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Choque hipovolêmico secundário ao uso de anticoagulantes

RC: 56210
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/saude/choque-hipovolemico

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

FRISSO, Paulo Lucas Capelini [1], CALLEJAS, Rosana Álvarez [2]

FRISSO, Paulo Lucas Capelini. CALLEJAS, Rosana Álvarez. Choque hipovolêmico secundário ao uso de anticoagulantes. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 07, Vol. 05, pp. 05-16. Julho de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/saude/choque-hipovolemico, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/saude/choque-hipovolemico

RESUMO

Os distúrbios hemorrágicos podem estar relacionados a elementos físicos como plaquetas e vasos sanguíneos, ou á elementos plasmáticos, como os fatores de coagulação. Nesta discussão iremos abordar os distúrbios hemorrágicos causados por medicamentos, com destaque para a varfarina. Choque é definido como a falência do sistema circulatório em fornecer oxigênio aos tecidos, para atender as demandas metabólicas. Existem 4 tipos de choque, divididos de acordo com os mecanismos fisiopatológicos causador da desordem: hipovolêmico, obstrutivo, cardiogênico, distributivo. Neste estudo iremos abordar mais profundamente o choque hipovolêmico, bem como o manejo e indicações de drogas vasoativas para esta situação quando necessárias.

Palavras-chave: Choque, hipovolemia, anticoagulação, sangramento, varfarina.

INTRODUÇÃO

Diante de um paciente com sangramento excessivo e/ou inexplicado, a primeira a medida a ser tomada é identificar se este sangramento está sendo causado por uma coagulopatia sistêmica, ou devido distúrbios anatômicos/mecânicos envolvendo os vasos sanguíneos (SCHAFER, 2014). Os distúrbios hemorrágicos podem ser considerados primários quando são causados por fatores relacionados aos vasos sanguíneos e as plaquetas, enquanto que os distúrbios secundários são relacionados a fatores plasmáticos e a cascata de coagulação (RIZZATTI e FRANCO, 2001).

OBJETIVO

Abordar os distúrbios hemorrágicos causados por medicamentos, com destaque para os anticoagulantes, classe de medicamento utilizada pelo paciente.

CASO CLÍNICO

Paciente sexo masculino, 66 anos, deu entrada no serviço de urgência com queixa de fraqueza, trazido pelo SAMU devido quadro de hematêmese (vômito com sangue) e hematúria (urina com presença de sangue) de início a 3 dias, associado a fraqueza e dor abdominal difusa. Hipertenso, não realizando tratamento. Em uso de Marevan (varfarina) devido colocação de stent por infarto prévio. Acompanhante relata que uma semana antes do início dos sintomas, foi prescrito para o paciente iniciar o uso de Apixaban devido melhor facilidade. Entretanto o paciente não havia compreendido que necessitava suspender a varfarina para iniciar o Apixaban, estando em uso de dupla terapia de anticoagulação desde então. Além dos anticoagulantes, estava em uso de carvedilol, sinvastatina e espironolactona.

Exame Físico: Sinais Vitais (Fr: 21. Fc 107. Sat 98. T° 35,8. Pa 80/53) REG, hipocorado +++/4+, desidratado ++/4+, presença de hematomas em membros e tórax. Pulsos fracos e filiformes, extremidades frias com TEC>4s, ausência de edema, panturrilhas livres. Abdome globoso, distendido, com presença de múltiplos hematomas difusos. Audível RHA, doloroso à palpação superficial/profunda, sem VCM, sinais de defesa ou irritação peritoneal

Exames Laboratoriais: Hemograma (Hemácias 3,78// Hemoglobina 12// Hematócrito 37// Leucócitos 12.360 sem desvio// plaquetas 311.000), Lactato: 12,6, CKMB: 12, CPK: 176, PCR: 1,3, NA: 142, K: 8,4, KPTT: incoagulável, TAP: incoagulável

Conduta: Inicialmente foi realizada uma hidratação vigorosa, com 3.000 ml de soro fisiológico em 3 etapas de 1.000 ml cada. Ainda assim, após essa hidratação o paciente permaneceu com hipotensão e sinais de má perfusão periférica, sendo necessário o início de Noradrenalina. A droga foi iniciada inicialmente com 10 ml/h, recebendo aumentos escalonados até 40 ml/h. Adicionalmente a isto, foram realizadas condutas para manejo da hipercalemia, com administração de solução polarizante e gluconato de cálcio.

