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Candomblé Angola: práticas ritualísticas no terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SOUSA, Vania Maria Carvalho de [1]

SOUSA, Vania Maria Carvalho de. Candomblé Angola: práticas ritualísticas no terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04, Ed. 06, Vol. 10, pp. 20-48. Junho de 2019. ISSN: 2448-0959

RESUMO

O presente trabalho está inserido no contexto amazônico, especificamente na região metropolitana de Belém. O mesmo discute sobre as práticas e rituais presentes no terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema, bem como os principais elementos simbólicos que fazem parte da religião. O terreiro é coordenado pela angoleira mãe Beth Pantoja, situado no Bairro da terra Firme em Belém, que desde a década de 1990 faz um trabalho significativo no atendimento ao público pelos rituais que pratica em seu terreiro. Trago elementos da religiosidade do Candomblé Angola que fazem parte do terreiro, como comidas votivas, musicalidade, cânticos que trazem os inquices enquanto divindades dos rituais candomblecistas, festas públicas, ritos iniciáticos, e instrumentos que compõem os principais rituais nas festas religiosas. Neste trabalho enfatizo a importância da religião neste universo amazônico, as práticas ritualísticas enquanto elemento fundante do candomblé angola, a busca pelo conhecimento e vivencia neste espaço sagrado.

Palavras Chave: Práticas ritualísticas, terreiro, candomblé angola, religiosidade, rituais.

INTRODUÇÃO

No terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema, o calendário dos rituais candomblecistas acontece no decorrer do ano. Janeiro e Fevereiro são os períodos de recolhimento para os Filhos de santo. Este é um tempo, segundo Mãe Beth Pantoja, propício para serem iniciados, pois são meses tranquilos, favorecendo o acompanhamento a este novo membro na comunidade. Após a iniciação, existem as obrigações de três, sete e vinte e um anos, tudo preparado entre a sacerdotisa e seu Filho de santo. Segundo a sacerdotisa, no passado recente, havia muitas festas de obrigações, no entanto, a diminuição se deu por falta de recursos financeiros que pudessem suprir as despesas feitas por esses sujeitos.

Durante algum tempo, Mãe Beth Pantoja também realizou muitas festas para homenagear seu Nkisi, Bamburucema, porém, esta festa tem um custo muito alto. Quando não acontece é por falta de condições financeiras. Segundo a sacerdotisa, existem outras festas que acontecem no terreiro, como quando há o recolhimento de uma pessoa, faz-se o candomblé. Porém, não tem uma data fixa. Durante a semana, sobretudo aos sábados, tem uma festa de desenvolvimento. Ou seja, toques de Angola, que é a Cabula; esta festa é acompanhada com cantos, músicas e danças.

Outra festa ritualística do terreiro é a Kukuana. Ao ser interrogada sobre este ritual, ela diz que é uma obrigação feita pelos adeptos do Candomblé. É um ritual pra Kavungo, que no Ketu é Obaluaê. A Kukuana simboliza a fartura no Candomblé Angola. Faz-se a homenagem ao Nkisi agradecendo a alimentação e fartura na Casa. É um agradecimento ao homem da terra. Segundo ela, o Nkisi busca a fartura, transformando as raízes e sementes em alimentação.

Kavungo tem uma energia que envolve a terra, porque é através dela que sai o alimento. Da terra se extrai toda riqueza, por isso, é o Nkisi muito rico, segundo a sacerdotisa. Essa festa é feita em um período de sete dias durante os quais tem reza, pipoca e despacho. Todos os dias seguem a mesma sequência.

Outro evento importante que acontece no terreiro é a festa para o Caboclo Boiadeiro. Esse ritual aconteceu no dia dez de junho de 2017. Inicialmente, a festa começou com um incenso na casa, em seguida as comidas foram oferecidas ao Nkisi dono da casa, que é Iansã de Mãe Beth Pantoja. Durante a festa, Mametu Beth Pantoja, juntamente com outros Filhos de santo, cantam e dançam no salão. Os deuses são invocados e, alguns minutos depois, começa a incorporação. No ritual, os dançantes estão trajados com as cores correspondentes ao seu Nkisi, com seus fios de conta no pescoço.

O Candomblé Angola se constitui ao longo de sua história como uma das religiões de matriz africana importante no Brasil e no mundo pelas práticas ritualísticas, indumentárias, hierarquias e pelos adeptos seguidores dos rituais afro-brasileiros. Essa religião tem se expandindo desde a chegada dos povos africanos no continente americano, a partir do século XVI. Essas culturas oriundas do continente africano trazem em seu bojo uma contribuição significativa para a sociedade brasileira, de modo particular para a questão religiosa, a dança e o domínio do trabalho. No Estado do Pará, nota-se a expressão dessas religiões afro-brasileira.

Conhecer o Candomblé é apresentar suas diversas expressões religiosas, além do valor histórico e cultural que esta religião representa, tanto para os candomblecistas, quanto para a sociedade brasileira. Daí a necessidade de mostrar a história dessa manifestação cultural-religiosa, que é de extrema importância para entender a nossa formação identitária enquanto nação brasileira. Volney Berkenbrock (1997) faz uma análise importante dos elementos históricos do Candomblé a partir da história de vida dos negros que aqui chegaram. Essa organização religiosa só foi possível graças a um número expressivo de negros que conseguiram sua liberdade, os chamados negros de ganho.

Em outro momento, o autor faz referências importantíssimas sobre o terreiro, o culto, o sacrifício e o processo iniciático do Candomblé. Ao se reportar ao terreiro, Berkenbrock elucida que “o terreiro é um palco principal para a realização das atividades litúrgicas” (BERKENBROCK, 1997, p.191). Neste particular, podemos afirmar que o espaço para as celebrações dos cultos é de fundamental importância para os afrorreligiosos, haja vista que o terreiro, na opinião de muitos pesquisadores, é uma reconstrução da África no Brasil.

Os cultos que são realizados nos terreiros, bem como a feitura de santo, são temáticas exploratórias nas discussões de Berkenbrock. Segundo ele, o culto desempenha um papel importante na relação do Nkisi com o fiel. Estas abordagens são indispensáveis para a compreensão acerca da configuração do Candomblé Angola, bem como da identidade e dos rituais que se configuram em torno da religião.

Outro elemento importante a ser discutido é a hierarquia no terreiro, que se faz por meio de vínculos entre os seguidores da religião e os Nkisis que comandam a vida individual ou coletiva de cada seguidor, por meio do processo iniciático, dos cargos ocupados por cada um e do tempo de iniciação. Entretanto, o objetivo imediato da religião é o culto aos Nkisis, que são entidades sobrenaturais associadas a forças da natureza, mas também podem ser considerados ancestrais divinizados que em vida estabelecem vínculos com outras forças da natureza, como trovão, o vento, a água doce e salgada ou com o exercício de atividades como a caça, o trabalho com metais e conhecimento das propriedades das plantas.

Percebe-se que ao longo do tempo, as religiões afro-brasileiras vêm sofrendo algumas mudanças, sejam na dança, na indumentária, ou nos ritos iniciáticos dos Filhos de santo. Com o advento de muitas religiões de origem não africanas, como o Pentecostalismo, entre outras, interferiu-se no meio social, cultural e religioso das religiões afro-brasileiras, principalmente com o catolicismo:

Desde o início as religiões afro-brasileiras se formaram em sincretismo com o catolicismo, e em grau menor com religiões indígenas. O culto católico aos santos, numa dimensão popular politeísta, ajustou com uma luva ao culto dos panteões africanos (BERKENBROCK, 1997, p. 14).

Contudo, houve também mudanças no Candomblé. Hoje, com o avanço tecnológico, os iniciados preferem usar instrumentos que sejam da nossa realidade contemporânea, como trocar cartilagem de peixe por gilete para raspar os pelos do corpo do o Filho de santo. A partir da composição dos elementos fundamentais do Candomblé Angola, abordarei alguns aspectos importantes no que tange as discussões sobre o Rito e o papel que ele exerce dentro e fora da religião, como também o processo de iniciação, o rito dos sacrifícios, musicalidade, entre outros, que fazem parte de nossa cultura e religiosidade na sociedade como um todo.

RITO E RELIGIOSIDADE DO CANDOMBLÉ ANGOLA

Analisando as diversas formas de expressões religiosas, verifica-se uma imensurável riqueza presente em diversos aspectos do Candomblé Angola, que se fundamentam através da vivência aos cultos oferecidos aos Nkisis, seja por meio dos ritos, pela musicalidade, dança, entre outros, que ocupam um papel importantíssimo para os afrorreligiosos.

Adentrar neste universo simbólico, ritualístico e cheio de tradições é descobrir o que há de valioso para compreender o papel representativo, definidos pelos seus membros e dos elementos que fazem parte da religião. O simbolismo religioso mostra a conexão entre o mundo terreno e as divindades. Esta peculiaridade, analisada no terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema, parte da afirmativa das expressões religiosas que conferem o significado dos elementos religiosos, confirmando a sacralidade ou a essência do Candomblé como religião de matriz africana.

