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Segurança jurídica e cumprimento de decisões da corte interamericana de direitos humanos: o caso “Gomes Lund e outros (‘Guerrilha do Araguaia’) vs. Brasil”

RC: 106481
199
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/cumprimento-de-decisoes

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

ABREU, Eduardo João Gabriel Fleck da Silva [1], SANTOS, Marcelo de Oliveira Fausto Figueiredo [2]

ABREU, Eduardo João Gabriel Fleck da Silva. SANTOS, Marcelo de Oliveira Fausto Figueiredo. Segurança jurídica e cumprimento de decisões da corte interamericana de direitos humanos: o caso “Gomes Lund e outros (‘Guerrilha do Araguaia’) vs. Brasil”. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 02, Vol. 02, pp. 78-104. Fevereiro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/cumprimento-de-decisoes, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/cumprimento-de-decisoes

RESUMO

Com frequência, chocam-se os valores da soberania nacional e da obrigatoriedade de cumprimento das obrigações internacionais. Para ilustrar essa situação, toma-se o caso “Gomes Lund e outros (‘Guerrilha do Araguaia’) vs. Brasil”, julgado em 2010, como exemplo, tendo em vista que, além de ainda pendente de cumprimento pelo País, vem tendo a sua decisão contrariada por tribunais nacionais. Diante desse panorama, surge a questão norteadora sobre a possibilidade de o Estado-nação desvincular-se de suas obrigações internacionais sob a alegação de soberania, bem como sobre a existência de critérios que possam balizar a conduta estatal e, com isso, propiciar maior previsibilidade, em atenção à exigência constitucional de segurança jurídica. Busca-se, como objetivo, responder a essa questão a partir de pesquisas de julgados dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário nacional e de doutrina especializada nos campos do Direito Constitucional e dos Direitos Humanos. Nesse percurso, almeja-se compreender a estrutura e as particularidades do Sistema Interamericano, a força coercitiva das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos e as características jurídicas da exigência constitucional de segurança jurídica no comportamento estatal nessa interação entre o direito interno e internacional. Isso feito, poder-se-á concluir acerca da obrigatoriedade do cumprimento das decisões do sistema regional e os efeitos deletérios que a sua inobservância causa para o princípio constitucional da segurança jurídica, bem como será possível buscar caminhos para tentar superar esse impasse.

Palavras-chave: segurança jurídica, Corte Interamericana de Direitos Humanos, diálogos jurisdicionais, caso “Gomes Lund e outros”, ADPF nº 153/DF.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por propósito o estudo da problemática no (des)cumprimento das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos e suas repercussões no campo da segurança jurídica. Com efeito, no sítio eletrônico da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) encontra-se a listagem dos casos em etapa de supervisão do cumprimento da sentença[3], constatando-se que, em relação ao País, ainda há nove casos pendentes de cumprimento de decisão. Contrapõem-se, nesse cenário, os valores da soberania nacional e da obrigação assumida no plano internacional, o que conduz a uma situação de constante imprevisibilidade com relação ao comportamento do Estado-nação diante das decisões da Corte Interamericana.

Exemplo emblemático disso é o caso “Gomes Lund e outros (‘Guerrilha do Araguaia’) vs. Brasil”, iniciado em 1995, com petição de entidades não-governamentais endereçada à Comissão Interamericana, e julgado pela Corte em novembro de 2010. Deveras, ressalta a Corte Interamericana a existência de pontos de sua sentença que não foram cumpridos pelo Brasil. A situação é agravada diante de julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) em sentido contrário ao assinalado pela CIDH. Diante desse panorama, emerge o problema desta pesquisa sobre a possibilidade de o Estado-nação desvincular-se de suas obrigações internacionais sob a alegação de soberania e, em caso negativo, sobre a existência de diretrizes que possam balizar a conduta estatal e, com isso, propiciar maior previsibilidade, em atenção à exigência constitucional de segurança jurídica.

Nesse percurso investigatório, torna-se necessário adentrar o tema da formação do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, fazendo, inclusive, um comparativo entre os sistemas regionais europeu e americano. Nesse ponto, tratar-se-á da motivação histórica para a internacionalização dos direitos humanos e a criação de mecanismo supraestatais de proteção, atentando-se para a relevância dos sistemas regionais.

Em seguida, cuida-se especificamente da organização e funcionamento do sistema interamericano de direitos humanos, compreendendo o funcionamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nesse mesmo tópico, abrange-se a adesão do Brasil ao sistema regional e a sua submissão à jurisdição da Corte.

Após, será feita a apresentação do caso “Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil”, cujo julgamento foi concluído pela Corte Interamericana em 2010. O aresto, como visto, é paradigmático, por explicitar situação de conflito entre a jurisdição interna e a do sistema regional de proteção dos direitos humanos. Para tanto, passa-se a verificar a cizânia entre os entendimentos firmados pela Corte Interamericana e o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153/DF. Em seguida, verifica-se a postura do Superior Tribunal de Justiça diante do exercício do controle de convencionalidade. Ainda, aborda-se o problema sob as perspectivas da obrigatoriedade do cumprimento dos compromissos internacionais e da efetividade das decisões da Corte Interamericana.

Por fim, tem-se por relevante compreender a repercussão dessa celeuma sob a perspectiva da segurança jurídica, analisando o impacto que a controvérsia gera para a estabilidade e previsibilidade do ordenamento jurídico e das condutas estatais e, consequentemente, para a busca de efetiva pacificação social.

2. A CONSTRUÇÃO DA REDE DE PROTEÇÃO DE DIREITOS HUMANOS NO ÂMBITO INTERNACIONAL

Para a análise dos impactos e eficácia das decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no ordenamento jurídico brasileiro, é imprescindível que primeiro se busque a devida compreensão do sistema de proteção internacional do indivíduo em um paradigma pós-moderno. Com efeito, uma primeira concepção do Direito Internacional possuía enfoque unicamente nas relações interestatais, de modo que apenas os Estados figuravam como sujeitos no âmbito das relações internacionais. Todavia, a evolução do sistema de proteção de direitos humanos conduziu, conforme acentuam Accioly; Silva e Casella (2008), a um paradigma pós-moderno em que os indivíduos passaram também a ocupar a posição de sujeitos do Direito Internacional[4].

Essa evolução do sistema de proteção internacional dos direitos humanos tem na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o seu marco histórico mais impactante.  De fato, as crueldades e barbaridades que pautaram a atuação do regime nazista no Estado alemão no período de guerra causaram grande perturbação na comunidade internacional, sendo ainda mais estarrecedor por se tratar de práticas institucionalizadas[5]. Tornou-se premente, então, reconstruir o Direito Internacional sob valor universal da dignidade da pessoa humana, de modo que o indivíduo passou a ocupar posição central, passando a ser verdadeiro sujeito de Direito Internacional. Era imprescindível que a comunidade internacional se organizasse para impedir que tamanho terror se repetisse.

A construção desse sistema internacional dos direitos humanos teve por escopo proteger os indivíduos – notadamente contra os abusos perpetrados pelo seu próprio Estado de origem – com base em sua própria condição humana, de forma absolutamente incondicionada e desvencilhada dos humores sociais, circunstâncias políticas, contingências econômicas ou qualquer outra circunstância que pudesse conturbar determinado ordenamento jurídico. Com isso, busca-se permitir-lhes o desenvolvimento de suas potencialidades, isto é: suas vocações, talentos, atributos, qualidades intrínsecas etc. Assim, é possível compreender com naturalidade a inserção do próprio indivíduo como sujeito de direito internacional, inclusive em posição de destaque.

Nesse processo global de internacionalização dos direitos humanos, é preciso reconhecer que, dadas as particularidades sociais, econômicas, culturais e geográficas, os sistemas regionais ganharam protagonismo na defesa e proteção dos direitos humanos. Conforme pontua Piovesan (2011), o sistema europeu de direitos humanos pode ser considerado o mais consolidado e amadurecido dos sistemas regionais, sendo fundado nos conceitos de proteção dos direitos humanos, da democracia e do Estado de Direito e almejando a reafirmação dos valores fundantes e essenciais da identidade europeia. Sua construção é fruto do trabalho de integração dos Estados europeus em um esforço para impedir que graves violações aos direitos humanos se repetissem. Diferentemente dos demais sistemas regionais, o sistema europeu é marcado por abranger uma região relativamente homogênea no que concerne à observância do regime democrático e dos ditames do Estado de Direito. Além disso, o sistema europeu possui algumas características próprias que o identificam: i) maiores comprometimento e cooperação dos Estados na defesa e proteção dos direitos humanos; ii) os litígios são marcados pela temática dos direitos civis e políticos, inspirado por um ideal liberal individualista; iii) concessão de amplo acesso de indivíduos, grupos de indivíduos e ONGs à Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH); e iv) acentuado impacto das decisões da Corte Europeia em relação aos Estados (PIOVESAN, 2011).