TERAPIA ANTICOAGULANTE

Nosso paciente estava fazendo uso de terapia anticoagulante devido colocação de stent recente. As novas diretrizes de 2018, publicadas pelo consenso internacional Delphi, confirmam que a anticoagulação é mais efetiva em reduzir eventos adversos no paciente após colocação de stent, quando comparada com o tratamento até então recomendado, de dupla antiagregação plaquetária (MILINIS et al., 2018).

A Varfarina é um antagonista da vitamina K, que age inibindo a produção dos fatores de coagulação dependentes da vitamina K (II, VII, IX, X) (WEITZ, 2017). A hemorragia é a principal complicação deste fármaco, e é mais comum nos primeiros 3 meses de uso, e nos pacientes com mais de 65 anos (CASTRO et al., 2014).  Além disso a presença de comorbidades como hipertensão arterial, câncer, doença vascular cerebral, doença cardíaca grave, insuficiência renal, alcoolismo e hepatopatia também são fatores de risco para sangramento nos pacientes em uso de varfarina (TERRA-FILHO e MENNA-BARRETO, 2010). O apixaban pertence à classe dos novos anticoagulantes orais. Esta classe age inibindo diretamente o fator X ativado da cascata de coagulação (LORGA FILHO et al., 2013). São opções melhores e mais cômodos que a varfarina pois podem ser administrados em doses fixas, sem necessidade de monitoramento laboratorial (WEITZ, 2017).

O alvo terapêutico durante a anticoagulação, é manter o RNI entre 2 e 3 (TERRA-FILHO e MENNA-BARRETO, 2010). Porém os efeitos anticoagulantes da terapia isolada com Varfarina são tardios (WEITZ, 2017). Quando desejamos alcançar o potencial anticoagulante de forma rápida, como nos pacientes de alto risco para eventos trombóticos, é comum associar outra droga anticoagulante parenteral até que se atinja o RNI desejado (LORGA FILHO et al., 2013). É indicado associar fármacos como heparina comum, heparina de baixo peso molecular ou fondaparinux durante pelo menos 5 dias quando se inicia a terapia com a varfarina (WEITZ, 2017).

Os princípios do tratamento no paciente com sangramento em uso de anticoagulantes são: suspender o fármaco causador, medidas de suporte (hidratação, transfusão, droga vasoativa), considerar antídoto ou medidas de interrompimento de sangramento (ácido aminocaproico, ácido tranexâmico e complexo protrombínico) (CASTRO et al., 2014). O antídoto da varfarina é a vitamina K, enquanto que os novos anticoagulantes orais não possuem antídotos específicos (MARTINS, 2017; WEITZ, 2017).

O QUE É CHOQUE?

O nosso principal diagnóstico sindrômico neste caso foi o choque, causado por uma provável discrasia sanguínea secundária ao uso errôneo de anticoagulantes. Mas o que seria choque?  Choque é definido como a falência do sistema circulatório em fornecer oxigênio aos tecidos, para atender as demandas metabólicas (SIQUEIRA e SCHMIDT, 2003). Existem 4 tipos de choque, divididos de acordo com os mecanismos fisiopatológicos causador da desordem: hipovolêmico, obstrutivo, cardiogênico, distributivo (MARTINS, 2017a). O choque hipovolêmico é causado por uma redução do volume sanguíneo (hipovolemia), sendo o tipo mais comum de choque (MOURAO-JUNIOR e SOUZA, 2014).

FISIOPATOLOGIA

Independente da etiologia do choque, todos compartilham em comum a redução do enchimento capilar, com consequente menor fornecimento de oxigênio aos tecidos (MOURAO-JUNIOR e SOUZA, 2014). Como consequência da hipóxia, com menor oferta de oxigênio às células, a atividade mitocondrial diminui, depletando as reservas de ATP presentes na organela (MAIER, 2017). A fim de manter a produção de ATP, o organismo entra em metabolismo anaeróbio, com aumento do lactato intracelular, e diminuição do PH (MARTINS, 2017). O acúmulo destes metabólitos do metabolismo anaeróbio desencadeia a liberação de mediadores inflamatórios e ativação inflamatória sistêmica (MAIER, 2017). Essa inflamação causa dano ao endotélio vascular, piorando a hipoperfusão (MARTINS, 2017a). Todas essas substâncias são citotóxicas, e induzem dano celular (principalmente dano mitocondrial). Isto reduz ainda mais a produção de ATP, perpetuando o ciclo (MAIER, 2017).

