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Armas de fogo e a sociedade brasileira: Uma análise sobre armamento, desarmamento e segurança pública

RC: 60629
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

ROCHA, Liz Zimermann [1], CURY, Elaine Moreira Alves [2]

ROCHA, Liz Zimermann. CURY, Elaine Moreira Alves. Armas de fogo e a sociedade brasileira: Uma análise sobre armamento, desarmamento e segurança pública. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 10, Vol. 01, pp. 73-92. Outubro de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/administracao/armas-de-fogo

RESUMO

Considerando o enfoque voltado para a questão da violência em todo o Brasil, bem como a ampliação da discussão quanto às problemáticas relacionadas à segurança pública nos últimos anos, este artigo objetiva apresentar uma análise acerca das regulamentações brasileiras quanto à posse de armas de fogo por parte de cidadãos civis, desde a redemocratização até os dias atuais, estabelecendo uma contraposição entre o direito de autodefesa do cidadão e a responsabilidade do Estado como garantidor da segurança coletiva. Por meio de revisão de literatura e análise documental, o presente estudo contribui para a discussão entre armamentistas e desarmamentistas, apresentando os principais pontos de ambos os lados. Entretanto, não pretende esgotar o assunto, visto que foi possível perceber que o contexto social em que cada cidadão está inserido é fundamental para determinar a defesa – ou não, da facilitação da posse de armas aos civis.

Palavras-chave: Arma de Fogo, armamento, desarmamento, segurança pública, violência.

1. INTRODUÇÃO

A onda de violência que assola o país e a campanha presidencial para o pleito eleitoral de 2018 que culminaram, entre outros fatores, com a eleição do presidente Jair Messias Bolsonaro, reacendeu com mais veemência um debate antigo no Brasil: a posse de armas de fogo pelos cidadãos civis.

Desde o início da composição do país como Estado, destacam-se as tentativas de regulamentar a posse de armas de fogo por parte da sociedade em geral. Porém, após a redemocratização, foi estabelecida a diretriz que regulamentava o controle de armas no Brasil, de modo mais efetivo, por meio da Lei 9.437/97, criada no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, que instituiu a criação do Sistema Nacional de Armas (SINARM), além da obrigatoriedade de registro de armas pela Polícia Federal. Entretanto, tal lei não era muito rígida e permitia maior facilidade no comércio de armas, além do porte pelo cidadão civil.

Desta forma, durante o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, o movimento desarmamentista conseguiu que fosse aprovada em 2003 a Lei 10.826/03, que regulamenta sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, de forma bem mais rígida que a anterior. Em 2005 os brasileiros foram às urnas para responder ao referendo que buscava ratificar ou não o art. 35 da referida lei perguntando: “o comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?” E entre as intensivas campanhas dos lados defensores e opositores, e a confusão no entendimento da pergunta por boa parte da população, dada a dualidade de interpretação e duplo sentido da questão apresentada, a maior parte dos eleitores que votaram, optaram pelo “não”, demonstrando assim o desejo da maioria pela possibilidade da posse de armas de fogo (ESTEVES e D’ARAUJO, 2007). Entretanto, muito se discute sobre esse referendo, tanto pela dificuldade de entendimento da pergunta por parte dos eleitores, quanto pela consequente imposição da campanha pelo desarmamento.

Geograficamente, o Brasil encontra-se cercado de países que já passaram pela mesma discussão, como por exemplo, a Argentina, que utilizando o exemplo brasileiro, em 2007 iniciou um programa de entrega voluntária de armas e atualmente possui uma legislação muito parecida com a nossa (CORREIA, 2014); a Venezuela que, desde 2012, proibiu a venda de armas ao cidadão civil (VEJA, 2012); e o Uruguai, país da América Latina com maior número de armas em posse de civis por habitante (MARTÍNEZ, 2014).

Cumprindo a promessa feita em campanha eleitoral, o Presidente Jair Messias Bolsonaro, alterou, por meio de um primeiro Decreto, de número 9.685, publicado em 15 de janeiro de 2019, a Lei 10.826 de 22 de dezembro de 2003, tratada como “Estatuto do Desarmamento” e em vigor atualmente. Em seguida, o presidente brasileiro eleito com apoio de armamentistas emitiu mais cinco decretos que regulamentam a legislação vigente que trata da aquisição de armas e munições no Brasil, sendo os quatro últimos publicados em um único dia – 25 de junho de 2019 – o que demostra claramente a polêmica que cerca o tema, bem como a preocupação do governo brasileiro com o mesmo.

Vide a pertinência da segurança pública para o contexto social brasileiro e considerando que a liberação da posse de armas de fogo (ou a não liberação) aos cidadãos comuns influencia diretamente no desenvolvimento e evolução de políticas públicas referentes ao tema, este artigo objetiva apresentar uma análise acerca das regulamentações brasileiras quanto à posse de armas de fogo por parte de cidadãos civis, desde a redemocratização até os dias atuais, estabelecendo uma contraposição entre o direito de autodefesa do cidadão e a responsabilidade do Estado como garantidor da segurança coletiva.

