro clássico e, por conseguinte, contribuindo para a ascensão de atores e atrizes negros, capazes de disputar no cenário artístico nacional – majoritariamente branco – atuando não somente nas grandes produções e nas temáticas mais comuns, mas também como vetores de propagação de temas voltados para as questões raciais[10].

Igualmente, os anos de 1940 puderam se deleitar do Teatro Popular Brasileiro, criado pelo militante e intelectual negro Solano Trindade (1908-1947), com o intuito de instrumentalizar a valorização da cultura negra, expressando-a por meio do teatro. Solano nasceu em Recife-PE e faleceu na cidade de São Paulo. Tal qual Abdias do Nascimento, foi ativista do movimento negro, teatrólogo e poeta, tendo participado de momentos históricos para os movimentos negros, como a fundação da Frente Negra de Pernambuco, foi um dos fundadores do TEN e do Centro Cultural Afro-Brasileiro[11].

Nesse período, segundo Pereira (2005), não se observa um desejo de adesão ou mobilização das massas, por parte desses movimentos. Segundo o autor, algumas lideranças tinham aspirações políticas naquele momento, caso de Abdias do Nascimento, que se lançara, sem êxito, a candidato nas eleições do Rio de Janeiro. E daí que pôde ser observado um forte indício de racismo institucionalizado, uma vez que denunciar o racismo, inclusivo sofrido dentro do próprio partido, fragilizaria ainda mais a imagem do negro, ao passo que a ambiência política ainda estava atracada no mito da democracia racial.

Em contrapartida, o momento era mais favorável em relação ao período anterior, pois se observarmos que durante o Estado Novo a Frente Negra Brasileira fora perseguida e fechada, bem como todo movimento de teor político reivindicatório em torno da questão racial teria sido expressamente proibido, agora o TEN ganhava envergadura para além do âmbito da militância negra e se estabelecia em outras esferas e setores da sociedade. Reside daí o fato de que conseguiram organizar dois importantes encontros para debater a questão racial brasileira: a Convenção Nacional do Negro em 1945 e a Conferência Nacional do Negro em 1949 (PEREIRA, 2005).

Vale anotar que, segundo Silva e Carmo (2017), o cenário internacional advertia para a constatação de que o racismo persistia como estruturante no seio das grandes nações, observável por meio de um dos motivos desencadeadores da Segunda Guerra Mundial, que acabara de terminar. Segundo as autoras, isso se atesta por ter havido um novo intento de internacionalização de teorias que sinalizavam para a superioridade racial e, por conseguinte, o desejo de arianização de uma nação, como projeto de dominação planetário, serviria como um alerta para a não superação dessa mazela. Isto é, as teses culturalistas que deslocaram o eixo do debate racial para a valorização dos elementos culturais advindos da diversidade humana, mostram sua fragilidade diante dos fatos.

Nos baseando nas publicações de Silva e Carmo (2017) e de Pereira (2005), podemos afirmar que em decorrência dos catastróficos resultados da grande Segunda Guerra Mundial, se tornou indispensável a emergência de uma organização mundial que interviesse de maneira incisiva e direta na sistematização de operativos que garantisse os direitos mínimos a serem resguardados mediante uma ética de fato universal. Nesse panorama, surge a Organização das Nações Unidas-ONU, no ano de 1945. Junto à ONU, no ano de 1946, é criada uma agência especializada cuja função é resguardar a paz mundial ofertando educação e seus desdobramentos sistêmicos, espraiados no campo das ciências humanas e sociais, naturais e para a comunicação e informação. Surge a UNESCO.

Diante de um contexto internacional de saída de um conflito bélico que mobilizou diversas nações, e tendo em vista que esses países passavam por crises internas, não seria de se estranhar a inquietude dos dirigentes da UNESCO em entender o modo de vida brasileiro, já que a imagem importada para o exterior era de um país pacífico, sem conflitos raciais da mesma natureza dos EUA e África do Sul. No Brasil, vicejava o discurso de que as raças conviviam harmoniosamente, de que a integração do negro à sociedade teria sido por meio de sua rica cultura e isso já bastava para comprovar o justo reconhecimento dado pelo estado.

Nesse sentido, a UNESCO decide organizar um estudo sistemático que se destinava a tentar compreender como se davam as questões raciais no Brasil, sob “a crença de que pudesse vir a ser um grande paradigma de paz racial para o mundo, especialmente para os Estados Unidos e para a África do Sul” (SILVA e CARMO, 2017, p.19). Para essa empreitada deveriam ser escolhidos os intelectuais que se debruçavam sobre a questão do negro e que estivessem em evidência de destaque no cenário nacional.

