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Artes vegetais: uma leitura do conceito de natureza a partir das obras de Christa Sommerer, Laurent Mignonneau, Nils Udo e Emanuele Coccia

RC: 75713
288
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/artes-vegetais

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SANTOS, Ariane Alves dos [1]

SANTOS, Ariane Alves dos. Artes vegetais: uma leitura do conceito de natureza a partir das obras de Christa Sommerer, Laurent Mignonneau, Nils Udo e Emanuele Coccia. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 02, Vol. 05, pp.  23-34. Fevereiro de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/artes-vegetais, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/comunicacao/artes-vegetais

RESUMO

A proposta do texto a seguir é investigar duas obras cujas composições partem da exploração dos processos de vida dos vegetais, sendo elas Milles Narcisses, do artista alemão Nils Udo, e Interactive Plant Growing, dos criadores Christa Sommerer e Laurent Mignonneau. O objetivo é traçar a partir delas um possível entendimento do conceito de natureza e, para tanto, será elaborada uma aproximação com a obra “A vida das plantas”, de Emanuele Coccia. Essa relação se justifica pela possibilidade de pensar o conceito de natureza como um conjunto de processos que envolve agentes humanos e não humanos. Desse modo, objetiva-se compreender em que medida estes artistas e obras explicitam e radicalizam os aspectos descontínuo e/ou contínuo da natureza.

Palavras-chave: Natureza, Vegetais.

INTRODUÇÃO

Na virada para o século XXI, e ao longo dele, torna-se ainda mais urgente tocarmos na necessidade de preservarmos os ecossistemas, colocando-nos como parte da cadeia de vida na terra, para além de uma noção de que ocupamos uma plataforma especial na constituição das espécies. Além disso, faz-se necessário adentrarmos nos processos de semiose no que se refere às mudanças pelas quais o meio (e consequentemente nós) está passando. Isso porque ao observarmos – e vivermos- essas mudanças, notamos uma alteração do que poderíamos entender como natureza. Seria a criação de ambientes artificiais, formas de vivenciarmos os processos da natureza pela via de uma tecnosfera? Como entender a natureza em um tempo em que teorias, como a do antropoceno, ganham cada vez mais relevo nos debates, tanto nas áreas de ciências humanas quanto nas áreas de biologia e exatas, discorrendo sobre a ação do homem ser um agente central para as mudanças biogeoquímicas do planeta? Nesse debate, Morton (2003, p. 63) chega até mesmo a afirmar a falência do conceito de natureza associada ao natural para pensá-la em um sentido mais englobante: inclui a experiência fenomênica e se delineia como uma construção artificial, uma vez que se a “natureza cobre absolutamente tudo, ela também inclui colheres, software de computador e cones de trânsito”.

Diante da complexidade implicada nessa discussão, as propostas desenvolvidas no campo das artes se mostram como uma das formas de traçarmos alguns enfrentamentos possíveis a essas questões. Os dois artistas aqui selecionados, de algum modo – através do conceito que permeia seus trabalhos, pelas materialidades e pelas relações que estabelece entre essas esferas- já sinalizam para essas problemáticas.

Trazendo à baila a obra “A vida sensível”, de Emanuele Coccia, propõe-se pontuar alguns aspectos para a abordagem que será apresentada ao longo deste artigo. Segundo o autor, nossa vida depende da experiência sensível. Ao longo dos debates filosóficos, o ser humano foi colocado em uma esfera diferenciada baseada na racionalidade, o que o consolidaria em um lugar de superioridade em relação às outras espécies. No entanto, Coccia afirma que o que nos diferencia é o modo singular de como experienciamos as sensações, para além de divisões que ressaltam as distâncias ontológicas existentes entre os seres, no que se refere ao intelecto/ sensibilidade, imagem/conceito. No caso, o que de fato ganha importância nessa discussão não são as divisões que nos separariam de outros animais, e sim a diferença de intensidade do sensível e da produção/relação com as imagens.

Uma das questões que emerge desse debate, portanto, é “do que o sensível é capaz no homem e no seu corpo, até onde podem chegar à força, a ação, a influência da sensação nas atividades humanas?” (COCCIA, 2018, p.10). Creio que essa questão seja interessante para pensarmos sobre a relação entre arte e natureza pela via dos processos perceptivos. Isso porque, a vida sensível depende de uma relação com as imagens, e para que elas sejam produzidas é necessário que se afirme o potencial de cada uma, abrindo-se e relacionando-se com elas. Como é possível notar, nessa abordagem encontramos a importância do meio e de seus potenciais de gerar mediações ad infinitum. Isso porque, a arte e sua relação com a natureza implica numa conexão com o sensível, “como também são possíveis somente e graças à capacidade de produzir imagens ou de ser afetado por elas” (COCCIA, 2018, p. 11).

