REVISTACIENTIFICAMULTIDISCIPLINARNUCLEODOCONHECIMENTO

Revista Científica Multidisciplinar

Pesquisar nos:
Filter by Categorias
Administração
Administração Naval
Agronomia
Arquitetura
Arte
Biologia
Ciência da Computação
Ciência da Religião
Ciências Aeronáuticas
Ciências Sociais
Comunicação
Contabilidade
Educação
Educação Física
Engenharia Agrícola
Engenharia Ambiental
Engenharia Civil
Engenharia da Computação
Engenharia de Produção
Engenharia Elétrica
Engenharia Mecânica
Engenharia Química
Ética
Filosofia
Física
Gastronomia
Geografia
História
Lei
Letras
Literatura
Marketing
Matemática
Meio Ambiente
Meteorologia
Nutrição
Odontologia
Pedagogia
Psicologia
Química
Saúde
Sem categoria
Sociologia
Tecnologia
Teologia
Turismo
Veterinária
Zootecnia
Pesquisar por:
Selecionar todos
Autores
Palavras-Chave
Comentários
Anexos / Arquivos

Imaginar para conhecer: uma reflexão sobre as imagens na era das redes sociais

RC: 107391
233
Rate this post
DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/imaginar-para-conhecer

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PARENTE, Francisco Etruri [1], MOTTA, Leda Tenório da [2], SANTAELLA, Lucia [3]

PARENTE, Francisco Etruri. MOTTA, Leda Tenório da. SANTAELLA, Lucia. Imaginar para conhecer: uma reflexão sobre as imagens na era das redes sociais. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 02, Vol. 06, pp. 148-165. Fevereiro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso:  https://www.nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/imaginar-para-conhecer, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/imaginar-para-conhecer

RESUMO

Diante da avalanche de imagens que estão sendo disparadas hoje dos ambientes digitais, onde a lógica dos algoritmos segue favorecendo a visibilidade fetichista dos meios de comunicação, o artigo objetiva assinalar a continuação da sociedade de consumo na era das redes sociais. Nesse sentido, a questão que formula é sobre as chances de um imaginário das imagens na ultracontemporaneidade. Trata-se de uma retomada crítica do entendimento do impacto das imagens no quadro de uma pós-história dominada pelos novos aparatos tecnológicos, a serem aqui principalmente tomados da perspectiva de um pensador da perda da experiência pós-moderna como Vilém Flusser. Tal incursão demanda não apenas uma revisão bibliográfica da obra do autor, mas a mobilização das inovadoras reflexões de Didi-Huberman, em sua revisita à iconologia de Aby Warburg. Neste novo paradigma, as imagens podem dotar-se de papel fundamental no curso da experiência histórica do homem semiótico, sendo-lhes concedida inclusive a virtude de encerrar em si o páthos da cultura. Por oportuno, será trazida à discussão a poética da montagem no cinema de Jean-Luc Godard.

Palavras-chave: Imagem, Rede Social, Iconofagia, Montagem.

INTRODUÇÃO

Dados acontecimentos hoje banais em nossas vidas como, entre outros, o Facebook, o Twitter, o Tinder, com suas viralizantes Selfies, Fake News, campanhas de ódio e negacionismos, perguntamo-nos neste artigo pela chance das imagens e do imaginário humanos quando tomados num fluxo comunicacional que tira toda a sua força da ilusão representacional dos mencionados dispositivos.

Considerando a denúncia que emana da expertise flusseriana das mídias tecnológicas e, ao mesmo tempo, as novas políticas do olhar redesenhadas na obra de Didi-Huberman que revisita Aby Warburg e Godard, nosso objetivo é sondar a nova civilização das imagens do ângulo de suas possibilidades, apesar de tudo, criativas.

Nossa metodologia para analisarmos o atual contexto do status imagético e seu potencial de instigar a imaginação, começará por percorrer um caminho de revisão bibliográfica que pretende contextualizar criticamente o ambiente das redes sociais e analisar possíveis saídas deste mundo de impossibilidades emancipatórias das consciências. Começaremos com a obra de Vilém Flusser (2013) visando uma breve história das imagens, de sua construção primitiva até surgimento da pós-história com aparelhos sendo responsáveis pela sua fabricação.

Depois iremos fazer uma análise do contexto imagético na contemporaneidade com a obra ‘A era da iconofagia: Reflexões sobre a imagem, comunicação, mídia e cultura’ de Norval Baitello (2014), representando a tradição apocalíptica atual e constatando a imbecilização coletiva pela perda da experiência com o real. Então estabeleceremos um contraponto com a retomada que Didi-Huberman (2013) fez com a obra de Warburg visando explorar as imagens como um instrumento de construção da memória humana sobre si mesmo e sobre a cultura.

Didi-Huberman (2013) toma o Atlas Warburguiano e sua proposta de estabelecer relações dialéticas entre diferentes imagens de diferentes períodos históricos como uma ferramenta para tomada de consciência da barbárie. É que também faz Godard em ‘História(s) do Cinema’, com relação aos crimes nazistas, se servindo da imaginação implícita na montagem das imagens, como uma faculdade política. Em todos os   casos, aponta-se para a possibilidade de certas imagens escaparem da vacuidade platônica em que foram lançadas pela sociedade de consumo, para ganharem novas possibilidades de ressignificação, para além do império da mercadoria. Assim, basicamente o nosso percurso metodológico se realizará sobre uma base de revisões conceituais acerca da imagem e sua relação com o imaginário social.