Observando esses aspectos significativos, percebe-se a profunda ligação dos seguidores com os seus Nkisis, seja pela reverência, pela dança, pela música, pela vestimenta e pelos ritos iniciáticos. Cada participante tem a compreensão do que significa a religião, incorporando as práticas religiosas como algo fundante a ser seguido.

No percurso transcorrido através dos objetos sagrados analisados na casa Rudembo Gunzo de Bamburucema, percebe-se uma força superior que vem das divindades, favorecendo a comunicação direta com seus adeptos. Portanto, serão analisadas características importantes, como a dança, o processo de iniciação, os sacrifícios, a indumentária, as comidas votivas e a musicalidade, realizados pelos candomblecistas, considerando que esses elementos contém uma interligação, possibilitando formas de afirmação da identidade cultural-religiosa.

Mariza Peirano (2002) elucida que a vida em sociedade é sempre marcada por rituais. Em sua conceituação, os ritos precisam de uma compreensão etnográfica, ou seja, apresentada pelo pesquisador junto ao grupo que ele observa. E, por fim, em sua análise, os processos rituais são fenômenos de transmissão de valores em qualquer sociedade.

Considerando o Rito como expressão que fundamenta o universo religioso, podemos destacar as contribuições fenomenológicas, antropológicas, históricas e religiosas que definem os ritos pela visão de Aldo Terrin (2004). Nesta perspectiva, o autor elucida as práticas ritualísticas como ordem cósmica universal dos deuses, ou seja, num mundo que nos permite viver de forma mais organizado e não caótico.

Este pensamento remete a uma classificação de alguns ritos que são praticados no interior de cada religião. Vale lembrar que as religiões de matriz africana são compostas de ritos de iniciações, sacrifícios de animais para as festas públicas, saída de santo, entre outros elementos, que permitem estabelecer funções prioritárias acerca dos ritos.

Terrin leva a compreender que nas religiões tradicionais africanas, existem diversos comportamentos de rituais, que são ações significativas e que consequentemente fazem parte da vida dos seguidores. Neste sentido, o rito faz parte da história das religiões, pois em cada uma delas, percebe-se uma particularidade e uma intensa organização para manter a ordem em relação aos seus ritos.

Partindo do princípio dos rituais desenvolvidos no terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema é interessante observar que em todos os momentos ritualísticos há sempre momento do transe. A cada canto ou dança, os Filhos são levados ao estado de possessão, ou seja, os participantes da religião entram no modo da inconsciência, condensando aspectos descritos como emoção, inconsciência, desfalecimento, entre outros. Neste aspecto, vale ressaltar que o transe vivenciado na comunidade religiosa pode ser entendido como fenômeno comunicativo, onde os gestos são acompanhados por um intenso envolvimento emocional. A corporeidade é um aspecto de grande relevância neste fenômeno, pois é através do corpo que pode ser observada a força dos Orixás, expressa em cada gesto, em cada canto e em cada dança dos que compõem o terreiro.

Gostaria também de fazer presente outro elemento que compõe parte dos rituais candomblecista e que é muito apreciado não somente para quem faz parte da religião, mas também para quem participa dos rituais. São as cores como componentes importantes das festas que acontecem no terreiro. Isso é bem expressivo através das indumentárias utilizadas por cada Filho de santo, de acordo com o seu Nkisi. Por exemplo, o azul está relacionado a Ogum, o vermelho e azul são de Iansã e branco de é de Oxalá. Para as festas públicas ou de iniciação, a indumentária é extremamente significativa, pois é através desses artefatos religiosos que os Orixás serão identificados.

A exuberância dessas vestimentas caracteriza o Filho de santo. No Candomblé Angola, outros objetos sagrados são utilizados pelos Filhos de santo, como o odé, que fica na parte da cabeça, ou seja, uma espécie de coroa. Usam-se também os mojolós, que são os colares de conta dos Nkisis, e as roupas, sempre com a tonalidade do Orixá.

Nas festas públicas, cada Filho de santo apresenta-se com sua indumentária de acordo com o seu Orixá; as cores têm uma representação importante para as divindades. Os colares no pescoço simbolizam a energia, o axé trazido pelos deuses. Não se pode negar o simbolismo que compõe esses rituais, pois para manter a tradição faz-se necessário a utilização desses artefatos que fazem parte do espaço sagrado.

De acordo com alguns afrorreligiosos, houve mudanças significativas nas vestimentas dos filhos de santos. Hoje, as exigências são bem maiores. Quem está fazendo sua iniciação na religião prepara sua roupa com toda exuberância para o dia da festa. No discurso de Mãe Beth, entre outros, nota-se uma particularidade desses elementos que é tão importante quanto outras partes que compõe os ritos, sejam as cerimônias de iniciações, oferendas aos deuses, como a preparação de alimentos.

Cada indumentária realça a realeza do Orixá, transmitindo, através das cores, a força que vem dos deuses. O Filho de santo ou o sacerdote, ao dançar paramentado nas festas públicas, apresenta seu Nkisi para a comunidade, confirmando seu santo de cabeça.

OS RITUAIS ORDINÁRIOS E PÚBLICOS

Toda e qualquer celebração religiosa tem a presença de cânticos para chamar os deuses. A música vem sempre acompanhada dos atabaques que conduzem esse momento festivo. Na constituição da festa, ou xirê, como é definido no Candomblé, Roger Bastide faz uma alusão bastante interessante ao dizer que:

Os cânticos, todavia, não são apenas cantados, são também “dançados”, pois constituem a evocação de certos episódios da história dos deuses, são fragmentos de mitos, e o mito deve ser representado ao mesmo tempo que falado para adquirir todo o poder evocado (BASTIDE, 2001, p.36).

Não obstante, podemos compreender que, para Bastide, e outros que adentraram neste universo religioso, a musicalidade faz parte da evocação aos deuses. Seus cânticos transmitem suas histórias de vida contada de geração em geração. Essas músicas têm o poder de chamar os Nkisis para a festa, não importa onde eles estejam. Na afirmativa da angoleira Mãe Beth “todo ritual tem o cântico, tem o toque. O que vai buscar nossos Nkisis é o toque do atabaque” [2].

Na nação Angola, em geral, há o canto, o toque e a dança nos momentos de festas. Para aqueles que participam destes rituais, esses símbolos têm um grande significado, pois através da música e da dança muitos entram em transe quando recebem seus Nkisis.

Outro dado importante é a quantidade de cânticos entoados para os deuses. De acordo com Bastide:

Cada divindade recebe o mínimo de três cânticos; e ainda me lembro do protesto dos fiéis, uma noite em que não sei porque razão um dos deuses só recebeu dois, em lugar de três cânticos regulamentares. O número de três não é, porém, um mínimo; pode-se cantar quantidade maior de cânticos (BASTIDE, 2001, p. 36).

Esses cânticos representam para os religiosos candomblecistas a busca da identidade sagrada para os deuses, visto que estes são chamados pela música correspondente ao seu santo de cabeça. Os Nkisis têm suas especificidades tanto na música, quanto na dança. A constituição da musicalidade, bem como o número das cantorias, tem por finalidade chamar o maior número de Nkisis, dependendo da quantidade de adeptos no terreiro. O ritmo e a gestualidade influenciam em grande parte o contato ou a possessão dos Filhos de santo. Estes, a partir do momento em que entram em cena caracterizados, passam por um momento de preparação para receberem suas divindades. Nesse momento, eles começam a dançar e, em seguida, são tomados pelas divindades.

No Candomblé Angola, e em outras nações, o primeiro cântico é para Exú (mavambo), pois ele tem o poder de manter o equilíbrio ou a harmonia no terreiro, caso contrário, Exú, como o primeiro homenageado dos orixás, se manifesta causando transtorno para todos os fiéis. Na casa Rudembo Gunzo de Bamburucema, depois de homenagear Exú, os outros também recebem cânticos próprios de suas divindades, como o Kabila, que é sincretizado com São Sebastião, Katendê, Kafungê, Angolô e Mametu Bamburucema, que é o Nkisi de mãe Beth.

Observando esses fenômenos, dá para perceber que essas expressões religiosas são também a interação de deuses (as) presente na invocação das práticas ritualísticas. As danças aos Nkisis estabelecem essa comunicação entre suas divindades. Esses fenômenos ultrapassam a alma, criando conexão de dinamicidade entre seus seguidores. Os ritos, a música e o perfil corporal expressam a religiosidade do Candomblé. Este perfil corporal elucida um valor importantíssimo dentro da religião. A veste é uma representação, como também a movimentação que gira em torno da mesma. A religião, neste aspecto, passa a ser a busca constante pelo Sagrado.

No terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema, em algumas festas que participei, verifiquei que a música é parte fundamental no ritual. Em uma homenagem preparada por Mãe Beth a Dona Ita, a sacerdotisa, juntamente com seus Filhos de santo, cantam e dançam no salão, enquanto os outros convidados ficam sentados acompanhando o ritual.

Todas as partes celebrativas são de extrema relevância. Outra representação importante são as cores utilizadas nesses rituais, carregadas de simbolismo e de significados. Cada cor instrumentalizada nos ritos e nas danças tem uma autoafirmação do poder sagrado, quando incorporado através do seu Nkisi. O candomblecista as usa de acordo com a divindade que recebeu no início do seu processo iniciático.

Esse simbolismo religioso mostra, acima de tudo, a conexão entre o mundo terreno e as divindades que compõem o mundo místico. Essa peculiaridade em análise na Casa Rudembo Gunzo de Bamburucema parte da afirmação dos elementos religiosos que conferem o sentido ou significado sobre a expressão religiosa. Estes princípios nativos confirmam o que há de mais sagrado, a essência do Candomblé como religião de matriz africana.

A religião é à força de elementos naturais e sobrenaturais, que está acima de nosso poder humano, porque se sobrepõe a algo enigmático, que vai além da razão. Essa força elementar, que dá vestimenta, passando pela dança e pela musicalidade, mostra o que há de valor nas expressões de sua religiosidade.

Os deuses, ora incorporados neste universo, associam-se aos elementos evocados na natureza, tendo um papel significativo no campo religioso. Essas divindades, que mostram a profundeza da alma dos seguidores, estabelecem comunicação direta com o universo da natureza, pois cada divindade está associada a uma força elementar, como o fogo, a água, vento, etc.

Não há uma separação entre esses mundos, mas há uma aproximação com este universo sagrado. Porém, cada um tem sua característica particular, passando para a coletividade. A dança, os ritos, as cores e os gestos articulados em cada festa realizada no candomblé tem um valor profundo na busca pelo Sagrado, considerando que esses elementos contém uma interligação, possibilitando formas de resistência para manter viva sua tradição. A profundidade que ocorrem nessas manifestações religiosas é positiva, para mostrar a sociedade que este mundo místico tem valor e que deve ser respeitado.

Ao analisar seus costumes, ritos e danças aos Nkisis, constatei que essas são formas de afirmação dos elementos da identidade afro-brasileira. Isso revela a preocupação que os candomblecistas têm em manter viva na memória o que eles herdaram de seus antepassados. Aqui, os que participam dos rituais continuam com grande persistência na luta para não deixarem sucumbir sua religiosidade para as gerações futuras.

A música também é um instrumento que expressa o respeito a cada Nkisi. Canta-se homenageando a sua divindade, trazendo para o meio do terreiro forças sobrenaturais que compõem o cenário. Os que participam deste momento místico são conduzidos, além da dança, por toques considerados sagrados. Cada gesto é muito importante para seus membros, pois revelam a grandeza das divindades.

No Candomblé Angola, segundo Veridiana Machado (2015), a música tem uma função estruturante, através dos tambores, nas cantigas para os Nkisis e nos diversos rituais, sejam eles nas festas públicas ou em rituais mais complexos como a iniciação (feitura de santo) ou em rituais fúnebres (MACHADO, 2015, p. 114). Neste particular, Mãe Beth lembra que a composição musical é um dos elementos importantíssimo no Candomblé pois através da musicalidade os Nkisis são chamados para o terreiro, dando início a manifestação do sagrado, representada nos Filhos de santo.

A música entoada no terreiro executa uma sequência lógica; a sacerdotisa inicia a cantoria e em seguida os makotas continuam a música. Nesses intervalos, os Filhos de santo também cantam diversas canções em círculos e fazendo movimentos. Os angoleiros evocam seus deuses gerando a energização do espaço sagrado. É importante ressaltar o lugar que a música ocupa no candomblé como fundamentação sagrada nos rituais, sobretudo em “roda de Candomblé”, ou seja, em festas públicas. Lembrando que o intuito do canto é a evocação e reverência aos deuses, e tudo está sintonizado através do toque, das cantorias e dos instrumentos percussivos sacralizados, pelas palmas e pela composição de vozes e gestos dos participantes.

Ao abordar a temática “Capoeira Angola”, Flávia Diniz (2011) faz um recorte interessante sobre a musicalidade. Segundo ela, a música tem um papel central em muitos rituais afro-brasileiros, como rodas de capoeira, sambas de roda, festas públicas e outras cerimônias privadas do candomblé (DINIZ, 2011, p. 19). Neste particular, percebo que a música revela valores, paradigmas e humanização do cotidiano. Os ritmos mais tocados no Angola para os Nkisis são o congo, cabula e ijexá.

A música é um fator importante no Candomblé, pois através dela os Filhos são levados para o estado de transe e guardam características comuns nos rituais, através da circularidade, com repetições de cantorias. Percebi claramente este fenômeno no terreiro ora pesquisado, quando em determinados momentos da música alguns Filhos de santo começaram a entrar em transe, ou seja, começa o processo de incorporação.

Convém ainda ressaltar que, os instrumentos que são utilizados no terreiro, que acompanham a musicalidade, são de suma importância para os rituais candomblecistas.

No terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema, cito o adjá, que é um instrumento musical para a evocação dos baquices, sendo manipulado tanto pela sacerdotisa Mãe Beth ou pelas kotas, que também são lideranças no terreiro. Por outro lado, os três tambores são estritamente tocados por lideranças masculinas. Os homens são responsáveis por tocar e pela execução do repertório musical nas festas internas e principalmente nas festas públicas. São preparados para cuidar da parte musical do terreiro, tendo boa dicção, entre outras características, para a função de evocar o Nkisi, cuidando da sacralidade do espaço celebrativo.

Neste sentido, podemos destacar que no terreiro de Mametu Mãe Beth, além dos atabaques existem outros instrumentos importantes, como o caxixi que eles batem através da reza para as invocações dos Nkisis. Tem também a sineta para Exú, que é conhecido por Mavambo na nação Angola. O toque do sino é para chamar e também para buscar as energias para o espaço sagrado.

No terreiro ora pesquisado existem três instrumentos que são fundamentais para as festas de candomblé. Primeiro é o ogã, um instrumento que dá início ao candomblé. Este tem a finalidade de dar o sinal inicial e o tipo de ritmo a ser tocado. Depois tem o adjá, que tem por objetivo chamar todos os Nkisis. Segundo Beth Pantoja, o adjá “vai buscar os Nkisis onde eles estiverem”[3]. Durante as festas de Candomblé, sobretudo nos rituais, este instrumento é tocado durante as músicas no salão.

Por fim, têm-se os três atabaques, mais conhecidamente por rum, rupi e lê. Estes instrumentos exercem uma função muito importante no terreiro. Através deles, os rituais acontecem, pois são eles que durante as festas tocam as músicas. É importante destacar que os ogãs, que são homens preparados para tocar, têm um grande conhecimento da musicalidade. Eles entoam músicas para chamar os Nkisis e continuam saudando todas as divindades.

Como vimos, as religiões de matriz africana trazem em seu bojo informações que nos capacitam a adentrarmos na simbologia mística e fenomenológica dos Ritos, sobretudo no que diz respeito aos ritos iniciáticos, musicalidade, danças, comidas votivas e indumentárias. Esses elementos religiosos geram sistemas simbólicos bastante complexos, com os quais é possível interpretarmos as religiões afro-brasileiras na sociedade em que habitamos.

Certamente, as considerações acerca do Candomblé Angola em Belém nos ajudam a olhar de perto elementos essenciais que compõe este universo místico e religioso, desde a chegada dos primeiros religiosos candomblecistas iniciados na Bahia. Por isso, Daniela Cordovil faz uma abordagem bem definida sobre a chegada do Candomblé no Pará:

A partir da década de 1950, tem entrada no Pará outra tradição religiosa, o candomblé. Trazido da Bahia, esta matriz religiosa atraiu adeptos do batuque e da umbanda pela possibilidade de realizar uma ‘feitura’ no santo, construindo para o pai de santo uma maior legitimidade e melhor maneira de professar a fé (CORDOVIL, 2004. p.34).

Sua abordagem nos leva a ter clareza sobre a legitimidade dos rituais professados por estes afrorreligiosos, procurando mostrar que toda e qualquer forma de rito está intrinsecamente conectada em diversos âmbitos do universo religioso, seja através da música, das celebrações ritualizadas, entre outros. O Candomblé, como religião de matriz africana e com seu aspecto representativo, procura vivenciar das mais diversas formas suas expressões religiosas, mostrando para a sociedade sua importância com suas especificidades, bem como sua contribuição no mundo religioso.

