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O lúdico na infância – um elemento propulsor do desenvolvimento da criança

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PEREIRA, Karla Raquel Lima [1]

PEREIRA, Karla Raquel Lima. O lúdico na infância – um elemento propulsor do desenvolvimento da criança. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 09, Vol. 02, pp. 165-179. Setembro de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/elemento-propulsor

RESUMO

O lúdico está relacionado às múltiplas linguagens infantis, sendo um elemento histórico-cultural presente desde o período mais tenro da História por está ancorado nas interações humanas, propiciando a constituição identitária e formativa da criança. Partindo disso e da questão-problema “como a ludicidade dialoga com o desenvolvimento humano na infância?”, este artigo tem por objetivo geral analisar o papel da ludicidade no contexto escolar para o desenvolvimento da criança, necessitando o uso da pesquisa bibliográfica de abordagem qualitativa mediante aportes teóricos. Nesse cenário, percebeu-se que o lúdico não pode ser tido como sinônimo de “jogo” e “brincadeiras” em razão destas serem manifestações lúdicas, o que significa que essas nomenclaturas contêm o lúdico, mas não o encerra nelas, à medida que a ludicidade é um elemento essencial do desenvolvimento humano na infância ao atuar na dimensão biológica e cultural da criança. Constatou-se também a presença de três grandes vertentes da ludicidade no processo de ensino-aprendizagem, sendo priorizadas as que são voltadas para a recreação e o lúdico enquanto recurso-didático. Conclui-se, dessa forma, que a prática lúdica deve ser orientada e intencionada, com vistas à apropriação e objetivação, pela criança, da cultura acumulada ao longo das gerações, resultando na superação de limites e produção de novas necessidades.

Palavras-chave: Desenvolvimento infantil, Infância, Ludicidade.

1. INTRODUÇÃO

O lúdico transcende o brincar, por si mesmo, no sentido de que atravessa o campo da imaginação, da criatividade, da emoção, da percepção e outros aspectos que potencializam o processo de ensino-aprendizagem na infância. Por intermédio dele, a criança se humaniza a partir das interações estabelecidas com seus pares, produzindo cultura quando ao se apropriar daquilo construído historicamente, objetiva-o, ou seja, modifica o entorno, surgindo o novo, para satisfazer suas necessidades.

Essa temática do lúdico na infância, como objeto de pesquisa, configurou-se a partir da curiosidade em desvendar as facetas da ludicidade, complementando os estudos da pesquisadora acerca da Infância, bem como do lugar de educadora de crianças com faixa etária de 03 aos 10 anos de idade, que busca estratégias lúdicas na sua prática pedagógica, com vistas ao binômio desenvolvimento-aprendizagem infantil. Nesse sentido, tal sentimento questionador está traduzido no seguinte problema: como a ludicidade dialoga com o desenvolvimento humano na infância?

Como forma de entrelaçamento com o problema proposto, levantamos a hipótese de que o lúdico no contexto escolar da Infância poderá enriquecer o universo cultural da criança, favorecendo o seu desenvolvimento. Logo, o presente tema, ao discorrer sobre o possível diálogo entre a ludicidade e o desenvolvimento humano na infância, almeja complementar os estudos da área, trazendo a compreensão do lúdico para além do brincar, o que pode contribuir, desse modo, com práticas docentes intencionais e conscientes.

Nessa direção, o objetivo geral está voltado em “analisar o papel da ludicidade no contexto escolar para o desenvolvimento da criança”; e, no que tange aos objetivos específicos, elaboramos três: percorrer as concepções teóricas sobre a ludicidade no espaço educativo; compreender o diálogo entre a ludicidade e o desenvolvimento humano na infância; evidenciar os delineamentos da ludicidade para o trabalho docente no contexto escolar da infância.

Para alcançar essas pretensões, buscamos a pesquisa exploratória bibliográfica, de abordagem qualitativa, tendo em vista a dinamicidade entre o contexto escolar da Infância e o desenvolvimento da criança, o qual não é tangível, mas sim construído por uma teia de significações subjetivas.