Ao adentrarmos a obra de Vilém Flusser (2013) devemos ter em mente que o foco de seus debates se concentra nas revoluções sofridas na linguagem humana a partir do advento de novos meios tecnologias de comunicação, num arco de acontecimentos que vai da arte rupestre à fotografia, passando pela invenção da escrita. Desta maneira o filósofo delimita seu recorte e define as características culturais que expressam sua leitura sobre o percurso simbólico humano, divididos em pré-história, história e pós-história (HANKE, 2015).

Para Flusser (2013), os meios de comunicação socialmente predominantes determinam nossa percepção do mundo, somos seres alienados diante destes instrumentos de comunicação, ao invés de nos servirmos deles para nos orientar na realidade, nós é que os servimos, sendo dominados por sua lógica significante. Eis nossa tragédia: “O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens” (FLUSSER, 2013).

O filósofo argumenta que tivemos três grandes eras ao longo da jornada simbólica humana, começando pela pré-história, um período dominado pelas imagens. Neste contexto, os seres humanos tinham uma percepção mágica da realidade, o tempo era encarado de modo cíclico, tal qual a leitura imagética, os produtores de imagens acreditavam que eram capazes de manipular a natureza se a representassem da maneira adequada, o compromisso dos xamãs e dos magos era garantir a sobrevivência de sua tribo dentro deste eterno retorno temporal através dos ritos mágicos.

Contudo, a hegemonia das imagens acabaria com o surgimento da escrita (aproximadamente 2.500 a.C.), seu iluminismo diante das trevas do pensamento mágico impunha iconoclasmos libertadores, agora os seres humanos estariam livres do aprisionamento circular para seguir no constante progresso histórico do texto escrito, tendo em vista que uma única dimensão seria capaz de expressar essa linha de palavras que rasgaria a imagem e inseriria a humanidade na era da racionalidade. Nesta nova etapa da escala da abstração, xamãs dariam espaço a profetas, poetas e mais tarde filósofos e cientistas, toda a magia envolvendo a transformação do mundo em cenas imagéticas seria decomposta em textos verbais de início, meio e fim, a realidade passa a ser percebida como um processo lógico que deve ser expresso e interpretado dentro da palavra.

Por séculos este embate entre imagens e palavras perdurou, mas o meio escrito levava vantagem por pertencer ao domínio de elites intelectuais e científicas, o raciocínio lógico instigado por esta forma de percepção da realidade possibilitou avanços científicos inéditos na história humana, dentre estes avanços está o próprio aparelho fotográfico, concebido, como se sabe, no seio da ciência e da arte, para ser a ponta da lança de todo um movimento de produção imagético a partir de aparelhos técnicos, período em que as indústrias passam a delimitar a capacidade imaginativa do homem ao condicioná-lo às suas formas de produção de sentido.

De fato, a pesquisa científica produziu um aparelho capaz de gerar imagens técnicas com códigos e pixels, a nova era da zero dimensão aniquilaria a racionalidade teleológica e nos inseriria ao período pós-histórico:

A teoria de que a fotografia foi desenvolvida para substituir a pintura ou para ajudar a pintura não passa de uma explicação de bom senso. Tão logo se começa a refletir, a filosofia disciplinadamente a respeito dela, fica claro que fotografias são as articulações de um nível de consciência pós-histórico, que tenta fotografar e eternizar a História. Isso está penetrando lentamente na consciência. Lentamente, as pessoas estão percebendo o que significa fotografar e ser fotografado. Elas tomam consciência de que a História se repete graças à fotografia. O fato de que fotografias amarelam, que estragam, que estão sujeitas ao segundo princípio da termodinâmica, não muda nada no fato de que a fotografia eterniza. Talvez a informação original se perca lentamente. Porém, alcança-se um tipo de duração, que é a-histórica, pós-histórica e que lembra a eternidade. As imagens que são de fato eternas porque são imateriais foram inventadas apenas no século XX. Mas já nessas imagens químicas está contido o princípio da eternidade. As pessoas começam a se comportar de outra forma. Havia pessoas que casavam para serem fotografadas. Hoje em dia não sabemos para que nos casamos. Antigamente casava-se para ser fotografado. Um ato histórico ganhou sentido. Em acontecimentos históricos sempre havia um fotógrafo. A fotografia, a consciência trans histórica, tornou-se aos poucos o sentido da História. Isso ficou cada vez mais evidente na primeira e ainda mais intensamente metade do século XX. O sentido da chegada do homem a Lua é a imagem. Um sequestro de avião acontece para a imagem. O sentido da ação política é a imagem. A imagem tornou-se a meta da História.  As pessoas começam a ultrapassar a História, sem ter consciência disso. (FLUSSER, 2015, p. 216 – 218)

Diante deste cenário, Flusser (2015) identificou o enfeixamento das massas imbecilizadas diante das grandes emissoras de comunicação. Seguindo-o, a não-reflexão domina uma sociedade incapaz de processar as informações que recebe, pois os conteúdos são múltiplos, diversos e efêmeros, ao ponto de um anular a importância do outro, o que acaba por promover a banalização do iluminismo emancipador e possibilita o exercício do poder sem a oposição que uma democracia exigiria.

Não está longe de tais verificações o escrutínio frankfurtiano. Assim, lemos em Adorno (2014) que o Esclarecimento contribui para as barbáries do mundo administrado e seu exercício de poder por meio da técnica e da tecnologia. Mais adiante veremos que esta mesma lógica será encontrada nos algoritmos das redes sociais.