Desse modo, justifica-se a importância de tal estudo, principalmente, quanto à apresentação de pontos positivos e negativos que devem ser considerados para o entendimento e concepção de conceitos referentes à questão. O tema, que leva teóricos da área à relevantes reflexões há alguns anos, encontra-se em destaque, principalmente pela ascensão da questão no meio político, tanto no Brasil, quanto no mundo. Destarte, pretendendo estabelecer um paralelo entre armamentistas e desarmamentistas, este artigo esforça-se para identificar os benefícios que um e outro podem oferecer para o contexto social brasileiro.

O presente artigo estrutura-se em quatro tópicos, a saber: o referencial teórico que embasa a pesquisa, através da análise da evolução da legislação referente à posse de armas de fogo no Brasil desde a redemocratização até os dias atuais, o perfil dos brasileiros que se interessam pela posse de armas de fogo e a discussão acerca da efetiva relação entre a campanha de entrega voluntária de armas de fogo proposta pelo estatuto do desarmamento e os consequentes impactos sobre os índices de violência; seguido da indicação dos procedimentos metodológicos que fundamentaram o estudo, a apresentação dos resultados e discussão acerca do tema e as considerações finais no que tange à pesquisa apresentada.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

Considerando a ênfase no que tange à questão das armas de fogo em posse de civis no Brasil, após a publicação do Estatuto do Desarmamento em 2003 e sua recente alteração através do Decreto 9.685 publicado em 15 de janeiro de 2019 e suas recentes alterações através dos Decretos presidenciais relativos ao tema, bem como os consequentes impactos sobre a segurança pública, o embasamento teórico da presente pesquisa estrutura-se em três tópicos, a saber: a evolução da legislação referente à posse de armas de fogo no Brasil a partir da redemocratização até os dias atuais, o perfil dos brasileiros que se interessam pela posse de armas de fogo e a efetiva relação entre a campanha de entrega voluntária de armas de fogo proposta pelo Estatuto do Desarmamento e os consequentes impactos sobre os índices de violência.

2.1 A EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO REFERENTE À POSSE DE ARMAS DE FOGO NO BRASIL A PARTIR DA REDEMOCRATIZAÇÃO ATÉ OS DIAS ATUAIS

Após a redemocratização, a lei que regulamentava o controle de armas no Brasil era a Lei 9.437/97, criada no governo de Fernando Henrique Cardoso, bem como a obrigatoriedade de registro de armas pela Polícia Federal (SINARM). Conforme indica Aleixo e Behr (2015), tal lei dispôs sobre o registro e porte de forma mais simplória, mas já estabelecendo um maior controle do que as legislações anteriores. Porém, mesmo com a Lei 9.437/97 estabelecendo condições sobre a aquisição e o porte de armas de fogo, o marco da discussão e regulamentação acerca do tema no Brasil é, de fato, a Lei 10.826/03, denominada de Estatuto do Desarmamento, e que, como o próprio termo já indica, visava restringir ainda mais a posse de armas de fogo, bem como tornar o porte praticamente extinto, salvo em casos especiais.

Visando estabelecer um rígido controle e diminuir o número de armas de fogo em circulação, o Estatuto do Desarmamento surgiu determinando que, para que um cidadão civil pudesse pedir autorização para possuir uma arma de fogo perante a Polícia Federal, fosse declarado efetiva necessidade, expondo fatos e circunstâncias que fundamentassem efetivamente o pedido; apresentado comprovantes de idoneidade, de ocupação lícita, de residência certa, aptidão psicológica (através de um laudo atestado por psicólogo credenciado pela Polícia Federal) e capacidade técnica (por meio da realização de teste com instrutor credenciado pela Polícia Federal) para o manuseio de arma de fogo. Além das orientações quanto à posse e porte de armas, a nova lei dispôs também sobre a comercialização de armas e munições (MOURA, 2016).

Desta forma, o processo de aquisição de armas de fogo por parte de civis, se tornou mais rigoroso e burocrático deixando claro que a Lei 10.826/03, conforme expõem Lemos e Silva (2008), tinha como objetivo principal o desarmarmento da população, através da recompra, por parte do Estado, das armas de fogo em posse dos cidadãos civis, sendo as mesmas legais ou não.

De 2003 até as eleições federais de 2018, muito se refletiu a respeito das armas de fogo em posse de civis no Brasil. Os graves problemas relacionados à segurança pública influenciaram diretamente na eleição presidencial, fazendo com que o candidato que mais levantou questões sobre o tema, viesse a se tornar o presidente do Brasil (CARNEIRO, 2019).

Em 15 de janeiro de 2019, cumprindo uma de suas promessas de campanha, o presidente Jair Messias Bolsonaro, através do Decreto 9.685, ampliou o conceito de “efetiva necessidade” para aquisição de arma de fogo, possibilitando a qualquer brasileiro entrar com pedido de aquisição.