A acidificação do meio intracelular, e o dano mitocondrial, são acompanhadas de lesão endotelial, que estimula a agregação plaquetária e ativação da coagulação (MARTINS, 2017a). Devido isto, pode ocorrer coagulação intravascular disseminada, com fenômenos trombóticos, associados a fenômenos hemorrágicos secundários ao consumo dos componentes do sistema hemostático (SCHAFER, 2014).

A fim de impedir a hipóxia, e restabelecer a circulação, o organismo desencadeia inúmeros mecanismos de compensação (MARTINS, 2017a). Inicialmente, o sistema nervoso simpático libera norepinefrina e outros mediadores (como vasopressina, endotelina, tromboxano entre outros) que vão causar vasoconstrição a fim de melhorar a perfusão (MAIER, 2017). Após isso, a função cardíaca é estimulada diretamente por estes mesmos mediadores, a fim de aumentar a frequência cardíaca (cronotropismo) e a força de contração (inotropismo) (BIAGGIONI e ROBERTSON, 2014). Em seguida, inicia-se a nível renal, a ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona que irá aumentar a reabsorção de sódio e água, no intuito de aumentar a pressão arterial, para otimizar a perfusão tecidual (MARTINS, 2017a).

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

Cada parte deste complexo mecanismo explica o aparecimento dos principais sinais/sintomas relacionados ao choque. A redução da perfusão tecidual é expressa pela hipotensão e pela inadequada perfusão periférica (SIQUEIRA e SCHMIDT, 2003). A má perfusão periférica é evidenciada pelos achados de pele fria, pegajosa e com enchimento capilar lentificado (>3 segundos) (MARTINS, 2017). A liberação dos neurotransmissores para aumentar a função cardíaca é responsável pela taquicardia e taquipneia (MOURAO-JUNIOR e SOUZA, 2014).

A ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona aumentam a reabsorção de água e sódio da urina, causando a oligúria ou até mesmo anúria observada no choque (MAIER, 2017). A oligúria/anúria pode também ser explicada pela hipoperfusão renal, que causa diminuição da taxa de filtração glomerular (MARTINS, 2017a). A diminuição da perfusão corporal, no sistema nervoso, se manifesta com alterações do estado mental, variando desde agitação, delirium ou confusão mental, até obnubilação ou coma (SIQUEIRA e SCHMIDT, 2003). Vale ressaltar que cada etiologia de choque irá apresentar manifestações distintas, que podem contribuir para o diagnóstico (MARTINS, 2017a).

CHOQUE HIPOVOLÊMICO

Após essa abordagem geral, iremos focar no tipo específico de choque do nosso paciente. Como abordamos acima, o choque hipovolêmico é aquele que ocorre por perda de sangue, com redução do volume sanguíneo (hipovolemia) (MOURAO-JUNIOR e SOUZA, 2014). A perda de sangue pode ser hemorrágica ou não hemorrágica. O hemorrágico se relaciona com a perda de sangue, podendo ser relacionado ao trauma, ou não traumático (Hemorragia digestiva, sangramentos espontâneos, aneurisma roto, lesões vasculares, entre outros) (MARTINS, 2017a). Já a perda não hemorrágica, envolve perda de líquido de forma que não envolva sangramento, como nas perdas de líquidos pelo trato gastrointestinal (diarreia, vômitos) ou urinário, perdas para o terceiro espaço, perdas insensíveis, entre outras (MAIER, 2017).

TRATAMENTO

Os pilares do tratamento são: restaurar a perfusão sistêmica e corrigir a hipóxia, e identificar a causa de base para tratamento específico. Para a restauração da perfusão, iniciamos uma reposição volêmica agressiva (20 ml/kg). A resposta ao volume deve ser monitorizada pela diminuição da taquicardia, melhora do débito urinário e do estado neurológico (MARTINS, 2017a). O tipo de solução usada dependerá do grau do choque. Geralmente usa-se cristaloide, sendo sangue e hemoderivados restritos para perdas maiores de 30% da volemia total (SIQUEIRA e SCHMIDT, 2003). Nos pacientes vítimas de sangramentos intensos a terapia composta, realizada com a transfusão de plasma fresco congelado e plaquetas, bem como o uso de fatores específicos de coagulação e vitamina K aumenta a sobrevida nesses pacientes (MAIER, 2017; MARTINS, 2017a). Na urgência, apenas a vitamina K por si só não consegue controlar o sangramento, sendo necessário o uso do plasma fresco congelado, que contém os fatores de coagulação já sintetizados (BIAGGIONI e ROBERTSON, 2014; MARTINS, 2017a).