O sistema europeu contrasta com as características do sistema interamericano, que, com efeito, não possui a mesma rede de cooperação entre os Estados, bem como não se encontra no interior destes um elevado grau de respeito aos direitos humanos. Como consequência, aponta Piovesan (2011) que o sistema interamericano possui fragilidades e insuficiências em razão desse menor comprometimento dos Estados com os direitos humanos. Como decorrência desse menor grau de comprometimento, os casos que chegam à Corte Interamericana acabam por versar sobre graves violações a direitos civis. Ademais, cabe ressaltar que o acesso à Corte Interamericana é mais restrito, conforme art. 61.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (OEA, 2009), bem como suas decisões, embora cada vez mais relevantes em razão da crescente credibilidade do órgão, ainda estão distantes do impacto daquelas proferidas pela sua congênere europeia.

Com relação ao sistema interamericano, torna-se relevante o aprofundamento do estudo de suas características e funcionamento, bem como proveitosa a análise da situação do Brasil em relação ao sistema regional, a fim de compreender a configuração jurídica da proteção dos indivíduos nessa esfera. É o que se passa a expor.

3. DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E A ADESÃO DO ESTADO BRASILEIRO AO SISTEMA REGIONAL

Logo após o final da Segunda Guerra Mundial, em abril de 1948, foi elaborada, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, notabilizando-se também por ser anterior à própria Declaração Universal de Direitos Humanos no âmbito da Organização das Nações Unidas. Posteriormente, sobreveio o Pacto de San José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, que veiculou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (OEA, 1969), que passou a ser o documento central do sistema regional americano de proteção dos direitos humanos (PIOVESAN, 2011).

A Convenção Americana (OEA, 1969) entrou em vigor no plano internacional em 18 de julho de 1978 e possui extenso rol de direitos humanos voltados, direta ou indiretamente, à proteção da dignidade humana. Citem-se, exemplificativamente, o direto à vida (art. 4º), à integridade (art. 5º), à liberdade (art. 7º), às garantias judiciais (art. 8º), à legalidade (art. 9º), à honra e à dignidade (art. 11), ao nome (art. 18), à nacionalidade (art. 20), à propriedade privada (art. 21), aos direitos políticos (art. 23), dentre outros.

A par disso, o referido diploma normativo internacional também impõe a obrigação dos Estados-partes de respeitarem os direitos reconhecidos na Convenção (art. 1º), bem como de adotarem “as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades” (art. 2º). Merece destaque, ainda, a instituição da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos como órgãos competentes, no âmbito do sistema de proteção regional, para conhecer dos casos que digam respeito ao (des)cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados Partes (artigo 33), constando do diploma internacional, ainda, a disciplina da organização, funcionamento, competências e procedimentos desses órgãos (arts. 34 e seguintes).

Visto isso, cabe ressaltar que, em 1992, o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tendo-a promulgado e publicado em âmbito interno por meio do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992 (BRASIL, 1992). Posteriormente, em 1998, o Brasil, por meio do Decreto Legislativo nº 89, de 30 de dezembro de 1998 (BRASIL, 1998), e do Decreto nº 4.463, de 08 de novembro de 2002 (BRASIL, 2002), declarou a aceitação da competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos termos do art. 62 do Pacto de San José da Costa Rica (OEA, 1969), a partir dos fatos ocorridos após 10 de dezembro de 1998[6].

Alerte-se, contudo, que o cidadão não possui acesso direto à Corte Interamericana. Conforme estabelece o art. 61.1 da Convenção Americana, “Somente os Estados Partes e a Comissão têm direito de submeter caso à decisão da Corte” (OEA, 1969). Ainda, previu-se que a Corte apenas poderia atuar após esgotados os procedimentos no âmbito da Comissão Interamericana, que se encontram previstos nos arts. 48 a 50 da Convenção. Desse modo, ao indivíduo em situação de violação de direitos humanos é aberta a via do sistema de proteção interamericana contra o Estado violador, sendo que sua postulação deverá ser encaminhada para a Comissão Interamericana, consoante dispõe o art. 44 do Pacto de San José da Costa Rica. Anote-se, outrossim, que a Convenção também admitiu a postulação por parte de grupo de pessoas ou entidade não-governamental legalmente reconhecida (OEA, 1969).

Cumpre ressaltar que, conforme a Convenção (OEA, 1969), para que a petição seja conhecida pela Comissão, é imprescindível que o indivíduo tenha esgotado os recursos no âmbito da jurisdição interna do Estado Parte[7], devendo ser observados, também, os outros requisitos procedimentais, formais e temporais (art. 46 da Convenção Americana). Após uma análise inicial, poderá a comissão declarar a petição inadmissível, quando não preencher os requisitos de admissibilidade (art. 47). De outro lado, uma vez recebida a petição, o art. 48 da Convenção Americana prevê que a Comissão requisitará informações do Governo do Estado Parte apontado como violador dos direitos previstos no tratado e, então, realizará um prévio juízo perfunctório para constatar se subsistem os motivos da petição. A partir disso, poderá determinar o arquivamento da petição, caso não subsistam motivos para dar-lhe prosseguimento (art. 48.1.b); declarar sua inadmissibilidade (art. 48.1.c); ou, caso verifique a existência de motivos, a Comissão passará ao exame do assunto, inclusive podendo proceder a uma investigação, que deverá contar com a colaboração dos Estados interessados (art. 48.1.d).

Destaque-se que a Convenção (OEA, 1969) estimula a busca por soluções consensuais; todavia não havendo sucesso na busca de uma solução amistosa, compete à Comissão emitir um relatório com os fatos e suas conclusões (art. 50). Esse relatório será encaminhado aos Estados interessados que possuirão o prazo de três meses para solução da questão (art. 51). Nesse prazo, tanto a Comissão quanto o Estado Parte interessado poderão levar o caso ao conhecimento da Corte Interamericana.

Reitere-se que a submissão de casos à Corte Interamericana é faculdade apenas atribuída ao Estado Parte ou à Comissão (art. 61). Sem embargo, resta reconhecido o direito de as vítimas continuarem atuando no curso do processo junto à Corte, de modo que podem apresentar seus próprios argumentos e provas também nessa fase procedimental, conforme previsto no art. 25 do Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH, 2009). Caberá à Corte, então, decidir sobre a alegada violação e, se o caso, determinará a adoção das medidas que assegurem o gozo do direito ou liberdade obstados pelo Estado, assim como que sejam reparadas as consequências decorrentes da violação, inclusive por meio de pagamento de indenização à vítima, tal como estabelece o art. 63 da Convenção (OEA, 1969).

É relevante destacar que a decisão da Corte não consiste em mera admoestação ou recomendação, mas sim de caráter obrigatório e vinculante, devendo ser imediatamente cumprida. Inclusive, no caso de condenação ao pagamento de indenização, o art. 68.2 da Convenção (OEA, 1969) prevê que a sentença deverá ser executada no âmbito interno do Estado Parte condenado, segundo sua legislação interna. Conforme salienta Flávia Piovesan: “a decisão da Corte tem força jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento”, de tal forma que “Se a Corte fixar uma compensação à vítima, a decisão valerá como título executivo, em conformidade com os procedimentos internos relativos à execução de sentença desfavorável ao Estado” (PIOVESAN, 2008, p. 259-260).

Tem-se, portanto, que ao aderir à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e, conforme procedimentos próprios, tê-la incorporado ao direito interno, bem como após e declarar de reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, submetendo-se à sua jurisdição, o Brasil, no exercício de sua soberania, impôs para si uma obrigação internacional. Comprometeu-se o País, destarte, em observar o padrão mínimo de proteção de direitos previstos na Convenção, admitir a atuação efetiva dos órgãos que compõe o sistema regional, bem como cumprir suas decisões e sanções[8].