O RITO DE INICIAÇÃO

As religiões de matriz africana trazem representações importantes sobre a cultura e sua religiosidade. Dentre esses fenômenos, podem-se destacar os processos de iniciação do Candomblé Angola, que é um dos aspectos bastante valorizado dentro da religião. O processo iniciático é o elemento fundante da identidade angoleira. É interessante notar que neste campo de representação do Candomblé, ressalta-se o quanto é importante para a religião os ritos de iniciações, ou os ritos de passagem. Esse processo dá legitimidade ao novo integrante da religião, pois de certa forma ele passa a integrar com todos os direitos que lhes são cabíveis. Como membro da comunidade, ele passa a assumir determinadas funções dentro do terreiro.

Neste sentido, pode-se dizer que os processos de iniciação apresentam características importantes na vida dos afrorreligiosos, uma vez que é um dos fundamentos do Candomblé em geral. Porém, este ritual requer uma preparação específica: no primeiro momento, o filho ou filha de santo recebe algumas orientações do sacerdote ou sacerdotisa, a fim de saber de como ele (a) deve se comportar enquanto sujeito religioso para o dia da festa. Porém, o novo membro da religião passa por vários processos de tratamento espiritual, através de banhos e limpeza do corpo. Segundo a sacerdotisa Mãe Beth, a iniciação dura em torno de vinte e um dias e, a partir deste momento, o iniciando já faz parte da religião, começando como noviço até chegar ao grau de Pai ou Mãe de santo[4].

É interessante notar que, durante esses vinte e um dias de recolhimento, o Filho de santo, além de receber as orientações do sacerdote, é lapidado como um diamante, como nos revela Mãe Beth: “a gente lapida aquela pessoa como um diamante bruto”. Em sua fala, a angoleira deixa claro que este é um dos momentos mais significativos para a religião, pois é neste processo que o (a) Filho (a) torna-se membro efetivo do Candomblé Angola e passa a autoafirmar-se como tal. É de extrema importância o processo de iniciação, porque a partir desta caminhada, depois de sete ou mais tempo de iniciado, a pessoa tem a capacidade de abrir seu próprio terreiro e de ter seus Filhos de santo.

No terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema, segundo Mãe Beth, muitas iniciações se dão por motivos de cura. Quando um membro a procura acometido por algum tipo de doença, a obtenção da cura vem através da feitura de santo, ou seja, pela iniciação no Candomblé. A linguagem utilizada por Mãe Beth é muito interessante, porque segundo ela, o tempo de recolhimento no baquice é um momento em que o iniciado tem contato com os elementos fundantes da religião, seja através da presença do sacerdote que o acompanha, ou pelas comidas que o alimenta durante este período de recolhimento.

Esta experiência fundante no Candomblé Angola e em outras religiões afro-brasileiras é muito discutida entre a sociedade, trazendo valiosa contribuição de sociólogos, antropólogos, historiadores, entre outros cientistas que adentraram neste campo religioso. Quero destacar a experiência iniciática de Pierre Verger, que se iniciou no Candomblé de nação Ketu. Seus relatos mostram a riqueza que há nesta religião, partindo de suas experiências e de seus escritos sobre as religiões de matriz africana. Em sua obra intitulada “Lendas Africanas dos Orixás”, o autor relata as características de cada Orixá, desde os mais conhecidos, até os que são poucos estudados dentro da religião.

Na obra intitulada “Orixás”, Pierre Verger descreve cuidadosamente os ritos de iniciação no Candomblé Ketu:

Durante o período de iniciação, o noviço é mergulhado num estado de entorpecimento e de dócil sugestibilidade, causado, em parte, por abluções e beberagens de infusões preparadas com certas folhas. Sua memória parece momentaneamente lavada das lembranças de sua vida anterior. Nesse estado de vacuidade e de disponibilidade, a identidade e o comportamento do orixá podem se instalar livremente, sem obstáculos, e tornar-se-lhe familiar (VERGER, 1981, p. 44).

Nesta transcrição, posso afirmar que o processo iniciático é puramente sagrado pela presença de elementos que garantem essa sacralidade, como os banhos, ebós e fusões de folhas. O iniciado é levado para um plano espiritual se preparando para exercer funções importantes na religião. Neste estado de preparação, há uma conexão com a divindade e mudanças de comportamentos influenciadas pelo Orixá que se instala de forma livremente.

Outra contribuição importante é de Roger Bastide sobre suas experiências no Ketu, que nos ajudam a compreender a iniciação dos Filhos de santo. O autor discorre em suas pesquisas etnográficas sobre os passos que se dá neste processo. Inicialmente, o neófito faz o bori, que literalmente é “dar de comer a cabeça” (BASTIDE, 2001), em seguida faz a lavagem das contas, a fim de ser levado para o quarto de iniciação, que dura em torno de vinte e um dias. Neste período, há um acompanhamento sistemático por parte do sacerdote e para os que estão recolhidos tem algumas restrições, como não manter contato com o mundo lá fora, nem relações com a família, exceto o contato e a relação que há com o seu Pai ou Mãe de santo.

É importante destacar que este modelo apresentado por Bastide é da nação Ketu, porém, com algumas similaridades em relação aos ritos, danças, comidas votivas, entre outros. Tanto no Angola como no Ketu, o tempo de iniciação é o mesmo, que dura em torno de vinte e um dias. As divindades também mudam de nomes, por exemplo, chamam-se Orixás no Ketu e no Angola são conhecidos por Nkisis.

Para Mãe Beth Pantoja, existem poucas diferenças ente o Ketu e o Angola; a sacerdotisa destaca, contudo, que existem formas diferenciadas na musicalidade e no preparo das comidas votivas. Essas diferenças, segundo ela, não tiram a essência da religião, pois as mesmas cultuam seus Orixás, cada uma da melhor forma possível.

Volney Berkenbrock (1997), em seus estudos sobre a experiência religiosa do Candomblé, faz uma análise bem interessante acerca da feitura de santo. Para ele, alguns elementos da iniciação são importantíssimos para entendermos o que há no interior da religião em relação aos ritos iniciáticos. Segundo o autor, na iniciação, a pessoa tem contato com a divindade, mas não necessariamente, pois o sujeito não precisa ser iniciado para ter contato com o seu Nkisi. Porém, o iniciado deve saber o Nkisi que rege sua cabeça. Para isso, é necessário que o Pai ou Mãe de santo consulte o Ifá, que é o Orixá da sabedoria. Outro momento ritualístico, no qual é introduzido, é a oferenda de Exú, que segundo os candomblecistas tem por finalidade manter a harmonia no espaço sagrado.

Por conseguinte, quem está iniciando tem que ter consciência do significado de cada passo neste processo, como tomar banho para se purificar e usar roupas novas, além de carregar no pescoço o colar com as cores de seu Orixá, a fim de deixar a vida profana para adentrar numa esfera sagrada. Com a orientação do sacerdote, o neófito é introduzido na religião, passando a conhecer melhor seu Nkisi e descobrindo os segredos da religião.

No Candomblé, independentemente de qual seja a nação, os ritos de iniciação são muito parecidos. Na nação Ketu, segundo Prandi, os filhos de santo são também denominados de “Cavalos dos deuses”, ou seja, a partir do transe, o Filho ou a Filha de santo deixa-se “cavalgar pela divindade” (PRANDI, 1996, p.18). Esse aspecto muito se assemelha com a nação Angola, uma vez que o iniciado também entra em transe, raspa a cabeça, é recolhido durante vinte e um dias, além de fazer suas oferendas aos Nkisis, entre outras práticas que fazem parte da religião.

É interessante salientar que a iniciação requer muitos dias de recolhimento. Esse processo pode se dá de forma isolada ou com outra pessoa, como aconteceu com Mãe Beth, que fez sua iniciação com outra pessoa. Esse fenômeno, no Candomblé Angola, recebe o nome de Barco-de-Muzenza. Segundo Elizabete de Barros, em sua dissertação de Mestrado, a iniciação numa comunidade gera envolvimento de todos, pois representa o aumento da família de santo, além da Mãe de santo que acompanha o iniciado. Após esse primeiro momento, o Filho de santo passa pelo processo das obrigações, que tem uma duração um pouco menor que o da iniciação.

Ao discorrer sobre as iniciações em seu terreiro, a sacerdotisa relata que é algo muito importante na vida do iniciado. Primeiramente, a pessoa é preparada para vivenciar essa nova etapa de vida. Após o recolhimento de vinte e um dias, com acompanhamento espiritual de Mãe Beth, acontece o ritual da saída de santo. Neste dia, celebra-se a festa da Quizomba do Nkisi, que é o dia do nascimento do Filho de santo. Ao ser interrogada sobre o nome do Nkisi, ela diz que “o Nkisi sempre ele traz alguma coisa, traz o Orixá, traz o Nkisi, mas nem todos trazem tão claro, mas sempre envia mensagem. Já teve Filho de santo que disse tudo praticamente”[5].

