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A influência glocal no movimento Worship

RC: 75334
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/movimento-worship

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

DENDASCK, Carla [1] , FERRARO, Danielle [2]

DENDASCK, Carla. FERRARO, Danielle. A influência glocal no movimento Worship. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 01, Vol. 08, pp. 94-107. Janeiro de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/movimento-worship, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/movimento-worship

RESUMO

Este artigo tem como objetivo trazer uma reflexão acerca da indissolubilidade do glocal em todas as esferas do cotidiano, inclusive do contexto religioso. Para isso, utilizou-se do movimento Worship, que está ganhando cada vez mais adeptos no Brasil através da utilização mercadológica do consumo de experiência.  A reflexão foi realizada através da construção do contexto glocal e dos fatores neoliberais que influenciaram a formação e o crescimento da cultura gospel. Desta forma, este estudo preconizou a influência do glocal na construção do mercado Gospel neopentecostal contemporâneo brasileiro.

Palavras- Chaves: Glocal, Worship, Mercado Gospel.

INTRODUÇÃO

Em uma das aulas do programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o professor Eugênio Trivinho nos levou a uma reflexão profunda através da invocação e discussão do glocal e seu poder invasivo, determinista, indivisível e indissolúvel.  Agora, mais do que nunca, somos confrontados com os resultados e reflexos dos inúmeros fenômenos globais que invadem diariamente o cotidiano do local. Não existem mais barreiras ou características entre aspectos ou fenômenos locais que não alcancem a esfera global, tão pouco, aspectos globais que não atinjam a esfera local.

Não é preciso recorrer a literatura ou a filosofia para tal afirmativa, basta imaginarmos o alcance dos aparatos tecnológicos, número de televisões, smartphones, popularização de marcas, e-commerce e das redes sociais, que “remoldam” culturas e ideologias. Ou ainda, a disseminação das culturas, estilos musicais, moda, produtos de consumo diversos, modelos e formatos de consumo de experiência, dentre outros, os quais poderiam ser discorridos neste trabalho através de inúmeras exemplificações.

O cenário a ser analisado neste estudo será justamente como o fenômeno glocal afeta também o contexto religioso, especialmente o movimento neopentecostal, tendo como objeto de análise o movimento Worship.

O termo Worship, traduzido do inglês para o português, significa “adoração”. O sentido aponta para uma prática menos ritualística e mais engajada com o envolvimento do indivíduo com a religião por meio da música manifestada por este movimento (AGUIAR, 2020), composta pelos tons de notas, instrumentos, formato de palco, frequência de luzes, muito parecida com as músicas de bandas de pop-rock ou rock dos anos 1990 como, por exemplo, a banda britânica Coldplay e a americana Evanescence, dentre outras, que utilizam as batidas eletrônicas inspiradas na neurociência, com intuito de tornar a música um produto de experiência, como o estilo black music.

O Worship firma-se em uma tradição pautada na música evangélica estadunidense do último quarto do século XX. Vale ainda ressaltar que no contexto norte-americano, a categoria gospel sempre esteve atrelada à música cristã black através de um gênero musical que contemplasse uma multiplicidade de estilos musicais evangélicos (ROSAS, 2015). Outra influência nesta composição no estilo do Worship está associada às transformações musicais suscitadas pelo contexto posterior ao Jesus Movement, que se trata de um movimento evangélico avivalista do final dos anos 1960 e início dos anos 1970 nos Estados Unidos. Consistia em uma espécie de contracultura conservadora que influenciava a música em geral (NEKOLA, 2013). Este movimento, aderindo então ao contexto neoliberal tornou-se um mercado que movimenta bilhões de dólares, e evidencia o fenômeno glocal invadindo também o mundo gospel, indo além do movimento musical, mas tornando-se em novo formato de culto neopentecostal.

Este estudo irá então discorrer na busca de demonstrar quais as características do movimento Worship manifestam a indissolubilidade do contexto glocal. Através dos caminhos traçados para esta resposta será possível perpassar uma reflexão que se propõe acerca da incapacidade de se desassociar a cultura glocal até mesmo do contexto religioso. Será possível observar, também, que o fenômeno glocal se estabelece e se reverbera pelos processos de glocalização, “movimento histórico-tecnológico irreversível, que precisa ser apreendido, antes de tudo, por sua força fundante, a comunicação em rede, na base de suas tecnologias e modos sociais de apropriação (TRIVINHO, 2015, p. 10). São eles, ainda de acordo com o autor, que são responsáveis pela reprodução social-histórica da civilização mediática, influenciando, inclusive, uma nova concepção do Sagrado.