Este artigo, para abarcar as discussões necessárias para o entendimento do objeto em estudo, apresenta a seguinte sistematização: em primeiro, destaca-se esta introdução com apontamentos iniciais acerca da temática. A segunda seção está relacionada ao percurso teórico da ludicidade, a qual traz as concepções teóricas embutidas no lúdico infantil e sua historicidade no contexto educativo.

A terceira seção trata do possível diálogo entre a ludicidade e o desenvolvimento humano na infância; bem como salienta as implicações do lúdico para o trabalho docente no contexto escolar da infância. Por último, tecemos algumas considerações finais sobre o desenvolvido neste trabalho de conclusão de curso.

2. PERCURSO TEÓRICO DA LUDICIDADE INFANTIL

O lúdico é uma nomenclatura carregada de significados intrínsecos à infância, à medida que está associado às linguagens infantis traduzidas pelo movimento, desenho, pintura, jogos, brincadeiras e outras que permitem a criança conhecer a si e a seus pares, bem como a desenvolver plenamente a imaginação, a fantasia, a criatividade e a sensibilidade. Nessa direção, a concepção de atividade lúdica dotada neste trabalho vai ao encontro dos estudos provenientes de Pereira (2015), quando o mesmo destaca o lúdico como elemento histórico-cultural por ser inerente ao ser humano, no sentido de possibilitar a sua constituição identitária e formativa.

O seu significado etimológico converge com o campo semântico de palavras como “jogo”, “brinquedo” e “brincadeiras”, originando do latim ludus, o qual abrange “[…] os jogos infantis, a recreação, as competições, as representações litúrgicas e teatrais e os jogos de azar […]” (HUIZINGA, 2000, p. 41-42 apud PEREIRA, 2015, p. 171). Desse modo, a ludicidade está permeada na História como sinônimo de jogo, cuja definição não é fácil, uma vez que cada sociedade constrói uma imagem de jogo a partir dos valores embutidos no seu interior (KISHIMOTO, 2000). No entanto:

Estudos recentes têm demonstrado que o termo lúdico não se identifica literalmente com o termo jogo. O jogo contém o lúdico, mas nem sempre o lúdico contém o jogo e a brincadeira, porque o sentido destas pode extrapolar as acepções e conceituações emprestadas ao jogo. Conforme a evolução semântica, os significados de um e de outro parecem encontrar-se, mas mantém um movimento, uma tendência à identificação e à manutenção da autonomia de cada um dos termos (ALMEIDA, 2007, p. 19, grifo do autor).

A aproximação conceitual entre as palavras jogos, brinquedos e brincadeiras resulta de seu vínculo com o universo infantil, provocando várias interpretações no âmago das pesquisas de diversas ciências, como a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia, a Sociologia, a Pedagogia e outras que buscam compreender a complexidade humana e suas ações. Nesse sentido, assumiremos conceituações voltadas para o contexto educativo, a partir de estudos de Kishimoto (2000), ressaltando o “jogo” como uma construção social, sendo caracterizado pela presença de um sistema linguístico, um sistema de regras e um objeto, ou seja, o jogo é um constituinte da cultura, sendo moldado pelos significados que a mesma o atribui.

Quanto à definição de “brinquedo”, a referida autora pontua que ele possui uma dimensão material, cultural e técnica, cuja relação com a criança ocorre de forma íntima, não tendo um sistema de regras que orienta o seu uso. O brinquedo é suporte da brincadeira, a qual “é a ação que a criança desempenha ao concretizar as regras do jogo, ao mergulhar na ação lúdica. Pode-se dizer que é o lúdico em ação” (KISHIMOTO, 2000, p. 21). Em outras palavras, o jogo, as brincadeiras e o brinquedo são manifestações lúdicas.

