OLIVEIRA, Jéssica Tôrres de [1]
OLIVEIRA, Jéssica Tôrres de. O Belo, o Homem e o Surreal na Obra de Hieronymus Bosch. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Edição 04. Ano 02, Vol. 01. pp 545-551, Julho de 2017. ISSN:2448-0959
RESUMO
Neste presente estudo são discutidos alguns aspectos da vida e obra do artista holandês Hieronymus Bosch. Considerado um referencial único no seu período, Bosch apresentou realidade e imaginário medieval em seus trabalhos, ora de forma explícita, ora implícita e sarcástica. Ainda que pertencente ao movimento renascentista, suas obras tinham forte relação com o espiritual e o inconsciente, e ainda veiculavam a ideologia católica para a população, que era em sua maior parte analfabeta. O conceito de belo e a rejeição do grotesco são questionados, assim como o conceito maniqueísta de bem e mal. O legado de Bosch perdura até a contemporaneidade, ainda sendo capaz de gerar diálogos e reflexões.
Palavras-chave: Hieronymus Bosch, Beleza, Arte, Surrealismo, Renascimento
INTRODUÇÃO
O humanismo foi sem dúvida o maior propulsor do Renascimento, movimento nascido na Itália e que se espalhou em toda a Europa nos séculos XV-XVI. O resgate de ideais da Antiguidade Clássica não eram puro saudosismo, mas sim como uma forma de estudo e aprimoramento para novos conceitos. Mesmo com muitos entusiastas não abandonando o catolicismo, o teocentrismo fora praticamente substituído pelo antropocentrismo- agora o homem era o senhor da sua vida e de seu universo. Com essa base filosófica e teórica, o Renascimento floresceu cientificamente, artisticamente e culturalmente. Esse resgate se aliou ao conceito de belo perfeito grego, mas dessa vez não somente voltado aos deuses, os homens também eram protagonistas. A arte deveria despertar sentidos, desejos, encantamento, pois era fruto do processo de construção da criatividade e independência humana. Neste mundo onde só havia espaço para a perfeição, onde entraria em cena a fantasia, o grotesco, os vícios e pecados humanos? Hieronymus Bosch decidiu mostrar a todos seu simbolismo e a eterna dualidade de vício e virtude.
1. VIDA E OBRA DE HIERONYMUS BOSCH
Hieronymus Bosch (c. 1450-9 de agosto de 1516), pseudônimo de Jheronimus van Aeken- referente à sua região de nascimento, Hertogenbosch, uma aldeia holandesa- foi um inovador pintor e gravador do período renascentista. A prosperidade comercial conferida à região na época e a abundância de ambientes católicos provavelmente foram grandes fatores que influenciaram Bosch a ficar por toda a sua vida em sua cidade natal, e não existem documentos que provem sua saída de Hertogenbosch. As informações sobre o artista são poucas, o que agrega ainda mais misticismo às suas obras. Não tinha praticamente nada em comum com os artistas do período e da região, e tampouco sobre as obras de sua família, que também eram artistas. Em meados de 1486, se agregou à Confraria de Nossa Senhora, na Igreja de São João (BOSING, 1991, p.12), onde se encontram a maior parte das informações sobre a sua vida. Em 1478 se casou com uma integrante da Confraria, Aleyt Van den Meervenne. Seu último registro foi em 1516, a respeito da missa celebrada pelo seu falecimento.
Graças ao caráter original, complexo e imaginativo de suas obras, Bosch é considerado o primeiro artista fantástico e o inspirador do movimento Surrealista. Suas retratações sobre vícios e tentações de forma caricatural assombravam e magnetizavam os espectadores. Suas obras foram influenciadas por rumores de um apocalipse por volta de 1500. Logo esse caráter sombrio viria a gerar rumores de que Bosch teria pertencido a alguma seita ocultista, onde poderia aprimorar seus conhecimentos sobre o desconhecido, sonhos e alquimia, resultando assim em sua perseguição pela Inquisição.
As obras conservadas de Bosh atualmente são cerca de apenas 40 originais, espalhadas em museus europeus e estadunidenses. Ainda assim, elas mostram com riqueza de detalhes sua exímia observação e talento como colorista e desenhista. Com suas técnicas ele abordou o céu e o inferno, o regozijo e o medo, a vida e a morte de forma satírica, irônica e paródica. Alguns autores vêem o seu trabalho como uma forma de imaginário para provocar o tormento humano. Outros ainda dizem que o fruto de sua mitologia eram os delírios causados pela ingestão de centeio contaminado, muito comum no período. Apesar de tudo isso, a maior parte de suas pinturas retratavam os temas tradicionais cristãos, como a vida de Jesus Cristo e de homens santos, provavelmente um reflexo de sua convivência na Confraria.