Dentre as hipóteses a serem consideradas presente à “efetiva necessidade” foram incluídos os moradores de Estados com mais de dez homicídios anuais por cem mil habitantes, em 2016, de acordo com dados do Atlas da Violência 2018, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sendo, por este padrão indicador, todos os Estados do Brasil considerados como “áreas urbanas com altos índices de violência” (BRASIL, 2019, p.1). Também foram incluídos os agentes públicos, ativos e inativos da área de segurança pública, da Agência Brasileira de Inteligência, da administração penitenciária, do sistema socioeducativo (considerando algumas observações) e atuantes na polícia administrativa ou de correição de caráter permanente; residentes em área rural; titulares ou responsáveis, reconhecidos legalmente, por estabelecimentos comerciais ou industriais; militares ativos e inativos; e colecionadores, atiradores e caçadores, sendo esses dois últimos (militares e CACs) orientados pelo Comando do Exército. Ainda, o referido decreto, por meio do parágrafo 8º, abriu margem para que, em caso de comprovação de necessidade por meio de fatos e circunstâncias, seja ultrapassado o limite de posse de quatro armas de fogo de uso permitido.

Houve também a prorrogação da validade dos registros de arma de fogo de cinco para dez anos, com a renovação automática de tempo proporcional aos registros anteriormente emitidos que se encontravam ainda válidos na data de alteração da legislação. Outro destaque é o fato de que se passou a exigir uma nova declaração, em que o requerente se responsabiliza por manter a arma em local seguro em caso de residir criança, adolescente ou pessoa com deficiência no endereço do registro.

Em 22 de abril de 2019, a Polícia Federal lançou o SINARM II, facilitando ainda mais os serviços relacionados às armas de fogo, como aquisição, registro, renovação, e notificação de ocorrências (BRASIL, 2019), que antes eram processados fisicamente, de forma mais burocrática, demandando mais tempo e maiores custos, tanto para o requerente quanto para o próprio Órgão. O novo sistema garante que todos os requerimentos sejam realizados via internet e processados dentro do próprio sistema. Outro importante avanço, é o fato de que o requerente pode acompanhar todos os passos de seu processo via internet, além de receber notificações no e-mail cadastrado. Tanto as autorizações quanto o próprio Certificado de Registro de Arma de Fogo (CRAF) podem ser acessados e impressos pelo próprio requerente, com certificação digital. Vale destacar também que, a partir do SINARM II, o cidadão passou a declarar a efetiva necessidade dentro do próprio requerimento.

Posteriormente, em 7 de maio de 2019, o presidente da República alterou o Decreto 9.685/19 por meio do Decreto 9.785/19, ampliando o conceito de armas de uso permitido e fez outras alterações. Porém, cerca de um mês depois, em 25 de junho de 2019, foram emitidos outros três novos decretos que alteraram questões relativas à aquisição de armas de fogo por parte de cidadãos civis – 9.844/19, 9.845/19 e 9.847/19, sendo o primeiro revogado pelo último. A partir do Decreto 9.947/19 ficou claro que a Polícia Federal somente poderá negar a posse armas de fogo em caso de apresentação de documentos falsos, comprovação de que o requerente mantém vínculo com grupos criminosos, não possui idade mínima exigida ou não tiver apresentado algum dos documentos solicitados, considerando que os critérios passam a ser objetivos e não discricionários – questão esta, que anteriormente, gerava grandes discussões, pois a autorização para a aquisição de arma de fogo ficava a cargo do entendimento do Delegado de Polícia Federal, algo que colocava em questão a impessoalidade dos pareceres positivos ou negativos dados a cada um dos processos.

2.2 O PERFIL DOS BRASILEIROS QUE SE INTERESSAM PELA POSSE DE ARMAS DE FOGO

Analisar o perfil do público interessado em adquirir armas de fogo para o que a maioria entende como proteção pessoal, familiar e de sua propriedade, seja em sua residência ou local de trabalho, faz-se necessário para a compreensão da grande discussão sobre armas de fogo que tomou o Brasil nos últimos anos.

Em 23 de outubro de 2003, no governo do então presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva, os eleitores foram convocados às urnas para votar no que seria o primeiro referendo a abordar a questão das armas de fogo em todo o mundo (ESTEVES e D’ARAÚJO, 2007).

Visando ratificar ou não o art. 35 da lei 10.826/03, que regulamenta sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição de forma bem mais rígida que a regulamentação anterior, foi perguntado: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?” e entre as intensas campanhas dos lados defensores e opositores, e a confusão no entendimento da pergunta, a maior parte dos eleitores que votaram, optaram pelo “não”, demonstrando assim o desejo da maioria pela possibilidade da posse de armas de fogo.

Com base na pesquisa realizada por Keinert et al (2007) há maior número de cidadãos civis com armas cadastradas no SINARM residentes em área urbana, do sexo masculino, com idade entre 26 e 60 anos, de cor branca e com renda acima da média salarial brasileira. Já na percepção mais ampla de Moura (2016), o perfil de interessados em adquirir uma arma de fogo de calibre permitido é basicamente o de pessoas que se sentem de alguma forma ameaçadas e acreditam que a possibilidade de reação armada se enquadra no direito de autodefesa.