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O GLOCAL

O termo glocal, combinação entre global e local, é um neologismo que remonta à estrutura industrial japonesa (especialmente a indústria automotiva), da década de 1970 e que, inicialmente, foi empregado para descrever os princípios de atuação de uma matriz multinacional em relação às suas filiais em outros países, em diferentes continentes, suprimindo fatores culturais locais. De acordo com TRIVINHO (2015), “trata-se da subordinação econômica e financeira do local ao global sob o álibi eufêmico da adaptabilidade cultural-corporativa do global ao local”.

Essa perspectiva se expandiu e se reproduziu em inúmeras áreas, como a geopolítica, a educação, a religião e na comunicação – neste último, com o telégrafo, a primeira máquina capaz de aproximar-se do tempo real, articulando simultaneamente dois locais diversos. E foi nos fenômenos tecnológicos atuais, com suas respectivas redes, que o glocal encontrou seu campo perfeito de atuação, ao relacionar-se aos processos de comunicação eletrônica em tempo real:

O conceito de glocal, tal como se configurou na área de Comunicação, refere-se a processos, fenômenos, cenários, eventos e/ou tendências observáveis unicamente nesse estirão social-histórico, inaugurado e desdobrado até a complexidade no rastro de máquinas e redes de comunicação, que o funcionamento da vida atual concorreu para tornar absolutamente banal” (TRIVINHO, 2020, p. 01).

Para que o fenômeno glocal efetivamente ocorra, é preciso que três elementos estejam presentes: tecnologia de comunicação e informação em rede (que faz a mediação do tempo instantâneo), sujeito (que também pode ser uma máquina ou a audiência) e o tempo “real”. Desta forma, de acordo com Trivinho (2020) são excluídos desta configuração os veículos e produtos impressos (jornais, revistas, livros), o projetor de filmes, o vídeo, o DVD, pois nenhum deles são capazes do tempo real, da mediação do tempo instantâneo, característica fundamental dos dispositivos conectados em rede.

É preciso ressaltar a relação do glocal com a noção de tempo: o tempo real do glocal não é idêntico ao tempo “real”, da natureza. Existe uma diferença sutil entre o tempo, de um lado, “imediatístico da tecnologia; de outro, o tempo autopoiético da natureza” (idem, 2020, p.03).

O fenômeno do glocal se dá em duas escalas: stricto sensu, categoria predominante e que depende da presença direta das tecnologias em rede para que as interações aconteçam, e lato sensu que abole a necessidade das máquinas, mas sempre retoma o glocal à medida que fatos ou itens globais são inseridos no contexto local.

Outra característica do glocal stricto senso é a hibridação entre a percepção imediata do espeço em que o corpo está e atua e a dimensão global das redes comunicacionais. O glocal, em sua escala stricto sensu, forma a junção da noção de tempo-espaço real, onde o corpo se situa, o convencional, e a noção do tempo e espaço das máquinas, conectadas às redes comucacionais e seus fluxos de conteúdo. Trata-se do “embaralhamento artificial de ambas as coordenadas, em favor de uma composição unitária impalpável que, ao fim e ao cabo, vige como se não existisse ou, no mínimo, deixa-se apreender somente por suas reverberações” (idem, 2020, p. 04).

Vivemos numa condição, desta forma, em que a aceleração do cotidiano se torna banalizada, retraindo a noção de tempo e do espaço que nos circunda. Tal subjetividade tende a “legitimar tudo o que a velocidade tecnológica condicionou socialmente, a saber: o excesso reciclável de informações, imagens e dados, a extrema fragmentação do conhecimento e da cultura, a flutuação improvável da veracidade factual (idem, 2020, p. 12)”.