As iniciações no terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema acontecem, sobretudo, nos meses de Janeiro e Fevereiro, porém, o mês de fevereiro não é considerado muito favorável, pois segundo Mãe Beth é um mês muito agitado, onde Exú está solto. Por isso, a maioria das iniciações feitas por ela acontece no mês de Janeiro.

Ao falar da iniciação em seu terreiro, Beth Pantoja salienta que o tempo é muito importante, e lembra de como a iniciação aconteceu em sua vida no angola[6]:

Já era adulta, com 20 e tantos anos. Você morre pra essa vida e constrói uma nova página, novo livro na sua vida. Então, a partir daquele momento começa a contar tempo. Então, com 7 anos se torna adulta, com 7 anos você se torna mãe de santo, ou pai de santo, ou Mametu de Nkisi que eu sou, que significa mãe espiritual do santo. Pra mim é uma faculdade, porque tem que cumprir 7 anos.

No discurso acima, a angoleira adverte o quanto o tempo é importante, pois durante certo período tem que pagar as obrigações que são determinadas pelo Nkisi. No Rudembo Gunzo de Bamburucema, depois dos sete anos, paga com catorze e, por fim, com vinte e um anos. “Você fecha a ‘cabala’”, expressão utilizada por Mãe Beth para dizer o tempo determinado das obrigações, ou pode também expressar as várias festas de obrigação que serão feitas durante certo período pelo Filho de santo. Após esse tempo você vai zelar pelo seu Nkisi através das oferendas.

Ainda sobre a iniciação no Candomblé, faz-se necessário lembrar que existe uma peculiaridade no gosto dos santos quanto a sua forma de vestir, comer e utilizar as cores, como elucida os autores Arno Vogel, Silva Mello e Pessoa de Barros (2012), na obra “Galinha d´Angola”. As divindades privilegiam certas cores, vestimentas, sabores, aromas, entre outros artefatos que compõem os rituais do Candomblé. Em dias de festa, observo o quanto esses símbolos são importantes, pois expressam a alegria da festa e o Nkisi de sua cabeça, bem como a identidade cultural religiosa, através dos ritos. Para os iniciados na religião, um dos momentos de grande relevância é o bori, como já foi mencionado em outro momento, é “dar de comer a cabeça”. Com esta jornada, o ingresso começa a participar nos rituais concernentes ao Candomblé, dando início a trajetória no santo.

O espaço reservados a esses rituais é sempre o barracão. No terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema, a festa de iniciação acontece no salão, um espaço pequeno, porém cheio de representação. Segundo os autores citados acima, “um bori alimenta a cabeça, concebida como algo a parte, distinta do corpo, especial, sagrada […]”. Neste sentido, pode-se dizer que é um ato de alimentar a cabeça de alguém, pois é algo sagrado. Esta sacralidade é perceptível no momento do sacrifício. Os autores ainda discutem que a iniciação tem por finalidade tornar possível a consonância tanto das divindades, quanto de outros fragmentos uns com os outros, gerando a unidade. A esse aspecto, os discursos supracitados trazem valiosas contribuições para compreender a vida dos iniciados no Candomblé, sua trajetória, aspirações e vivências enquanto adeptos da religião.

Outra contribuição interessante está pautada no pensamento de Victor Turner, nos remetendo sobre o processo ritual. O autor explicita que na África Central existe o povo Ndembo, que possui ritos complexos de iniciação. Ficam recolhidos por longos períodos na floresta para treinamento de noviços em costumes esotéricos (TURNER, 1974, p. 17). Estas práticas ritualísticas são de grande importância para a comunidade, pois os membros que fazem parte desses rituais tentam compreender o que os movimentos e palavras significam para eles. Outro rito bastante relevante dentro de sua classificação é o Isoma, que Turner identifica como “rituais das mulheres” ou “procriação”. “O Isoma é a manifestação de uma sombra que faz a mulher dar à luz uma criança morta ou leva à morte uma série de crianças” (TURNER, 1974, p. 31).

Partindo desse imaginário simbólico, o autor nos ajuda a compreender o que de fato acontece nas realizações de rituais nas religiões, sobretudo, nos processos de reclusão dos neófitos quando iniciados no Candomblé Angola. Ao abordar a dimensão religiosa do povo Ndembo, o autor analisa que os objetos que são utilizados, os gestos, cantos ou preces, a unidade de espaço e de tempo representam algo diferente de si mesmo (TURNER, 1974, p. 29). Eles têm noção das funções simbólicas dos elementos rituais.

Considerando a importância dos Ritos, sugerimos uma abordagem sobre os “Ritos de Passagem”, assumindo o pensamento de Turner, que faz uma discussão acerca desse fenômeno. Segundo ele, em se tratando desses ritos, existe a “fase de reagregação”, compreendendo a investidura pública do Kamongesha, com toda a pompa e a cerimônia (TURNER, 1974, p. 125). Essas formas e atributos dos ritos de passagem estão presentes nas religiões afro-brasileiras. Neste contexto, as análises feitas por estes autores nos ajudam a compreender como esses ritos têm um sentido profundo para os que fazem parte da comunidade religiosa.

Ao partir da conceituação dos rituais na comunidade, fica latente a preocupação do autor em relação ao significado dessas representações, sobretudo dos símbolos que por si já transmitem características fundantes dessas populações. É importante observar que em grupos como este, analisado pelo autor, sempre conseguem expressar essa unidade no tempo e no espaço, é o que consigo observar no interior dos rituais do Candomblé Angola. Os sacerdotes, juntamente com seus Filhos de santo, mantém uma correlação de harmonia e cumplicidade, cada um assumindo seu lugar específico dentro do terreiro. Partindo desses rituais, posso observar que alguns elementos são constitutivos para essas representações simbólicas, como o canto, a dança e o próprio lugar sagrado, considerado o espaço agregador em função dos rituais afro-brasileiros.

Por outro lado, existem as propriedades dos símbolos rituais, que “possuem as propriedades de condensação, unificação de referentes dispares, e polarização de significado” (TURNER, 1974, pp. 70-71). Segundo o autor, um símbolo pode ter múltiplas representações ou ter vários significados, e isto é perceptível quando se encontram grupos que fazem experiências de ritos de passagem, ou pela presença de símbolos nos momentos rituais. Em cada experiência religiosa, esses símbolos deixam de ser unívocos, assumindo diversos significados, dependendo do momento e do espaço temporal. A este fundamento, cito como símbolo nos rituais candomblecistas e em outras religiões a presença de sangue como elemento agregador de unidade e legitimidade dos iniciados na comunidade.

Neste aspecto, Turner apresenta a árvore mudyi como símbolo do ritual de puberdade das moças, enquanto que a árvore mukula representa o sangue da circuncisão de uma determinada tribo. Esse simbolismo une “a ordem orgânica com a sócio-moral, proclamando a unidade religiosa suprema de ambos, acima dos conflitos entre essas ordens e no interior delas” (TURNER, 1974, p. 71). Portanto, os símbolos são resultados do que englobam suas propriedades.

No terreiro de Mãe Beth, como já foram elencados, os rituais demandam honrarias aos Nkisis; pelo toque do atabaque dá-se início a uma sequência de músicas que introduz no salão a presença dos Orixás. Para o Filho de santo, esse momento é sempre carregado de significado: por exemplo, ao chegar ao salão, fazem reverência aos atabaques e a todos os sacerdotes que estão presentes na festa; antes de entrarem na dança ou cantarem, os filhos de santo pedem bênçãos de mãe Beth.

Em uma de suas festas, realizada para homenagear o Boiadeiro, observei que durante a dança e na sequência musical, alguns Filhos de santo entram em transe, outros ficam rolando pelo chão. Uns, agachados, batem palmas e, em seguida, entram na circularidade. Essas danças e cantorias são sempre acompanhadas por bebidas. Os seguidores, em determinados momentos, quando as entidades chegam, começam a trocar de roupas, homenageando o Nkisi que rege sua cabeça; por outro lado, há os Filhos que servem os presentes com bebida e comidas, tudo numa perfeita sintonia.

Ainda durante o ritual, quando a sacerdotisa, junto com outros Filhos de santo, dança, alguns ficam sentados no salão. Depois de várias sequências musicais, eles saem e vão pedir a bênção da Mãe de santo e, em seguida, a dos que estão presente no salão. Tudo isso acontece porque existe uma relação de cumplicidade entre sacerdotes, Filhos de santo, divindades e seguidores da religião, tornando o espaço sagrado como lugar de realização e de festa.

Em síntese, pode-se dizer que os ritos de iniciações são extremamente importantes para os afrorreligiosos, pois expressam algo de divino, nesta composição de ritos, cores, danças e sacrifícios, é o que podemos perceber em trabalhos etnográfico de diversos pesquisadores que adentraram nos estudos de Candomblé Angola.