Ressalta-se também que o fator econômico deve ser considerado, visto que os custos mínimos para a aquisição de uma arma de fogo no Brasil estão acima da capacidade de renda da maioria dos brasileiros. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 2017, 54,8 milhões de brasileiros encontravam-se em situação de pobreza (RENAUX, 2018) e metade dos trabalhadores chegam a ganhar menos que um salário mínimo (IBGE, 2018). Para requerer autorização para adquirir uma arma de fogo perante a Polícia Federal, um cidadão civil precisa, inicialmente, desembolsar o valor de R$88,00 (oitenta e oito reais) referente à Guia de Recolhimento da União destinada à Polícia Federal,  mais os gastos com a consulta realizada por psicólogo credenciado pela Polícia Federal para atestar capacidade psicológica, além de teste de aptidão técnica para manuseio de arma de fogo, realizado com instrutor de armamento e tiro também credenciado pelo órgão competente (SANCHEZ, 2019). Existe ainda o valor da arma de fogo, que pode variar de acordo com o modelo, mas é consideravelmente elevado para alguém que possua como renda um salário mínimo.

Desse modo, conclui-se que, desde o surgimento das primeiras regulamentações no que se refere à posse de armas de fogo – passando pelo Estatuto do Desarmamento até os dias atuais – o perfil das pessoas que se interessam pela aquisição de armas de fogo de calibre permitido se mantém o mesmo: homens brancos com renda acima da média salarial brasileira, residentes em área urbana, com idade entre 26 e 60 anos.

2.3 A EFETIVA RELAÇÃO ENTRE A CAMPANHA DE ENTREGA VOLUNTÁRIA DE ARMAS DE FOGO PROPOSTA PELO ESTATUTO DO DESARMAMENTO E CONSEQUENTES IMPACTOS SOBRE OS ÍNDICES DE VIOLÊNCIA

Em meio à ampla discussão levantada após a publicação do Estatuto do Desarmamento, fez-se necessária a análise de seus impactos na segurança pública, principalmente, a relação direta entre armas de fogo em posse de civis e índices de violência.

Segundo o Relatório de Conjuntura sobre os custos econômicos da criminalidade no Brasil divulgado pela Secretaria Geral da República em 2018 (KALOUT et al., 2018):

O Brasil está entre os 10% de países com maiores taxas de homicídio do mundo – apesar de ter uma população equivalente a 3% da população mundial, o país concentra cerca de 14% dos homicídios do mundo. Ainda de acordo com o referido relatório, as taxas de homicídio brasileiras são semelhantes às de Ruanda, República Dominicana, África do Sul e República Democrática do Congo (KALOUT et al., 2018, p 9).

Complementarmente, segundo os dados oficiais do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, considerando os óbitos causados por agressão mais intervenção legal (CIDs 10:Y85-Y09; Y35-36)[3], em 2017 houve 65.602 homicídios no Brasil, o que equivale a uma taxa de aproximadamente 31,6 mortes para cada cem mil habitantes. De acordo com o Atlas da Violência publicado pelo IPEA em 2019, foi observado 26,9% de aumento de homicídios por arma de fogo na última década sendo 6% de aumento apenas no referido ano. Desta forma, verifica-se em 2017, o maior nível histórico de letalidade violenta intencional no país (CERQUEIRA et al., 2019).

Entretanto, ainda de acordo com o Atlas da Violência, se o Estatuto do Desarmamento não fosse instituído, essa atual situação poderia ser ainda pior. Segundo o estudo, “enquanto nos 14 anos após o ED, entre 2003 e 2017, o crescimento médio anual da taxa de homicídios por arma de fogo no país foi de 0,85%. Nos 14 anos antes do ED, a taxa média anual havia sido de 5,44%, ou mais de seis vezes maior.” (CERQUEIRA et al., 2019, p.81). Ou seja, considerando as trajetórias de letalidade por arma de fogo, percebe-se que o Estatuto do Desarmamento contribuiu para frear a violência armada no Brasil.

De acordo com o Guia Prático de Desarmamento divulgado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Estatuto do Desarmamento e as campanhas maciças do governo para desarmar a população produzem respostas imediatas e eficazes para a redução de homicídios por armas de fogo no Brasil (SOUZA, 2014).

Em 2003, a Lei 10.826 que instituiu a realização de campanha de entrega de armas em todo o país, propiciou o pagamento de indenização que, posteriormente, teve os valores delimitados entre R$100,00 (cem reais) e R$300,00 (trezentos reais) – variando conforme calibre e tipo da arma –, através da Portaria da Polícia Federal nº 64/2004 (SCORZAFAVE, SOARES e DORIGAN, 2015). Desta forma, através da publicidade e estímulo financeiro oferecido pela campanha, em 2014, conforme indicou o Ministério da Justiça, foi alcançado o número aproximado de 650 mil armas recolhidas (BRASIL, 2014).