DESENVOLVIMENTO DA IMAGEM DIGITAL

Considerando as notáveis transformações trazidas ao campo das imagens nas últimas três décadas, desde o desaparecimento de Flusser em 1991, quando a hegemonia dos meios de comunicação de massa e os impactos da internet na sociedade ainda não podiam ser sentidos em toda a sua extensão, faz-se necessário recorrermos a novas teorias suscetíveis de tomar todo o quadro de acontecimentos, que o filósofo não viveu para conhecer.

De fato, num primeiro momento, foi vista com muito otimismo por parte de teóricos e da opinião pública, desde a web 2.0 a comunicação em rede pareceu ser uma resposta emancipatória aos meios de comunicação de massa, pois agora as pessoas poderiam formar grupos sólidos e numerosos para se manifestar publicamente. O conceito de democracia parecia estar ganhando uma nova camada semântica até então inédita na história da política. A massa de manobra de outrora passou a ganhar complexidades e nuanças que lhe dariam um novo status na análise social: as indefiníveis multidões.

No entanto, o utopismo digital não é mais tão forte como no momento de disseminação social da internet, de tal sorte que a nomenclatura agora aplicada pelo autor à cibercultura leva-nos ao “pós-digital”. O conceito que não supõe nenhuma superação ou conclusão de um período, mas encerra uma crítica ao capitalismo semântico, expressão utilizada por Lúcia Santaella para designar o peso que a construção simbólica tem no consumo contemporâneo, e seus pilares da big data e da ideologia da inovação das estruturas persuasivas do consumo nunca tiveram tanto poder como no contemporâneo, fornecemos dados sobre nós mesmos e alimentamos pesquisas de mercado a todo o momento. É o que vem a campo notar, em tempo, Santaella:

O grande malfeitor, que tudo captura, são os algoritmos. Nada mais no universo escapa da lógica de seu poder invisível e onipresente. O governo e as corporações, as economias, a cultura, a vida, nossos pensamentos, nossos hábitos e nosso eu, as coisas, o tempo e o espaço estão submetidos à governabilidade algorítmica. Nessa versão renovada da sociedade de controle do capitalismo digital, tudo virou dados mercantilizados. (SANTAELLA, 2016, p. 68).

A autora alerta que embora existam grandes empresas que se beneficiem com essa nova estrutura de comunicação social, é a ação individual que faz girar esta nova roda do consumo e, nesse sentido, que atacar a comunicação em rede com maniqueísmos anacrônicos ou superficiais é rebaixar o nível do debate (SANTAELLA, 2016). De fato, num primeiro relance, redes sociais como o Instagram e o Facebook parecem nos colocar diante de uma radicalização da pós-história flusseriana. Não há nenhum tipo de entendimento ou desenvolvimento histórico possível fora das imagens técnicas, os protestos mais significativos se concentram em viralizar imagens ao impô-las à lógica dos algoritmos de modo que sua visualização se torne inevitável por grande parte dos usuários digitais. Embora este ato seja significativo, uma vez que os emissores-receptores digitais consigam impor sua vontade a da máquina, como fica a recepção e significação de tais ícones?

Estudioso de Flusser, em ‘A era da iconofagia: Reflexões sobre a imagem, comunicação, mídia e cultura,  Norval Baitello (2014) estabelece três graus de consumo entre imagens e sujeitos: No primeiro grau as imagens se devoram entre si, elas mesmas se geram em eco, repetições e reproduções autorreferenciais, ou seja, o registro da imagem técnica não é mais o da história, a multiplicação das imagens mostra que elas se bastam, a representação do acontecimento histórico já está sedimentada em estruturas imagéticas de segundo ou terceiro grau, o olhar do fabricante de imagens já está aprisionado em um repertório que sufoca sua criatividade e o condena ao labirinto das iconografias.

O segundo grau da iconofagia é quando o ser humano se torna o consumidor das imagens, quando a cultura, a história, as coisas, as pessoas e nós mesmos existimos neste plano de consumo enquanto simulacros, os atributos imagéticos eclipsam a realidade e em determinados contextos observamos o retorno de formas mágicas de pensamento que estão afastadas de qualquer racionalismo nascido da escrita, como já vimos. É importante ressaltarmos que não estamos falando de qualquer simulacro, este cenário é composto por imagens técnicas, ou seja, aqui a consciência e o exercício da técnica da indústria cultural se confundem.

Num terceiro grau, mais preocupante, são as imagens que nos devoram. Isso ocorre quando já estamos completamente cercados, e de tal forma submissos a sua lógica que coisas concretas desaparecem nesse caldo de cultura imagético que alcança inclusive os corpos, tanto assim que vemos pessoas se mutilarem, se imporem regimes de comportamento, gastarem horas se exercitando e tomam remédios danosos a saúde para ficarem o mais próximas possível dos corpos que existem nas projeções imagéticas brilhantes das telas.

É necessário dizer que a iconofagia também tem impactos profundos dentro da retórica política, sem fugirmos do tema, devemos reconhecer que as Fake News, o negacionismo e o ódio disseminado em setores extremistas da militância partidária, tem como premissa central a defesa de suas posições ideológicas a partir de simulacros que atestariam sua veracidade. Uma imagem é manipulada para forjar um escândalo político ou moral, sem nenhum tipo de apoio lógico que vá além do espetáculo apresentado pelo ícone. A “verdade” apenas é revelada de modo sensacionalista e direto ancorada na técnica imagética e neste sentido, mesmo em um ambiente dominado pela “democracia” das redes sociais, nós vemos um retorno a condição acrítica de vermes anencefálicos diante das imagens técnicas (FLUSSER, 2015).