Os índices de valor contraditórios na pintura de Bosch e a interação dos significados em suas conexões e processos, narram o cotidiano da vida campesina, negando o prazer terreno em suas inúmeras formas. A religião assume no quadro o centro irradiador dos enunciados e cabe ao cristão abdicar dos prazeres mundanos, abstraí-lo e entendê-lo como pecado. O que é bom, que dá prazer, é o mal, mas, afastando-se dele, salva-se a própria alma. (FORMENTÃO, 2011)
Segundo Beyer (2000), a complexidade de Bosch e sua riqueza de detalhes tornam suas obras míticas, entretanto, pouco organizadas e com excesso de informação. Ele exemplifica com o caso do tríptico da “Tentação de Santo Antão”, onde o espectador não consegue manter o foco (mesmo com o santo no centro da obra) devido ao excesso de criaturas mitológicas e ação no entorno do santo.
2. O HOMEM E A BELEZA
As obras de Bosch refletem vários aspectos do que é ser humano. Desde os vícios e o sentimento de culpa que eles remetem, até o ápice da felicidade no paraíso, o artista mostra o quanto o ser humano é relativo, e junto a ele, o conceito de beleza. Mesmo seguindo os padrões de aparência perfeita em alguns casos, o grotesco impressiona tanto quanto o maravilhoso. O espectador consegue admirar a obra e refletir sobre seus próprios pecados e virtudes, pois quando obtemos a imagem, a filtramos no cérebro, gerando influências, comparações e distorções em nossas crenças e valores. A reflexão leva à mudança e no caso, o seguimento dos dogmas da Igreja Católica fielmente, pelo medo da punição e privação das delícias do paraíso. Em obras como “Os sete pecados capitais e as quatro últimas etapas da vida”, há a clara intenção de deixar claro que Cristo tudo vê e tudo sabe, incluindo as falhas mundanas.
Pela primeira vez e talvez única vez, um artista conseguiu dar forma concreta e tangível aos medos que obcecavam o espírito do homem da Idade Média. Foi uma façanha que talvez só fosse possível nesse momento preciso de tempo, quando as antigas idéias ainda eram vigorosas, ao mesmo tempo que o espírito moderno proporcionava ao artista os métodos adequados para representar o que via..” (GOMBRICH, 1988, p. 276)
Por sermos tão relativos, visualizamos a mundo com mais facilidade segundo o nosso ponto de vista, o que leva muitos a não irem além das aparências, as associando a sua realidade. O conceito de beleza segue em geral o padrão imposto por determinada sociedade, mesmo que existam certas preferências pessoais. A beleza de fato chama a atenção, mas o feio intriga o homem. O belo é simétrico, não surpreende, pois é esperado. O feio, entretanto, é o que todos escondem, mas que prova como o homem é diversificado e falível. E é através dessa mistura que Bosh deleita o observador.
3. O REFLEXO SURREALISTA DE BOSCH NA MODERNIDADE
Bosch é tido para muitos como o primeiro artista do gênero “arte fantástica”. Ela engloba o imaginário, o horrendo, os sonhos, a fantasia, as visões e espíritos, mitologia, ocultismo, simbologia e misticismo. Além de Pieter Brueghel, o Velho, que produziu algumas obras com esses temas, esse estilo influenciou o maneirismo, o surrealismo, a arte romântica e outros. Possui grandes nomes como Francisco de Goya, Salvador Dalí, Gustave Doré, Brueghel, por exemplo. Hieronymus teve diversos seguidores, como Alart du Hameel, Herri met de Bles, Pieter Huys e Jan Mandyn, que eram ou de Hertogenbosch ou de Antwerp, na Bélgica.
Explorar o inconsciente e a alma era fundamental. As obras esboçavam a perfeição nas cores e no desenho, com até mesmo ilusões de ótica e impressões espaciais. O realismo em algumas formas estava aliado ao surrealismo para provocar o horror e a reflexão, fortalecendo assim as crenças, superstições e temores do período. Ainda assim, muitos elementos criados por Bosch eram indecifráveis, seja pelo efeito inusitado de suas misturas zoomórficas ou botânicas, criando formas totalmente novas. O medo era representado assim como todas as inquietações do espírito humano na Idade Média, devido ao dualismo de pecado e virtude, prazer e espiritualidade.
Bosch é referência para vários artistas contemporâneos, como para o diretor Guillermo Del Toro, em seu trabalho cinematográfico “O Labirinto do Fauno”. Entretanto, poucos artistas possuem uma referência tão clara e persistente do estilo fantástico de Bosch quanto Kentaro Miura (Chiba, 11 de julho de 1966, Japão) em sua obra Berserk (1989). O enredo se desenvolve num universo fantástico baseado na Idade Média, e é constante o debate entre bem e mal, natureza humana, isolamento, traição, virtudes e vícios, entre outras questões filosóficas. Em cenários apocalípticos e monstruosidades da obra, podemos perceber toda a mistura do imaginário e macabro que permeiam a mente humana, de forma clara como nas obras de Bosch.