As metas para a reposição volêmica é alcançar os seguintes parâmetros: TEC<3s, débito urinário>0,5 ml/kg/h e PAM>65. Se não houver resposta com a reposição volêmica, deve-se associar drogas vasoativas (MAIER, 2017). As principais drogas vasoativas que temos presente na atualidade são: Noradrenalina, Epinefrina, Dopamina, Dobutamina, inibidores da Fosfodiesterase 3, levosimedan e azul de metileno (MARTINS, 2017a). De acordo com o mecanismo farmacológico, cada droga pode agir estimulando o cronotropismo, inotropismo, ou por ação vasopressora (BIAGGIONI e ROBERTSON, 2014).

NORADRENALINA

É uma catecolamina endógena, que interage com os receptores alfa e beta adrenérgicos. Os receptores alfa 1, quando ativados possuem efeito vasoconstritor, causando aumento da pressão arterial. Enquanto que os receptores alfa 2 possuem efeitos vasoconstritores locais, porém seu efeito simpaticolítico no sistema nervoso central predomina, se tornando um hipotensor (BIAGGIONI e ROBERTSON, 2014). Já os receptores beta possuem efeito de aumentar o débito cardíaco e estimular a contratilidade do coração (MARTINS, 2017a). Vale ressaltar que os receptores beta 1 possuem efeito apenas no coração, enquanto os beta 2 possuem efeitos no coração e na musculatura brônquica, causando broncodilatação quando estimulados (BIAGGIONI e ROBERTSON, 2014).

A noradrenalina possui efeito estimulador predominante dos receptores alfa 1 e beta 1, não exercendo efeitos nos receptores alfa 2 e beta 2 (MARTINS, 2017a). Suas propriedades farmacológicas a tornam um potente agente cronotrópico, inotrópico e com propriedades vasopressoras (BIAGGIONI e ROBERTSON, 2014). Sendo assim, esta é a droga de primeira escolha no choque hipovolêmico (MARTINS, 2017a). A dose usual é de 0,03 a 2 µg/Kg/min (SIQUEIRA e SCHMIDT, 2003).

ADRENALINA

Assim como a noradrenalina, também é uma catecolamina endógena (MAIER, 2017). A diferença entre elas é que além do efeito estimulador dos receptores alfa 1 e beta 1, esta droga também possui efeito sobre os receptores beta 2 (BIAGGIONI e ROBERTSON, 2014). Devido seus efeitos estimuladores de beta 2 com indução de broncodilatação, é a primeira droga indicada no choque anafilático (MARTINS, 2017). Também possui ação inotrópica, cronotrópica e vasopressora (BIAGGIONI e ROBERTSON, 2014).

DOPAMINA

É um precursor natural das catecolaminas (BIAGGIONI e ROBERTSON, 2014). A dose padrão é de 2 a 20 mcg/kg/min. Nas doses de 5 a 10 mcg/kg/min possui ação beta adrenérgica, com aumento da frequência e do inotropismo. Dose maiores que 10 mcg/kg/min predomina a ação alfa adrenérgica, com aumento da resistência vascular periférica e da pressão arterial (MARTINS, 2017a).

DOBUTAMINA

É uma catecolamina sintética, com ação beta 1 seletiva que possui ação predominantemente inotrópica (BIAGGIONI e ROBERTSON, 2014). Usada na dose de 2,5 a 20 mcg/kg/min, tem indicação nos casos de insuficiência cardíaca e choque cardiogênico (MARTINS, 2017a).

INIBIDORES DA FOSFODIESTERASE 3 (MILRINONA)

Possui ação inotrópica positiva, por aumentar a força de contração cardíaca, e induzir vasodilatação pulmonar, sendo muito útil para situações de disfunção do ventrículo direito (MARTINS, 2017a).