Efeitos de especiais, enquadramentos, profundidade de campo, edição de vídeo, paleta de cores e a mixagem de som, viraram as novas ferramentas retóricas na era da iconofagia, as pessoas usam imagens digladiar no debate público esperando o convencimento alheio e o fortalecimento de suas posições políticas, mas o único vitorioso neste cenário é o aparelho que programa a sociedade de modo mais intenso quanto mais as imagens se proliferam, mais dependente dele nos tornamos. A construção de valores e sentido são condicionados pelos meios tecnológicos que o constroem no plano da linguagem. O exercício niilista da técnica forja a pós-história.

Figura 1: Interface do Instagram.

Interface do Instagram
Fonte: https://br.freepik.com/vetores-gratis/modelo-de-interface-de-historias-do-instagram_7040322.htm

No ambiente de consumo das redes sociais, temos como exemplo acima o Instagram, as imagens são distribuídas dentro desta fôrma a partir da lógica dos algoritmos, que mapeiam suas buscas dentro do ambiente digital e sugerem essas temáticas por meio de imagens instigantes que visam o engajamento, ou seja atividade dentro destes sites e páginas, assim quanto mais o usuário interagir neste ambiente, mais as marcas irão anunciar e maior será a possibilidade de consumo real e disseminação do conteúdo apresentado.

Neste cenário, as possibilidades de emancipação diante das estruturas mediáticas estabelecidas não parecem muito prováveis, estamos diante de um enfeixamento algorítmico que se esconde através do véu da liberdade de expressão, mas cabe salientar que o problema em si não está nas imagens, e sim no modo como elas chegam até nós, dado que a aleatoriedade dos algoritmos destroem qualquer ação imaginativa crítica, imagens da política, da pandemia da covid-19 e da situação econômica se confundem com piadas e fofocas banais, dentro das redes tudo parece possuir o mesmo peso. Escolher um presidente da república e uma marca de detergente dividem o mesmo espaço sem qualquer distinção hierárquica. No mundo da mercadoria tudo pode a qualquer momento.

No entanto, sem perdermos de vista o espírito crítico, cabe ainda notar que novas políticas do olhar surgidas desde a época áurea dos pensadores do espetáculo e do simulacro, não principalmente no campo de uma história não teleológica, passam a relativizar as certezas adquiridas sobre o engano das imagens. Numa de suas frentes mais ativas, tais teorizações não hesitam em apontar o caráter teleológico das iconoclastias. É falando deste este outro observatório que Didi-Huberman vai nos chamar a atenção para a necessidade de se ler as imagens dialeticamente, sem reduzi-las a uma representação totalizante, vendo muito de sua redução ao fetiche enganoso na maneira mesma de lhe solicitarmos o testemunho da realidade:

Se ignorarmos esse trabalho dialético das imagens, corremos o risco de não compreender nada e de confundir tudo: confundir fato com o fetiche, o arquivo com a aparência, o trabalho com a manipulação, a montagem com a mentira, a semelhança com a assimilação… A imagem não é nem nada, nem toda, ela também não é uma – nem sequer é duas. Ela desdobra-se segundo uma complexidade mínima que supõe dois pontos de vista que se confrontam sob o olhar de um terceiro. (DIDI-HUBERMAN, 2020, p. 215)

Ora, como em boa medida o diferencial da obra deste filósofo e historiador da arte passa por sua referência ao alemão Aby Warburg (1866-1929), que ele tira do esquecimento, é ainda necessário recuar até as noções warburganas de Nachleben, Pathosformel e ao seu Atlas Mnemosine, que Didi-Huberman praticamente ressuscita para nós.

Filho de um importante banqueiro alemão de origem judaica, Aby Warburg renunciou desde cedo seus direitos de filho primogênito sobre a herança do banco administrado por sua família, em prol de seu irmão Max, que viria a ajudar Aby financiando suas pesquisas e a construção de sua monumental biblioteca. Fascinado com o renascentismo italiano, decidiu estudar história da arte na universidade de Bonn, figuras como o historiador das religiões Hermann Usener (1834-1905), do historiador social Karl Lamprecht (1856-1915) e do historiador da arte Carl Justi (1832-1912) seriam figuras importantes na sua formação acadêmica, contribuindo para a percepção da correspondência entre cultura, psicologia e história, tripé que permearia toda a sua teoria como veremos (CHARBEL, 2010).

O pensamento warburguiano é um dos mais polêmicos no que tange à crítica moderna. Efetivamente, muitos atribuem suas conclusões ímpares ao delírio, até em vista dos anos que passou na clínica Bellevue tratando sintomas de depressão e esquizofrenia. Parte deste embate também reflete seu ataque ao pensamento estetizante da história da arte, uma categoria de análise engessada e insuficiente que limita sua crítica à imagem em si, sem nenhuma forma de contextualização cultural mais complexa. Warburg acreditava em uma desconstrução das fronteiras disciplinares, é comum encontrarmos nos seus textos referências que mesclam astrologia, filosofia, teologia, antropologia, história e literatura antiga. Mas este projeto de transgressão das barreiras disciplinares iria além de sua produção textual. Ele terminaria por conceber a Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg reunindo ao longo dos anos a maior diversidade de repertório bibliográfico e iconográfico possível. No ano de 1929 (ano de sua morte), constava mais de 65 mil volumes, divididas em 4 andares: 1º andar: Drômenon (ação); 2º andar: Wort (palavra); 3º andar: Bild (imagem); 4º andar: Orientienrung (orientação).