Em São Paulo, a responsabilidade recaíra sob Florestan Fernandes e Roger Bastide. Haveria pesquisa também na Bahia, sob responsabilidade de Thales de Azevedo, e em Pernambuco, por René Ribeiro, apadrinhado por Gilberto Freyre. (…). A pesquisa da UNESCO no Rio de Janeiro coube ao sociólogo Luiz Aguiar da Costa Pinto, inimigo político e pessoal de Alberto Guerreiro Ramos. (PEREIRA, 2005, p.36)

Observa-se nas opções a serem pesquisadas, que foram tecidas considerações regionais e que elas se repousam no fato de que historicamente as cidades escolhidas como ponto de partida, são as que tiveram maiores índices de crescimento econômico e industrial em seus respectivos territórios. Talvez estivessem ancorados nos índices de violência, saúde, educação e emprego, para a compreensão da dinâmica das tensões, negociações e resoluções de problemas que emergem de ambiências estruturais desfavoráveis para as pessoas mais pobres, mais comuns nas metrópoles.

Segundo Pereira (2005), da segunda metade dos anos 1940 ao início dos anos 1950, o cenário político era totalmente desfavorável ao movimento negro, uma vez que a recusa por tratar a questão racial era quase uma unanimidade no cenário público, e também na sociedade em si. Talvez essa afirmação possa estar ancorada no fato de que ainda era frágil o poder de articulação dos movimentos com o povo, agravado pelo parco quadro de negros em postos políticos ou representativos que pudessem pressionar medidas efetivas para a promoção da igualdade racial.

Silva e Carmo (2017) observam que o final do governo Vargas também foi um elemento de suma importância a ser analisado, pois o clima político esquentava, e as classes trabalhadoras e estudantis se mobilizavam em torno das eleições que se avizinhavam. As autoras também afirmam que, passado o governo Vargas, inicia-se um período em que os movimentos negros se reestruturam e acirram os debates que reivindicam direitos para a população negra, sobretudo no âmbito da educação. O resultado material do projeto UNESCO teria sido uma ferramenta importante no que concerne ao que se produziu academicamente, instrumentalizando esses movimentos.

No plano sociológico cabe tecermos algumas considerações. Guerreiro Ramos (1958) analisou o crescente processo de importação no Brasil desde a segunda metade da década de 1940 até a segunda metade da década de 1950. No período analisado verifica-se que houve uma inversão daquilo que se importava, se comparado ao início do século XX. Desse modo, o país passou a importar menos bens de consumo e passou a comprar dos estrangeiros, bens de produção. Para o autor, esse fato sinaliza para uma nova perspectiva empresarial introjetada no brasileiro, que passa a se empenhar para projeções e empreendedorismo.

Essa dinâmica se encaminha para a emergência de uma nova psicologia coletiva, pois a circulação e a oferta de novos produtos e serviços, viabilizam contatos e associações com uma crescente dimensão mercadológica, que lança tendências e institui urgências que articulam sujeitos e perspectivas diversas, mas que também serve como marcadores diretos de desigualdade e restrição simbólica – e, às vezes, direta – a determinados territórios, que funcionariam segundo a lógica da obtenção de determinado marcador social de diferenciação.

Para Guerreiro Ramos (1958), as lutas por emancipação política e a contrariedade coletiva de grupos historicamente marginalizados surgem em decorrência do fato de que é por meio da urbanização que os sujeitos buscarão experiências mais progressistas para as suas vidas e para a coletividade nas quais estão inseridos. Evidentemente que esse fato não anula a possibilidade de agitações insurgidas contra um estado de coisa que se apresente insatisfatoriamente, fora do eixo urbano e industrial. O que ele quis chamar a atenção é que as transformações nos modos de produção engendram produtividades, e isso impacta diretamente na vida dos sujeitos.

As transformações na demografia brasileira entre os anos de 1940 e 1950 ensaiaram para uma nova articulação na dinâmica dos movimentos sociais. O Brasil não estava descolado do panorama internacional, que também crescia industrial e urbanamente. Nos países periféricos cresciam os movimentos pelos direitos civis, ao passo que proeminentes teóricos desenvolviam teses que contestavam a hegemonia econômica e a colonização pelos países europeus. O monopólio da narrativa histórica era pressionado por contra-narrativas que aos poucos preparavam um terreno de contestação mais ampliado.

Esse é um dos motivos que leva Guerreiro Ramos (1958) a afirmar que o crescente processo de urbanização, ainda que produzindo pobreza e desigualdades sociorraciais, possibilitou novos horizontes contestatórios, ou seja, uma conscientização que se projetava a partir de códigos internos de possibilidades de organização sistêmica. Ele afirmava que: “A colônia é, por definição, instrumento da metrópole. Quando, porém, um povo passa a ter projetos, adquire uma individualidade subjetiva, isto é, vê-se a si mesmo como centro de referência” (RAMOS, 1958, p.33).