O lúdico é uma atividade dinâmica concretizada pela ação humana, cuja natureza pode ser tanto prazerosa e de satisfação de necessidades como fruto de esforço e sacrifícios, visto que “[…] apresenta sempre um sentido de ação e exploração: ver como é, desmontar, participar, construir, engajar-se, e até mesmo se sacrificar, se ação for encarada como espírito lúdico desafiador e de superação de limites” (ALMEIDA, 2007, p. 20). Seguindo esse pensamento, a seguir estão estabelecidos os critérios que definem e delimitam a ludicidade, para, posteriormente, traçarmos a historicidade desta no seio educacional.

Quadro 1 – Critérios da ação lúdica conforme Almeida (2007)

CRITÉRIOS DA AÇÃO LÚDICA
Desinteressada Finalidade na própria ação
Espontânea Contrária às obrigações e às responsabilidades
Prazerosa Agradável, percorrendo o campo afetivo
Libertadora Expressividade do “eu”
Supermotivada Provoca a superação de limites e satisfação de necessidades
Livre Ocorre pelas convicções dos/as indivíduos/as participantes

Fonte: elaborada pela pesquisadora (2020)

2.1 BREVE TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO LÚDICO NO CONTEXTO EDUCATIVO

A historicidade do lúdico está coerente com a concepção antropológica, epistemológica e axiológica de cada época por ser resultado de uma cultura que sofre modificações constantemente pela sua dinamicidade. Nessa perspectiva, destacamos que a ação lúdica tem sua essência na interação humana, tendo em vista que toda ação é mediada por alguém ou algo. Tal pensamento está em conformidade com Brougère (2002) quando salienta que a cultura lúdica:

Origina-se das interações sociais, do contato direto ou indireto (manipulação do brinquedo: quem o concebeu não está presente, mas trata-se realmente de uma interação social). A cultura lúdica como toda cultura é o produto da interação social […]. A criança co-produz sua cultura lúdica, diversificada conforme os indivíduos, o sexo, a idade, o meio social (BROUGÈRE, 2002, p. 27-28 apud PEREIRA, 2015, p.179).

Essa cultura lúdica, portanto, remonta ao mais tenro período da história, onde os/as sujeitos/as produziam pinturas e desenhos nas paredes das cavernas. A ação de desenhar e pintar torna-se lúdica a partir do momento em que tais produções gráficas são frutos da necessidade de expressar pensamentos, ideias e percepções sobre as vivências do cotidiano, de modo espontâneo, prazeroso e emancipatória, características ressaltadas no quadro 1 como critérios da ludicidade.  Nessa direção, Almeida e Rodrigues (2015, p. 26) frisam:

Percebe-se então que na pré-história o brincar era tido de forma natural, onde no dia a dia através de atividades cotidianas tais como a caça e a coleta de alimentos silvestres são exemplos de atividades executadas por toda população inclusive as crianças, atividades essas importantíssimas para a sobrevivência, mas, contudo, faziam-se presentes a diversão e a brincadeira ao realizar tais atividades. Outro aspecto importante visto como lúdico nesse período são os desenhos e esculturas realizadas pelos homens […] que além de mostrar o seu cotidiano e realidade, exercia também um papel de diversão. Nesse período o homem na realização de suas atividades mais simples estabelecia sua história de forma lúdica

Na antiguidade, o lúdico, associado fortemente com o jogo, traz pensamentos de filósofos gregos e romanos, representados, respectivamente, por Platão (427-348) e Quintiliano (35-96), os quais enfatizavam a imprescindibilidade dos jogos nos primeiros anos da criança, pois influenciava tanto na formação do caráter e da personalidade infantil como na aprendizagem. Nesse período, segundo as autoras Cintra, Proença e Jesuino (2010, p. 230), “pode-se perceber que as crianças tinham contato com a brincadeira como facilitador do aprendizado de conteúdos formais, para que pudessem aprender as obrigações sociais, tendo contato com o processo de produção”, posto que a concepção de educação vigente estava pautada no seguimento de modelos para vir a ser “cidadão”.