Mas esse espaço ainda era a working library de uma “ciência sem nome”: biblioteca de trabalho, portanto, mas também biblioteca em trabalho. Biblioteca que Fritz Saxl disse muito bem ser, antes de qualquer outra coisa, um espaço de questões, um lugar para documentar problemas, uma rede complexa em cujo “ápice” – fato extremamente significativo para nosso propósito – encontrava-se a questão do tempo e da história: “Trata-se de uma biblioteca de questões, e seu caráter específico consiste justamente em que sua classificação obriga a entrar nos problemas. No ápice [an der Spitze] da biblioteca encontra-se a seção de filosofia da história.” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 35 – 36)

A questão fundamental da obra de Warburg é a Nachleben (sobrevivência) das imagens, sua característica de retornar e reaparecer em contextos diversos, sejam eles na astrologia antiga ou no ciclo de afrescos presentes no Palazzo Schifanoia em Ferrara, são o ponto de partida inicial para a filosofia da história presente no seu projeto intelectual. Este conceito tem sua origem no survival da antropologia anglo-saxônica, utilizado pelo etnólogo Edward B. Taylor para se referir a anacronismos culturais presentes no México da segunda metade do século XIX, como rituais religiosos que mesclam práticas pagãs e cristãs, objetos do cotidiano que fazem referência a momentos históricos ultrapassados e superstições antigas. A influência da antropologia Tayloriana sobre Warburg advém de sua escolha por este referencial teórico quando viajou para o México buscando sobrevivências primitivas (DIDI- HUBERMAN, 2013).

A hipótese da sobrevivência das imagens antigas na era moderna do Renascimento, tal como formulada por Warburg, não implicava nenhuma reivindicação de um desenvolvimento harmonioso da arte no curso da História, mas ao contrário a complexidade de formas sobreviventes. Aqui, a cultura não é mais vista como imersa num tempo todo seu. Diferente das análises que não cessam de estabelecer nexos entre a realidade concreta e a simbólica, a visão warburguiana fica fora da delimitação do nascimento e morte dos movimentos estéticos, que se interpenetram. (DIDI-HUBERMAN, 2013). Para o pensador alemão, o mapeamento destas imagens pode nos fornecer um sismograma dos sintomas patológicos que persistem na cultura humana, desta maneira nós podemos ler de modo indireto as questões que nunca conseguimos (ou conseguiremos) nos livrar, construindo uma forma de psicologia da cultura:

O historiador-sismógrafo não é o simples descritor dos movimentos visíveis que ocorrem aqui e ali; é, principalmente, aquele que inscreve e transmite os movimentos visíveis que sobrevivem, que são urdidos sob o nosso solo, que se aprofundam, que aguardam o momento – inesperado – de se manifestar subitamente. Não é à toa que Burckhardt falava de uma “patologia” e de uma “sintomatologia” do tempo: o historiador da cultura tinha que estar à escuta destas como o sismógrafo de Schmidt ficava à escuta dos movimentos da crosta terrestre e como o demógrafo de Charcot ficava à escuta do corpo histérico mergulhado em estado de “sobrevivência” sonambúlica, à espera, na aura histérica de sua crise, de seu próprio sismo. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 112 – 113).

Considerando o antropocentrismo artístico presente desde a antiguidade, a grande pergunta warburguiana é: quais são as formas corporais do tempo sobrevivente? Em outras palavras, quais são as fórmulas de páthos (Pathosformeln) que expressam de modo sintomático nossas questões insolúveis ao longo da história? Só assim poderemos estabelecer os “Fragmentos para a fundação de uma psicologia monista da arte” (DIDI-HUBERMAN, 2013).

A Pathosformel deve ser compreendida na seguinte conjunção disciplinar: antropológica, para estabelecermos seus laços culturais nos momentos em que aparece; histórica, para um estudo genealógico imersivo; filosófica, para redefinirmos o páthos para além da fragilidade (DIDI-HUBERMAN, 2013).

A fórmula de páthos é objeto de esclarecimento para o historiador da cultura, e não motivo de combate e destruição, como uma antítese à racionalidade. A própria imersão nesta linha de pensamento é aceitar os fantasmas que não cessam de nos assombrar, aqui a clareza é inimiga do desenvolvimento, e os fragmentos se tornam nossos maiores aliados. Mas a questão central é: onde achar tais fantasmas? Como aplicar efetivamente este método e extrair algo das formas patológicas sobreviventes? A resposta de Warburg está na montagem do atlas mnemosine.

Figura 2: Três pranchas de atlas mnemosine.

Três pranchas de atlas mnemosine.
Fonte: https://notamanuscrita.com/2017/03/01/aby-arte-e-o-monstro/

Como podemos observar na fotografia acima, o atlas Mnemosine pretende reunir uma série de imagens que expressam diversas manifestações da Pathosformel sobre uma mesma temática ao longo da história, fazendo um exercício arqueológico que resgata e ao mesmo tempo constrói a memória. Cada uma das pranchas tinha um objeto específico, como, por exemplo, o assassinato violento de Orfeu, Laocoonte sendo estrangulado por cobras junto com seus filhos e a representação do herói Perseu. Os intervalos entre cada uma das imagens expressam os tais fantasmas perseguidos por Warburg, é no choque entre as imagens que encontramos a montagem proposta por Didi-Huberman, o historiador da arte não deve se perder em cada uma destas imagens como objeto de análise, mas sim na parte cinzenta entre elas, que suscita a imaginação crítica que busca desvendar o porquê da Nachleben destas formas específicas e deste modo nos fornece um diagnóstico cultural (DIDI-HUBERMAN, 2013).