Logicamente, espera-se que somente armas não registradas sejam utilizadas para execução de crimes, enquanto as armas legalmente adquiridas, permaneçam em seu local de registro, sendo utilizadas somente em situações extremas, para defesa.

Entretanto, Arthur Kellermann, médico e pesquisador americano afirma que:

A família que tem arma de fogo em casa corre quatro vezes mais risco de que seja disparado um tiro de forma não intencional, onze vezes mais riscos de que seja instrumento de suicídio do que sirva de autodefesa da própria família, dezoito vezes mais riscos de que a arma seja usada contra um membro da casa do que contra um invasor (KELLERMANN, apud BOURGOIS, 2005, p. 33).

Ademais, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, divulgada em 2012, e elaborada a partir de inquéritos policiais referentes a homicídios acontecidos em 2011 e 2012, em 16 Unidades da Federação, verificou-se que entre 25% a 80% das causas de homicídios no Brasil decorreram de motivos fúteis, como “brigas, ciúmes, conflitos entre vizinhos, desavenças, discussões, violências domésticas, desentendimentos no trânsito” (CNMP, 2012).

Outrossim, conforme indicam Cerqueira e Coelho (2013), o maior número de armas disponíveis em sociedade, independente se legais ou não, por si só, já contribuem para a alavancagem da criminalidade, tendo em vista que, quanto maior o número de armas de fogo legalmente registradas em posse de civis, maior a probabilidade destas armas serem roubadas e extraviadas, e, consequentemente, maiores os índices de violência por conta de crimes ocorridos com essas mesmas armas.

De acordo com o Atlas da Violência (CERQUEIRA et al., 2019) através da CPI das Armas realizada pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, verificou-se que em 10 anos no Estado do Rio de Janeiro, foram extraviadas ou roubadas 17.662 armas das empresas de vigilância ou segurança privada. Ainda, foi constatado que dentre as armas ilegais apreendidas, 68% tinham sido armas legais, num primeiro momento vendidas no território nacional, e 18% tinham sido armas desviadas das Forças Armadas ou polícias. Ou seja, das armas ilegais utilizadas pelos criminosos, 86% já foram armas legalizadas algum dia. Estatísticas apresentadas por Kahn (2002) também confirmam tal teoria, indicando que a maioria das armas apreendidas pelas polícias brasileiras são de origem nacional e provenientes de furto.

Porém, não se pode desconsiderar o aumento nos índices de contrabando, que possibilitam aos bandidos o acesso às armas de calibre restrito (BRASIL, 2011). Segundo depoimento à CPI que investigou o tráfico de armas em 2006 (BRASIL, 2006), o comandante da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro à época, Gilson Pitta Lopes, afirmou que não havia estatísticas nacionais disponíveis, porém o mesmo calculava que 66% das armas que chegavam ao Brasil contrabandeadas saiam do Paraguai. Segundo o comandante, “os 34% restantes vinham dos Estados Unidos, Argentina, Bolívia, Filipinas e Uruguai. Só no Paraná, cerca de 90% das armas apreendidas em operações contra o contrabando procedem do Paraguai e têm o selo do Brasil. No Rio, 21% das armas de grosso calibre e cano longo, idem.” (BRASIL, 2006, p.67).

Também em depoimento à CPI do tráfico de armas, o Delegado Carlos Antonio Luiz de Oliveira, do Rio de Janeiro, informou que no rastreamento de um lote de quase mil armas de fogo, 80% saíram do Paraguai e acrescentou que, só com o traficante de armas e drogas “Fernandinho Beira-Mar”, a Polícia Federal encontrou uma vez, num caminhão de sua organização, 104 pistolas de fabricação brasileira que foram legalmente exportadas ao Paraguai e estavam retornando ao Brasil de forma criminosa. (BRASIL, 2006).

De acordo com Moura (2016), as ações governamentais falham ao atingir somente o cidadão comum, permitindo que os criminosos continuem desenvolvendo suas atividades voltadas ao tráfico de drogas e aquisição de armas ilegais. Ainda de acordo com o autor, o enfoque sobre o tema das armas de fogo vem sendo aplicado de forma errônea, considerando que as campanhas se voltaram à restrição do acesso às armas pelos cidadãos comuns e se esqueceram que o criminoso continua com o “fácil” acesso às mesmas.

Com a mesma percepção, Jesus (2004) ressalta que, se o Estado, através do legislador, deseja restringir o acesso às armas, permitindo somente que as possuam aqueles que delas necessitem por prerrogativa de função, é necessário que garanta, efetivamente, a segurança pública, visto que deve haver, conforme considera o autor, uma relação inversamente proporcional entre o desarmamento do cidadão comum e o armamento do Estado, através das polícias, para que as mesmas estejam dotadas dos meios necessários para prevenir a criminalidade.

