ARTIGO DE REVISÃO
TEIXEIRA, Alina [1]
TEIXEIRA, Alina. Considerações sobre a automedicação pediátrica no Brasil. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 05, Vol. 10, pp. 46-56. Maio de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/saude/pediatrica-no-brasil
RESUMO
A automedicação infantil se consolida no rol do consumo de medicamentos no Brasil, em uma tendência crescente, cada vez mais adotada como uma prática culturalmente aceita no Brasil, a despeito dos riscos envolvidos de que camufle sintomas, retardando o diagnóstico correto dos quadros clínicos, ou de que provoque intoxicações medicamentosas. O presente estudo visa compreender os motivos predominantes para que os pais e responsáveis optem pela automedicação pediátrica, objetivando também elucidar a respeito dos riscos e apontar medidas e estratégias de combate a essa prática. A metodologia do estudo consiste em uma revisão bibliográfica descritiva e qualitativa, que indicou fatores como a publicidade farmacêutica, a facilidade na aquisição de remédios pediátricos e a dificuldade no acesso aos serviços públicos de saúde como predominantes para a decisão da automedicação e da consolidação dessa prática. O estudo conclui que, para reduzir essa prática, seja preciso adotar uma série de medidas integradas, que vão desde um maior controle da publicidade e da venda dos medicamentos a um melhor provimento de atenção primária em saúde, sempre apostando nas ações educativas e de conscientização dos perigos da automedicação e da importância do uso racional dos medicamentos como trunfo maior para a efetividade dessa mudança.
Palavras-Chave: Automedicação Infantil, Autocuidado, Intoxicação Medicamentosa.
1. INTRODUÇÃO
A automedicação consiste na aquisição e uso de medicamentos para sanar algum sintoma apresentado, sem a orientação profissional ou prescrição médica, na esperança de obter resultado desejado através do tratamento que se acredita ser compatível com o problema apresentado (FREITAS, 2013).
A prática da automedicação ocorre com grande frequência no Brasil, correspondendo a mais de 35% do consumo de medicamentos em farmácias, e sendo fortalecida por fatores como a facilidade na aquisição de remédios sem prescrição médica, a publicidade de medicamentos e a dificuldade de grande parte da população no acesso ao atendimento médico pelo SUS. No entanto, a automedicação pode levar a consequências graves, principalmente quando se trata de pessoas com condições de saúde pré-existentes, idosos e crianças (SANTOS; FREITAS; EDUARDO, 2015), sendo essas últimas o objeto deste estudo.
Dessa forma, a questão central norteadora do estudo, que se entende por problema da pesquisa, é a seguinte: quais os principais riscos e motivações da automedicação infantil pelos pais e responsáveis?
No intuito de responder à questão ao longo do desenvolvimento, o estudo tem por objetivo geral identificar as principais causas e resultados da automedicação pediátrica no Brasil.
Enquanto objetivos específicos, figuram apontar motivos pelos quais pais e responsáveis optam pela automedicação das crianças; elucidar a respeito dos principais riscos da automedicação pediátrica; e identificar práticas, ações e estratégias que visem reduzir a incidência dessa prática tão comum no país.
De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP, 2017), a automedicação pediátrica leva a um grande número de casos de agravamento do quadro clínico inicialmente apresentado, dificulta e retarda a identificação de doenças que, muitas vezes, necessitam de intervenção médica e hospitalar imediata, e provoca alterações metabólicas e imunológicas, além de poder provocar intoxicação e, até mesmo, levar à morte. Dessa forma, compreender os motivos pelos quais os pais e responsáveis automedicam as crianças e agir sobre essas causas e na promoção de ações de conscientização, com o propósito de mitigar essa cultura, é fundamental para preservar a saúde e a vida das crianças, construindo o hábito e a mentalidade de um uso mais racional dos medicamentos.
O presente estudo consiste em uma revisão bibliográfica de caráter descritivo e abordagem qualitativa, utilizando como base para o desenvolvimento da pesquisa, proposições teóricas de livros e artigos com data de publicação inserida nos últimos dez anos, ou seja, posterior a 2011.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 A PRÁTICA DA AUTOMEDICAÇÃO PEDIÁTRICA
No Brasil, 35% do consumo de medicamentos se dá por meio da automedicação, que consiste na aquisição e uso de remédios por conta própria dos usuários desprovidos de conhecimentos técnicos compatíveis, sem orientação ou prescrição médica (FREITAS, 2013).