O Atlas Mnemosine pretende, com seu material de imagens, ilustrar esse processo, que se poderia designar como uma tentativa de introjeção na alma dos valores expressivos pré-formados na representação da vida em movimento.

A ‘Mnemosine’, com seu alicerce de imagens (caracterizadas no Atlas por meio de reproduções), a princípio pretende ser apenas um inventário das pré-formações de inspiração antiga que verificadamente influenciaram a representação da vida em movimento na época do renascimento, contribuindo assim para a formação de um estilo. (WARBURG, 2015, p. 366)

Os seus estudos se fixaram na questão do ressurgimento das imagens antigas no contexto renascentista, diferentemente de muitas histórias da arte que assinalam uma ruptura entre passado e presente, sublinhando a força da passagem do teocentrismo medieval ao moderno. Warburg se interessava por aquilo de que o humano não conseguia se desprender depois de séculos e não cessava em retornar sintomaticamente. Sua proposta não era criar uma história da arte em etapas, mas sim de construir uma percepção do que há de mais obscuro e persistente na cultura.

É perceptível uma influência muito grande da literatura poética antiga não só em Warburg, mas também nos seus contemporâneos, como Freud e Nietzsche. De fato, pode-se dizer que esta geração de pensadores alemães retorna ao repertório trágico antigo, como reação às  esperanças teleológicas de transformação da humanidade depositadas na razão instrumental da ciência, donde os paralelos entre mitos e questões contemporâneas, a  pressupor  uma verdadeira noção trágica do humano, já que nesta concepção  estaríamos desde sempre nos deparando com as mesmas questões insuperáveis, tudo se passando como se a literatura, antes mesmo da  filosofia, já tivesse expressado o que há de mais humano em nós. Ora, a maneira especial de Warburg de enxergar esta tragédia era através do exercício da Mnemosine, que identificava as fórmulas de páthos sobreviventes.

Resgatando este repertório Warburguiano, em que a relação mnemônica entre as imagens é condição de estabelecimento de uma espécie de mapeamento visual da experiência humana, podemos começar a pensar modos de montagem imagética que de fato suscitem a imaginação crítica. Isso permite não apenas denunciar, mas escapar da montagem típica das redes sociais.

AS IMAGENS TÉCNICAS ENTRE O ENFEIXAMENTO ALGORÍTMICO E A DIALÉTICA

Diferentemente de Warburg, que se valeu desta metodologia para fazer considerações acerca da história da arte e alguns rituais primitivos, Didi-Huberman se encontra no mundo da iconofagia. O autor clama por um olhar mais cauteloso diante das imagens para não jogarmos c bebê junto com a água do banho. É necessário, pensa ele, um trabalho similar ao do atlas mnemosine, ainda que não a magnitude, pois o choque entre duas imagens já seria o suficiente para a suscitar a imaginação crítica.

A ênfase da argumentação de Georges Didi-Huberman está no reconhecimento do valor dos registros técnicos quando voltados aos horrores da exterminação nazista, que em outros observatórios passam por irrepresentáveis e mais que tudo inimagináveis. Deste outro ângulo, as imagens dotam-se da potencialidade do olhar de através que o escudo da câmera oferece ao contemplador do mal extremo. Fazendo mais um retorno ao mundo grego clássico, podemos pensar no embate entre a górgona Medusa e o herói Perseu, o monstro horrendo tinha o poder de petrificar qualquer um que a olhasse diretamente nos olhos, mas o herói foi precavido pelos deuses com um escudo espelhado que o possibilitava enxergar a adversária sem o perigo de ser transformado em estátua, desta maneira Perseu conseguiu entrar no covil da fera e matá-la.

Portanto, ao invés de nos afogarmos neste mar de imagens técnicas e simulacros, Didi-Huberman vê uma possibilidade de usarmos isso ao nosso favor, confrontando imagens e tirando deste embate o material para nossa faculdade imaginativa, que passa a não ser mais controlada pelo exercício de poder da indústria cultural em suas diversas instâncias, mas sim a ser uma virtude de ação política.  O pensador francês constrói este debate em cima de uma polémica acerca da irrepresentatividade do trauma com os horrores do extermínio judeu.

Na seção apesar da imagem toda, segunda parte do livro imagens apesar de tudo, no melhor estilo hubermaniano -, o filósofo francês rebate uma série de ataques feitos contra a exposição memória dos campos, um evento cultural que buscou suscitar a imaginação e reflexão dos seus frequentadores a partir de imagens de arquivo que registraram os horrores do extermínio nazista. Entre estas imagens nós temos as quatro fotografias produzidas em agosto de 1944 por membros da Sonderkommando que registram o antes e o depois da morte por gaseamento, arquivo raro e singular, considerando que o ato fotográfico advém dos próprios prisioneiros e não de cinegrafistas externos ou dos próprios nazistas.

Figura 3: Fotografia retirada das fossas incendiárias por um dos membros da Sonderkommando.