Desse modo, o florescer de uma dinâmica de crescente urbanização e industrialização, comportam contradições e tensões que produzem efeitos diversos. Pereira (2005), afirma que houve um crescimento desordenado e que não refletia uma totalidade diante de uma extensão territorial de proporções gigantescas. Para ele, o crescimento que o Brasil assistia era anacrônico em relação ao resto do mundo, visto que as tecnologias empregadas nas forças produtivas eram atrasadas, e os impactos de se ter zonas rurais empobrecidas e de intensa exploração de mão de obra, acarretava um fluxo migratório desregulado e sem planejamento, tanto dos próprios migrantes, quanto das cidades que os receberia.

Evidentemente que os fatos apresentados por Guerreiro Ramos (1958) não desconsideram os efeitos colaterais apresentados por Pereira (2005). A questão trazida por Guerreiro, é a de que a resistência, a criação de linhas de fuga e os agenciamentos, se dão com maior amplitude em um ambiente onde a contradição se mostra com maior nitidez. Guerreiro afirma que a possibilidade de projeção operada pelas negociações e diálogos, faz com que os efeitos do colonialismo sejam contestados sobremodo, e por pensadores que, contraditoriamente, experimentaram a vida na “metrópole”, estudando e organizando sua vida profissional e intelectual.

Convém, portanto, assinalar que no referido período surgem teses interessantíssimas que são utilizadas como aporte teórico ainda nos dias de hoje. Autores como Cheikh Anta Diop (1923-1986), Aimé Césaire (1913-2008), Frantz Fanon (1925-1961), George James (1893-1956), Guerreiro Ramos (1915-1982), dentre outros, emergem no cenário internacional como grandes influenciadores dos movimentos negros da época, mas também como necessidade de reorganização política para os desafios das próximas décadas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A despeito de erros e acertos dos movimentos negros ao longo da primeira metade do século XX, é incontestável a importância da luta por legitimidade política e pela inserção positiva no sistema de educação brasileiro, dado o fato de que se trata de uma parcela populacional historicamente alijada do processo de desenvolvimento da nação.

As organizações negras tiveram auge nos anos iniciais da República Velha, reivindicando cidadania a partir do devido reconhecimento de que os negros não foram satisfatoriamente incluídos nos meios produtivos da nação. No entanto, não estiveram à mercê do estado brasileiro, desenvolvendo meios autônomos de organização em que pudessem viabilizar dispositivos de inserção social para as “pessoas de cor”.

Cabe dizer que as organizações negras se assentaram a partir da premissa de que haveria três pilares principais que sustentariam a unificação das pessoas negras em torno de um ideal, são eles: o passado escravista, já que os negros seriam egressos da escravização; a ancestralidade africana; o acesso restrito à cidadania. A junção dessas características seria o motivo pelos quais os negros teriam desvantagens cumulativas em relação ao branco.

Nesse sentido, a educação foi o principal campo de atuação das organizações negras, pois a estratégia era a de viabilizar formação para que os negros fossem inseridos na sociedade de maneira satisfatória, absorvendo os valores morais aceitos pelos padrões da época e recebendo formação técnica para inserção no mercado de trabalho, almejando ocupar posições de maior prestígio do que as que os negros comumente ocupavam.

Ao longo do artigo buscamos demonstrar algumas estratégias adotadas pelos movimentos negros e como que o ambiente educacional sempre foi lugar de contenda política e de dificuldade de inserção da população negra nos papéis centrais, ou seja, nos lugares de tomada de decisão, acarretando prejuízos sentidos na atualidade. Formulamos a pergunta: quais as estratégias do movimento negro da época para combater o racismo e escolarizar a população negra?

A nossa resposta é que a despeito do racismo do período e das dificuldades estruturais, foi possível ao movimento negro construir um percurso que dialoga com as instâncias de poder (obtendo) e com pontuais vitórias. O movimento negro conseguiu pavimentar um caminho satisfatório para as gerações posteriores, já que em todas as suas realizações primava pela alfabetização e escolarização de pessoas negras, além de denunciar e pressionar o sistema de ensino do referido período para a melhor inserção do negro no espaço escolar.

Portanto, o leitor pôde se familiarizar brevemente com o panorama histórico apresentado e refletir acerca de como se construiu um painel de contenda política em torno da educação, que perdura ainda hoje. Os movimentos negros trouxeram em seu bojo muita luta e muitas narrativas pouco exploradas no âmbito da educação brasileiro, cabendo novas reflexões e análises, e este é o nosso desafio da atualidade, uma vez que há muitas iniciativas interessantes soterradas nos escombros do passado.

REFERÊNCIAS

BORDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução, seleção e organização Sérgio Miceli. São Paulo: Perspectiva, 1983.

DÁVILA, Jerry. Diploma de Brancura: Política Social e Racial no Brasil – 1917 – 1945. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

DOMINGUES, Petrônio. Uma História Não Contada: Negro, Racismo e Branqueamento em São Paulo no Pós-Abolição. São Paulo: SENAC Editora, 2003.