Quanto à relação implicada entre a natureza e a cultura, Bruno Latour, em seu texto “Sobre a instabilidade da (noção de) natureza”, pontua algo fundamental para pensarmos sobre o conceito. Segundo ele, não é possível definir a natureza sem colocar uma ligação direta com a cultura, o que “significa que não estamos lidando com domínios, mas com um e o mesmo conceito separado em duas partes que se encontram ligadas por assim dizer, por um forte elástico” (LATOUR, 2020, p.34)

Essa perspectiva pode ser aproximada à abordagem que Emanuele Coccia desenvolveu em seu livro “A vida das plantas: uma metafísica da mistura”, de que os seres vivos não estão fadados ao seguimento da seleção natural atrelada à adaptação ao meio. Isso porque os organismos empreendem mudanças no ambiente, que são difundidas para as gerações seguintes. Por isso, é possível dizer que eles são produtores de cultura. Ainda nessa chave, o engenheiro florestal Peter Wohlleben, autor de “A vida secreta das árvores”, afirma que a rede comunicativa das plantas apresenta um sistema bastante complexo composto por fungos, bactérias e pelos próprios vegetais, criando uma relação de interdependência entre elas para a manutenção de sua existência. A vida se conserva por essa ligação entre espécies mais fortes e fracas, constituindo-se como uma rede cooperativa, em que nutrientes são difundidos pelo solo e raízes. O desaparecimento de uma dessas espécies implica no desequilíbrio e até mesmo na morte de outras.

Coccia descentraliza a discussão filosófica de um plano humanista e passa a engajar-se no entendimento dos processos da vida a partir das plantas. Além disso, o autor também frisa a importância de deslocarmos os estudos biológicos, majoritariamente focado nos processos evolutivos da zoologia, para a botânica, dando, assim, um outro relevo para o entendimento da vida das plantas e dos outros seres que compõem a rede de vida na Terra.

A tendência a entendermos a vida a partir dos animais deve-se, além de outros fatores, a uma inclinação a nos reconhecermos neles, seja pela própria organização biológica, pelo comportamento ou pelas relações que estabelecem com o meio. Nesse ponto, tal tendência reafirma a disposição dos seres humanos a reiterar a sua superioridade, entendendo os processos da vida pela via antropocêntrica. Coccia se propõe a mostrar que as plantas possuem uma importância fundamental na geração e manutenção da vida, e que esta depende inexoravelmente dessa presença.

Até o século XIX, a cultura era entendida como interferência humana no mundo que era natural. No entanto, os animais e os vegetais alteram o ambiente conforme as suas necessidades de sobrevivência e de continuidade. Com isso, rompe-se a noção de que a cultura é estritamente uma produção humana. A questão que envolve a divisão entre natureza e cultura é inadequada, pois os organismos e os animais produzem alterações e reconfiguram o espaço. Mais do que isso: no caso das plantas, elas inauguram esse espaço.

Outro ponto relevante nessa discussão é a mediação entre o ser vivo e o meio. Se as ciências naturais afirmam o primado do meio sobre o sujeito, na abordagem do autor essa associação é invertida quando pensada pela vida das plantas. Pelo fato delas serem produtoras mais do que consumidoras, logo sua ação sobre o meio não se restringe à adaptação, passando a produzir e modificar o espaço. Essa modificação é ampla, não se restringe ao solo onde crescem. Trata-se de uma mudança da “estrutura metafísica do mundo” (COCCIA, 2018, p.17).