Entretanto, de acordo com Cerqueira e Coelho (2013), a segurança pública é muito mais complexa do que se imagina e, por isso, a questão da criminalidade não depende somente de um fator, como por exemplo, o número de armas legais em circulação.

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A presente pesquisa será, quanto à sua natureza, uma pesquisa aplicada sobre a discussão acerca da liberação da posse de arma de fogo aos cidadãos civis e será desenvolvida através de uma abordagem qualitativa, buscando compreender os motivos que levam à defesa ou ataque à questão.

Considerando o objetivo da pesquisa, a mesma será do tipo exploratória, proporcionando, de acordo com Zanella (2009, p.79), “ampliar o conhecimento a respeito de um determinado fenômeno” e será desenvolvida através de revisão bibliográfica com levantamento de dados, informações e análises documentais (artigos e notícias), considerando no estudo dos materiais já publicados nos últimos vinte e cinco anos, a observação dos impactos da questão sobre a sociedade.

O universo de estudo delimitado serão as pessoas aptas a adquirir uma arma de fogo que para tal, dependam de parecer positivo da Polícia Federal, responsável pelo SINARM, ou seja, os cidadãos civis, policiais civis e federais ativos e inativos, magistrados e membros do Ministério Público, agentes penitenciários, guardas municipais, auditores da Receita Federal, auditores-fiscais do Trabalho, auditores-fiscais e analistas tributários.

Já como amostra, tal pesquisa apresenta enfoque sobre o cidadão civil, em forma de pessoa física, que pode vir a requerer a posse de arma de fogo – poder mantê-la sob sua responsabilidade em sua residência bem como nas dependências desta, ou no trabalho, desde que seja o responsável legal ou proprietário do estabelecimento – em caráter de defesa pessoal perante a Polícia Federal.

Como instrumentos para coleta de dados serão utilizados: levantamento bibliográfico, visando levantar dados e informações, como documentos públicos, estudos publicados, reportagens, análise de dados do Mistério da Justiça, com enfoque em informações levantadas pela Polícia Federal, sobre violência, segurança pública e fluxo de processos de aquisição e registro de armas de fogo; além de análise documental, no tocante à legislação vigente e antecessoras.

4. RESULTADOS E DISCUSSÕES

O Brasil, assim como em diversos países, discute sobre a posse de armas de fogo há muitos anos e o crescente aumento da criminalidade contribui sobremaneira para o aprofundamento desta discussão.

Os argumentos dos defensores do afrouxamento nas regras de liberação de posse de armas se baseiam principalmente no direito à autodefesa, já que o Estado, responsável pela segurança dos cidadãos, por muitas vezes apresenta falhas em sua missão. Conforme observado pelo jurista Damásio de Jesus (2004), a rigidez quanto à fabricação, comércio, aquisição e posse de armas de fogo imposta pelo Estado deve estar paralela à garantia de que o mesmo, através da polícia, garantirá a segurança pública preventiva de forma efetiva, haja vista que, ao desarmar o cidadão comum, é necessário que os órgãos competentes estejam dotados de instrumentos que os possibilitem a garantia da prevenção e combate à criminalidade.

Deve-se considerar também que, segundo disposto no Artigo 5º da Constituição Federal de 1988, são invioláveis os direitos à vida, bem como à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade privada. Sendo assim, observa-se que, sendo a vida o maior direito e bem de uma pessoa, visto que sem a mesma os demais direitos não se estabelecem, em caso de agressão, é direito do indivíduo ter meios que os possibilitem defesa. Segundo Murray Rothbard em “A ética da liberdade” (2010), é direito do homem que detém propriedade de bens materiais, bem como de sua própria vida, defender-se de invasões violentas, utilizando-se também da violência. Há ainda o fato de que, ao considerar a defesa desta forma como parte implícita do direito à vida, conforme observa o autor, o simples fato da dependência de autorização estatal para aquisição de arma de fogo para defesa pessoal já caracteriza a violação de um direito básico.

Assim, desde a promulgação do Estatuto do Desarmamento, defensores do direito à defesa pessoal e patrimonial movimentam-se buscando a ampliação do direito à posse de armas de fogo por parte de civis, que até 2019, era decisão discricionária do Delegado de Polícia Federal. Pela primeira vez na história da política brasileira a pauta referente à questão da liberação de armas de fogo aos civis e os consequentes impactos sobre a segurança pública foi um dos principais temas de debate da eleição presidencial. Após diversas discussões, o presidente eleito com uma pauta armamentista apresentou alterações relevantes que culminou na desburocratização e facilitação da aquisição de armas de fogo por parte de civis, alterando a forma de autorização na concessão de registro, que é de competência da Polícia Federal, para critérios exclusivamente objetivos.

Entretanto, para a liberação – ou não – da posse de armas de fogo, deve-se considerar, principalmente, o perfil de pessoas que se interessam por tal processo. Atualmente, a maioria dos cidadãos civis que possuem arma de fogo são homens, brancos e com renda acima da média (KEINERT et al, 2007). Por outro lado, é importante ressaltar que grande parte dos brasileiros se encontra em situação de pobreza.