No que tange à Idade Média, período histórico marcado pelo sistema feudalista e a detenção de poder nas mãos da Igreja Católica, o lúdico perde espaço no âmbito educativo, pois muitos jogos, considerados de azar, e outras formas de manifestações lúdicas foram proibidos pela Igreja em virtude desta, conforme Pereira (2015), valorizar as atividades intelectuais ao invés das recreativas e lúdicas no processo de ensino e aprendizagem.

A partir do autor supracitado, essa acepção contra as atividades lúdicas na educação transforma-se com as ideias advindas do Renascimento, mais especificamente com os jesuítas da Companhia de Jesus[2], uma vez que o bispo fundador, Ignácio de Loyola, atribuía relevância dos jogos na formação humana. Portanto:

Os humanistas do Renascimento, em sua reação antiescolástica, já haviam percebido as possibilidades educativas dos jogos. Mas foram os colégios jesuítas que impuseram pouco a pouco às pessoas de bem e amantes da ordem uma opinião menos radical com relação aos jogos. Os padres compreenderam desde o início que não era possível nem desejável suprimi-los, ou mesmo fazê-los depender de permissões precárias e vergonhosas. Ao contrário, propuseram-se a assimilá-los e a introduzi-los oficialmente em seus programas e regulamentos, com a condição que pudessem escolhê-los, regulamentá-los e controlá-los (ARIÈS, 1981, p. 112).

Com a propagação dessas ideias e as mudanças ocorridas na sociedade, ao longo do século XVIII, a concepção da ludicidade acompanha o surgimento do sentimento da infância e da valorização da criança como sujeita diferente do/a adulto/a, significando que o lúdico passa a ser visto como ferramenta indispensável para o desenvolvimento infantil. Sendo assim, as novas roupagens dadas ao lúdico podem ser encontradas em estudos de vários teóricos da educação, como assinalado no quadro 2 abaixo:

Quadro 2 – Concepção de lúdico

FRIEDRICH FROEBEL

(1782-1852)

Caracteriza-se por ser um processo criativo, cuja manifestação do interior da criança ocorre de forma espontânea e natural, propiciando alegria, paz e harmonia.
 

MARIA MONTESSORI

(1870-1952)

É a experimentação de sensações, texturas, possibilitando que a criança expresse os seus interesses naturais espontaneamente, o que contribui com a formação psíquica e sensorial infantil.
 

JEAN PIAGET

(1896-1980)

Também é visto como uma forma espontânea e natural de expressar livremente os seus sentimentos e pensamentos. É a criança que atribui significado a ação lúdica e não ao contrário.
 

LEV VIGOTSKI

(1896-1934)

Por meio do lúdico a criança interage com seus pares, compreendendo o mundo no qual vive a partir da situação imaginária criada, a qual contém implicitamente as regras embutidas em sociedade.

Fonte: elaborada pela pesquisadora (2020)

De modo geral, foi possível perceber que o lúdico faz parte de nossas vidas desde o momento em que Homem começou a interagir com o mundo ao seu redor, atravessando a história por diferentes acepções: recreativas e/ou educativas. Partindo disso, percebemos o diálogo existente entre a ludicidade e o desenvolvimento da criança, todavia, tem-se a necessidade de mergulhar na compreensão do como esse vínculo é construído, aspecto a ser explanado na seguinte seção.

3. LUDICIDADE E O DESENVOLVIMENTO HUMANO NA INFÂNCIA: TEIA DE SIGNIFICAÇÕES

O desenvolvimento humano é um construto baseado nas experienciações cotidianas, as quais são possíveis em razão de uma cultura acumulada historicamente, ressignificada ao longo do tempo e espaço.  Tais transformações emergem da necessidade que o/a indivíduo/a tem de adequar o meio no qual está inserido/a socialmente para si, ao mesmo tempo em que é modificado por ele, com vistas à sobrevivência. Em outras palavras, o Homem tanto se apropria da natureza como se objetiva nela (SACCOMANI, 2016).