É importante entender a prática da automedicação como uma medida exclusivamente paliativa, que incide somente sobre os sintomas manifestados, impedindo que o problema seja identificado, diagnosticado e tratado adequadamente, o que pode comprometer, inclusive, a eficácia do tratamento, agravando o problema (MARTINELLI, 2012).
Vale ressaltar que essa prática se distingue substancialmente da chamada automedicação orientada ou responsável, na qual a pessoa tem problemas de saúde crônicos ou recorrentes e, já orientadas por um profissional em crises anteriores, vale-se de prescrição médica recente, usada em outro episódio da mesma doença, para adquirir os mesmos medicamentos, fazendo uso deles na mesma dosagem e frequência já devidamente recomendados anteriormente (SANTOS; EDUARDO; FREITAS, 2015). O presente estudo não se refere a essa modalidade de automedicação responsável, mas sim, àquela absolutamente desprovida de orientação médica.
O estudo também não se aplica à chamada automedicação infantil propriamente dita, ou automedicação infantil acidental, na qual as crianças de zero a cinco anos, tendo acesso aos medicamentos guardados indevidamente em casa, por irresponsabilidade, desatenção e negligência dos pais e responsáveis, fazem a ingestão desses fármacos quando desassistidos, o que pode levar a intoxicações severas e, não raro, à morte, tanto pela superdosagem quanto pela composição desses medicamentos, normalmente voltados para adultos e, muitas vezes, de administração controlada (MARTINELLI, 2012).
Embora automedicação se refira ao ato de medicar a si mesmo, é admitido o termo automedicação infantil ou pediátrica quando os pais ou responsáveis por uma criança adquirem remédios por conta própria, sem orientação ou prescrição médica, para medicá-la (FREITAS, 2013).
2.2 PREVALÊNCIA E RISCOS ASSOCIADOS
A automedicação infantil ocorre em menor número do que a adulta, no entanto, também é uma prática reconhecidamente comum, que integra a cultura brasileira da automedicação (SBP, 2017).Vale ressaltar, no entanto, que todos os riscos presentes na automedicação adulta potencializam-se na pediátrica, uma vez que as crianças têm uma maior vulnerabilidade quanto ao seu organismo, e uma resposta mais rápida e mais intensa aos medicamentos, o que pode agravar um quadro clínico, levar a episódios de intoxicação e envenenamento, reações alérgicas intensas e, até mesmo, à morte (SANTOS; EDUARDO; FREITAS, 2015).
O Brasil é um dos países que mais pratica a automedicação infantil, figurando como um dos líderes do ranking mundial, a despeito dos riscos de intoxicações e de reações adversas que se tornam ainda mais perigosas e intensas entre as crianças. Vale ressaltar ainda que a automedicação pediátrica não se restrinja aos medicamentos industrializados, adquiridos em farmácias, mas também aos chamados remédios caseiros, que ocupam lugar relevante entre os agentes responsáveis por intoxicações de leves a severas (MARTINELLI, 2012).
A automedicação infantil se torna ainda mais grave quando voltada para crianças com idade inferior a um ano, incluindo recém-nascidos, que ainda apresentam imaturidade do sistema excretor e da metabolização enzimática, o que aumenta o número de intoxicações medicamentosas, junto com fatores como menor concentração de gordura e teor de água corporal (MAIOR; OLIVEIRA, 2012).
Esse ponto gera uma preocupação maior quando se tem que a maior porcentagem de automedicação ocorre, justamente, em crianças menores de dois anos de idade. No estudo de Lima (2019), por exemplo, a prevalência de automedicação entre crianças de zero a dois anos foi de 81,5%, número consideravelmente superior ao obtido pelo estudo de Urbano (2011) oito anos antes, em que esse mesmo percentual foi de 55%. A comparação indica não somente um número significativo de pais e responsáveis que praticam a automedicação com seus filhos de menos de dois anos, como aponta para uma tendência crescente, o que demanda um maior alerta e uma maior necessidade de intervenção.
Outras duas questões preocupantes na automedicação pediátrica são o fato de que alguns medicamentos camuflam os sintomas, retardando ou impedindo que a doença seja devidamente diagnosticada e tratada a tempo, e o hábito de interromper a medicação assim que os sintomas se abrandam, o que acontece, justamente, por não haver uma correta orientação profissional, e que pode fortalecer a doença e enfraquecer o organismo, em resultado oposto ao que se espera com a medicação (URBANO, 2011).
O que se depreende das propagandas de medicamentos, é que existem soluções fáceis e imediatas para o alívio dos sintomas, como se a razão daquelas manifestações clínicas não fosse importante, e a cura fosse sinônimo de silenciar esses sinais. Dessa forma, a automedicação passa a ser entendida como uma forma de cuidado, de acordo com os paradigmas e com a mentalidade criada pela publicidade. (LIMA, 2019).