Tem-se a ilusão de que, desligando os aparatos, desfaz-se o tempo e o espaço do glocal.  O glocal vigora, com maior ou menor força, mas de forma autoritária, em todos os territórios e continente, e é paradigma, inclusive, da produção científica e de conhecimento, desrespeitando o tempo, o espaço e a cultura daqueles que estão subordinados às esferas do poder. O glocal unifica os padrões de identidade, pela quebra do diverso, a favor da construção de um molde que sirva ao modelo econômico dominante, independentemente de qualquer regime político. A publicidade legitima este autoritarismo, exercendo no indivíduo “o desejo de consumo, de adquirir uma máquina capaz de tempo real, para que vigore no epicentro do vivido, doravante já a partir do corpo” (idem, 2020, p. 05).

Não existe, atualmente, sociedade fora do processo de glocalização. Não existe nenhuma sociedade, por mais fechada e isolada que esteja, fora do alcance das tecnologias de comunicação e, portanto, do glocal. A sua ambigüidade se dá porque ainda que presente em tudo, é invisível e imaterial. O glocal é a aceleração do tempo, a aceleração dos modos de produção. É a grande mercadoria da civilização mediática avançada (idem, 2020, p. 04).

A INFLUÊNCIA GLOCAL NO WORSHIP E SUAS APROPRIAÇÕES

O Brasil é, tradicionalmente, um país católico. Entretanto, o número de evangélicos vem aumentando exponencialmente. Em 1970, correspondiam a 5% da população. Atualmente, já são mais de 30% e a projeção é que, nos próximos anos, este número ultrapasse a porcentagem de católicos.

São diversos fatores que apontam para este crescimento. Segundo Spyer (2020), uma das causas é o papel social exercido pela igreja evangélica, que atuou em espaços deixados pelo poder público, especialmente no processo de urbanização e no desenvolvimento do capitalismo no país. Conforme Toledo e Cazavechia (2021) afirmam, o neopentecostalismo “tem no primado estético aparentemente despojado a constituição de seus valores e estratégias culturais” do capitalismo”.

Como já falado anteriormente, o glocal tem forte impacto na organização e modulação da vida cotidiana, em compatibilidade com o modelo neoliberalista ou de capitalismo tardio. O processo de glocalização fomenta todos os domínios da atuação humana, emaranhado em todos os processos simbólicos da cultura e não tem como ser abolido. Passam pelo glocal todas as formas de vivência, de economia e de finalidade. Engloba, inclusive as movimentações e operações financeiras O glocal está no entretenimento, na educação, na segurança, na militarização, na política, na produção simbólica, na cultura e no consumo.

A religião faz parte da cultura e, portanto, não escapa das transformações impostas pelas tecnologias de informação à sociedade atual, nem das consequências do glocal. As transformações da religião, inserida no contexto glocal, se mostram de algumas maneiras, mas conforme LAMBERT (2017) destaca,

“cultos são transmitidos online e a audiência não precisa mais ir aos templos sagrados para frequentá-los. O aconselhamento pastoral está a um clique e nem precisa mais ser solicitado, a presença dos sacerdotes nas redes sociais transforma a timeline dos que os seguem em local de admoestações, conselhos, pregação e numa busca das igrejas por influenciar”.

Se nossa cultura e nossos hábitos são perpassados pelo glocal, a relação com a religiosidade também se desfaz e se refaz através de novas perspectivas trazidas pelos meios de comunicação em rede. Ora, se todos os aspectos do cotidiano estão abduzidos pelos dispositivos tecnológicos, por que não a religião?

Lambert (2017) aponta que o uso dos meios de comunicação pelas instituições religiosas trouxe de volta para os fiéis um encantamento que a racionalidade e a secularização das instituições tentaram extinguir. E ainda: as igrejas têm utilizado os meios de comunicação como um “elemento fundamental do contato religioso, da celebração religiosa, da experiência religiosa” (BARBERO apud LAMBERT, 2017).

É característica das religiões neopentecostais cultos marcados por cânticos, em que a leitura da Bíblia é mediada por experiências emocionais, numa influência clara dos pregadores americanos que se utilizavam dos recursos de comunicação em massa, em que “a experiência estética estrutura o mercado religioso neopentecostal e a experiência religiosa subjetiva, emocional é o locus de suas práticas discursivas e interpretativas” (TOLEDO e CAZAVECHIA, 2021).

Desta maneira, entre as religiões, as neopentecostais foram as que mais se apropriaram dos meios digitais de comunicação, e utilizaram estas ferramentas em seu benefício. Inspiradas pelos observa-se “a inserção da experiência religiosa aos domínios do midiático, ou, se assim preferirmos, a inserção do midiático nos domínios do fundamentalismo religioso” (idem, 21).