4. OS PROBLEMAS EM TORNO DA EFICÁCIA DAS DECISÕES DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: O CASO “GOMES LUND E OUTROS (GUERRILHA DO ARAGUAIA) VS. BRASIL” E O CONFLITO COM O DIREITO INTERNO (LEI DA ANISTIA – LEI Nº 6.683/1979)

4.1 APRESENTAÇÃO DO CASO E DA SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Em que pese a configuração normativa do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, inclusive com sua incorporação ao direito interno brasileiro, as questões atreladas ao (des)cumprimento das decisões da Corte recorrentemente colocam em debate a real eficácia desse sistema de proteção do indivíduo. Com efeito, o art. 68 da Convenção Americana é peremptório ao prever o compromisso dos Estados-partes em cumprir as decisões da Corte (OEA, 1969). O art. 65 do mesmo diploma normativo dispõe, por sua vez, que a Corte supervisionará o cumprimento de suas decisões e indicará, em relatório enviado à Assembleia-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), os casos que não forem cumpridos pelos Estados violadores, inclusive com as recomendações pertinentes.  Consigne-se, inclusive, que, no sítio eletrônico da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é possível consultar os “casos em etapa de supervisão de cumprimento de sentença”[9].

Dentre os arestos pendentes de cumprimento, encontra-se o caso “Gomes Lund y otros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil”, com inúmeras providências pendentes de cumprimento pelo Brasil, para o qual se passará a conferir especial análise. O caso “Gomes Lund” foi submetido à Comissão Interamericana por petição formulada, em 1995, pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pela Human Rights Watch/Americas, ambas entidades não-governamentais. Conforme constou do relatório, a demanda tem por objeto:

responsabilidade [do Estado] pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil (…) e camponeses da região, (…) resultado de operações do Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar do Brasil (1964-1985) (CIDH, 2010).

Nesse panorama, a ausência de persecução penal para punição dos responsáveis e a falta de efetividade nos instrumentos internos para obter informações sobre o desaparecimento das vítimas, especialmente diante da vigência da Lei Federal nº 6.683/1979 (conhecida como “Lei da Anistia”), foram questões submetidas à apreciação dos órgãos interamericanos de proteção de direitos humanos.

Com efeito, a Lei Federal nº 6.683/1979 anistiou os denominados crimes políticos e conexos praticados durante o regime ditatorial no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 (BRASIL, 1979), na contramão da responsabilização dos responsáveis pelas graves violações apuradas no caso “Guerrilha do Araguaia”. A propósito, cabe destacar que o efeito da anistia é previsto no art. 107 do Código Penal (BRASIL, 1940) como causa de extinção da punibilidade. Trata-se de casos em que o Estado, “por razões de clemência, política, social etc., esquece um fato criminoso, apagando seus efeitos penais (principais e secundários)” (CUNHA, 2021, p. 411). Deveras, não se ignora que a gravidade dos fatos praticados no regime ditatorial gera substancial resistência à legitimação da Lei de Anistia, tanto no tocante ao sentimento de impunidade dos responsáveis pelas violações aos direitos humanos, quanto pelos óbices ao direito à verdade de fatos que o Estado escolhe “apagar” e não promover a responsabilização.

De um lado, o escopo da Lei de Anistia era justamente trazer determinado grau de pacificação social em um conturbado contexto de transição do regime ditatorial para o democrático, como uma espécie de “acordo político” para que a passagem ao Estado Democrático de Direito pudesse se concretizar. Por outro lado, segundo assentado pela Corte Interamericana, as condutas anistiadas configuravam atos gravíssimos, tidos, inclusive, como crimes contra a humanidade[10], em razão das sérias e sistemáticas violações perpetradas aos direitos humanos. Assim, a crítica que se faz é que, ao não apurar tais violações, haveria uma perpetuação da impunidade e do sentimento de injustiça, conduzindo a um movimento oposto ao da pacificação pretendida originalmente por meio da anistia.

Com efeito, a busca pela verdade e pela responsabilização dos fatos violadores dos direitos humanos praticados à época da ditadura militar inserem-se na denominada “justiça de transição”. A passagem de um regime autoritário para o democrático impõe que a memória dos fatos seja preservada, com a finalidade de seja firmado sério compromisso jurídico, político e social para que esses eventos violadores dos direitos humanos jamais voltem a ocorrer. A ideia de segurança em torno da garantia de que os indivíduos estão, finalmente, a salvo de tais abusos e arbitrariedade do regime anterior perpassa necessariamente pela reparação efetiva das vítimas e responsabilização dos culpados[11]. Consequentemente, tem-se que a Corte Interamericana firmou entendimento no sentido de que afrontam a Convenção Americana as anistias concedidas a fatos que violam os direitos humanos e impedem a justiça de transição[12].

No caso brasileiro da “Guerrilha do Araguaia” (Gomes Lund), a sentença proferida pela Corte Interamericana, em 24 de novembro de 2010, declarou a incompatibilidade da Lei de Anistia com a Convenção Americana, determinando que aludida lei não mais deveria impedir a persecução penal para responsabilização dos culpados pelos graves delitos noticiados. Declarou, ainda, a responsabilidade do Estado brasileiro pelo desaparecimento forçado de pessoas, o que representou “violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal” (CIDH, 2010). Assentou a Corte, outrossim, que o Brasil “descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, (…) como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos” (CIDH, 2010)[13].

O Brasil, então, foi condenado ao cumprimento de inúmeras obrigações, dentre elas: reparar os lesados; promover efetiva investigação, julgamento e, se o caso, punir os responsáveis; bem como empreender esforços para determinar o paradeiro das vítimas. Determinou a Corte, ainda, que fossem adotadas garantias de não repetição dos fatos ocorridos, tais como o ensino de direitos humanos no âmbito das Forças Armadas, a tipificação do delito de desaparecimento forçado, o amplo acesso e sistematização de documentos oficiais, assim como com a criação de uma Comissão da Verdade.

4.2 DO CONTRASTE COM A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 153/DF

Ocorre, entretanto, que meses antes da prolação da sentença pela Corte Interamericana, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153/DF (BRASIL, STF, 2010), assentou posicionamento oposto, ou seja, declarou a validade da Lei da Anistia no ordenamento jurídico brasileiro. O argumento central foi no sentido de adotar uma postura de deferência às circunstâncias históricas em que a Lei da Anistia foi editada, na toada da formatação de um pacto conciliatório que permitiria a transição do regime autoritário para o regime democrático. Ressaltou-se, também, o caráter bilateral da anistia, ou seja, a circunstância de ter beneficiado indistintamente pessoas de quaisquer vieses ideológicos (tanto os agentes repressores do regime militar quanto os opositores desse regime).  E, sobre esse pacto firmado naquele contexto histórico, o Poder Judiciário não poderia analisar sob a ótica do atual contexto social e político, cujo locus de discussão seria o Legislativo.

Relevante frisar que a bilateralidade da anistia consistiu na fundamentação trazida pelo Ministro Celso de Mello para afastar a alegação de que a anistia nesses moldes se enquadraria em inúmeros precedentes da Corte Interamericana de Diretos Humanos que reconheceu, em tais hipóteses, configurada a violação à Convenção Americana de Direitos Humanos. Argumentou o Ministro que não se trataria de uma lei de “auto-anistia”, vale dizer: a lei em questão não teria o intuito de institucionalizar a impunidade dos agentes do regime militar, mas sim de promover um acordo conciliatório para uma passagem suave para a democracia no que denominou de anistia de “mão-dupla” ou “dupla-via”.

Em um exercício de reflexão sobre as possíveis variáveis, caberia indagar se a solução do Supremo Tribunal Federal seria a mesma caso a decisão da Corte Interamericana tivesse sido proferida antes. De qualquer forma, tem-se objetivamente que o julgamento da ADPF nº 153/DF conflita com a posterior sentença prolatada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com isso, torna-se relevante questionar quais as reais implicações das decisões da Corte Interamericana no ordenamento jurídico brasileiro e se, de fato, é possível vislumbrar a sua efetividade.

4.3 O PROBLEMA DA EFETIVIDADE DA DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA E A POSTURA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: A SUPRALEGALIDADE DA CONVENÇÃO AMERICANA E A AUSÊNCIA DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

Cumpre destacar que o Superior Tribunal de Justiça vem sendo instado a analisar a validade da Lei de Anistia sob o prisma do controle de convencionalidade. Deveras, é indene de dúvidas que se consolidou no Brasil o entendimento no sentido de que a Convenção Americana de Direitos Humanos foi incorporada ao direito interno com o status de norma supralegal, ou seja, com hierarquia inferior à Constituição, mas superior à legislação ordinária. O Supremo Tribunal Federal tratou da controvérsia no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343/SP, julgado em 03/12/2008 (BRASIL, STF, 2008), assentando o entendimento da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos que não incorporados nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição da República (BRASIL, 1988), incluído pela Emenda Constitucional nº 45/2004 (BRASIL, 2004). Aliás, a posição já havia sido adotada no Habeas Corpus nº 90.172/SP, julgado em 05/06/2007 (BRASIL, STF, 2007), no entrementes entre o início e o término do julgamento do citado Recurso Extraordinário. Desse modo, a partir do entendimento do Supremo Tribunal Federal, há duas espécies de tratados de direitos humanos: i) os tratados incorporados com observância do procedimento especial e do quórum previstos no art. 5º, § 3º, da Constituição, que gozarão de hierarquia constitucional; e ii) os tratados não incorporados pelo rito do art. 5º, § 3º, da Lei Maior, que terão estatura supralegal, mas infraconstitucional (BRASIL, STF, 2007).