Para Vigotski (1995), esse desenvolvimento humano é um processo dialético que promove transformações qualitativas essencialmente humanas fincadas no entrelaçamento de duas linhas de desenvolvimento análogas e não paralelas: a endógena (biológica) e a exógena (cultural).  O aspecto biológico está assentado no crescimento, maturação e evolução orgânica da criança, em contrapartida, o cultural se sobrepõe a essas características, pois está alicerçado no processo histórico, o qual se constrói pelas modificações da conduta humana, elaborando e criando novos comportamentos especificamente culturais. Todavia:

Ambas as linhas de desenvolvimento – (natural e cultural) – coincidem e se entrecruzam. As mudanças que possuem em ambas as linhas se intercomunicam e constituem em realidade um processo único de formação biológico-social da personalidade da criança. À medida que o desenvolvimento orgânico se produz em um meio cultural, passa a ser um processo biológico historicamente condicionado. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento cultural adquire um caráter muito peculiar que não pode se comparar com nenhum outro tipo de desenvolvimento, já que se produz simultânea e conjuntamente com o processo de maturação orgânica […] (VIGOTSKI, 1995, p. 36, tradução nossa).

Nessa perspectiva, o desenvolvimento da criança se constitui pela indissociabilidade do seu desenvolvimento biológico e cultural, o que significa que podemos ressaltar que a presença da ludicidade na infância torna-se um instrumento propulsor de desenvolvimento infantil ao possibilitar que a criança se desenvolva natural e culturalmente, uma vez que as manifestações lúdicas são frutos de dado contexto sócio-histórico, sendo reelaboradas constantemente em virtude da natureza mutável da sociedade, assim como se (re)produzem ao mesmo tempo em que ocorre o crescimento orgânico da criança, cujo corpo tem sede em se expressar ludicamente através de suas diversas linguagens.

As atividades lúdicas (desenhar, pintar, brincar, pular, etc.) promovem a interação da criança com o mundo, permitindo o auto(re)conhecimento de suas potencialidades biológicas, as quais são condicionadas culturalmente por estarem situadas em um tempo e espaço da História, pois “[…] não nos basta o aparato biológico; são necessárias as mediações de outros seres humanos e a apropriação da cultura acumulada pelas gerações precedentes” (SACCOMANI, 2016, p. 51).

O lúdico, dessa forma, alavanca o desenvolvimento humano na infância porque atua na dimensão biológica e social da criança. Contudo, essa atuação não ocorre de modo linear e universal, pelo contrário, é peculiar em cada sujeito/a, o que corrobora com a compreensão de que não existe uma única ação lúdica favorável à aprendizagem, mas sim múltiplas ações lúdicas, culminando na valorização das singulares do/a aprendiz. Tais ações exprimem um simbolismo no qual Macedo (2005, p. 21 apud OFFIAL, 2015, p.51) pontua:

O simbolismo lúdico significa que aquilo que se faz tem um correspondente, qualquer que seja ele, para a criança. São como metáforas ou metonímias para ela. Metáforas no sentido de que o A que vivenciam ocupa o lugar de B. Em outras palavras, as atividades que realizam são interpretáveis porque correspondem minimamente a algo que faz sentido, que corresponde a algo da experiência das crianças, que pode ser intuído por sua importância ou valor. Metonímia no sentido de que uma parte remete-nos ao todo. Uma parte ocupa o lugar do todo.

Isso quer dizer que a criança representa por inúmeras formas lúdicas aquilo que experiencia no cotidiano. Contudo, muitas vezes, o/a adulto não consegue captar esse simbolismo infantil, não dando o valor cabível às produções culturais da criança, estimulando estereótipos sociais que acarretam a estagnação do processo criativo. Nesse sentido, na próxima subseção iremos nos debruçar na relação trinômia “educador/a – criança – contexto escolar”, com a finalidade de evidenciar os delineamentos da ludicidade para o trabalho docente no contexto da infância.