Assim, as práticas sociais, foram também reconfiguradas e mediatizadas pelas tecnologias de rede, tornando-se práticas glocais. Em torno deste novo sistema de hábitos e práticas, a sociedade se reorganiza de forma a perpetuar as estruturas sociotecnológicas da civilização glocal, ampliando as desigualdades sociais já existentes. Afinal, numa sociedade hiperconectada, o seu grau de desenvolvimento também se mede pela dromoaptidão de seus indivíduos, fato totalmente atrelado ao acesso aos dispositivos de comunicação em tempo real. O glocal como estrutura de práticas sociais, como habitus mediático, atua de forma a prolongar as relações pluricapitalistas (TRIVINHO, 2020, p.14).

O glocal como mercadoria comparece mesmo onde inexiste relação econômica, articulando processos comerciais e industriais e movimentando outras formas de mercadoria (idem, 2020). Podemos afirmar, por exemplo, que o glocal está presente quando um culto religioso deixa suas tradições locais de lado e suas bases teológicas e se transforma num show midiático, como puro produto de entretenimento, com objetivos mercadológicos claros.

Para efeitos de entendimento, o consumo de experiência aqui será definido da seguinte maneira:

[…] um espaço físico ou virtual, cujo acesso pressupõe, necessariamente, alguma espécie de “preço”, e que seja intencionalmente preparado para que ele vivencie sensações, emoções e impressões dentro de um tempo delimitado e pontual; a participação consensual do indivíduo ou do grupo, uma espécie de acordo tácito entre os participantes com relação à suspensão da descrença e aos aspectos lúdicos, mágicos ou imaginados que serão, naquele espaço, apresentados como simulacro (PEREIRA, SICILIANO E ROCHA, 2015, p.10)”

É justamente neste contexto de consumo de experiência que vamos encontrar a emancipação das propostas que envolvem o “novo formado de culto e adoração”, identificados desde as igrejas que emergiram em virtude do Jesus Movement, designadas de New Paradigm Churches. Diferenciam-se das igrejas do mainstream local em aspectos diversos, sobretudo porque propõem uma nova forma de adoração congregacional (MILLER, 1997). Ainda em relação às igrejas históricas, que tinham como parte predominante o contexto e defesa dos aspectos teológicos doutrinais, estes movimentos pautam-se predominantemente na proposta de experiência.

Em razão desta configuração, novos ritmos populares passaram a predominar e, assim, a música atingiu um patamar mais elevado na ritualística dos cultos (OLIVEIRA, 2014). No final dos anos de 1970, dois grupos expressivos nasceram no contexto da música cristã estadunidense e firmaram laços com o mercado fonográfico (AGUIAR, 2020). O Contemporary Christian Music (CCM) é um desses movimentos. Este foi organizado e alicerçou-se em uma proposta que visava o consumo de um público interno e externo, e, para tanto, contava-se com a produção musical concentrada em Nashville, Tennessee, onde predominava a indústria fonográfica.

Surgiram, também, inúmeras gravadoras religiosas. Dentre elas, cumpre mencionar a Maranatha! a Integrity e a Vineyard. O interesse de ambas era a produção de músicas impreterivelmente congregacionais, com ênfase na circulação interna ao público que frequentava as igrejas (STADELMANN, 2012). O repertório era comumente tocado tanto em encontros quanto em reuniões interdenominacionais da juventude. A promoção se dava pelas instituições paraeclesiásticas concentradas, sobretudo, no sul da Califórnia (AGUIAR, 2020). O movimento ficou conhecido como Modern Worship Music (MWM). Esta categoria desde o seu ensejo confunde-se com o Worship que se popularizou no Brasil posteriormente. Cresceu entre as décadas de 1990 e 2000, e, assim, a produção musical do Worship adquiriu uma nova forma e expandiu-se para lugares além das igrejas estadunidenses congregacionais (ROSAS, 2015).

Neste contexto podemos pensar: se o glocal se concretiza pela proliferação dos dispositivos, meios e redes de comunicação, responsáveis pela apropriação da subjetividade e da relação com o outro em todas as esferas do cotidiano da civilização mediática, a consequência desta condição é que o glocal tem forte impacto na organização e modulação da vida cotidiana e das subjetividades, em compatibilidade com o modelo de existência multicapitalista.