A questão da metafísica é importante na abordagem de Coccia, haja vista que ela aparece até mesmo no subtítulo da obra. Não adentrarei em um discussão detida do que seja a metafísica na filosofia, mas em linhas gerais, especificamente em “A vida das plantas”, podemos entendê-la como se processa nos vegetais e como elas modificam o mundo em sua totalidade:

(…) Convidam-nos a pensar o mundo físico como o conjunto de todos os objetos, o espaço que compreende a totalidade de tudo o que foi, é e será: o horizonte definitivo que já não tolera nenhuma exterioridade, o continente absoluto. Tornando possível o mundo de que são parte e conteúdo, as plantas destroem a hierarquia topológica que parece reinar sobre o cosmos. Demonstram que a vida é uma ruptura da assimetria entre continente e conteúdo. Quando há vida, o continente jaz no conteúdo (e é portanto contido por ele) e vice-versa.”- (COCCIA, 2018, p.17)

A implicação entre continente e conteúdo está associada à questão metafísica que permeia a obra, o estudo do ser das plantas, das suas peculiaridades e potenciais de metamorfose. A vida, portanto, deve ser entendida como a contínua exploração e experimentação com as formas de atividade que os seres vivos são capazes de empreender. E isso implica a afirmação das multiplicidades que podem emergir dessa mesma vida.

ARTE E NATUREZA

Três artistas que se destacam na exploração dos vegetais como matéria para a elaboração de seus trabalhos são Nils Udo e a dupla Christa Sommerer e Laurent Mignonneau.

Nils Udo (Alemanha – 1937) é um artista alemão que se destaca pela proposta de trabalhar com materiais orgânicos, geralmente encontrados no mesmo local onde são produzidas as suas instalações. Inicialmente, dedicou-se à pintura, passando a mudar a sua criação no ano de 1972, voltando-se para as propostas da arte ambiental e da Land Art. Uma das principais características de suas composições é a valorização do espaço, que se destaca pelos arranjos formais de suas produções. O ambiente, portanto, passa a ser parte da composição e do sentido da obra, contrapondo o espaço como mero local expositivo.

Em “Casa de Água” (figura 1), a composição apresenta elementos que reforçam o caráter transitório da obra: troncos vegetais finos, folhas que despontam em seu topo e o movimento das águas. Essa montagem é transposta para um espaço diferente daquele onde costumeiramente nasceria e se desenvolveria. Trata-se da orla do mar, em uma região entre a areia e a água. A ação do ambiente, como é possível notar, torna-se essencial na construção da própria obra. As mudanças no clima, na velocidade dos ventos, no nível de água do mar podem desintegrar a obra ou alterá-la paulatinamente. Há, portanto, uma teia de mediações, que consiste naquele que tem contato com a obra, ou seja, que pela via sensível elaborará uma aproximação e interpretação singular com ela; pelos elementos do ambiente, parte de sua constituição e metamorfose; e pela ação do artista, responsável por criar a rede de significação da instalação. A natureza, portanto, não é uma paisagem, e sim sujeito dotado de ação que modifica constantemente os elementos postos em relação. O ambiente e os materiais são a própria obra de arte, por isso não há a introdução de materiais definidos pelo artista como “artefatos pré-fabricados”, considerados como meros elementos decorativos (UDO, 2002, p.23).

O ambiente, portanto, é parte fundamental desse processo de criação, constituindo-se como o principal motor da semiose. Udo, ao deslocar esses vegetais de seu habitat costumeiro, coloca em relevo a própria heterogênese desses processos, ou seja, seu potencial de mudança que está no cerne de sua existência. Ao observarmos as plantas em um canteiro, nossa percepção muitas vezes não depreende todos os processos que operam para que aquele ser se mantenha vivo. Ao transpô-las para a água, coloca-se em evidência as mediações com o clima (grau de incidência de luz solar, índice pluviométrico, velocidade dos ventos) e a água (sua força, temperatura, composição química, nível de profundidade). Ainda é possível pensar nas formas de nutrição dessas flores para que se mantenham vivas. O quanto resistiriam nessas condições, com a sua transposição da terra para a água?

Uma das distinções pontuadas por Coccia entre a vida humana e vegetal, é a de que nós precisamos das plantas para sobreviver, enquanto elas não necessitam da mediação de outros seres vivos para tal. A sua vida depende de elementos como a água, o ar, mas não de animais, inclusive o humano. Essas matérias fundamentais que as nutrem também são aquelas que serão utilizadas para a produção de elementos cruciais para a vida de outros seres que habitam o mundo:

Tudo que exigem é o mundo, a realidade em seus componentes mais elementares: pedra, água, ar, luz. (…) Transformam tudo que tocam em vida, fazem da matéria, do ar, da luz solar o que será para o resto dos seres vivos um espaço de habitação, um mundo. (…) Transformam a energia solar dispersa pelo cosmos em corpo vivo. (…) O mundo é, para grande maioria dos organismos, o produto da vida vegetal. (COCCIA, 2018, p.14-15)