A despeito da tese que defende a recepção dos tratados anteriores à reforma da Emenda Constitucional nº 45/2004 com hierarquia constitucional, acabou por prevalecer o entendimento no sentido de que somente os tratados que viessem a ser aprovados após a Emenda e com o rito e quórum especiais passariam a ter estatura constitucional. Com isso, restou reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, introduzida no País em 1992, teria hierarquia supralegal, de modo que os seus termos prevalecem sobre a legislação infraconstitucional. Como consequência desse entendimento, abriu-se a via do controle de convencionalidade das leis, destacando-se que o art. 105, III, “a”, da Constituição da República atribuiu ao Superior Tribunal de Justiça um papel proeminente, na medida em que cabe à Corte o julgamento de recurso especial nos casos em que o acórdão recorrido contrariar tratado internacional (BRASIL, 1988).

Tem-se, destarte, que ao STJ cabe, quando do julgamento do recurso especial, realizar o cotejo de validade de uma lei ordinária (no caso da Lei de Anistia) com a norma de hierarquia superior (Convenção Americana). Ocorre que, em recentes julgados, o Superior Tribunal de Justiça tem se esquivado de realizar o juízo de convencionalidade da Lei de Anistia, sob a fundamentação de que cabe ao Supremo Tribunal Federal conferir os contornos ao cumprimento da decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Guerrilha do Araguaia”. Ademais, ao invocar a necessidade de harmonizar a submissão à competência jurisdicional da Corte Interamericana ao ordenamento jurídico pátrio, em prol da soberania nacional, entende que esse posicionamento não traduz resistência ao exercício do juízo de convencionalidade ou recalcitrância em cumprir a decisão da Corte Interamericana (BRASIL, STJ, 2021 e 2019)[14].

Note-se que a fundamentação do Superior Tribunal de Justiça invoca o termo fluído da necessidade de harmonização da submissão da jurisdição internacional com o ordenamento interno, bem como a preservação da soberania nacional. É evidente que há um conflito entre a jurisdição interna e internacional, todavia o Superior Tribunal de Justiça não traz qualquer parâmetro objetivo e claro para que essa harmonização ocorra, alegando que tal tarefa encontra-se reservada ao Supremo Tribunal Federal. Desse modo, mantém-se a situação de tensão entre a jurisdição interna e a internacional e subsiste a instabilidade decorrente do descumprimento da sentença da Corte Interamericana.

4.4 DA OBRIGATORIEDADE DE CUMPRIMENTO DOS ACORDOS CELEBRADOS NO PLANO INTERNACIONAL E DA FORÇA COERCITIVA DAS DECISÕES DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Com efeito, é possível constatar que o ordenamento jurídico confere critérios para a solução desse conflito. Em primeiro lugar, aponte-se que o Brasil internalizou a Convenção Americana e reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana, o que, por lógica, implica a obrigatoriedade do cumprimento de suas decisões. Em segundo lugar, é cediço que, uma vez constatado o conflito entre a norma legal interna e a de tratado de direitos humanos, o controle de convencionalidade impõe a prevalência das disposições deste último, dada a sua hierarquia supralegal[15]. Em terceiro lugar, o art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23/05/1969, promulgada pelo Decreto nº 7.030/2009 (BRASIL, 2009), é peremptório no sentido de que “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”. Todavia, o Superior Tribunal de Justiça se esquivou de aprofundar o debate sobre o tema e de promover o controle de convencionalidade, no aguardo de posicionamento definitivo do Supremo Tribunal Federal acerca de tema tão sensível a estabilidade política e social, especialmente diante da pendência de julgamento de embargos de declaração na ADPF nº 153/DF, bem como da tramitação da ADPF nº 320/DF, de mesmo objeto.

Embora ainda exista um relevante grau de tensão entre direito interno e direito internacional em decorrência do atual descumprimento pelo Estado brasileiro da decisão da Corte Interamericana, parece descabido pretender afirmar que, dada a ausência de poder coativo para o cumprimento, o sistema de proteção interamericano de direitos humanos seria inefetivo e sujeito apenas ao voluntarismo do Estado Parte envolvido. Isso porque, mesmo nos casos em que subsistem problemas de cumprimento, as sentenças da Corte Interamericana produzem um importante efeito de servir de contraponto, embasando, dentro de uma ação de legitimação procedimental argumentativa, postulações perante os Poderes Judiciário e Legislativo visando concretizar o cumprimento dessas decisões no âmbito interno[16].

Nesse sentido, repise-se que a ADPF nº 153/DF se encontra pendente de julgamento de embargos de declaração, com pedido de efeitos infringentes, oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal poderá revisitar a análise do tema, passando a ter o ônus de enfrentar os fundamentos da decisão da Corte Interamericana e buscar a solução que atenda aos ditames da sentença internacional (a questão, repise-se, também é objeto da ADPF n.º 320/DF[17]).

De todo modo, é inegável que há um cenário conflituoso e longe de ser pacificado, com efeitos diretos na segurança jurídica, ao se vislumbrar determinado grau de tensão no tocante ao acatamento das decisões das Cortes Interamericana pelo ordenamento jurídico interno, especialmente à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça acima analisada em relação à Lei da Anistia.

É imperioso, portanto, que o cumprimento das decisões da Corte Interamericana e a observância dos tratados internacionais sejam também analisados sob o prisma da segurança jurídica, conforme se passará a examinar no tópico seguinte. É cediço que o debate da segurança jurídica contribui para que se reconheça uma imperiosa necessidade de que o Estado brasileiro cumpra as decisões da Corte Interamericana e realize o efetivo juízo de convencionalidade.

5. A SEGURANÇA JURÍDICA E O CUMPRIMENTO DAS DECISÕES DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: A NECESSIDADE DE PREVISIBILIDADE DO COMPORTAMENTO ESTATAL

A noção de segurança jurídica carrega em si uma pluralidade de aspectos. Embora seja possível a análise desse instituto jurídico sob inúmeras óticas, passa-se ao exame da segurança jurídica como valor e norma-princípio estruturante do Estado Democrático de Direito, assim como de suas acepções objetiva e subjetiva, sua relação com à dignidade da pessoa humana e, enfim, sua importância para a operabilidade do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.

A segurança jurídica constitui princípio constitucional que veicula as noções de estabilidade e previsibilidade do ordenamento jurídico. Trata-se de norma de elevado teor axiológico e semântico, razão pela qual assinalam Carvalho (2003) e Ávila (2021) tratar-se de verdadeiro sobreprincípio, cujo conteúdo normativo acaba influindo na interpretação e aplicação de outros princípios e das regras[18]. Ainda, embora não se trate de princípio expresso no corpo da Constituição, efetiva-se “pela atuação de princípios, tais como o da legalidade, da anterioridade, da igualdade, da irretroatividade, da universalidade da jurisdição e outros mais” (CARVALHO, 2003).

Cabe destacar que uma visão tradicional de segurança jurídica assinala a existência de dois elementos estruturantes, a saber: a previsibilidade (que alguns preferem tratar como certeza) e a estabilidade (ÁVILA, 2019). A noção de previsibilidade (ou certeza) está relacionada à possibilidade de conhecer as disposições normativas e poder antever as consequências estabelecidas para determinada conduta. Por seu turno, a estabilidade tem por escopo evitar a surpresa, de tal modo que busca evitar que fatos consolidados no passado possam ser atingidos por regras ou entendimentos que lhe sejam posteriores.

A segurança jurídica, nesse panorama, surge com uma carga axiológica estruturante do próprio Estado Democrático de Direito, pois, nesse sentido, a estabilidade e previsibilidade jurídico-institucional são concebidos como valores almejados pelos indivíduos que pretendam exercer suas potencialidades humanas na esteira de uma sociedade livre e justa, bem como relevantes para o fortalecimento do sistema de proteção dos direitos fundamentais[19]. É evidente que a dignidade da pessoa humana revelada pelo princípio da liberdade apenas poderá ser exercida de forma plena caso os indivíduos possuam confiança no ordenamento jurídico, seja no sentido da certeza do direito e de sua aplicação, da garantia de suas posições jurídicas e da proteção de sua esfera individual, bem como da previsibilidade das consequências jurídicas da prática determinados atos e estabilidade das instituições estatais.