Esse mesmo pensamento se vê retratado no trecho do estudo de Martinelli (2012), reproduzido a seguir:
A automedicação irracional em crianças, na grande maioria dos casos, acontece por falta de conhecimento dos pais e responsáveis, pois estes, ao observarem seus filhos com alguma indisposição, sentem-se na obrigação de dar algum tipo de medicamento para aliviar os sintomas. Não raro, quando a criança se sente melhor, simplesmente abandonam o tratamento, o que muitas vezes contribui para agravar mais o problema (MARTINELLI, 2012, p.14).
Quando os pais automedicam uma criança diante de sintomas brandos compatíveis com quadros clínicos comuns e sem gravidade, estão evitando um congestionamento ainda maior dos já sobrecarregados serviços de saúde pública, o que pode comprometer o atendimento de pessoas com quadros mais complexos e urgentes. Além disso, quanto maior a iniciativa dos pais e responsáveis em adquirir os medicamentos por conta própria, menor os gastos públicos com o atendimento e a medicação daquela criança. No entanto, faz-se necessária a reflexão acerca da tênue linha presente nessa prática, uma vez que os pais são, pelo entendimento lógico de que não tenham o conhecimento, a expertise e a formação necessária para isso, incapazes de reconhecer assertivamente os quadros clínicos apresentados pela criança a partir de sintomas que, muitas vezes, correspondem a doenças diversas, das mais simples às mais complexas (LIMA, 2019).
Assim, a automedicação pode até ser conveniente para o Estado quando acerta, mas existe um risco grande demais para ser contabilizado como efeito colateral, de que resulte em graves consequências quando se configura como um erro, tanto para a saúde da criança, que pode inclusive vir a óbito, quanto para o Estado, que terá gastos muito maiores na assistência e cuidado dessa criança quando sua condição clínica já se agravou, ou quando diante de uma intoxicação medicamentosa grave.
2.3 FATORES QUE LEVAM À AUTOMEDICAÇÃO E ESTRATÉGIAS DE COMBATE A ESSA PRÁTICA
Quando se pensa nos motivos que levam à consolidação da cultura da automedicação, um dos fatores é a publicidade. (SANTOS; EDUARDO; FREITAS, 2015).
O estudo de Santos, Eduardo e Freitas (2015) revelou que 87% dos pais e responsáveis participantes da pesquisa são adeptos da automedicação em seus filhos e netos, recorrendo ao atendimento médico somente quando não têm acesso aos medicamentos ou quando os sintomas persistem e existe um agravamento do quadro. O mesmo estudo mostrou que, dos pais e responsáveis que afirmaram não praticar a automedicação, 98% têm plano de saúde para os filhos, o que relaciona essa prática diretamente a outro fator preponderante no hábito da automedicação: a dificuldade de acesso ao atendimento em saúde, especialmente quando se trata de saúde pública.
Na mesma medida em que a dificuldade no acesso à saúde pelo SUS é um dos fatores que levam à automedicação, vale ressaltar que essa relação é cíclica, uma vez que a automedicação infantil impacte substancialmente os serviços públicos de saúde no atendimento de emergência a casos de intoxicações medicamentosas e de doenças em quadro avançado que tiveram diagnóstico retardado pela prática da automedicação (MAIOR; OLIVEIRA, 2012).
A assistência farmacêutica é vista por Marinelli (2012) como um dos fatores mais importantes no combate à cultura da automedicação, inclusive infantil. Por meio de ações de conscientização, ou mesmo pelo diálogo com adultos que procuram medicação infantil nas farmácias, é possível que esses profissionais da área de farmácia assumam um papel decisivo na mudança de mentalidade presente no cuidado com as crianças, enfraquecendo o hábito de adquirir e administrar remédios sem prescrição ou orientação médica, somente pela publicidade ou por indicações de terceiros sem formação e conhecimento adequado. A racionalização no uso de medicamentos, de acordo com o autor, pode ser entendida como uma das funções mais socialmente relevantes dos farmacêuticos.
O profissional farmacêutico assume um papel fundamental, atuando como educador junto aos pais e crianças. Assim, a assistência farmacêutica colabora para o controle e automedicação. O farmacêutico, como especialista em medicamentos, tem caráter fundamental na promoção do uso racional, e cabe a ele atuar perante a população em diversas maneiras como orientar, capacitar, dar atenção primária à saúde, oferecer assistência farmacêutica de qualidade e promover programas de prevenção de acidentes infantis em geral (MARTINELLI, 2012, p.18).