Como é possível notar, o autor destaca a importância das plantas para a existência de outras formas de vida. Elas são produtoras, enquanto muitos seres são consumidores de seus produtos, tal como ele indica: a energia solar, a luz, são fundamentais para a fotossíntese, condição fundamental para a manutenção da vida. Ainda nessa linha argumentativa, Coccia afirma que a vida humana se desenvolve, se mantém e depende da vida de outrem, de outras espécies não só animais, mas também vegetais. A vida vegetal, portanto, alimenta os seres em geral.  Na obra de Udo essas relações ficam explícitas, pois ali encontramos justamente os componentes necessários àquela vida vegetal ( a água, o ar, a porção de terra, a luz solar), mas deslocados, gerando uma imagem que nos faz perceber esses processos de modo mais destacado.

Segundo Udo,

Ao elevar o espaço natural de uma obra de arte, eu tinha que me abrir para a realidade, para a vivacidade da natureza – eu havia superado o fosso entre a arte e a vida. A forma indireta de abstração bidimensional na pintura tinha sido superado. A partir de agora as minhas fotos já não eram pintadas, mas plantadas, regadas, cortadas ou vedadas.  Associei a minha existência com os ciclos da natureza, com a circulação da vida. Daí em diante a minha vida e a obra prosseguiu, sob a orientação e em consonância com os ritmos da natureza. (UDO, 2002)

Ao inserir-se como parte dessa natureza, o artista percebe as relações de inseparabilidade entre a vida humana, a arte e o ambiente. Diante dessas implicações, emerge uma significação singular do que possa ser a natureza: ela é um conjunto de relações e processos. Ao falarmos especificamente sobre a presença das plantas, Coccia (2018, p. 15) afirma que elas são responsáveis por converter tudo em vida ao referir-se ao processo de fotossíntese que “fazem da matéria , do ar, da luz solar o que será para o resto dos seres vivos um espaço de habitação, um mundo”. Isso significa que a nossa existência depende sumariamente das plantas, pois elas são produtoras de  oxigênio, matéria-prima fundamental para o desenvolvimento de outros seres. Não só isso: sem elas, a vida na Terra seria impossível, uma vez que

O conjunto dos objetos e utensílios que nos cercam vem das plantas (os alimentos, o mobiliário, as roupas, o combustível, os medicamentos), mas, sobretudo, a totalidade  da vida animal superior (que tem caráter aeróbico) se alimenta das trocas orgânicas gasosas desses seres (o oxigênio). Nosso mundo é um fato vegetal antes de ser um fato animal. (COCCIA, 2018, p.16)

Ou seja, tanto as manufaturas (móveis, roupas, combustíveis) quanto outros seres vivos dependem das plantas para serem concebidos. Acrescenta-se, aqui, também a arte, pois tanto Nils Udo quanto Christa Sommerer e Laurent Mignonneau partem dos processos de vida dos vegetais para elaborarem suas instalações.

Figura 1: A obra “Casa de Água” (1982), de Nils Udo, apresenta como materiais vegetais e água, além de todo o ambiente circundante.

Fonte: https://arquiscopio.com/los-paisajes-peculiares-de-nils-udo

Concomitante à obra de Nils Udo, também destaco os trabalhos desenvolvidos por Christa Sommerer e Laurent Mignonneau. Acentuo aqui a instalação Interactive Plant Growing (1992), cuja premissa é gerar criaturas em um mundo virtual, mais especificamente um conjunto de vegetais. Eis, então, que uma questão despontou em meio a esse contato com os dois trabalhos: como pensar a natureza a partir de duas abordagens sobre os vegetais que partem de materiais e ambientes completamente distintos? Quais questões poderiam emergir desse contato que levassem a pensar sobre natureza e processualidade?

No trabalho de Christa Sommerer e Laurent Mignonneau há um conjunto de aparatos para compor o espaço expositivo. A proposta é construída pela disposição de plantas vivas em vasos, que são colocados sobre colunas localizadas diante de uma tela conectada a um computador. A intenção é que haja uma aproximação e a ação de tocar as plantas, pois assim elas iniciam o seu crescimento gradativo no ambiente tridimensional, a tela. Ou seja, o seu desenvolvimento necessita da relação com o visitante da exposição, explorando, assim, a conexão entre a fisicalidade humana, a estrutura do vegetal vivo e as formas de vida virtual. Em síntese, há uma comunicação e continuidade entre o meio virtual e as formas vivas que interagem em tempo real com a obra.