3.1 AS IMPLICAÇÕES DA LUDICIDADE PARA O TRABALHO DOCENTE NO CONTEXTO ESCOLAR DA INFÂNCIA

Por muito tempo a infância foi negada no contexto social, por mais que a figura da criança tivesse presente. Os estudos feitos pelo historiador Ariès (1981) demonstram que a criança era vista, ao longo das sociedades antigas e medievais, como um/a miniadulto/a, sendo envolvida em atividades de lazeres adultos, bem como não tinha diferença entre sua roupa e de um/a adulto/a. O sentimento da infância vai começar a se constituir apenas no final do século XVIII, com pensadores/as, como Rousseau, Kant, Pestalozzi e outros/a, que deram destaque para as necessidades das crianças. Dessa forma, essa fase é marcada por várias transformações históricas, o que significa que a infância é fruto das relações culturais de uma sociedade.

Tais relações propiciam múltiplas infâncias, à medida que existe uma diversidade de culturas, as quais são ressignificadas ao decorrer da História. As infâncias, forjadas dessas culturas, possuem características singulares que podem ser levadas em consideração no espaço educacional através do uso da ludicidade como elemento fulcral para o desenvolvimento da criança.

O lúdico está fortemente presente na educação escolar, principalmente na educação infantil e Ensino Fundamental Anos Iniciais, cujas etapas são asseguradas pela Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), nº 9.394/1996. A educação infantil é um espaço no qual a criança amplia suas experiências através de descobertas, experimentos e interação com seus pares, entretanto, por muito tempo, ela foi negligenciada, tendo apenas um caráter assistencialista, em que o foco era o cuidar e não o desenvolvimento integral infantil, aspecto reconfigurado devido às lutas sociais.

Em relação ao Ensino Fundamental, a LDBEN dispõe no seu art. 32 que o mesmo visa a formação básica do/a cidadã/o mediante:

[…] I – o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo;

II – a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade;

III – o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores;

IV – o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social (BRASIL, 1996).

Salientamos que as reconfigurações realizadas no meio educativo voltadas para esses segmentos da educação básica proporcionaram um novo olhar à criança, concebendo-a como sujeito/a dotado/a de direitos e singularidades, produtora de cultura a partir das relações humanas, construindo, portanto, sua identidade pessoal e coletiva mediante a imaginação, a fantasia, a experimentação, o brincar, o questionar (BRASIL, 2010).

Desse modo, para que a criança usufrua de uma infância regada de direitos, atendendo as suas especificidades, é necessária também uma ressignificação das práticas pedagógicas direcionadas à ludicidade, no sentido de que muitos docentes ainda são resistentes ao seu uso ou apenas o utiliza no aspecto instrumental, à medida que o lúdico está inserido no processo de ensino-aprendizagem por meio de três grandes vertentes:

[..] a recreação – uma visão romântica de educação, utilizando o lúdico como artifício de descanso; o jogo educativo e recreativo – sob a ótica cognitivista percebe o lúdico como um recurso ou suporte didático; e jogo experiência potencializadora e interativa – sob o olhar sociocultural e psicossocial, que concebe o lúdico como uma ação indissociável do trabalho, um meio de construção de conhecimento (CARDOSO; MAHEU, 2010, p. 58, grifos das autoras).

Em outras palavras, a ação lúdica enquanto recreação consiste no ideal romântico, comumente atribuída como momento de distração/descanso, caracterizada por atividades livres, destituídas de uma intencionalidade educativa. Na segunda vertente, a ludicidade é fragmentada em parte teórica e parte prática, com vistas a atingir os objetivos propostos pelo/a docente, isto é, o lúdico está a serviço do conteúdo a ser trabalhado. Em relação a terceira vertente, a ludicidade é um espaço social de interações, promovendo experiências que potencializam a imaginação, o pensamento e outros fatores de desenvolvimento.