RITUAL DE SACRIFÍCIO

As religiões de matriz africana são constituídas por rituais cheios de significados, é o que veremos em torno dos sacrifícios[7]. Esse é um dos momentos muito apreciado pelos afrorreligiosos, uma vez que dá visibilidade pelo que está sendo celebrado. Segundo Volney Berkenbrock, “o sacrifício é o fator que ativa e possibilita o equilíbrio, e tem por objetivo proporcionar a reconstituição e a redistribuição do axé” (BERKENBROCK, 1999, p.203).

Neste sentido, o sacrifício é um momento sagrado, pois em sua essência traz força, vitalidade ou axé dos deuses que ora estão sendo preparados. Segundo Prandi, “o culto demanda sacrifício de sangue animal, oferta de alimentos e vários ingredientes” (PRANDI, 1996, p. 20). Esses rituais de grande expressividade no Candomblé, através dos animais sacrificados, confirmam a sacralidade religiosa nesta expressão do Sagrado. O ritual candomblecista, ainda de acordo com Prandi, envolve celebrações, toques, danças e músicas, denominadas de “xirê”, que significa “vamos dançar”. Este lado é sempre festivo, representativo, com honrarias aos Orixás, manifestadas através das cores, danças e vestimentas referentes às suas divindades.

Ao me reportar sobre o ritual do sacrifício, trago as contribuições de Marcel Mauss e Henri Hubert (2013). Em seus ensaios sobre o Sacrifício os autores falam do caráter sagrado dos animais domésticos, que segundo ele, a oferenda da vítima passa a representar como uma dádiva do homem aos deuses. Nota-se, neste discurso, que a partir desse princípio, surge o sacrifício como dádiva. Em toda obra, os autores discorrem sobre vários rituais de sacrifício presentes em várias religiões, dentre as quais destacam-se o ritual Hindu, o ritual Hebreu e textos da Bíblia Sagrada, sobretudo do livro do Levítico, com citações que expressam tipos de sacrifícios de pureza e impureza. Ao falar de sacrifícios, os autores sugerem que esta palavra está ligada a “consagração” (MAUSS e HUBERT, 2013, p.15). Neste aspecto é importante lembrar que os espaços celebrativos ou objetos utilizados nos rituais sempre implicam em uma consagração. É o que observo na Casa de Mãe Beth, uma vez que, dado início a ritualística, há sempre a presença consagratória do espaço e objetos religiosos.

Ao fazer a correlação entre consagração e sacrifício, Marcel Mauss e Henri Hubert (2013) deixam claro que não se trata de uma prática que envolve todos os rituais. Há casos de sacrifícios em que um objeto passa de um domínio comum ao domínio religioso. Porém, existem casos isolados em que não acontece essa mesma prática, esgotando seu efeito sagrado, como a unção de um rei; somente ele é consagrado, e ao seu redor nada é alterado.

Foi o que observei no Candomblé Angola: ao contrário do sacrifício, a consagração irradia para além da coisa sagrada, que, durante certos rituais, está muito presente, sobretudo, em festas públicas, ritos iniciáticos, entre outros.

Outro elemento importante a ser destacado é o sujeito que recolhe o sacrifício, ou seja, o sacrificante. Segundo Mauss e Hubert, essa função pode ser executada coletivamente ou através de um indivíduo. Neste caso, vê-se com frequência nos terreiros, antes dos rituais de obrigações, pessoas preparadas para organizar e preparar os animais que serão sacrificados. Segundo Mametu Beth Pantoja, são pessoas que primeiro passam por um processo de purificação para dar início ao ritual.

Partindo dos discursos destes dois autores, pode-se dizer que o sacrifício exerce uma função religiosa e, por conseguinte, o espaço também é religioso. Neste sentido, o sacrifício é um ato importantíssimo, pois confere essa grande dádiva de tornar o que é profano em algo sagrado.

Em outro momento, os autores destacam esse lugar como “lugar sagrado” (MAUSS e HUBERT, 2013, p.32). No mundo do Antigo Testamento, havia o sacrifício dos hebreus celebrado em um único espaço, previamente consagrado. Este espaço era escolhido pela divindade e, ao mesmo tempo, divinizado pela sua presença. Tudo isso era necessário para manter a sacralização no ritual, pois o lugar também era importante, portanto, deveria ser consagrado para manter a pureza e santidade do templo, por isso, havia os sacrifícios, cerimônias expiatórias, entre outros elementos que mantinham a santificação do lugar.

Quando se trata de ritos, sobretudo relacionados aos sacrifícios, faz-se necessário entender o processo de ligação que se dá entre o sacerdote, o sacrificante com a vítima. São laços que os unem, adquirindo um caráter sagrado isolado do mundo profano. Esta dimensão está muito bem representada nas religiões afro-brasileiras. Há pessoas que congregam esses elementos sagrados num espaço sacrificial e conseguem alcançar essa conexão entre humano com o sagrado.

É interessante notar que em algumas religiões, sobretudo as de tradição afro, existe o sacrifício, porém, algumas em maior proporção e outras em menor número. No entanto, a presença desses rituais marca, de certa forma, a sacralização do espaço ou da vítima que ora está sendo oferecida.

Por outro lado, existe uma complexidade no sacrifício. De acordo com Mauss e Hubert, isso acontece pela ausência da unidade. É que dentro desta diversidade de rituais religiosos existe a necessidade de estabelecer a comunicação entre o mundo sagrado com o profano através de uma vítima. No Angola, percebe-se que este vínculo de comunicação se dá entre o sacerdote e o sacrificante com todos os objetos que estão envolvidos no sacrifício. Em alguns momentos, a interlocução acontece de forma visível entre Filhos de santo com o seu Nkisi, sobretudo nas saídas de obrigações. As vítimas sacrificadas dão vida a este mundo tão complexo, mas, de certa forma, sagrado.

Os autores apresentam o sacrifício em dois aspectos: primeiro como um ato útil, e, por conseguinte, como uma obrigação. Ambos estão envolvidos, trocam serviços e cada um traz o seu aspecto positivo. Este duplo sentido faz compreender a importância da diversidade religiosa que compõe os rituais, e que os mesmos não se fecham em si mesmo, e sim interagem em suas mais diversas expressões sagradas, sobretudo quando existe uma ligação profunda de um mundo profano com o universo sagrado.

Ao discutirem sobre a fragmentação do sacrifício, Mauss e Hubert compreendem que o Rito estabelece um conjunto de coisas sagradas, ou seja, põe em movimento uma comunicação entre a sacralidade e o profano através de uma vítima, de um ser destruído durante a cerimônia. É interessante notar que todos os que se evolvem neste ritual são consagrados para atuarem no rito, como o sacrificador, o sacrificante, o lugar e os instrumentos que são previamente purificados. A vítima também passa por um longo processo de saída do mundo profano para a entrada no mundo sagrado, gerando uma comunicação entre esses dois mundos.

Portanto, os autores citados, trabalham com a ideia de que há dois tipos de sacrifícios, que é a sacralização e a dessacralização. Na primeira ideia, as forças de consagração são levadas da vítima ao sacrificante, ou seja, é um rito de entrada; na segunda, destacam-se os ritos de saída, onde são transmitidas as impurezas religiosas do sacrificante à vítima.

De acordo com Mametu Muagile, o ritual do sacrifício é um momento sagrado. Quem prepara esses animais passa por um momento de purificação. Limpam-se os animais, preparam-nos com muito cuidado, tendo em vista que serão utilizados para as festas de obrigações. Na nação Angola, é tata kivanda (ogã no Ketu) que sacrifica os animais, estes previamente purificados, ou seja, preparados para realizar o ritual. Os preparativos são realizados com muito cuidado: primeiro, escolhem-se os animais que serão oferecidos, que devem ser necessariamente os melhores para serem utilizados, sobretudo para as obrigações. Depois, esses animais são sacrificados e levados para os kotarefula (segundo a nação Angola), que preparam a comida. Estes são altamente limpos e purificados para preparar as comidas votivas[8].

Segundo Roger Bastide, estes rituais realizam-se geralmente mediante a um pequeno grupo de adeptos da religião. Na falta do sacrificador, função hierárquica exercida na casa, o Babalorixá assume o ritual. É importante destacar que o “objeto do sacrifício, que é sempre um animal, muda conforme o deus ao qual é oferecido: trata-se conforme a terminologia tradicional, ora de um animal de duas patas, ora de um animal de quatro patas, isto é, galinha, pombo, bode, carneiro, etc.” (BASTIDE, 2001, p.32).

Neste particular, percebe-se que não é qualquer animal, mas os que são carregados de representações simbólicas, sobretudo do ponto de vista do sagrado. A escolha se deve às exigências dos Nkisis, ou seja, das divindades. Portanto, o momento dos sacrifícios requer silêncio e concentração; buscam-se, na força do Axé, as energias para fazer os preparativos das festas. Como se pode observar, os sacrifícios de animais no Candomblé Angola são plenos de rituais, favorecendo o contato direto com o Divino, pois, a partir dessa preparação, as divindades se aproximam dos seguidores da religião.