Figura 2: Interactive Plant Growing (1992), instalação de computador proposta por Christa Sommerer e Laurent Mignonneau. A obra encontra-se na coleção permanente do ZKM Media Museum, Karlsruhe.

Fonte: www.digitalartarchive. at

A proposta desse trabalho, de cultivar as plantas partindo de programas computacionais, é rastrear a origem da vida, que é determinada pelas transformações e morfogênese dos organismos. A morfogênese é uma das partes de um processo de mudanças pelos quais passa um organismo, sendo os outros o crescimento e a diferenciação. A esse conjunto de mudanças denominamos desenvolvimento que, no caso das plantas, contempla todo o processo de germinação da semente, maturação, florescimento e senescência, além de se manifestar também no nível celular e bioquímico. A morfogênese se refere às mudanças de forma pelas quais passa um organismo, tais como nas passagens das fases do desenvolvimento vegetativo, reprodutivo e de florescimento, alterando, assim, a aparência do vegetal. Todo esse processo se aproxima da descrição feita por Coccia:

Diferentemente dos animais superiores, cujo desenvolvimento se interrompe assim que o indivíduo chega a sua maturidade sexual, as plantas não param de se desenvolver e crescer, mas, sobretudo, não param de construir novos órgãos e novas partes de seu próprio corpo de que foram privadas ou de que elas próprias se livraram. Seus corpos são uma indústria morfogenética ininterrupta. A vida vegetativa é o alambique cósmico da metamorfose universal, a potência que permite a toda forma nascer (se constituir a partir de indivíduos que têm uma forma diferente), se desenvolver (modificar sua própria forma no tempo), se reproduzir diferenciando-se (multiplicar o existente sob a condição de o modificar) e morrer (deixar o diferente triunfar sobre o idêntico)  (COCCIA, 2018, p. 19)

Ao tocarem as plantas, as pessoas presentes na exposição disparam esses processos que são apresentados em tempo real na tela do computador. Conforme as nuances de como se dá esse toque, seja pela proximidade maior ou menor da planta, da velocidade da aproximação ou da forma de movimentação das mãos, interfere-se diretamente na aparência dos vegetais, tais como na cor, tamanho, posição etc.

A construção de todo esse processo se constitui pela conexão entre as plantas, o movimento de quem delas se aproxima e a programação do computador. Nesta, os algoritmos relacionados às características morfológicas das plantas direcionaram o crescimento e a diferenciação, originando exemplares de musgos, samambaias, videiras e avencas.

O programa do computador, conectado à planta, permite que os dados oriundos delas sejam interpretados em tempo real à medida que a forma vegetal se desenvolve na tela. Aos poucos sua forma se delineia e elementos como cor, textura e movimentos são construídos diante dos olhos de quem interage com a instalação.

Como é possível perceber, as obras de Nils Udo e de Christa Sommerer e Laurent Mignonneau partem de uma manipulação dos vegetais, porém com materialidades bastante distintas. Em um primeiro momento, leva-nos a pensar que somente Udo trabalharia no plano da natureza, uma vez que a presença das folhas e galhos não recebem o apoio de “materiais pré-fabricados”, como ele mesmo menciona, enquanto Christa Sommerer e Laurent Mignonneau desenvolvem a instalação no plano da artificialidade dos sistemas tecno-computacionais. No entanto, ambas nos levam a pensar como se processa o sentido de natureza que as perpassa.

Aparentemente, pensar sobre a natureza implicaria partir de uma noção do orgânico. No entanto, haveria como separar orgânico de inorgânico? Outro ponto que também surge desse debate é a tendência a afastar os fenômenos de ordem natural daqueles de cunho cultural, como se fosse possível isolar algo puramente em um desses planos. Além disso, diante da devastação das florestas em escala mundial, como poderíamos pensar nessa natureza? A obra de Christa Sommerer e Laurent Mignonneau abre essa questão para pensarmos a respeito da possibilidade de uma nova natureza.