Segundo o IBGE, em 2018, o país tinha 13,5 milhões de pessoas com renda mensal per capita inferior a R$ 145, ou U$S 1,9 por dia, critério adotado pelo Banco Mundial para identificar a condição de extrema pobreza. Esse número é equivalente à população de Bolívia, Bélgica, Cuba, Grécia e Portugal.

Conforme pesquisa divulgada pelo Instituto, 60% dos trabalhadores brasileiros têm renda menor que um salário mínimo (CAPETTI; ALMEIDA, 2019). Complementando o quadro, deve-se considerar ainda a questão racial, posto que, a maior parte dos cidadãos com posse legal de arma de fogo são brancos, o que eleva a desigualdade sofrida por negros no Brasil. O mesmo ocorre em relação ao gênero, visto que, a posse de armas de fogo está, em sua maioria, com homens. Recentemente, a sociedade brasileira viu disparar o número de feminicídio, o que deve também ser considerado quando se discute a aquisição de armas de fogo. De acordo com o Atlas da Violência desenvolvido pelo IPEA, em 2017, 4.936 mulheres foram assassinadas, constatando-se o maior número de vítimas em 10 anos.

Entretanto, antes de tudo, para a aquisição de uma arma de fogo, segundo Alex Rodrigues, do jornal Agência Brasil (2019), o gasto mínimo seria de R$ 3,7 mil reais. Sendo assim, só este custo já excluiria a maior parte da população que necessita de proteção. Portanto, considerando o argumento de autodefesa, veríamos que apenas uma pequena parte da população se beneficiaria com a possibilidade de obter uma arma. Desta forma, a proteção desta parcela da população, desconsiderando a proteção estatal, seria através da rigidez nas regras para obtenção de armas, o que diminuiria a quantidade das mesmas em circulação.

Com a implementação do Estatuto do Desarmamento, o país se viu em meio a uma intensa discussão sobre os verdadeiros impactos de tal medida. Segundo o Atlas da Violência, sem a campanha de entrega de armas de fogo e demais providências que o Estatuto do Desarmamento instituiu, a situação dos homicídios no Brasil seria ainda pior (CERQUEIRA et al., 2019). Porém, é necessário observar que a restrição à posse de armas de fogo por parte de cidadãos civis não reflete em diminuição do uso de armas por criminosos, tendo em vista que além das armas legalmente registradas que são furtadas por criminosos e utilizadas para práticas de novos crimes, há também a utilização de armas de uso restrito, que ingressam no país através das fronteiras, por contrabando (BRASIL, 2011).

Entretanto, um dado interessante apresentado por Langeani e Pollachi (2016) organizado pelo Instituto Sou da Paz revelou que 61% das armas apreendidas pela polícia no Sudeste foram fabricadas no Brasil e majoritariamente são de menor porte e calibre permitido. Mesmo considerando que parte dessas armas tenha sido exportada e retornada ao Brasil através de contrabando, é importante salientar que a facilidade na aquisição de armas pelo cidadão civil, de certa forma, alimenta o comércio ilegal de armas, visto que as mesmas vão parar nas mãos dos bandidos em decorrência de roubos e furtos.

Uma consideração interessante também a se fazer, segundo Pekny et al (2015):

No entanto, uma pesquisa realizada pela Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) em 2000 apontou que a existência de armas em residências contribui para mortes durante atentados ao patrimônio. Com base na análise de todos os Boletins de Ocorrência de latrocínio e tentativa de latrocínio registrados na cidade de São Paulo em 1998, os pesquisadores concluíram que “pessoas que andam armadas têm uma chance 56% maior de serem feridas ou mortas numa situação de roubo do que as pessoas que foram assaltadas e estavam desarmadas”. Além disso, 57% daqueles que obtiveram êxito em suas reações armadas eram policiais. (PEKNY et al, 2015, p.17)

Temos que, de acordo com Pekny et al (2015), boa parte dos homicídios no Brasil são decorrentes de conflitos banais, como demonstrou estudo realizado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) em São Paulo nos anos de 2011 e 2012 revelando que 83% dos homicídios esclarecidos tiveram motivações fúteis ou foram em decorrência de “vinganças”, “desavenças” e questões “passionais”. Em outros estados, como Amapá e Santa Catarina, os homicídios praticados por motivos fúteis superaram os 70%. Isso demonstra que o acesso à arma de fogo pode aumentar o risco de que uma simples discussão possa ter um desfecho trágico.