Para Severino Croatto, o sacrifício “é o fato religioso mais típico, mas ao mesmo tempo o mais difícil de ser compreendido” (CROATTO, 2001, p. 364). De origem latina, o sacrifício tem o significado de fazer com que as coisas sejam sagradas. Neste sentido, para o autor, a definição de sacrifício é empobrecida, valendo apenas para o contexto cultural romano. Entretanto, em sua linguagem interpretativa, sacrificar “é converter em sagrado o que é entendido como a ‘oferenda’ do sacrifício” (CROATTO, 2001, p.355), visto que, no universo religioso e fora dele, a compreensão que se dá é que o sacrifício está relacionado com uma vítima, sobretudo de um ser animal.

O simbolismo que gira em torno dos sacrifícios apresenta a essência primordial das religiões de matriz africana, pois em sua caracterização têm-se o animal como elemento extremamente importante, sendo através dele o contato estabelecido com as divindades. Os animais sacrificados estão ligados diretamente com os Nkisis. Em cada ritual que é preparado pelos adeptos da religião percebe-se a força do Axé, a energia que ultrapassa a fronteira do sagrado.

Ao ser questionada sobre os rituais em sua Casa, Mãe Beth responde[9]:

Os rituais no candomblé, vamos iniciar. Aí canto, faço todo processo, tudo o que tem que fazer. Ai você vai cantar pra mavambo. Todas as nações começam com exú. Todos nós entendemos que o primeiro homenageado, porque ele foi o primeiro ser criado, depois vem Deus. Começa por mavambo na minha nação. Depois vem o despacho das coisas do agrado dele. Aí você vai ver uma vela acesa com padê que é uma farofa de dendê. Pra que o ritual saia em paz. Depois vem a defumação do incenso. A pessoa vai e defuma todo o ambiente.

O ritual descrito por Mãe Beth revela o quanto é importante para os candomblecistas o simbolismo que identifica o povo de santo, como a música, a comida sagrada, entre outros elementos identitários do terreiro.

RITUAIS DE ALIMENTAÇÃO: AS COMIDAS VOTIVAS

Nos processos iniciático, ou em outros rituais que acontecem no terreiro, têm-se um elemento que é muito importante para as festas: são as comidas votivas. Não se pode deixar de ter presente esse fundamento dentro do terreiro, pois a comida é que alimenta os Nkisis, divindades e os Filhos de santo. Quando um Filho de santo fica recolhido, ele é alimentado durante vinte e um dias com os alimentos preparados por seu Pai ou Mãe de santo. Ao sair, em sua festa de obrigação também há a comida referente ao Nkisi que rege sua cabeça. Já nas festas públicas, existem as comidas que são oferecidas a todo povo que acompanha os rituais.

Neste aspecto, recorro às contribuições de Marcel Mauss (2003), que relatam uma experiência significativa sobre a dádiva e as obrigações que acontecem na Polinésia e Melanésia. O sistema de oferenda vai desde o nascimento até os ritos funerários. Neste sentido, é importante ressaltar que em toda dádiva implica um dar e receber. Segundo Mauss, existem situações em que acontece esse fenômeno, sobretudo em relações entre membros de família, grupos, hóspedes, etc. Por outro lado, alguns indicadores nos apontam que a recusa da obrigação de dar e receber equivale em declarar guerras, ou seja, recusa-se a aliança e a comunhão.

O autor vai mais além em sua abordagem e diz o seguinte:

Em tudo isso há uma série de direitos e deveres de consumir e de retribuir, correspondendo a direitos e deveres de dar e receber. Mas essa mistura íntima de direitos e deveres simétricos e contrários deixa de parecer contraditória se pensarmos que há, antes de tudo, mistura de vínculos espirituais entre as coisas, que de certo modo são alma, e os indivíduos e grupos que se tratam de certo modo como coisas (MAUSS, 2003, p.202).

Neste universo institucional, que demandam relações de poder, mentalidade, serviços, ofícios sacerdotais, entre outros, percebe-se uma transmissão de prestação de contas. O indivíduo vive constantemente nessas relações de dar e receber, assegurando direitos essenciais em suas relações, seja do ponto de vista social ou religioso.

O autor apresenta, de forma simples e direta, quais são as obrigações desse sistema que é dar, receber e retribuir. A hibridização presente nessas sociedades acerca do processo de obrigação leva-nos a compreender como esse fenômeno está representado no universo religioso, sobretudo no candomblé angola, que é a discussão deste trabalho. A primeira obrigação é o de dar. Segundo Marcel Mauss, em toda sociedade as pessoas apresentam-se para dar. Essa prática é bastante visível em reuniões, encontros entre amigos para partilhar os ganhos de caça e colheita que vem dos deuses.

Sobre a obrigação de receber, alguns elementos devem ser considerados. Por exemplo, na dádiva, nunca se pode fazer a recusa de algo. Neste sentido, o processo de recebimento é sempre aceito. Em princípio, na dádiva, sabe-se que há um comprometimento tanto para quem dar, quanto para quem recebe, confirmando uma reciprocidade nas relações de igualdade.

Por fim, o autor sugere que além da composição de troca, existe também a obrigação da retribuição, que deve ser realizada com juros. Na falta dessa retribuição, o indivíduo sofrerá sanções, como a escravidão por essa dívida, perdendo a condição de homem livre. A essa configuração, compreendo a importância dessa composição da dádiva nos espaços religiosos, sobretudo no Candomblé Angola como religião de matriz africana e que apresenta esses elementos ou mantém em suas relações esses três fenômenos: dar, receber e retribuir. Nos rituais realizados durante o ano, ficam latentes as relações entre os adeptos à presença da dádiva.

Quando apresento este elemento, faço uma correlação com as comidas que são preparadas pelos candomblecistas. A comida votiva, ou sagrada, tem esse simbolismo, que é dar aos deuses o que eles consideram que sejam mais importantes, tendo em vista que tudo o que se prepara pertence a eles. Ao oferecer a essas divindades pelos Filhos que o ofertam, acredita-se que há uma retribuição por parte dos que recebem a oferta ou obrigação como costumam mensurar.

Dessa forma, existe toda uma preparação em realizar essas comidas. Segundo Mãe Beth, elas são preparadas num clima de silêncio e de muito respeito. De acordo com a sacerdotisa, os que cuidam e preparam as comidas votivas são chamados de kotarefula, e são pessoas que se dedicam inteiramente para que tudo ocorra bem. Porém, as pessoas que as preparam passam por todo um processo de ritual, como enfatiza Mãe Beth: “e assim tudo é um ritual, roupa branca, vestido, arrumado com seu fio de conta no pescoço, a gente não conversa, conversa pesada (…) sempre voltado para aquele Nkisi que está fazendo aquela comida”[10] . Neste depoimento, podemos dizer que as comidas aos Nkisis constituem um valor precioso na vida dos afrorreligiosos; para cada Nkisi é preparada uma comida diferente, que vai desde a escolha dos animais até a preparação final.

As comidas preparadas para as festas de iniciação ou públicas são diversas. De acordo com a sacerdotisa Mãe Beth, para cada santo é um tipo de comida. Por exemplo, padês, omolocú, o abará, o vatapá, caruru, entre outras. Ainda em sua transmissão oral, percebe-se que essas comidas são alimentos de verdade e que procuram dar o melhor para seus Nkisis.

O que mais me impressionou neste momento, dentro dos elementos que são utilizados na religião, é a maneira com que esses alimentos são preparados. Os candomblecistas que realizam esses rituais têm que estar bem física e espiritualmente para passarem boas energias para o que está sendo feito: “então tem que ter essa ligação, essa conexão com o sagrado, porque aquela comida é votiva, é sagrada.”[11]. Neste sentido, posso dizer que existe uma interligação entre as divindades com os religiosos, ou seja, a comida é a ligação entre o humano com o sagrado.

Na casa Rudembo Gunzo de Bamburucema, o Nkisi homenageado é Iansã, que está ligada ao vento e tem várias representações. A esta divindade, uma das principais comidas que é oferecida é o acarajé com caruru. É interessante notar que no momento da preparação não se pode tocar ou comer antes do santo: “primeiro pro santo, nunca a gente pode comer antes.”[12].

Neste particular, a sacerdotisa Mãe Beth assegura que a comida é sagrada e que de forma alguma pode ser “mexida” antes de dar para os Nkisis. Ela relata que, um dia em sua casa, preparava a comida para o santo, quando um de seus Filhos de santo comeu parte da comida que estava sendo preparada. Poucos minutos depois, o Filho começou a sentir fortes dores, ficando sobre os cuidados da sacerdotisa, que lhe preparou banhos e remédios para aliviar suas dores.