MOORE, A. Humanidade contra si mesma. Para uma Nova Interpretação Epistemológica do Racismo e de Seu Papel Estruturante na História e no Mundo. 2011. In: “II Fórum Internacional Afro-colombiano”. Bogotá, 18 de maio de 2011. Anais: 1-17.

MÜLLER, Maria Lúcia R. Professoras Negras no Rio de Janeiro: História de um Branqueamento. In: OLIVEIRA, Iolanda (Organizadora). Relações Raciais e Educação: Novos Desafios. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003.

PEREIRA, Amauri Mendes. Trajetória e Perspectivas do Movimento Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: ALERJ, 2005.

RAMOS, Guerreiro. Redução Sociológica. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958.

RISÉRIO, Antônio. A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros. São Paulo: Editora 34, 2012.

SEYFERTH, Giralda. A Invenção da Raça e o Poder Discricionário dos Estereótipos. Anuário Antropológico/93. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

SILVA, Joselina e CARMO, Nicácia Lino. 1945/1988/1997 – Cotas para Negros no Brasil: Uma Conversa que vem de Longe. O Social em Questão. Ano XX, n.37. Jan a Abr / 2017, p.37 – 36.

SODRÉ, Muniz. Reinventando a Educação: Diversidade, Descolonização e Redes. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

4. Importante assinalar que no início dos anos de 1930, sob o primeiro governo de Getúlio Vargas (1882-1954), fora inaugurado o Ministério da Educação e Saúde Pública – MES. Saúde e educação foram integradas em fins comuns, e somente pelo decreto de lei n.º 1.920, de 25 de julho de 1953 houve um desmembramento e o Ministério da Educação e Cultura – MEC se estabelece como tal.

5. A respeito, vide: DÁVILA, Jerry. Diploma de Brancura: Política Social e Racial no Brasil – 1917 -1945. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

6. Sobre “elemento negro” não estamos nos referindo sobre a presença na cultura, e em todo campo estético que se inscreve nesse ramo. Aqui é factível e demonstrável estratégias que direcionam saídas para a dissolução dos negros, com a mestiçagem induzida, reduzindo as possibilidades de ingresso de negros nos setores estratégicos de comando político e econômico do país.

7. Em uma definição mais afinada com a atualidade, podemos dizer que a diferença consiste no fato de que o professor catedrático é aquele que é recrutado em por meio de análise documental em um concurso específico para uma determinada área ou disciplina. A eles são atribuídas tarefas específicas concernentes à área da qual coordena. Disponível na Constituição Federal os Artigos 9º e 37º do Estatuto da Carreira Docente Universitária, na redação do Decreto-Lei n.º 205/2009, de 31 de agosto. Já o professor adjunto possui atividades mais direcionadas para as funções didáticas e de apoio pedagógico aos alunos. Contudo, este professor também estaria designado para coordenar projetos de pesquisas de alunos de pós-graduação em sua área. Se pensarmos em termos ajustados ao modelo de universidade que se estabeleceu a partir do ano de 1968, com o fim das cátedras, o professor catedrático estaria mais próximo do professor titular, e vice-versa.

8. Para a descrição de cada um dos três fundadores do movimento escolanovista utilizamos como referência o livro “História das Ideias Pedagógicas no Brasil”, de Dermeval Saviani, lançado em 2014 pela Editora Autores Associados.

9. Cabe salientar que o movimento escolanovista foi um movimento pela renovação educacional que ganhou envergadura a partir dos anos de 1930. Entretanto, suas sementes estavam germinando desde os primeiros anos da república, e sob as formulações de um grupo de intelectuais que sugeriam transformações no painel em que se inscrevia a então incipiente oferta por educação pública.

10. Para uma breve leitura sobre a biografia de Abdias do Nascimento, consultar http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/abdiasnascimento acesso em 24/07/18.

11. Para uma leitura mais ampliada sobre a biografia de Solano Trindade ver https://leiturasdogiba.blogspot.com/2009/01/biografia-mnima-solano-trindade.html acesso em 24/07/18.

[1] Doutor em Educação. Mestre em Relações Étnico-Raciais. Licenciatura em Pedagogia.

[2] Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas. Licenciatura em Matemática.

[3] Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares. Especialista em Administração e Supervisão Escolar. Bacharelado e Licenciatura em História.

Enviado: Agosto, 2021.

Aprovado: Outubro, 2021.

5/5 - (1 vote)
Fernando Santos de Jesus

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POXA QUE TRISTE!😥

Este Artigo ainda não possui registro DOI, sem ele não podemos calcular as Citações!

SOLICITAR REGISTRO
Pesquisar por categoria…
Este anúncio ajuda a manter a Educação gratuita