Uma consequência da condição glocal é a formação de uma subjetividade dromoapta. Isso significa que a subjetividade está capturada pela velocidade das tecnologias de comunicação e informação e articulada em torno dos princípios de produtividade, buscando atingir as metas no menor espaço de tempo possível (TRIVINHO, 2020). Assim, trazendo este contexto e sua influência, entende-se que o contexto glocal atende essa nova lógica de mercado.

Essa lógica de mercado gospel, aproximou-se, portanto, do mercado musical secular, recebendo influências dos mais distintos lugares de todo o globo (NEKOLA, 2013). Dentre eles, cumpre mencionar o Reino Unido (“invasão britânica”) e a Austrália (Hillsong Church e todo o seu ministério musical) (KELMAN, 2018). Com isso, as fronteiras entre a CCM e a MWM passaram a ser menos distantes. Diante deste cenário, cumpre observar as relações entre o mercado secular e a música cristã. Nos Estados Unidos, esta aproximação se deu por meio de três grupos (HOWARD; STRECK, 1999). Eles possuem múltiplas leituras e formas de impulsionar a cultura, que, pelos evangélicos, consolida-se em um espaço secular. No caso dos separatistas, há uma distância irreversível entre a música no contexto religioso e a cultura secular, o que aponta, sempre, para a dualidade igreja/mundo; bem/mal; certo/errado, essenciais à vida cristã (AGUIAR, 2020).

Concorda-se então com Trivinho (2020) quanto a alusão de como força e modelo econômico, o glocal carrega em si um autoritarismo invisível, encorpado por estratégias de publicidade que demandam os produtos mais atualizados de tecnologia em rede. “A hibridização subsumida do glocal representa a ascendência autoritária da espacialidade tecnológica e do tempo real em relação ao espaço e ao tempo convencionais” (TRIVINHO, 2020, p. 05).

Mesmo com o discurso dos integralistas, no que envolve as diferenças entre o sagrado e o secular devem ser relativizadas, pois a cultura sempre apontaria para uma condição imperfeita, porém, vivendo de acordo com os princípios de Cristo, esta situação poderia ser atenuada (HOWARD; STRECK, 1999). Cristo, aqui, seria o que há de melhor na cultura. Por fim, para os transformadores, a cultura é um meio corrompido, mas não é essencialmente mau. Contudo, torna-se urgente a sua transformação por meio de influências cristãs que se consolidam nos espaços e contextos diversos (HOWARD; STRECK, 1999). A música, neste cenário, é um produto estético e artístico, e, desse modo, não está isolada deste movimento que visa a transformação da cultura como um todo (KELMAN, 2018). São generalizações limitadas, porém, as três perspectivas apontam relações evangélicas plurais com a noção de “cultura” (STADELMANN, 2012).

Tais noções não circulam apenas no contexto estadunidense, visto que adentram, também, na seara brasileira. Para Aguiar (2020), nenhuma das teses defendidas pelos grupos mencionados é capaz de romper, de modo definitivo, para com a dualidade existente entre a igreja e o mundo ou mesmo com as noções de sagrado e secular. Segundo Howard e Streck (1999), o que ocorreu é a ênfase em outra vertente: quando a igreja separa-se da cultura, tanto a reintegração ou transformação irá manter essa igreja deslocada do “mundo”. Rosas (2015), por sua vez, assevera que a conexão entre a categoria dos transformadores com a atuação musical da banda Diante do Trono, que é considerada uma das maiores referências no âmbito da música gospel brasileira, associada à Igreja Batista, dispõe de diversas características que aproximam a banda do discurso que defende a “transformação da cultura”.

Esta transformação dar-se-ia por meio da atuação cristã nos diversos espaços da sociedade. As discussões sobre “cultura” e suas tensões no âmbito evangélico amparam na literatura gospel. Em relação à música gospel brasileira, cumpre chamar a atenção para o fato de que a explosão do fenômeno conhecido como “explosão gospel” estaria associado à consolidação de uma “cultura gospel” que ampara e fornece base para a música evangélica nacional como um todo (CUNHA, 2007).