Conforme assinala Ávila (2019), a segurança jurídica como norma-princípio se caracteriza por um comando ao Estado, em todos os seus ramos (Legislativo, Executivo e Judiciário), para que busquem proporcionar confiabilidade, calculabilidade e cognoscibilidade da ordem jurídica. Sobreleva destacar, ademais, que a dignidade da pessoa humana está intrinsecamente ligada ao valor da segurança jurídica. Nesse sentido, assinala Sarlet (2005) que não há se falar em dignidade em um contexto de tamanha instabilidade jurídica que não conceda ao indivíduo um mínimo de tranquilidade e segurança ou mesmo que não permita a confiança nas instituições sociais e estatais[20].

Delineado, assim, os contornos axiológicos da segurança jurídica, é possível vislumbrar sua configuração na Constituição como norma-princípio, por encerrar comandos aos sujeitos para que a concretizem em sua maior extensão de acordo com determinadas condições fáticas e jurídicas. Ademais, a segurança jurídica também pode ser examinada em seus aspectos objetivo e subjetivo. Segundo leciona Clève (2005), no tocante ao aspecto objetivo, esse princípio se relaciona com a previsibilidade e certeza do direito e, em relação ao aspecto subjetivo, diz respeito à proteção da confiança dos cidadãos[21].

Trazidos esses contornos da segurança jurídica, é mister consignar que, no contexto constitucional brasileiro, ao Poder Judiciário foi confiada a tarefa de proteção dos direitos fundamentais contra os avanços ilegítimos dos Poderes Legislativo e Executivo, bem como de ameaças e violações perpetradas por particulares. O Judiciário assumiu, então, o múnus de atuar como a última trincheira do cidadão, tendo a missão de salvaguardar os direitos fundamentais. Pelas suas características, o Poder Judiciário atua como um terceiro inerte e equidistante que é interposto às partes em conflito, cabendo-lhe substituir os contendores na solução do litígio, bem como aplicar a norma jurídica ao caso concreto, decidindo-o com a marca da definitividade e, com isso, pacificando as relações sociais.

Entretanto, a análise dos julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça no caso da validade da Lei Anistia revelaram a falta de uma preocupação com a interlocução entre o ordenamento interno e a Convenção Americana, criando uma situação de insegurança em relação à efetiva aplicação das normas internacionais no País, colocando em risco a confiança no País tanto em relação ao cumprimento suas obrigações internacionais (pacta sunt servanda), como também no seu comprometimento com a proteção dos direitos humanos[22]. Vislumbra-se, certa vulneração da segurança jurídica na ausência de diálogo com a decisão da Corte Interamericana no caso da “Guerrilha do Araguaia” bem como a esquiva de realizar o controle de convencionalidade da legislação interna em face do Pacto de San José da Costa Rica (OEA, 1969) nessa questão[23].

Nesse ponto, sobreleva destacar que após intenso debate doutrinário acerca da razão da obrigatoriedade das normas internacionais, é possível conciliar as correntes do voluntarismo e do objetivismo para a correta compreensão acerca do fundamento do direito internacional público. No caso em análise, é forçoso reconhecer que o Pacto de San José da Costa Rica (OEA, 1969) e a jurisdição da Corte Interamericana são obrigatórios, vinculantes e cogentes tanto em razão da concordância livre do Estado brasileiro em aderir ao tratado e reconhecer a jurisdição do órgão interamericano, quanto pela própria importância dos valores e bens jurídicos protegidos de importância fulcral para as próprias relações internacionais[24].

Ora, não é demais repisar que o Estado brasileiro voluntariamente aderiu à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no intuito de se conferir um patamar mínimo de proteção regional aos indivíduos, reconhecendo, inclusive, a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Embora, de fato, inexista um poder de coerção externo que induza o cumprimento forçado das obrigações internacionais do Estado brasileiro, é cediço que a resistência em conferir efetivo cumprimento à determinação da Corte Interamericana gera determinado grau de tensão e instabilidade na própria ordem interna que vai de encontro à pacificação social buscada pelo princípio da segurança jurídica em questão tão sensível como a responsabilização e busca da verdade pelos crimes contra a humanidade perpetrados durante a ditadura militar.

Mais do que isso, em um contexto de pluralismo jurídico, os sistemas jurídicos passam a ter uma interação recíproca pautada por uma coordenação funcional. Com isso, busca-se conseguir promover aproximações e compatibilização (QUEIROZ, 2009), sem que cada sistema perca as suas “individualidades”, mantendo-se, dessa forma, distintos, embora parcialmente independentes e sobrepostos (SANTOS, 2019). Nesse contexto, tem-se que o pluralismo jurídico demanda um engajamento crítico, de modo que os diversos órgãos jurisdicionais, conquanto não estejam vinculados por uma relação hierárquica, devem ao menos levar em consideração os diversos entendimentos e experiências dos demais órgão pertencentes aos diversos níveis (internacional, regional, comunitário ou mesmo de outras nações), notadamente quando se trata da interpretação dos direitos fundamentais (SARMENTO, 2016).

Nessa relação entre direito interno e o direito internacional, ressalta Acosta Alvarado (2016) o anacronismo do conflito das teorias monista e dualista de solução dos conflitos entre normas nacionais e internacionais. Com a proliferação de fontes normativas internacionais, torna-se cada vez mais complicado afirmar a existência de um ordenamento jurídico único e articulado, em que as normas internas e internacionais comporiam compartimentos estanques e sem qualquer espécie de interação ou intersecção. Do fim desse antagonismo entre as vetustas teorias, emerge a noção de pluralismo constitucional, em que o direito interno e o direito externo são vistos como ordenamentos jurídicos diferentes, mas que compartilham diversos pontos de intersecção e entretêm uma relação de heterarquia (isto é: ausência de hierarquia, inexistência de subordinação). Para que haja esse “acoplamento” das ordens interna e internacional, é necessário estabelecer princípios que o disciplinem e levem em consideração os objetivos de cada ordenamento (ACOSTA ALVARADO, 2016).

Colocadas essas premissas, defende Acosta Alvarado que as normas internacionais possuem aplicação direta e sua interpretação e aplicação devem ocorrer de forma sistemática, respeitando-se o princípio da subsidiariedade, o devido processo e os direitos humanos. A aplicação do direito, seja interno ou internacional, deve ter por finalidade a proteção de valores fundamentais, como é o caso dos direitos humanos, de modo que as decisões acerca dessas matérias devem sempre ser norteadas pela “maior e melhor proteção possível desses valores comuns” (ACOSTA ALVARADO, 2016, p. 33). Nessa relação entre as ordens jurídicas interna e internacional, cabe ao intérprete atentar-se à sua necessária interação, harmonizando os comandos normativos e buscando dar concretude às finalidades compartilhadas. Significa dizer, portanto, que nada impede que determinado ato normativo seja compatível com a Constituição nacional, mas esteja em conflito com normas internacionais de proteção dos direitos humanos, o que também deve ser compreendido como questão prejudicial ao mérito.

A partir do momento em que o Estado brasileiro adere a um conjunto de valores e se compromete a protegê-los, instaura-se a legítima expectativa de que seu comportamento pautar-se-á em conformidade com esse compromisso. Há a justa exigência, de matiz inclusive constitucional, de previsibilidade da ação estatal quando posta em questão a defesa desses valores incorporados. Desse modo, o princípio da segurança jurídica não pode ser negligenciado na análise do tema, especialmente pelas Cortes Superiores pátrias que, como visto, são instadas a se manifestarem sobre a celeuma e cujas decisões orientam as instâncias inferiores.

Os imperativos de estabilidade e, especialmente, de previsibilidade demandam que os Estados-partes – e notadamente os tribunais nacionais, enquanto órgãos vinculados extrinsecamente à ordem jurídica – observem as decisões internacionais, harmonizando a interpretação e aplicação da legislação interna com as normas internacionais e dando cumprimento a determinações dos tribunais internacionais responsáveis por interpretar e aplicar essas normas. Sem essa necessária vinculação, jamais será possível antever como será o comportamento estatal diante de decisões de tribunais internacionais aos quais o País voluntariamente se vinculou.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da deflagração do conflito entre a jurisdição exercida pela Corte Interamericana e o entendimento externado pela jurisdição nacional, notadamente pelo Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, levando ao reconhecimento, por parte do Sistema Regional, da pendência de cumprimento da decisão, apresenta-se o problema acerca da possibilidade de o Estado-nação desvincular-se de suas obrigações internacionais sob a alegação de soberania e, em caso negativo, sobre a existência de diretrizes que possam balizar a conduta estatal e, com isso, propiciar maior previsibilidade, em atenção à exigência constitucional de segurança jurídica.