Dessas vertentes, as duas primeiras são as mais utilizadas na educação infantil porque o lúdico ainda está associado como ferramenta preparatória para os Anos Iniciais ou passatempo, tendo em vista que frequentemente assume uma significação de oposição ao trabalho adulto. E, no que tange ao Ensino Fundamental, a ação lúdica vai aos poucos sendo desconsiderada, pois, na maioria das vezes, ela é remetida como divertimento e não como essencial para a aprendizagem; ademais de que, quando é utilizada, desvela-se apenas como recurso didático-pedagógico, indo ao encontro da segunda vertente mencionada. Desse modo, percebemos que a terceira vertente ainda é pouco valorizada, mesmo sendo destacada por alguns autores como relevante na sala de aula ao favorecer o diálogo, a criatividade, o raciocínio lógico através de desafios que despertam o conhecimento da criança a partir de sua interação com os seus pares (OFFIAL, 2015).

A ludicidade como experiência potencializadora e interativa se desenvolve em um meio educativo em que tem como função a humanização da criança, no sentido de desvelar as facetas ocultas dos conhecimentos espontâneos adquiridos no senso comum, pois, conforme Saviani (2008, p. 14), “a escola diz respeito ao conhecimento elaborado e não ao conhecimento espontâneo; ao saber sistematizado e não ao fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular”.

Nessa direção, o trabalho docente, por meio da ação lúdica, pode ampliar o repertório cultural da criança, indo além do conhecimento já concebido, desde que seja um ensino intencionado e sustentado em práticas humanas inalienadas. Sobre essa questão, Vigotski (2006) ressalta que:

O professor não ensina à criança o que ela já sabe fazer por si mesma, e sim aquilo que não sabe, mas que pode fazer se for ensinada e dirigida. O próprio processo de aprendizagem se realiza sempre em forma de colaboração da criança com os adultos e constitui um caso particular de interação de formas ideais e efetivas […] (p. 271, tradução nossa).

A criança não aprende de forma desvinculada da realidade, pelo contrário, os seus comportamentos estão em consonância com o vivenciado, logo, a aprendizagem se dá pelo processo de internalização, em que é reelaborada internamente uma atividade social, posto que “[…] o aprendizado desperta vários processos internos de desenvolvimento, que são capazes de operar somente quando a criança interage com pessoas em seu meio ambiente e quando em cooperação com seus companheiros” (VIGOTSKI, 2007, p. 103).

Quando o/a professor/a se utiliza da ação lúdica está potencializando esse processo, partindo do pressuposto que esteja levando em consideração as especificidades do/a educando/a, bem como os critérios pontuados no quadro 1, em que oportunize a manifestação de emoções e sentimentos, de modo prazeroso, desinteressado e espontâneo, gerando segurança e curiosidade na criança para realizar a atividade proposta.

Tais atividades lúdicas devem desafiar a criança, com vistas à expansão e produção de novas necessidades, à medida que a repetição de práticas pedagógicas leva ao conformismo e estagnação do desenvolvimento, acarretando um cansaço físico e mental, percebidos quando o/a estudante faz comentários como: “já brincamos disso”; “de novo essa atividade?”; “essa atividade é chata”. Essas frases revelam o que Freire (2017) chama de domesticação da curiosidade, a qual consiste numa memorização mecânica do objeto, ao invés de um aprendizado real ou um conhecimento eficaz do objeto. Por isso, Mukhina (1996, p. 50 apud SACCOMANI, 2016, p. 181) afirma que:

[…] o ensino não tem de se adaptar ao desenvolvimento. O ensino leva em conta o nível de desenvolvimento alcançado, não para deter nele, mas para compreender até onde impulsionar esse desenvolvimento e dar o passo seguinte. O ensino vai adiante do desenvolvimento psíquico, guiando-o.