O Worship incorpora então a escala strictu sensu e lato senso preconizada por Trivinhos (2020), onde esse formato de culto e adoração associado a uma série de características que demarcam a identidade social influenciam diretamente o contexto religioso brasileiro (ROSAS, 2015). Assim sendo, não se trata, apenas, de um gênero musical ou mesmo de um sinônimo para se referir à música evangélica. É um eixo central que ampara toda a “cultura evangélica” (AGUIAR, 2020).

Esta “cultura” alicerça-se na intensa propagação midiática da “cultura gospel” (NEKOLA, 2013). Esta ampliação dar-se-ia pela modernização estética deste gênero musical ainda nos anos 1980, pois houve a introdução e adaptação da mensagem religiosa para os ritmos seculares que, em outro contexto, foram considerados “mundanos” (KELMAN, 2018). Assim, a atribuição evangélica do “mundo” e da “cultura” são espaços vinculados, expressivamente, ao secular (AGUIAR, 2020). Há, ainda, disputas relacionadas às definições de sagrado e secular no contexto gospel, uma vez que a música gospel, a priori, não deveria ser definida como sacra ou profana, mas como um processo que, diariamente, conta com negociações entre sentidos múltiplos. Este exercício é promovido pelos próprios agentes, assim como pelas instituições que se empenham com a reprodução dos ritmos (BANDEIRA, 2014).

Ademais, as fronteiras entre o sagrado e o secular são refletidas na própria dualidade entre a igreja/sociedade convencional entendida pelo universo evangélico de forma abrangente corrobora para com a criação de certas tensões (AGUIAR, 2020). Não é uma tensão que se manifesta apenas no Brasil, mas sim no mundo todo. Entende-se o Worship, portanto, como uma tendência recorrente nas práticas religiosas dos jovens, pois é uma forma de aprofundar as facetas do gospel por meio de elementos estéticos e artísticos mais bem elaborados (CUNHA, 2007). Não se trata de uma contraposição ou redução, mas sim de um movimento que considera a heterogeneidade da música gospel e não as designações genéricas do gênero. Contudo, para entender a lógica do Worship, dever-se-á compreender como se dá o processo de criação desta “cultura evangélica” (STADELMANN, 2012), através de um contexto glocalizado.

Um desafio posto pelos praticantes é a dificuldade em relacionar as formas de vivenciar música na seara evangélica, inclusive a inserção do gênero no próprio universo gospel, desde igrejas e outros ambientes externos a elas, associados ao contexto religioso e gospel, até nos espaços públicos, a fim de que esta cultura possa ser consolidada (OLIVEIRA, 2014). A ideia é que a noção de “cultura” seja, inclusive, explorada nas políticas culturais voltadas à religiosidade (GIUMBELLI, 2014). Em suma, visa-se a consolidação da indústria cultural gospel brasileira, admitindo-se o Worship. As mudanças recentes no contexto evangélico demanda uma análise para além de definições superficiais sobre o universo gospel (AGUIAR, 2020). Os jovens, a partir de seus ministérios, exercem um papel sumário para que novas configurações e perspectivas musicais evangélicas sejam incorporadas nesta cultura.

Diante disso, formas múltiplas de produção musical, como o Worship, têm imposto restrições às definições de “cultura gospel” que homogeneízam as práticas religiosas por meio da música (GIUMBELLI, 2014). Tal articulação faz com que a música gospel manifeste-se em espaços igualmente múltiplos, o que tem inscrito as práticas em um contexto de atuação mais amplo. Tem-se enfatizado uma definição de cultura que defende a presença de uma “cultura gospel” em todo o país (STADELMANN, 2012). Este movimento não deve voltar-se apenas ao contexto evangélico, mas sim às práticas religiosas como um todo, visto que o próprio conceito de música gospel não possui uma definição consensual, e, com isso, não atua de forma estanque, o que implica constantes disputas entre sujeitos com os seus interesses e vozes distintas (AGUIAR, 2020).

Desta forma, mesmo com as retóricas de alguns autores sobre as diferenças entre o sagrado e profano, e na expectativa de separação deste contexto, é possível argumentar que através de movimentos como o Worship a indissolubilidade e a ruptura entre tais classificações, evidenciadas por suas respectivas hibridizações e apropriações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entender os aspectos que envolvem o Glocal é fundamental para qualquer pesquisador contemporâneo. Não é possível no contexto atual olhar para qualquer objeto de estudo sem levar em consideração os aspectos da glocalidade, pois são essas bases responsáveis para que as mais diversas análises do contemporâneo possam ser realizadas de forma emancipatória e contribuitivas.