Deveras, a evolução da compreensão dos direitos humanos no pós-Segunda Guerra acarretou a instituição de sistemas internacionais e regionais de sua proteção, cujo escopo é evitar que as barbáries ocorridas no passado possam voltar a ocorrer. Trata-se de proteger bens jurídicos universais e transnacionais e direta ou indiretamente vinculados à noção de dignidade da pessoa humana. Ocorre que, diante das peculiaridades locais, os sistemas regionais ganharam proeminência.

Especificamente no continente americano, sobreveio a Convenção Americana sobre Direitos Humanos como documento central do sistema regional. Incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro em 1992, obrigou-se o País, de forma voluntária, a cumpri-la, adaptando sua legislação e políticas institucionais aos preceitos nela estabelecidos. Posteriormente, em novo ato de soberania, o Brasil reconheceu, em 1998, a jurisdição da Corte Interamericana para julgamento de casos que envolvessem violações aos direitos previstos na Convenção, comprometendo-se a observar e cumprir suas decisões.

De fato, ainda que as decisões da Corte Interamericana não sejam em todos os casos de pronto e espontaneamente inteiramente cumpridas, certo é que suas manifestações possuem repercussões social, política e jurídica, embasando movimentos e postulações que traduzem verdadeira força de coerção, almejando compelir o Estado Parte a cumprir com suas obrigações internacionais e a adaptar seu ordenamento e suas instituições.

Nesse sentido, observa-se que o conflito entre as jurisdições, com decisões internas que divergem da posição da Corte Interamericana, contribui para um estado de instabilidade e imprevisibilidade, em prejuízo do sobreprincípio da segurança jurídica e, assim, em sentido contrário à necessidade de pacificação social em tema que, sem dúvida, se mostra tão sensível à sociedade, notadamente quando percebido como um dos elementos de justiça de transição do regime militar para democracia. Justamente em razão da ausência de pacificação, os tribunais superiores vêm sendo novamente instados a se manifestar sobre o tema.

Em virtude disso, é premente que as novas decisões da jurisdição interna abordem a problemática sob os prismas da obrigatoriedade do cumprimento das decisões da Corte Interamericana, da prevalência das normas de proteção dos direitos humanos e da impossibilidade de descumprir um compromisso internacional com base em normas internas. Em outros termos, não é dado ao Estado brasileiro, a pretexto do exercício de soberania, descumprir decisões da Corte Interamericana e deixar de observar normas protetivas dos direitos humanos, uma vez que essas normas internacionais vinculam o Estado tanto quanto aquelas pertinentes ao ordenamento jurídico interno.

Somente mediante esse necessário diálogo jurisdicional e observância das normas internacionais de direitos humanos, dentro desse contexto de pluralismo jurídico e interação e harmonização entre direito interno e direito internacional, será possível trazer previsibilidade não apenas ao caso telado, mas também aos futuros que se apresentarem. É necessário que a autoridade nacional dê aplicação direta às normas internacionais, garantindo que os valores fundamentais comuns entre a ordem interna e internacional sejam concretizados, bem como reconheça e dê cumprimento às decisões da Corte Interamericana, a cuja jurisdição aderiu e reconheceu. Sem isso, essas decisões da jurisdição interna, ao ignorarem o diálogo com a Corte Interamericana, não solucionarão efetivamente as celeumas e não darão a resposta esperada e adequada, mantendo a crise entre os sistemas de justiça.

REFERÊNCIAS

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APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

3. Listagem dos casos em etapa de supervisão do cumprimento da sentença encontra-se disponível no sítio eletrônico da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/casos_en_supervision_por_pais.cfm. Acesso em 01 dez. 2021.

4. Nesse sentido, Hildebrando Accioly, Nascimento e Silva, e Paulo Borba Casella destacam que: “Dois enfoques existem na determinação dos sujeitos do direito internacional: a clássica, que em sua concepção original atribuía a noção de sujeito do direito internacional apenas aos estados; e a individualista, realista ou pós-moderna, para a qual o destinatário do direito internacional, como aliás, de todos os ramos do direito, só pode ser o indivíduo. (…) A caracterização da condição de sujeito de direito internacional teve considerável evolução nas últimas décadas. Ponto central dessa evolução é a condição do indivíduo, no plano internacional” (ACCIOLY, SILVA e CASELLA, 2008, pp. 229-230).

5. Confira-se a precisa análise de Marmelstein: “Confisco de bens, esterilização, tortura, experimentos médicos com seres humanos, pena de morte, deportação, banimento: tudo isso era praticado de forma regular pelos membros do Terceiro Reich, sob o comando de Hitler, como se fosse algo perfeitamente normal. Essa prática mecanicista de atos de crueldade sem qualquer questionamento acerca de sua maldade intrínseca representa aquilo que a filósofa Hannah Arendt chamou de ‘banalidade do mal’. Havia, no caso, todo um aparato estatal, funcionando de forma burocratizada, estruturado para cometer as maiores atrocidades em nome do Estado. E o pior é que, de certa forma, tudo isso estava protegido pelo regime legal vigente na Alemanha (…)” (MARMELSTEIN, 2016, p. 5).

6. A lista de ratificação à Convenção Americana pode ser acessada no sítio eletrônico da OEA. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/d.Convencao_Americana_Ratif..htm. Acesso em: 30 nov. 2021.

7. São exceções à necessidade de esgotamento das instâncias internas, bem como do prazo prescricional de 06 (seis) meses: i) ausência de legislação interna que garanta o devido processo legal para proteção dos direitos; ii) negativa de acesso à jurisdição interna; e iii) demora injustificada para dar solução definitiva à questão (art. 46.2), conforme determina a Convenção (OEA, 1969)

8. Paulo Henrique Gonçalves Portela analisa a questão da relativação da soberania estatal nesse panorama: “Na atualidade, a soberania estatal continua a ser um dos pilares da ordem internacional. Entretanto, limita-se pela obrigação de os Estados garantirem aos indivíduos que estão sob sua jurisdição o gozo de um catálogo de direitos consagrados em tratados. A soberania restringe-se também pelo dever estatal de aceitar a fiscalização dos órgãos internacionais competentes quanto à conformidade de sua atuação com os atos internacionais dos quais faça parte. Caso a soberania estatal mantivesse seu caráter absoluto, as normas internacionais não poderiam ser aplicadas internamente e não contariam com meios externos eficazes de acompanhamento de sua aplicação, visto que esbarrariam na antiga argumentação da “intervenção em assuntos internos”. Entretanto, com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, torna-se possível a intervenção em assuntos internos quando houver violação de norma que proteja a dignidade da pessoa humana. Em todo o caso, isso não significa que a soberania nacional não tenha deixado de impor obstáculos à aplicação dos tratados de direitos humanos. A respeito, lembramos que os atos internacionais ainda são incorporados ao ordenamento interno dos Estados de acordo com a regra que estes estabelecem, e que boa parte dos órgãos internacionais só podem examinar contra os entes estatais que aceitem sua competência para tal, como é o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos” (PORTELA, 2019, pp. 981-982)

9. Listagem dos casos em etapa de supervisão do cumprimento da sentença encontra-se disponível no sítio eletrônico da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/casos_en_supervision_por_pais.cfm. Acesso em 01 dez. 2021.

10. Nesse sentido, confira-se trecho do voto do juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas ao classificar os fatos como crimes contra a humanidade: “22. O ex-presidente da Corte, A. A. Cançado Trindade, em seu voto separado no Caso Almonacid, relembrou que a configuração dos crimes contra a humanidade é uma manifestação mais da consciência jurídica universal, de sua pronta reação aos crimes que afetam a humanidade como um todo. Destacou que com o passar do tempo, as normas que vieram a definir os ‘crimes contra a humanidade’ emanaram, originalmente, do Direito Internacional consuetudinário, e desenvolveram-se, conceitualmente, mais tarde, no âmbito do Direito Internacional Humanitário, e, mais recentemente no domínio do jus cogens, do direito imperativo (Almonacid, parágrafo 28). 23. Os crimes de desaparecimento forçado, de execução sumária extrajudicial e de tortura perpetrados sistematicamente pelo Estado para reprimir a Guerrilha do Araguaia são exemplos acabados de crime de lesa-humanidade. Como tal merecem tratamento diferenciado, isto é, seu julgamento não pode ser obstado pelo decurso do tempo, como a prescrição, ou por dispositivos normativos de anistia” (CIDH, 2010).