Tanto no trabalho de Udo quanto no de Sommerer e Mignonneau, é possível pensar a partir da importância da noção de movimento. Pelo fato das plantas se desenvolverem em um espaço delimitado, tendemos a imaginar que ela é isenta de movimento. Mais uma vez, para que formalizemos essa ideia, muitas vezes temos como critério a comparação com os animais. Embora para elas haja essa delimitação espacial, “a vida vegetal é a vida enquanto exposição integral, em continuidade absoluta e em comunhão global com o ambiente” (COCCIA, 2018, p. 13). Ora, se ela aparentemente não tem em si essa capacidade, como se processa essas relações que implicam em uma singularidade do movimento? Justamente por convergir com o ambiente e pela sua importância fundamental não só na origem da vida como também para a sua manutenção e continuidade. Como pontua Coccia (2018, p. 13),  sua vida não desagrega “os objetos e substâncias, aceitando todas as suas nuances, até se fundir com o mundo, até coincidir com a sua substância”. É justamente essa coincidência de substância que ocasiona um processo de comunicação e de heterogênese.

Todos esses elementos da obra iluminam o processo que instaura a existência dos vegetais.  Além disso, a presença do humano, ao se relacionar com a obra, destaca a sua implicação na cadeia de vida. O que seria da vida humana sem a fotossíntese? O que seria da biosfera sem a entrada de energia produzida pelos organismos fotossintetizantes, algas e plantas?  Por isso, creio ser importante mencionar o clima como uma mistura e uma implicação/movimento entre continente e conteúdo. Para ele, o clima é uma “estrutura metafísica da mistura”, ou seja, a unidade do mundo não é determinada por uma forma e substância, mas pelo clima, pela atmosfera. Ora, ele também é uma das forças motrizes de um ambiente, que sempre está em processo de mudança. Ou seja, é uma visão que se delineia pelo movimento e não por uma fixidez:

No âmbito climático, tudo o que é e foi constitui um mundo. Em todo clima a relação entre conteúdo e continente é constantemente reversível: o que é lugar se torna conteúdo, o que é conteúdo se torna lugar. O meio se faz sujeito e o sujeito se faz meio. Todo clima pressupõe essa inversão topológica constante, essa oscilação que desfaz os contornos entre sujeito e meio, que inverte os papéis. A mistura (…) é essa relação de troca topológica. É ela que define o estado de fluidez”  (COCCIA, 2018, p. 31)

Nessa discussão,  o conceito de natureza não é entendido como o oposto de cultura, nem como um princípio ou fundamento transcendente por trás dos fenômenos. Pelo contrário, ela tem em si o potencial de transformação, ou, segundo o autor, “a força física que atravessa tudo o que se engendra e se transforma (…) Num plano microscópico, a natureza é o que permite estar no mundo e, inversamente, tudo o que liga uma coisa ao mundo faz parte da sua natureza.” (COCCIA, 2018, p. 17). Nas duas obras o ambiente possui esse traço de variação: torna-se sujeito, uma vez que modifica as obras. Ele é um motor de criação, pois são partes fundamentais para o processo de semiose constante desses trabalhos.

CONCLUSÃO

As duas obras abordadas possuem o caráter processual para pensarmos sobre a arte e o conceito de natureza. Elas abrem uma perspectiva para que percebamos a descontinuidade dos seres, sejam eles vivos ou não-vivos, humanos ou não-humanos, afirmando a perspectiva para além de uma definição a priori. Nesse sentido, os trabalhos apresentados contribuem para a produção e diversificação do entendimento do conceito de natureza por meio do estabelecimento de inesperadas relações entre os seres.

Nesse recorte, as plantas inauguram uma cosmologia, uma vez que elas são essenciais para a criação, manutenção e metamorfose do nosso mundo. Consolidam-se como mediadoras e produtoras da atmosfera na qual vivemos, inclusive nas produções artísticas empreendidas.

REFERÊNCIAS

COCCIA, E. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. 1.ed. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.

__________. A vida sensível. 1.ed. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2010.

LATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no antropoceno. 1.ed. São Paulo/ Rio de Janeiro: Ubu Editora/ Ateliê de Humanidades Editorial, 2020.

__________.Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. 1.ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

MORTON, T. Ecology without nature. In: Depletion Design: a glossary of network ecologies. 1.ed.Sydney: Western Sydney University, 2012.

UDO, N. Art in nature. 1.ed. London: Flammarion, 2002.

WOHLLEBEN, P. A vida secreta das árvores: o que elas sentem e como se comunicam. 1.ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2017.

[1] Doutoranda no Programa de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2017-atual), mestre pela mesma instituição (2015) e graduada em Letras pela Universidade de São Paulo.

Enviado: Janeiro de 2021.

Aprovado: Fevereiro de 2021.

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Ariane Alves dos Santos

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