Olhar então a influência glocal no contexto religioso através do Worship evidencia como aspectos do mundo neoliberal glocalizado está reorganizando uma cultura que, por muitos anos foi reconhecida como conservadora, e, que alguns, inocentemente ainda tratam em pegar.

Espera-se com essas reflexões que estudos posteriores possam se aprofundar nas análises a partir da perspectiva glocal, contribuindo para a construção de uma consciência do contemporâneo.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, T. P. de. Promovendo a “cultura do reino”: notas sobre música, religião e cultura a partir de uma juventude evangélica no sul do Brasil. Debates, Ano 20, n. 37, p. 141-167, 2020.

CUNHA, M. do. N. A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X: Instituto Mysterium, 2007.

GIUMBELLI, E. Turismo religioso, gospel e políticas culturais: notas sobre articulações entre religião e cultura no Brasil. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 29., 2014, Natal. Anais […]. Natal: ABA, 2014.

HOWARD, J. R.; STRECK, J. M. Apostles of rock: the splintered world of contemporary Christian music. Kentucky: The University Press of Kentucky, 1999.

KELMAN, A. Shout to the Lord: making worship music in evangelical America. New York: New York University Press, 2018.

LAMBERT, K. Reencantamento digital? A internet como ferramenta de poder da igreja. Dissertação de Mestrado em Comunicação e Territorialidades – Centro de Artes, Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, p. 189, 2017.

MILLER, D. E. Reinventing American Protestantism: Christianity in the New Millennium. Los Angeles: University of California Press, 1997.

NEKOLA, A. “I’ll take you there”: the promise of transformation in the marketing worship media in US Christian music magazines. In: INGALLS, M.; LANDAU, C.; WAGNER, T (ed.). Christian congregational music: performance, identity and experience. Farnham: Ashgate, 2013. p. 117-136.

OLIVEIRA, E. C. Um dia a Igreja cai: a importância cultural dos templos religiosos na cidade de Goiás. Patrimônio e Memória, v. 10, n. 1, p. 28-47, 2014.

PEREIRA, SICILIANO e ROCHA. “Consumo de experiência” e “experiência de consumo”: uma discussão conceitual. Dossiê: Cotidiano e Experiência. Vol.22, Nº 02, 2º semestre 2015.

ROSAS, N. “Dominação” evangélica no Brasil: o caso do grupo musical Diante do Trono. Contemporânea, v. 5, n. 1, p. 235-258, 2015.

STADELMANN, H. Louvor e adoração: música popular cristã no culto. Revista Batista Pioneira, v. 1, n. 1, p. 103-121, 2012.

TOLEDO, C. de A. A. e CAZAVECHIA, W. R. As Formas de Adaptabilidade do Neopentecostalismo Brasileiro à Mídia. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano XIII, n.39, Janeiro/Abril de 2021., p.143-164

TRIVINHO, Eugênio. A condição glocal: configurações tecnoculturais, sociopolíticas e econômico-financeiras na civilização mediática avançada. São Paulo, Annablume, 2015.

________________.      A civilização glocal: Repercussões social-históricas de uma invenção tecnocultural fundamental do capitalismo tardio. ALAIC. Revista Latinoamerica de ciencias de la comunicación. Vol. 10, n. 19, julho/dezembro 2013.

________________.      O QUE É GLOCAL: Sistematização conceitual e novas considerações teóricas sobre a mais importante invenção tecnocultural da civilização mediática. Artigo para a disciplina Ordens globais e glocais na civilização tecnomidiática. São Paulo, 2020.

[1] Doutoranda no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Bolsista Fundação São Paulo. Teóloga, Doutora em Psicanálise Clínica. Atua há 15 anos com Metodologia Científica ( Método de Pesquisa) na Orientação de Produção Científica de Mestrandos e Doutorandos. Especialista em Pesquisas de Mercado e Pesquisas voltadas a área da Saúde.

[2] Mestranda no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Bolsista CNPQ.

Enviado: Janeiro de 2021

Aprovado: Janeiro de 2021

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Carla Dendasck

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