11. Cumpre consignar o pensamento de Edite Mesquita Hupsel, que destaca que: “A justiça transicional, ou justiça de transição — que são medidas tomadas após o término de regimes autoritários para tratar das violações dos direitos humanos cometidos no passado — busca trazer a rememoração dos fatos ocorridos, com a apresentação de toda a sua verdade; busca a reparação às vítimas; busca a punição de seus perpetradores e, finalmente, a reforma das instituições, para afastar a repetição de violações dos direitos humanos” (HUPSEL, 2015, p. 124).

Cabe, também, trazer as considerações e Flávia Piovesan e Marília Papaléo Gagliardi sobre o tema: “A justiça de transição, neste contexto, nada mais é do que é o diverso conjunto de medidas adotadas em períodos de transição, entre regimes autoritários e repressivos para regimes democráticos de direito. Tais ações, que têm o propósito de combater o legado de violência e as demais consequências deixadas durante o governo anterior, consistem na adoção de uma série de mecanismos e abordagens (sejam judiciais ou não) para que seja possível não só responsabilizar os perpetradores de tais crimes, como também de assegurar o direito à memória e à verdade, garantindo assim um regime democrático. Ao reconhecer as vítimas enquanto cidadãos e seres humanos dotados de dignidade intrínseca e indisponível, torna-se impossível não condenar os abusos infligidos nessa época. A justiça transicional, ao considerar tais aspectos, sinaliza o caminho a seguir para garantir que todos estejam seguros em seus próprios países – protegidos dos abusos e de violações cometidos por suas próprias autoridades, além de terem assegurados reparação às violações” (PIOVESAN e GAGLIARDI, 2017, p. 16).

12. Conforme salientam Renan Honório Quinalha, Lucia Elena Bastos e Inês Virgínia Soares: “A Corte Interamericana passou adotar a postura de que o direito internacional e a prática doméstica dos Estados, em determinados momentos, permitem, e até em certos casos requerem, a aplicação das anistias. No entanto, essas anistias devem ser analisadas de forma distinta daquelas relacionadas às violações dos direitos humanos e aos crimes contra a humanidade. Sobre a questão das anistias, um recente posicionamento do Comitê Internacional da Cruz Vermelha a respeito das Convenções de Genebra confirmou que as anistias mencionadas no Protocolo Adicional nº II, de 1977, foram feitas para serem aplicadas somente àqueles que participaram de hostilidades, e não para os que violaram o direito internacional. Assim, atualizando os seus posicionamentos sobre o assunto, o que a Corte Interamericana se propôs a analisar no caso foi se a aplicação da anistia constituía uma violação aos direitos consagrados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e para tanto, a Corte Interamericana dividiu a sua avaliação da seguinte forma: (i) primeiro, qualificou o homicídio de Almonacid Arellano como crime contra a humanidade; (ii) segundo, ponderou que o mesmo crime não poderia ser objeto de anistia; e (iii) terceiro, definiu que o Estado havia violado a Convenção Americana sobre Direitos Humanos ao manter vigente tal lei de anistia. Com essa jurisprudência firmada, houve muitos outros julgados que seguiram a mesma linha desde o Caso La Cantuta vs. Peru, sentença publicada em 2006 até o Caso Araguaia, em 2009” (QUINALHA, BASTOS e SOARES, 2014, p. 120).

13. A despeito de a adesão do País ao sistema regional ter ocorrido somente após os fatos julgados, o que motivou a alegação de incompetência da Corte, restou decidido que: “Ao contrário, em sua jurisprudência constante, este Tribunal estabeleceu que os atos de caráter contínuo ou permanente perduram durante todo o tempo em que o fato continua mantendo-se sua falta de conformidade com a obrigação internacional” (CIDH, 2010).

14. Nesse sentido, cabe destacar a ementa do seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:

“PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. 1. CRIMES COMETIDOS DURANTE A DITADURA MILITAR. TEMA JÁ ANALISADO PELO STJ. RESP 1.798.903/RJ. 2. DENÚNCIA REJEITADA. OFENSA AO ART. 1º, CAPUT E § 1º, DA LEI 6.683/1979 E AFRONTA AO ART. 10, § 3º, DA LEI 9.982/1999. NÃO OCORRÊNCIA. DISPOSITIVOS EFETIVAMENTE OBSERVADOS. 3. VIOLAÇÃO DO ARTS. 1.1, 2 e 68 DO PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA. NÃO VERIFICAÇÃO. DECISÕES DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. NECESSIDADE DE HARMONIZAÇÃO COM A JURISPRUDÊNCIA INTERNA. SOBERANIA NACIONAL. 4. DEMAIS ALEGAÇÕES DESVINCULADAS DE OFENSA A DISPOSITIVO LEGAL. REAFIRMAÇÃO DAS CONCLUSÕES DO RESP 1.798.903/RJ. 5. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O tema trazido no presente agravo em recurso especial, referente às graves violações de direitos humanos ocorridas no período da ditadura militar, já foi analisado pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em 25/9/2019, no julgamento do Recurso Especial n. 1.798.903/RJ, que tratou do denominado ‘Atentado do Riocentro’. 2. Na presente hipótese, o recorrente aponta ofensa ao art. 1°, caput e § 1°, da Lei n. 6.683/1979 e ao art. 10, § 3°, da Lei n.º 9.882/1999. Contudo, as decisões das instâncias ordinárias não vulneraram referidos dispositivos legais, mas antes lhes deram efetiva e correta aplicabilidade, uma vez que a denúncia foi rejeitada com fundamento na Lei n. 6.683/1979, que foi considerada constitucional pelo STF, no julgamento da ADPF 153/DF, com eficácia contra todos e efeito vinculantes, nos termos da Lei n. 9.882/1999. 3. Cabe ao STF verificar os efeitos da decisão proferida, em 24/11/2010, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs Brasil, bem como no Caso Herzog e outros vs Brasil, julgado em 15/3/2018, com a consequente harmonização da jurisprudência relativa à Lei de Anistia, o que é objeto também da ADPF n. 320/DF, da relatoria do eminente Luiz Fux. Referida conclusão não revela resistência ao cumprimento das decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, ou reticência em exercer o controle de convencionalidade, porquanto a submissão à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos não prescinde da devida harmonização com o ordenamento pátrio, sob pena de se comprometer a própria soberania nacional. Nesse contexto, não há se falar igualmente em ofensa aos art. 1.1, 2 e 68 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). 4. Apesar de as demais alegações apresentadas pelo recorrente não terem sido vinculadas à ofensa de algum dispositivo legal, o que inviabilizaria sua análise em recurso especial, avanço na matéria, em homenagem à relevância do tema, apenas para reafirmar as conclusões firmadas pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n. 1.798.903/RJ. 5. Agravo regimental a que se nega provimento”. (STJ, Quinta Turma, AgRg no AREsp nº 1.648.236/SP, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 01/06/2021, DJe 08/06/2021).

No mesmo sentido, confira-se o acórdão proferido pela Terceira Seção do STJ no Recurso Especial nº 1.798.903/RJ, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 25/09/2019, publicado no DJe 30/10/2019.

15. Nesse sentido, Edite Mesquita Hupsel pondera que “Internalizada a Convenção Interamericana de Direitos Humanos em 1992, a partir daí não mais se haveria de admitir a produção de efeitos da Lei da Anistia de 1979, diploma que além de incompatível com a própria ordem jurídica nacional e internacional já vigorante, é de flagrante incompatibilidade com aquela Convenção (…)Importa é que quando existirem conflitos entre as normas externas e internas referentes aos direitos fundamentais, que é o caso em análise, hão de prevalecer aquelas que forem mais favoráveis ao sujeito. Nesse sentido Fábio Konder Comparato afirma que:  (…)Também as discussões derredor dos critérios que podem ser utilizados para dar solução a conflitos existentes entre norma internacional e norma de direito interno — cronológico, da especialidade ou o princípio do pacta sunt servanda — deixam agora de ter interesse, na medida em que uma decisão de uma corte internacional, à qual o Estado Brasileiro se submeteu à jurisdição, deverá prevalecer” (HUPSEL, 2015, p. 135).