Os demônios de Miura não seguem apenas o padrão estético conhecido, eles desafiam a credulidade dos espectadores, despertam pavor e ao mesmo tempo curiosidade. São maldosos e ao mesmo tempo irônicos, debochando da condição mísera humana. O leitor sempre questiona de onde vem esses tipos de criaturas, e ao terminarem a obra percebem que os maiores monstros habitam o seu próprio imaginário. O autor ainda buscou referências a outras obras impactantes, como “Relatividade” de M.C Escher e “Torre de Babel” de Gustave Doré, entre outros variados estilos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como dito pelo psicanalista Carl Jung, Bosh era “O mestre do monstruoso, o descobridor do inconsciente”. É impossível negar a sua influência que transcendeu o Renascimento até a contemporaneidade, e como suas obras foram um grande veículo de disseminação da ideologia católica. O paraíso tem seus detalhes mundanos, e no inferno, há certa beleza nas formas. Nada é absolutamente ruim ou bom, assim como o ser humano. Nobres, mulheres, jovens e clérigos não escapam do julgamento e do olhar divino que tudo observa sem ser visto. Homens bons e religiosos se provam tão perversos e sádicos quanto qualquer demônio, e estes, podem brincar singelamente entre crianças. A humanidade é tão suja e precária quanto a sua própria vivência no período medieval, os condenados vivem torturas que muitos já passaram durante a Inquisição.
De certo modo, Bosch possui nas entrelinhas uma forte crítica política e social, na qual o homem moderno pode buscar entender a realidade na qual ele viveu. Sua simbologia não tem apenas o simples propósito de gerar uma repulsa imediata seguida de uma fixação: ela tem uma mensagem a ser compreendida, e cabe ao observador buscá-la. A imagem era a forma democrática de acesso a informação pela massa iletrada, e hoje é o portal para o universo de Hieronymus Bosch, um artista com vida misteriosa, mas criador de obras com infinitos significados.
REFERÊNCIAS
BEYER, S. Michael. Bosh and Bruegel: An examination and comparison of Triptych of the Temptation of Saint Anthony and The Numbering at Bethlehem. Junho de 2000. Disponível em <http://www.towerofbabel.com/sections/gallery/boschandbruegel/>. Acesso em 03 de janeiro de 2017.
BOSING, Walter. Hieronymus Bosch, C.1450-1516: entre o céu e o inferno. (tradução Casa das Línguas Lda). Benedikt Taschen (volume 11), Taschen, 1991.
FORMENTÃO, Formentão. Mídia e imaginário: a comunicação ideológica em Hieronymus Bosch. Trabalho apresentado no GT de Historiografia da Mídia, do VIII Encontro Nacional de História da Mídia, 2011. Disponível em < http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/8o-encontro-2011-1/artigos/Midia%20e%20imaginario%20a%20comunicacao%20id
eologica%20em%20Hieronymus%20Bosch.pdf/at_download/file>
. Acesso em 05 de fevereiro de 2017.
GOMBRICH, Ernst Hans Josef. A História da arte. (tradução Álvaro Cabral) 4.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
BAUM, Nicholas.“The mysteries of Hieronymus Bosch”(1980). Documentário/1h 15min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=c8BdeQueWYc>. Acesso em 20 de dezembro de 2016.
Conceptual Fine Arts, 500 years anniversary of Hieronymus Bosch. <http://www.conceptualfinearts.com/cfa/2015/08/27/500-years-anniversary-of-hieronymus-bosch-death-calls-for-a-rare-dino-buzzatis-writing/bosch8/>. Acesso em 11 de fevereiro de 2017.
Ex Profundis, The art of Berserk. Disponível em: <http://www.exprofundis.com/the-art-of-berserk/>. Acesso em 11 de fevereiro de 2017.
Film Forum, Hieronymus Bosch “Touched by the Devil” film. <http://filmforum.org/film/hieronymus-bosch-touched-by-the-devil-film>. Acesso em 20 de dezembro de 2016.
The Alchemy Website, Followers of Hieronymus Bosch. <http://www.alchemywebsite.com/bosch/followers.html>. Acesso em 12 de fevereiro de 2017.
WOLFFLIN, Heinrich. Renascença e barroco: estudo sobre a essência do estilo barroco e a sua origem na Itália. São Paulo: Perspectiva, 2012.
[1] Graduanda do Curso Superior Museologia na Universidade Federal de Minas Gerais.