Fotografia retirada das fossas incendiárias por um dos membros da Sonderkommando.
Fonte: https://latinta.com.ar/2018/10/arrancarle-una-imagen-a-lo-inimaginable/

Didi-Huberman começa por nos apresentar uma retórica iconoclasta que clama a respeito da irrepresentabilidade do extremo mas, no fundo, defende o testemunho verbal inerente às literaturas ditas “de testemunho “e condena as  imagens-véu, ícones fetichizados que tem como fim substituir o objeto real e proporcionar uma experiência mais segura e simplificada, assim, explorando de modo pobre e até distorcido o trauma representado, afastando qualquer possibilidade reflexiva verdadeiramente complexa, deixando aos seus intérpretes apenas um registro insuficiente e pretencioso que promove uma espetacularização tosca do horror. Conforme Élisabeth Pagnoux acerca das imagens-véu: “não se resume, não se fetichiza, não se museifica Auschwitz para o entender e para lhe pôr fim.”.

Nesta perspectiva, o testemunho dos sobreviventes ganha destaque central por ser a única possibilidade de contato com o que “restou” do extermínio, apenas eles são capazes de construir uma narrativa que faça justiça ao seu trauma, respeitando os horrores irreproduzíveis que existem enquanto narração verbal das testemunhas e não enquanto simulacro de aparelhos técnicos. Deste modo, o filme Shoah de Claude Lanzmann, se transforma em um monumento incontestável que define os limites da representação do terror dos campos. Na obra a palavra se torna absoluta, puxando para si toda a potência de provocar a imaginação enquanto consciência da barbárie e faculdade política. Já a imagem se restringe a ser um mero registro do testemunho, muito distante da natureza dos arquivos fotográficos que o próprio Lanzmann chamava de imagens sem imaginação.

Embora Didi-Huberman reconheça o valor desta abordagem, discorda de suas generalizações que colocam no mesmo patamar de dignidade o filme hollywoodiano A Lista de Schindler e s quatro fotografias tiradas pelos membros da Sonderkommando. Defende que as imagens de arquivo não funcionam como um véu que mascara e distorce a realidade, mas na verdade promovem a redenção histórica do momento registrado por eternizar sua barbárie, mesmo que contemplar uma fotografia da Shoah não tenha o mesmo peso de sua experiência, a imagem de arquivo preserva de modo indicial a verdadeira atmosfera do horror, fazendo desta uma imagem-dilaceramento, como o escudo de Perseu que reflete a monstruosidade da medusa sem o risco de ser petrificado ao olhar para o reflexo, mas tendo consciência da existência do monstro.

A montagem surge como um alicerce para potencializar a força das imagens, permitindo uma extração de informações e provocações muito mais ricas do que a análise da imagem singular teria. Dando continuação a experiência-limite da montagem que havia trabalhado em seu filme Ici et Ailleurs (1976), Jean-Luc Godard realiza História(s) do cinema (1980 – 1998), confrontando as imagens de arquivo dos campos com trechos de filmes, fotografias, pinturas e palavras, fazendo o oposto de Claude Lanzmann. Assim, o cineasta tenta explorar ao máximo a linguagem do cinema e corrigir sua dívida histórica para com os campos de extermínio. Todo este embate remonta as questões que circulavam na intelectualidade francesa na década de 1980 acerca do perigoso esvaziamento de sentido promovido pela espetacularização midiática, neste sentido Lanzmann colocasse mais próximo do iconoclasmo contido no esclarecimento da palavra enquanto Godard usa do próprio veneno para fabricar o remédio (MOTTA e TAAM, 2020).

A questão transforma-se assim nesta outra: com o que montar – para mostrá-las – as imagens dos campos de concentração? A resposta das História(s) será evidentemente complexa, sempre dialética: nem “totalitária” (o que suporia uma única história “toda”), nem dispersa (o que suporia múltiplas histórias sem ligação entre si). Jacques Aumont analisou bem o modo como Godard “re-monta o tempo” nas História(s) do Cinema. Ao trilhar este caminho, ele notou que o ato de dar ritmo às imagens de arquivos nunca deixa de ser acompanhado pela descoberta da sua natureza de registros fotográficos: “É bastante significativo que, em todo seu brilho e complexidade, as História(s) nunca recorram ao retoque da imagem, mas apenas a técnicas que não afetam a sua indicialidade” (DIDI-HUBERMAN, 2020, p. 204)

Deste modo, o exercício cinematográfico crítico se torna uma arte necessária para pensarmos sobre a representação na cultura pós-aurática (BENJAMIN, 1987), pois a redenção histórica se concretiza na consciência da barbárie incrustada no documento cultural, que é alienada pelo enfeixamento mediático em suas diversas manifestações. A reflexão imaginativa promovida pela dialética das imagens através da montagem, responde diretamente ao exercício de poder das imagens técnicas do mundo contemporâneo, uma vez que o meio faz parte da própria mensagem, o esclarecimento não deve se prender apenas na escrita, tem o dever de se materializar nas linguagens mais adequadas para seus fins.