16. Flávia Cristina Piovesan e Marília Papaléo Gagliardi bem resumem a questão: “Conclui-se, portanto, que as decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos produzem um efeito real em todos os países membros que se comprometeram com sua jurisdição, tendo os Estados sido condenados ou não pela Corte. Ainda, perceptível que, mesmo nos casos em que a sentença não tenha sido cumprida integralmente no país, como no caso brasileiro e chileno, a sua simples existência gera um contraponto nas vias judiciárias e legislativas dos Estados. Especificamente no caso brasileiro, o qual demonstrou a maior inércia relativamente à anulação dos efeitos da anistia, ficou evidenciada a importância da sentença internacional. Isto porque a sentença prolatada continua ensejando recursos e medidas legais através do tempo, visando-se sempre o seu cumprimento. Destaca-se, ainda, que as medidas relacionadas à reparação, quando ultrapassam a esfera material, nem sempre podem ser mensuradas, sendo difícil ponderar se houve, de fato, seu integral cumprimento. Não obstante, não fica suficientemente claro se sua implantação foi decorrente da imputação judicial ou um resultado da própria política interna do Estado. Tal contrapartida, no entanto, não tira o crédito da força das decisões internacionais, que por vezes fundamentaram e validaram as políticas adotadas. Ressalta-se, finalmente, que foi possível averiguar, nos casos estudados, que as decisões da Corte IDH têm aplicabilidade e eficácia reais, ainda que esta não disponha de meios coercitivos para garantir tal observância. Averígua-se, portanto, a importância e a necessidade de um órgão jurisdicional internacional regional para a tutela de direitos humanos, uma vez que este é, de fato, capaz de provocar não apenas o andamento de processos para assegurar direitos, mas também de gerar verdadeiras reformas jurisdicionais nos países membros” (PIOVESAN e GAGLIARDI, 2017, p. 28).

17. No mesmo sentido, Edite Mesquita Hupsel destaca que a sentença da Corte Interamericana abriu vias para a responsabilização dos violadores dos direitos humanos no período do regime militar, aguardando-se uma releitura do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. Destacou também a atuação do Ministério Público Federal para o cumprimento da decisão proferida pela Corte Interamericana, dispondo das vias recursais próprias (HUPSEL, 2015). Inês Virgínia Prado Soares, Lucia Elena Arantes Ferreira Bastos e Renan Honório Quinalha, em interessante análise, ressaltam o posicionamento do MPF diante da decisão da Corte Interamericana, concluindo que: “Mas ainda resta a necessidade de aplicação da justiça e a responsabilização criminal dos agentes que praticaram os crimes da ditadura. Esta é a determinação válida e contida na decisão da Corte no Caso Araguaia. A validade da Lei de Anistia é outro entendimento possível, já que foi proclamado pelo Supremo Tribunal Federal. Entre as duas Cortes, entre os tantos organismos encarregados em lidar com esse imbróglio jurídico, está o Ministério Público Federal, ator com legitimidade exclusiva para propositura das ações penais cabíveis. Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, o direito à justiça, sob a ótica criminal, depende da iniciativa do Ministério Público e, nesse tema da justiça de transição, do MPF, que é o titular da persecução penal contra agentes do governo autoritário que estiveram envolvidos com as violações de direitos humanos. Por isso, os dispositivos 3 e 9 da decisão da Corte estão diretamente ligados à atribuição do MPF, órgão com exclusividade para propositura de ação penal pública (art. 129, inc. I, da Constituição). E a necessidade do MPF cumprir os pontos da condenação que determina a responsabilização penal dos perpetradores, levando os responsáveis a julgamento, não se resume a mera questão de técnica jurídica (institutos e prazos processuais). A iniciativa de lidar com o passado violento da ditadura está ligada à própria definição constitucional do Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, com a incumbência de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais (art. 127 da CF). Nesse aspecto, há uma vinculação estrita do MPF, não cabendo outra escolha a não ser processar os agentes que praticaram crimes comuns contra os presos políticos” (QUINALHA, BASTOS e SOARES, 2014, p. 132).

18. Segundo Ávila, “[o]s sobreprincípios situam-se no nível das normas objeto de aplicação. Atuam sobre outras, mas no âmbito semântico e axiológico e não no metódico, como ocorre com os postulados. Isso explica a diferença entre sobrenormas (normas semântica e axiologicamente sobrejacentes, situadas no nível do objeto de aplicação) e metanormas (normas metodicamente sobrejacentes, situadas no metanível aplicativo)” (ÁVILA, 2021, 167).

19. Nesse sentido, confira-se as ponderações de Marmelstein: “a noção de direitos fundamentais como normas jurídicas limitadoras do poder estatal surge justamente como reação ao Estado absoluto, representando o oposto do pensamento maquiavélico e hobbesiano. Os direitos fundamentais pressupõem um Estado juridicamente limitado (Estado de direito/separação de poderes) e que tenha preocupações éticas ligadas ao bem comum (direito fundamentais/democracia). Portanto, um passo para o reconhecimento institucional dos direitos fundamentais foi o surgimento do Estado Democrático de Direito. (…) A finalidade ética do Estado, a partir de então, não é mais a mera satisfação dos interesses de um ou de poucos indivíduos, mas a busca do bem comum, conforme sustentou Jean-Jacques Rousseau, no seu Contrato social (1757/1762). É o governo do povo, pelo povo e para o povo, de acordo com as palavras imortalizadas por Abraham Lincoln, proferidas no famoso Discurso de Gettysburg em 1863. Esse modelo é o que se convencionou chamar de Estado democrático de direito, que, apesar de todos os defeitos, é o modelo político adotado pela maioria dos países mais avançados e é o único arcabouço institucional que permite a mudança social sem violência. Portanto, é um modelo a ser seguido” (MARMELSTEIN, 2016, pp. 35-38).

20. Conforme destaca o autor: “a dignidade não restará suficientemente respeitada e protegida em todo o lugar onde as pessoas estejam sendo atingidas por um tal nível de instabilidade jurídica que não estejam mais em condições de, com um mínimo de segurança e tranqüilidade, confiar nas instituições sociais e estatais (incluindo o Direito) e numa certa estabilidade das suas próprias posições jurídicas” (SARLET, 2005, p. 121).

21. Nesse sentido, confiram-se as lições de Clèmerson Merlin Clève: “A dimensão objetiva da segurança jurídica implica considerar, particularmente, a certeza e a previsibilidade, sem olvidar, todavia, que ela opera indissociável reflexo no ânimo subjetivo dos cidadãos, mediante a idéia de proteção da confiança, desenvolvida inicialmente na doutrina e jurisprudência alemãs. Há, portanto, entre os efeitos da proteção da segurança nas esferas objetiva e subjetiva, uma patente relação de complementaridade, sem o que não há razão para manter tal dissociação” (CLÈVE, 2005, pp. 194-195).

22. Cabe destacar o seguinte trecho da sentença: “177. No presente caso, o Tribunal observa que não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento. O Tribunal estima oportuno recordar que a obrigação de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas corresponde a um princípio básico do direito sobre a responsabilidade internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e nacional, segundo o qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais internacionais de boa-fé (pacta sunt servanda). Como já salientou esta Corte e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais. As obrigações convencionais dos Estados Parte vinculam todos seus poderes e órgãos, os quais devem garantir o cumprimento das disposições convencionais e seus efeitos próprios (effet utile) no plano de seu direito interno” (CIDH, 2010).

23. Sobre o tema do diálogo entre cortes e entre a ordem interna e internacional, Marcelo de Oliveira Fausto Figueiredo Santos aponta que: “analisando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no Brasil, especialmente no que toca ao Direito Internacional dos Direitos Humanos constatamos, ao menos até a edição da Emenda Constitucional nº 45/2004, verificamos a persistência da preferência daquele Tribunal as normas internas em relação às de natureza internacional” (SANTOS, 2019, p. 121).

24. Paulo Henrique Gonçalves Portela, após expor as críticas às correntes do voluntarismo a do objetivismo destaca que, a partir delas, sobreveio uma: “formulação de uma teoria, elaborada por Dionisio Anzilotti, que fundamenta o Direito Internacional na regra pacta sunt servanda. Para esse autor, o Direito Internacional é obrigatório por conter normas importantes para o desenvolvimento da sociedade internacional, mas que ainda dependem da vontade do Estado para existir. Ademais, a partir do momento em que os Estados expressem seu consentimento em cumprir certas normas internacionais, devem fazê-los de boa-fé” (PORTELA, 2019, p. 42).

[1] Mestrando em direito constitucional pela PUC-SP, graduado em direito pela PUC-SP. ORCID: 0000-0003-2796-3053.

[2] Orientador.

Enviado: Fevereiro, 2022.

Aprovado: Fevereiro, 2022.

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Eduardo João Gabriel Fleck da Silva Abreu

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