Com base na discussão apresentada, conclui-se que a facilitação da aquisição de armas de fogo por parte de cidadãos civis se ampara, principalmente, no direito à vida e à autodefesa. Desse modo, o maior debate recai sobre o julgamento que é feito pela vítima armada quanto ao agressor, visto que a primeira deve estar apta a discernir entre uma invasão violenta e uma ação que não demonstre a necessidade de uma resposta extrema. Há também o fato de que, teoricamente, a posse de armas de fogo ao cidadão civil está submetida ao local de registro, bem como à finalidade específica de defesa pessoal, familiar e patrimonial, entretanto, nem sempre tais limitações são respeitadas, sendo a arma utilizada para outro fim, ou ainda, em outro local fora do permitido, fato observado em casos de brigas de trânsito, desentendimentos familiares, feminicídio, dentre outros. E ainda, a questão econômica, racial e de gênero ficou evidenciada nos dados levantados sobre o perfil de pessoas que se interessam pela aquisição de armas de fogo, fator altamente relevante, posto que, ao entendermos a posse de armas de fogo como fator do direito à vida, o mesmo deveria ser garantido a todos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a redemocratização, a legislação brasileira quanto à posse de armas de fogo obteve maior destaque por meio da Lei 9.437/97, que implementou o SINARM, de competência da Polícia Federal. Em seguida, visando estabelecer um controle ainda mais rígido que o dispositivo anterior, o Estatuto do Desarmamento foi desenvolvido com o objetivo de moderar a aquisição de armas de fogo por parte dos cidadãos comuns, com forte investimento em campanha de entrega voluntária de armas de fogo.

Recentemente, dada a grande discussão acerca da crise na segurança pública pela qual passa o país, somada ao debate sobre o direito de autodefesa do cidadão, novos instrumentos legislativos foram instituídos, visando, em oposição ao contexto anterior, pela primeira vez, facilitar a posse de armas de fogo por parte do cidadão civil que indique a finalidade de autodefesa, proteção familiar e de sua propriedade.

Ressalta-se que ambos os direitos devem ser considerados e respeitados, assim como os impactos da nova legislação vigente para a aquisição de armas fogo sobre a sociedade deve ser amplamente analisado, posto que, aqueles que optarem por não possuir uma arma, podem ser ainda mais afetados do que aqueles que priorizarem tal questão, principalmente pela composição da sociedade brasileira, com maior número de pessoas fora do perfil de prováveis interessados.

Nota-se que a discussão em torno da facilitação (ou não) da posse de armas de fogo fundamenta-se, basicamente, no senso comum que crê na incompetência do Estado em garantir a proteção, em período integral, do cidadão, estando ele dentro ou fora de sua residência. Desta forma, a ideia do direito de autodefesa se intensifica quando o cidadão, dentro de sua propriedade, sente-se desprotegido pelo poder público, tanto para a proteção de sua própria vida e de seus familiares, quanto para a proteção de seus bens.

No que tange à autodefesa e proteção familiar, é necessário que seja avaliada a efetividade de posse de armas para a garantia de proteção, considerando que, mesmo com a capacidade técnica obrigatória para a aquisição de arma de fogo, por muitas vezes, o criminoso pode vir a surpreender o cidadão, de tal modo que, mesmo armado, a possibilidade de defesa venha a ampliar o risco que a vítima já correria se estivesse desarmada. Já sobre a propriedade, ressalta-se que não há propriedade mais importante que a vida, e o juízo de valor que é feito acerca da vida do criminoso é motivo de discussões ainda maiores entre armamentistas e desarmamentistas.

É necessário considerar que o contexto social, ao qual a arma de fogo está inserida, por exemplo, é de grande relevância, visto que a arma sozinha não efetua disparo, dependendo de uma pessoa para tal. Assim, no Brasil, os índices de violência gerais – considerando crimes cometidos por qualquer tipo de arma – devem ser minunciosamente estudados antes de qualquer alteração na legislação, pois além da vontade popular, qualquer decisão que facilite ou não a aquisição de armas de fogo por parte de civis deve ser fundamentada em dados e estudos científicos, visto que serão impactados não somente aqueles que optarem pela aquisição, mas a sociedade como um todo.

Desta forma, considerando que buscou-se apresentar um resumo da legislação brasileira quanto à posse de armas de fogo por parte de cidadãos civis, estabelecendo um paralelo entre o direito de autodefesa do cidadão e a responsabilidade do Estado como garantidor da segurança coletiva, baseando-se na discussão apresentada, este artigo alcançou o objetivo de orientar e reforçar posicionamentos, além de nortear e auxiliar outros pesquisadores a encontrar soluções para estes problemas tão relevantes para a sociedade brasileira e, mais especificamente, para o contexto da segurança pública. Entretanto, o mesmo não pretende esgotar o assunto posto que se faz notória a complexidade da questão estudada e o envolvimento de diversas variáveis que não foram aprofundadas até aqui.

6. REFERÊNCIAS

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APÊNDICE – REFERÊNCIA DE NOTA DE RODAPÉ

3. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde-CID-10: X85-Y09 (agressão) e Y35-Y36 (intervenção legal). Fonte: TABNET/DATASUS.

[1] Bacharelanda em Administração Pública.

[2] Bacharelanda em Administração Pública.

Enviado: Setembro, 2020.

Aprovado: Outubro, 2020.

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