É preciso imaginar para conhecer, repete Huberman, citando A imaginação de Sartre, a que A câmara clara de Barthes também é dedicada (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 71). Trata-se de um conhecimento que, justamente por apelar para imagens não mais que singulares, pode prescindir da veleidade da inteireza – de toda a verdade ou da verdade toda –, diferentemente da demanda feita pelos Holocaust Studies aos arquivos fotográficos. Daí o verbo não precisar ser projetado numa transcendência negativa, o que explica as famosas citações poéticas de Godard, também na linha de mira de Didi-Huberman. Em Passés cités de JLG, ele as reconhecerá como parte ativa da montagem godardiana, que não se impede de ser ao mesmo tempo gráfica e ótica. (MOTTA e TAAM, 2020, p. 224)

Ao evocarmos tal repertório, não temos a intenção de propormos uma reformulação do modo como as informações são distribuídas pelos algoritmos nas redes sociais, afinal, sabemos que o capital jamais permitiria que sua manipulação para o consumo fosse afetada em prol da reflexão, logo, defender tal proposta seria inútil. Mesmo assim, devemos salientar que este caminho reflexivo possibilitaria orientar propostas estéticas que almejem ressignificar as imagens ordinárias que nos deparamos diariamente nas redes e as colocaria em um contexto dialético que seja possível extrair mais do que o enfeixamento algorítmico permitiria. Na era da iconofagia, o conceito de pós-história parece não estar dando conta da complexidade do status imagético contemporâneo, afinal, as imagens não se preocupam mais com os fatos históricos, elas só se preocupam com si mesmas. Computadores podem gerar simulacros que não são mais percebidos como tais, a realidade, a verdade e a história se tornaram irrelevantes e as “narrativas” passaram a dominar e relativizar qualquer fato. Continuamos a usar de artifícios para combater nossa solitária existência, cada vez mais radicalizando nossas abstrações e nos afastando do mundo da vida, neste sentido, o repertório trágico evocado por Warburg e seus contemporâneos nos ajudam a perceber o que há de humano demasiado humano ao longo de nossa jornada histórica.

CONCLUSÃO

O artigo voltou-se a uma análise das imagens distribuídas no ambiente das redes sociais a partir da lógica dos algoritmos, fazendo um paralelo entre visões do estatuto das imagens na pós-história e seu desenvolvimento até o modo como as imagens técnicas circulam nas redes sociais. Nossa resposta à questão da chance das imagens no mundo das redes sociais vai no sentido de reconhecer sua força irrealizante ou iconofagia alienante. Vai também na direção de sublinhar a proposta dialética de Didi-Huberman, em sua relação com a iconologia de Aby Warburg, que lança o problema das imagens num processo de montagem e choque, que enseja reconhecê-las como sempre imaginárias e parciais e depositar justamente sua capacidade de testemunho em tais propriedades.

De fato, embora as imagens possam ser um instrumento de controle para o consumo e a espetacularização capitalistas, Didi-Huberman promove um debate instigante acerca do papel que elas têm na construção do discurso crítico, valendo-se para tanto das desconstruções em jogo no cinema de Godard e as nuances de sentido promovidas pela sua montagem diante do que seria o irrepresentável por excelência. Sublinhe-se aqui, nesse sentido, a frase que serve de epígrafe a Imagens apesar de tudo: “é necessário imaginar para conhecer”.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. (edição digital). Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 10.

BAITELLO, Norval. A era da iconofagia: Reflexão sobre imagem, comunicação, mídia e cultura. (1ª edição). São Paulo: PAULUS Editora, 2014, p. 89 – 91.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (3ª edição). São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 165 – 197.

CHARBEL, Felipe. Aby Warburg e a pós-vida das Pathosformeln antigas. História da Historiografia, ouro preto, n 05, p. 134-147, 2010. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/171/146. Acesso: 29 / 10/202.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. (1ª edição). São Paulo: Editora 34, 2020, p. 204 e 215.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. (1ª edição). Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltda, 2013, p. 35 – 36, 43 – 49, 69, 112 – 113, 167, 177 e 422.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. (1ª edição). São Paulo: Annablume, 2013, p. 15.

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: Por uma filosofia do design e da comunicação. (1ª edição). São Paulo: Ubu Editora, 2017.

FLUSSER, Vilém. Comunicologia: Reflexões sobre o futuro. (1ª edição). São Paulo: Martins Fontes – Selo Martins, 2015, p. 216 – 218, 250, 254.

HANKE, M. M. Pós-História e Pós-Modernidade. Dois conceitos-chave da filosofia da cultura crítica de Vilém Flusser e sua análise contemporânea da mídia e das imagens técnicas. Galáxia, São Paulo, n. 29, p. 96-109, 2015. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/20223/16747. Acesso: 29 / 10/2021.

MOTTA, Leda e TAAM, Pedro. Contribuição a uma reflexão sobre a moral negociada nos estudos da catástrofe-e-representação: Arte e dor em Jean-Luc Godard. Alea, Rio de Janeiro, vol. 22 /3, p. 213 – 231, 2020. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/alea/article/view/40479/22118. Acesso: 29 / 10/2021.

SANTAELLA, Lucia. Temas e dilemas do pós-digital: A voz da política. (1ª edição). São Paulo: Paulus, 2016, p. 68.

WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. (1ª edição). São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 333.

[1] Mestre em Comunicação e Semiótica, Especialista em Filosofia e Bacharel em Comunicação Social com Habilitação em Cinema. ORCID: 0000-0002-5084-4143

[2] Doutora em Semiologia Literária, Mestre em Semiologia Literária e Graduação em Letras Modernas. ORCID: 0000-0002-1468-4752

[3] Orientadora. ORCID: 0000-0002-0681-6073

Enviado: Novembro, 2021.

Aprovado: Fevereiro, 2022.

Rate this post
Francisco Etruri Parente

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pesquisar por categoria…
Este anúncio ajuda a manter a Educação gratuita