LEVOSIMENDAN

É um fármaco que age aumentando a sensibilidade das fibras cardíacas aos íons cálcio, estimulando a contração dessas (BIAGGIONI e ROBERTSON, 2014). Aumenta a contratilidade cardíaca sem aumentar o consumo de O2, porém seu efeito vasodilatador o contraindica em situação com pressão arterial baixa (MARTINS, 2017a).

AZUL DE METILENO

O óxido nítrico é um importante vasodilatador endógeno (MAIER, 2017). Ele age estimulando uma enzima chamada guanilil ciclase, que vai diminuir a quantidade de cálcio intracelular nos músculos lisos. Esta ação impede a contração do músculo liso do endotélio, e favorece a vasodilatação (STOCCHE et al., 2004). O azul de metileno é um antagonista competitivo desta enzima, que ao inibir ela, provoca vasoconstrição (GARCIA e OLIVEIRA, 2013). Está indicado no choque refratário à catecolaminas (STOCCHE et al., 2004).

DISCUSSÃO

Nosso paciente é um homem idoso, que recém havia realizado um cateterismo com colocação de stent, e estava em uso de anticoagulante. Como vimos anteriormente a anticoagulação é mais efetiva em reduzir eventos adversos no paciente após colocação de stent, quando comparada com o tratamento até então recomendado, de dupla antiagregação plaquetária (MILINIS et al., 2018). Porém, ao conversarmos com o acompanhante, este relata que o paciente estava fazendo uso de dois anticoagulantes simultâneos. Também vimos anteriormente que é indicado associar fármacos como heparina comum, heparina de baixo peso molecular ou fondaparinux durante pelo menos 5 dias quando se inicia a terapia com a varfarina, até que se atinja o potencial anticoagulante (WEITZ, 2017). Porém, ao que conseguimos entender, o paciente deveria ter suspendido uma das medicações anticoagulantes após determinado período. Porém o paciente não realizou a suspensão de uma das medicações, e permaneceu utilizando a combinação de anticoagulantes por tempo indeterminado, fazendo com que o RNI saísse da faixa terapêutica, passando para um valor incalculável.

O que o levou a procurar ajuda foi uma queixa de fraqueza intensa, após 3 dias com quadro de hematêmese e hematúria. Ao exame físico vemos claros sinais sugestivos de choque: hipotensão, tempo de enchimento capilar diminuído, pulsos fracos e filiformes com extremidades frias, e desidratação. A dor abdominal espontânea e durante o exame, nos leva a crer que exista sangramento intra-abdominal. Essa suspeita se torna ainda mais forte diante das apresentações de hematêmese e hematoquezia que o paciente continuamente apresentava durante a internação. Outro sinal importante são os múltiplos hematomas observados em tórax, abdome e membros. Estes representam hemorragias na pele, causada pelo extravasamento de células sanguíneas para derme e tecido subcutâneo (RIZZATTI e FRANCO, 2001). Esses sinais achados no exame físico, se somado com a queixa de sangramento espontâneo e fraqueza, nos permitem firmar o diagnóstico sindrômico de má perfusão ou choque. Agora nos resta pensar, o que está causando este choque? Podemos hipotetizar inúmeras causas, tais como dengue ou outras doenças hemorrágicas, hemofilias ou demais doenças da hemostasia. Porém, o fato de ser um paciente em uso de anticoagulante oral, com sangramento espontâneo, nos aponta fortemente para uma provável discrasia sanguínea causada por uso inadequado do anticoagulante.

Analisando os exames laboratoriais, temos vários indícios que nos confirmam a hipótese de distúrbio hemorrágico. No hemograma, as hemácias baixas são compatíveis com a perda sanguínea que o paciente vem apresentando. A hemoglobina e hematócrito ainda estão normais. Os exames KPTT e TAP, são exames que avaliam a coagulação sanguínea (WEITZ, 2017). Esses métodos de avaliação da coagulação visam determinar o tempo de formação do coágulo de fibrina (BIAGGIONI e ROBERTSON, 2014). O fato de estarem incoagulável, confirma nossa hipótese de uso errôneo do anticoagulante, causando uma discrasia sanguínea.