Nessa linha de pensamento, o/a educador/a, mediante práticas lúdicas, pode organizar um espaço de ensino dirigido e planejado, afetando os dois níveis de desenvolvimento da criança destacados por Vigotski (2007): o real, aquilo que a criança já sabe realizar; e o potencial, aquilo que a criança conseguirá fazer com auxílio dos seus pares. Dessa forma, o trabalho docente não se resume a acompanhar e estimular o desenvolvimento infantil, mas sim a mediar os conhecimentos culturais gerados na sociedade a partir de uma atividade sistematizada e orientada, tendo em vista a apreensão, pela criança, da cultura, para que, assim, ela possa, ao superar limites, produzir novos limites, num movimento dialético de construção humana.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa não se faz de forma isolada, pelo contrário, ela é fruto de uma interação social, no sentido de que não construímos conhecimentos sem os conhecimentos já construídos. Assim sendo, ao retomarmos ao problema proposto, juntamente com os objetivos, a hipótese e a metodologia adotada, ressaltamos que foram logrados, uma vez que na primeira seção percebemos que a ludicidade é uma ferramenta histórico-cultural assentada nas concepções vigentes de cada época, estando fortemente atrelada ao universo infantil.

Ela se manifesta nas múltiplas linguagens da criança, possuindo critérios que alavancam o desenvolvimento humano na infância, o qual é propiciado pelo entrecruzamento de fatores internos (biológicos) e externos (culturais), ocasionando transformações qualitativas. Dessa forma, o lúdico se torna um elemento propulsor de desenvolvimento por atuar em ambos os fatores mencionados, respeitando as particularidades da criança, refutando a lógica linear e universal de desenvolvimento infantil.

Percebemos também que o lúdico possui três grandes vertentes voltadas para o processo educativo, logo, não é possível um diálogo entre a ação lúdica e o desenvolvimento da criança sem fazer ponte com o trabalho docente, pois é em um ensino sistematizado, orientado e intencionado que o/a educando/a vai superar suas dificuldades e adaptações, culminando numa apropriação cultural consciente e humana a partir da ampliação dos horizontes para além do senso comum.

Em linhas gerais, as atividades lúdicas promovem a formação humana quando não as estagnam ao conteúdo ou as concebem como momentos de descanso da criança, aspectos que devem ser superados nas salas de aula da Educação Infantil e Anos Iniciais, já que são fortemente presentes. É necessário romper com essas visões em favor de um olhar que priorize a criança e suas capacidades cognitivas, afetivas, físicas e morais, o que será alcançado a partir de ressignificações da ludicidade e, consequentemente, do trabalho educativo.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Ilda Neta Silva de; RODRIGUES, Lays Aires. O lúdico como recurso didático-pedagógico no desenvolvimento da criança na educação infantil. Humanidades e Inovação, Palmas, ano 2, n. 1, jan./jul. 2015, p. 25-41.

ALMEIDA, Paulo Nunes de. Língua Portuguesa e ludicidade: ensinar brincando não é brincar de ensinar. 2007. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), São Paulo, 2007.

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. – 2. ed. – Rio de Janeiro: LTC, 1981.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 13 dez. 2020.

_______. Lei nº 9.396, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.  Brasília: 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm> Acesso em: 13 dez.2020

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CARDOSO, Marilete Calegari; MAHEU, Cristina Maria d’Ávila Teixeira. Baú de memórias: representações de ludicidade por professores na educação infantil. In: TENÓRIO, Robinson Moreira; SILVA, Reginaldo de Souza (orgs). Capacitação docente e responsabilidade social: aportes pluridisciplinares. Salvador: EDUFBA, 2010. p. 57-76.

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APÊNDICE – REFERÊNCIA DE NOTA DE RODAPÉ

2. Ordem religiosa responsável por difundir as doutrinas católicas, abaladas pela Reforma Protestante.

[1] Especializanda em Educação Especial Inclusiva pela Uniasselvi, Especialista em Educação Infantil e Anos Finais pela Uniasselvi e Pedagoga pela Universidade Federal do Maranhão.

Enviado: Maio, 2021.

Aprovado: Setembro, 2021.

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Karla Raquel Lima Pereira

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