Maior e Oliveira (2012) também apontam algumas possíveis medidas e estratégias para reduzir a prática da automedicação e aumentar a prática do uso racional de medicamentos pediátricos e da armazenagem segura de fármacos, através de educação dos pais por profissionais da área médica desde o período do acompanhamento pré-natal, campanhas educativas, um maior estímulo à pesquisa clínica envolvendo crianças, o que, atualmente, passa por uma série de restrições a nível global, para preservar a saúde e integridade de menores, a adoção de embalagem específica para medicamentos pediátricos, para reduzir os casos em que exista confusão de fármacos na hora da administração, o que ocorre, principalmente, entre responsáveis idosos pelas crianças, e a educação em saúde em geral, promovida de diversas formas, inclusive no acompanhamento pediátrico, o que significa que o maior trunfo contra a automedicação infantil seja a consciência de seus riscos e da importância da racionalização no uso de medicamentos (MAIOR; OLIVEIRA, 2012).
3. CONCLUSÃO
A automedicação pediátrica, assim como a adulta, parte de um ponto que não pode ser ignorado enquanto fator integrativo: a negligência à qual a maior parte da população brasileira é submetida, que se manifesta pela falta de informação e de conhecimento e educação e pela dificuldade substancial no acesso aos serviços públicos de saúde, o que leva a um quadro no qual se entenda muito pouco ou mesmo nada a respeito da racionalização no uso de medicamentos, e se tenha poucas oportunidades de atendimento e orientação médica.
Essa combinação constrói um cenário perfeito para que, diante de sintomas que afligem seus filhos e representam uma ameaça à saúde e à vida deles, pais e responsáveis optem por automedicar essas crianças, esperando ter, assim, o alívio imediato amplamente anunciado pelas propagandas farmacêuticas.
A automedicação, que por um lado desafoga os gastos e serviços públicos de saúde, pode gerar problemas consideravelmente maiores, uma vez que, quando dá errado, leva a intoxicações medicamentosas ou agravamento do quadro clínico cujos sintomas foram camuflados pela medicação indevida, gerando riscos muito maiores à saúde e à vida da criança, e uma mobilização e despesa significativamente maiores por parte do poder público.
É necessário que se aja com maior rigor no controle da venda de medicamentos infantis e na fiscalização da publicidade farmacêutica, além de se melhorar o acesso da maior parte da população aos serviços públicos de saúde, especialmente no que tange à atenção primária.
No entanto, não se pode abrir mão de ações de conscientização que levem a um uso mais racional dos medicamentos, ponto no qual a atuação dos farmacêuticos se torna crucial, uma vez que são esses profissionais, simultaneamente, os maiores especialistas em fármacos, e os profissionais que estão mais próximos à população no momento em que pais e responsáveis decidem recorrer à automedicação de seus filhos.
REFERÊNCIAS
FREITAS, Ronilson Ferreira. A automedicação e os riscos que essa prática representa para a saúde da população. Lecturas Educación Física y Deportes, v.17, n.1, 2013.
LIMA, M.F.P. A prática da automedicação em criança por pais e responsáveis. Holos, v.35, n.5, 2019.
MAIOR, Marta da Cunha Lobo Souto; OLIVEIRA, Naira Vilas Boas Vidal de. Intoxicação medicamentosa infantil: um estudo das causas e ações preventivas possíveis. Revista Brasileira de Farmácia, v.93, n.4, 2012.
MARTINELLI, Cristian Gabriela. Automedicação: uma breve abordagem com enfoque em crianças. Faculdade de Educação e Meio Ambiente FAEMA, Ariquemes, 2012.
MEIRA, F. A automedicação em crianças por seus responsáveis em um hospital do interior do Minas Gerais. Cogitare Enfermagem, v.16, n.4, 2011.
NASCIMENTO, A. Propaganda de medicamentos no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, v.14, n.3, 2011.
SANTOS, Patrícia Nepomuceno; FREIRAS, Ronilson Ferreira; EDUARDO, Anna Maly de Leão. Automedicação infantil: conhecimento e motivação dos pais. Revista Multitexto, v.3, n.1, 2015.
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA – SBP. Uso de medicamentos em creches e escolas. Site Institucional. 2017. Disponível em: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/sociedade-brasileira-de-pediatria-divulga-orientacoes-para-uso-de-medicamentos-em-creches-e-escolas/. Acesso em dezembro de 2020.
[1] Pós-graduada em Farmacologia pela Faculdade Venda Nova do Imigrante – FAVENI.
Enviado: Abril, 2021.
Aprovado: Maio, 2021.