Outro achado importante é o lactato que está aumentado. Este metabólito é um marcador do metabolismo anaeróbio, e quando aumentado representa o desvio para o metabolismo anaeróbio, como resposta á hipóxia tecidual (CICARELLI et al., 2007). A enzima CPK significa creatinoquinase, e trata-se de uma enzima que se localiza no interior dos músculos esqueléticos e lisos. Sua elevação representa que houve lesão muscular (seja liso ou esquelético) que causou sua elevação. A CK-MB representa a fração miocárdica da CPK, e se eleva quando temos lesão do músculo cardíaco (WILLIAMSON e SNYDER, 2016). Em nosso paciente, a CPK aumentada representa dano muscular, porém não especifica qual.

Outro aspecto interessante neste caso é a hipercalemia apresentada pelo paciente. A depleção do volume intravascular reduz a perfusão renal. Com isso, a taxa de filtração glomerular reduz, o sódio não é reabsorvido, e o potássio não é excretado. Por isso o potássio do nosso paciente estava elevado (MAIER, 2017). As opções de tratamento para a hipercalemia são: Furosemida, resina sorcal, inalação com beta-agonistas, solução polarizante (glicose + insulina), bicarbonato de sódio, diálise (MARTINS, 2017a). A furosemida é um diurético de alça que age inibindo a reabsorção de sódio e água na alça de henle (BIAGGIONI e ROBERTSON, 2014). A perda de sódio e água estimula a ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona que busca aumentar a reabsorção de sódio, com consequente excreção de potássio (MAIER, 2017). A resina sorcal visa reduzir a absorção intestinal de potássio, e agir como um trocador de íon, auxiliando na excreção do potássio (MARTINS, 2017a). Os beta agonistas possuem efeito de estimular os transportadores celulares de potássio, e induzir sua entrada para o meio intracelular, diminuindo a concentração sérica (DUTRA et al., 2012). A insulina possui um importante efeito em estimular a entrada do potássio para o meio intracelular, diminuindo a concentração sérica de potássio (PONTES-NETO et al., 2009). Porém se fosse utilizada apenas insulina, haveria o risco de causar uma hipoglicemia. Por isso a insulina é administrada junto com glicose 50%, para impedir esse efeito adverso, formando assim a solução polarizante (MARTINS, 2017a). O bicarbonato induz a troca de potássio por H+ pela célula (potássio entra, H+ sai). E por último, o gluconato de cálcio é um estabilizador miocárdico. Ele não vai atuar na redução do potássio, mas vai antagonizar seus efeitos nas fibras nervosas (PONTES-NETO et al., 2009). O potássio elevado inativa os canais rápidos de sódio, bloqueando a condução do potencial de ação miocárdico. Sendo assim, a administração do gluconato de cálcio age normalizando a diferença entre os potenciais de repouso e do limiar de ativação, restaurando a excitabilidade da membrana (OLIVEIRA et al., 2014). Está indicado sempre que houver alteração eletrocardiográfica associada à hipercalemia (MARTINS, 2017a).

Diante desta revisão rápida, temos algumas opções disponíveis para tratamento da hipercalemia. Entretanto, uma das opções elencadas, a furosemida, neste caso não está indicada, pois por ser um diurético, irá depletar o volume intravascular do paciente, e nesse paciente, com choque hipovolêmico, o volume intravascular já está reduzido, sendo assim a furosemida irá piorar este quadro.

CONCLUSÃO

Diante deste caso conseguimos estabelecer um raciocínio etiológico da grande maioria das manifestações apresentadas por este paciente. O uso errôneo do anticoagulante desencadeou a diátese hemorrágica que levou o paciente ter múltiplos focos de sangramento, evoluindo para choque hipovolêmico. Nota-se aqui a importância da orientação adequada do paciente acerca do tratamento, visando esclarecer todas as dúvidas que o paciente possa ter, para evitarmos iatrogenias. As condutas tomadas foram todas visando restabelecer a perfusão e o volume circulante do paciente, além das demais medidas de suporte de complicações (como tratar a hipercalemia resultante da hipoperfusão renal). Apesar da hidratação vigorosa não se consegue evitar o uso de noradrenalina, e mesmo com uso do antídoto específico para o anticoagulante em questão (vitamina K) não foi possível restabelecer a normalidade das provas de coagulação durante o período de internamento na unidade de pronto atendimento.

REFERÊNCIAS

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[1] Discente de medicina da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA PR).

[2] Docente e Pesquisadora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA PR). Especialista em Geriatria e Gerontologia.

Enviado: Julho, 2020.

Aprovado: Julho, 2020.

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Paulo Lucas Capelini Frisso

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