As comidas votivas, nesta esfera do sagrado, constituem um elemento de aproximação com os deuses. Cada oferenda dá ao santo algo extremamente valioso, a fim de que esta oferta traga paz, harmonia e energias positivas ao terreiro. Essas e outras histórias confirmam a sacralidade dos rituais, concernentes às comidas votivas, pois em cada preparação e, sobretudo, nas oferendas, dá-se aquilo que é o melhor para as divindades, a fim de que seja alcançada a realização de todos os pedidos de quem ora faz a obrigação.

Quando me refiro aos alimentos que compõem as cerimônias candomblecistas, me reporto à experiência religiosa de Pierre Verger no novo mundo. Nos dias de festa, um elemento para o qual é dada grande ênfase é o padê no terreiro. Este se apresenta sob duas formas: no primeiro momento, com cânticos em honra a Exú, que recebe como oferenda farofa amarela, cachaça e dendê ou, quando há sacrifício, um animal de quatro patas e um de duas patas, tornando-se uma cerimônia completa nos dias de festas (VERGER, 1981, p.72). Essas cerimônias consistem em grandes celebrações em honra a Exu, que é o primeiro homenageado da Casa e também os demais Orixás do panteão africano. O padê é a comida votiva oferecida aos Nkisis, pois são eles que trazem paz, energia, e grande prosperidade ao terreiro.

Para Pierre Verger, esses alimentos são de grande importância para compreender o sentido dos rituais que estão ligados às oferendas. Em cada oferta observa-se que os pratos preparados são de boa qualidade, haja vista que os deuses são exigentes nesses rituais. É interessante notar que em cada festa religiosa são preparados muitos tipos de comida, pois para cada Orixá se oferece uma comida diferente. Nem sempre os organizadores conseguem recursos para essas preparações, uma vez que são bastante onerosos os gastos. Eles trabalham alguns anos para oferecer uma festa digna para seu Orixá. No dia que antecede a festa, os preparativos são feitos pelas pessoas que recebem essa função na Casa.

No terreiro analisado, existem alguns tipos de comidas que não podem faltar, dentre as quais destaco o acaçá. No Candomblé Angola, e em outras nações, ele sempre vai estar presente. O acaçá é uma comida feita de milho branco e é muito importante, pois é um alimento feito para todos os Nkisis. Quanto à preparação, Mãe Beth diz que é feito da seguinte forma[13]:

Pega o milho branco, cozinha, escorre e faz todo uma limpeza. Lava e bota no fogo pra cozinhar, deixe ele molizinho e bate ou no liquidificador ou pila. Depois vai pro fogo e aí a massa tá preparada. Tem uma forma de enrolar, prepara a folha da bananeira, escalda para tirar as impurezas e lava. Passa no fogo. Tem pessoas que faz de várias formas, mas tem que passar por esse processo, da higienização, da purificação. Ele é muito fino, muito importante.

Ainda de acordo com a sacerdotisa, o acaçá é uma comida que vai de Mavambo (Exú) a Lembá (Oxalá). Porém, cada Nkisi tem sua comida própria, ou de sua preferência. Outra comida feita por Mãe Beth Pantoja é o acarajé, que é preparado com o feijão fradinho. Ele é colocado de molho, tirando-se a pele para depois ser preparada a massa no ponto. É uma comida feita para vários Nkisis. Segundo a angoleira, em sua Casa ela pouco usa sal no preparo desse alimento, apenas o tempera com um pouco de dendê, acrescentando-lhe mais azeite português. Depois que os bolinhos são preparados, fritam-se os acarajés. Há Nkisi que não come dendê; para esses, preparam-se com o azeite português.

Ao abordar sobre as comidas votivas, perguntei a Mãe Beth sobre o prato que é colocado no meio do salão, em alguns rituais do Candomblé. A este aspecto, ela diz que é o padê de Exú, uma comida, ou oferenda, para Mavambo. Este alimento é feito da farinha suruí, que é uma farinha especial, produzida no quilombo. Prepara-se o padê de farinha fina, junto com outros ingredientes, como milho branco, leite de oliva, azeite de dendê. Essa mistura depende muito de quem está preparando. Tem também o padê de água e mel, que não pode faltar.

Além dessas iguarias preparadas para os Nkisis, tem a pipoca, símbolo de oferenda. No terreiro Rudembo Gunzo de bamburucema, a pipoca é jogada no salão como sinal de oferenda aos Nkisis. Neste sentido, Mãe Beth diz que esse ritual tem todo um fundamento, pois é onde rezam-se às divindades. É importante perceber que as comidas preparadas na casa têm um fundamento, um significado, pois a sacerdotisa faz questão de relatar que tudo faz parte do sagrado, ou seja, além da comida que deve conter essa sacralidade, quem prepara também devem estar purificados para fazer a comida do santo.

CONCLUSÃO

O simbolismo que gira em torno do Candomblé Angola me faz compreender a riqueza e a sua importância na sociedade contemporânea. A legitimidade através dos cultos ora realizados no terreiro tem a representação de mostrar, não somente aos adeptos da religião, mas para toda a comunidade, como a religião vem ganhando seu espaço na sociedade, sobretudo em visibilizar a questão cultural e identitária.

Ao apresentar as práticas ritualísticas no terreiro de mãe Beth Pantoja, quero neste artigo enfatizar o quanto é importantes os rituais que fazem parte do candomblé angola, não somente com seu arcabouço teórico, mas, acima de tudo na interação com os sujeitos que compõe essa bonita história de tradição, religiosidade e acima de tudo de garantia de sua ancestralidade. Os rituais ora apresentados, fazem parte dos elementos fundantes dessas religiões de matriz africana, sua importância nesta região amazônica tão rica e cheia de contrastes. Porém, tão significativa para os povos que fazem parte de sua história.

REFERÊNCIAS

BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos Orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé. Petrópolis: Vozes, 1997.

BARROS, Elizabete Umbelino. Línguas e linguagens nos candomblés de nação angola. Tese (Doutorado em Letras). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humana de São Paulo. 2007.

BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

CORDOVIL, Daniela (Org). Religiões afro: introdução, associação e políticas públicas. São Paulo: Fonte Editorial, 2014.

__________________. Religião, gênero e poder: estudos Amazônicos. São Paulo: Fonte Editorial, 2015.

CROATTO, José Severino. As Linguagens da Experiência Religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2001.

DINIZ, Flávia Cachineski. Capoeira Angola: identidade e trânsito musical. Dissertação (Mestrado em Etnomusicologia), Salvador: Universidade Federal da Bahia. 2011.

MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Sobre o sacrifício. COSAC NAIFY. 2005.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. V. II. E.P.U/EDUSP: São Paulo, 2003.

MACHADO, Veridiana Silva. O cajado de lemba: o tempo no candomblé da nação angola. Dissertação (Mestrado em Ciências), Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo. 2015.

PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do Axé. São Paulo: Hucitec, 1996.

TERRIN, Aldo Natale. O rito. São Paulo: Paulus, 2004.

TURNER, Victor W. O processo ritual. Petrópolis: Ed. Vozes, 1974.

________________.O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Tradução de Nancy Campi de Castro. Petrópolis: Vozes, 1974.

________________. Os símbolos no ritual Ndembu. _______. A floresta de símbolos. Niterói: Eduff, 2005.

VERGER, Pierre. Orixás. São Paulo: Ed. Corrupio, 1981.

VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva; BARROS, José Flávio Pessoa de. A galinha D´angola: Iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

2.Entrevista realizada em 12/09/2016.

3. Entrevista realizada em 30/01/2018.

4. Entrevista realizada em 29/08/2016.

5. Entrevista em 12/09/2016.

6. Entrevista em 24/10/2016.

7. Não há fotos sobre os rituais sacrificiais, uma vez que são considerados secretos, portando, não é permitido fotografar.

8. Entrevista em 28/10/2016.

9. Entrevista em 12/09/2016)

10. Entrevista em 28/11/2016.

11. Entrevista em 28/11/16.

12. Idem.

13. Entrevista realizada em 30/01/2018.

[1] Mestra em ciências da Religião pela Universidade Estadual do Pará. Especialização em História Agrária na Amazonia contemporânea – UFPa. Especialização em Estudos Bíblicos – IESPES. Licenciatura plena em História, pela Universidade Vale do Acaraú.

Enviado: Fevereiro, 2019.

Aprovado: Junho, 2019.

 

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Vânia Maria Carvalho Sousa

2 respostas

  1. Maravilhoso… Amei saber um pouco mais sobre Candomblé Angola.
    Tenho mais algumas dúvidas sobre a Tradição, caso possa me ajudar ficaria muito grata mesmo.
    Obrigada…

  2. Um belo estudo do Candomblé Angola. Acho que é por aí, só o conhecimento liberta, espero, portanto que cada Casa de Santo, cada Ilê seja uma faculdade, uma universidade criadora de conhecimentos.

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