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Ressentimento: neurociências aplicadas à psicanálise, um ensaio teórico transdisciplinar

RC: 102907
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CONTEÚDO

ENSAIO TEÓRICO

MELLO, Paulo de [1], BERTINI, Edna [2], FREIRE, Lázaro Luiz Trindade [3], JACINTO, Débora Damasceno [4], BORGES, Tássia Monteiro [5]

MELLO, Paulo de. Et al. Ressentimento: neurociências aplicadas à psicanálise, um ensaio teórico transdisciplinar. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 11, Vol. 06, pp. 133-146. Novembro de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/neurociencias-aplicadas

RESUMO

Com este artigo pretendemos apresentar uma concepção transdisciplinar da relação entre neurociência e psicanálise, especialmente kleiniano, no campo dos epifenômenos ligados ao ressentimento, seu significado e mecanismos fundamentais de natureza psicanalítica e biológica. O artigo é resultado de um estudo teórico-qualitativo baseado na experiência dos autores, alguns com mais de 30 anos de experiência clínica na área de saúde mental, psicanálise e neurociência, somado a uma revisão bibliográfica que consiste principalmente em livros no campo da neuropsicanálise, análise e psicanálise freudiana, kleiniana e junguiana, resultando em 21 livros pesquisados e artigos no campo da neurociência. Pesquisados nas bases de dados: PubMed, Medline e Scielo e publicados no período entre 2000 e 2020. O recorte epistemológico envolve elementos como relacionamento objetual, neurotransmissores, estruturas e circuitos neurais envolvidos no fenômeno do ressentimento. Foram excluídos textos que estavam fora do escopo qualitativo e transdisciplinar do estudo. Utilizamos o método intuitivo-interpretativo cuja conclusão reforça a viabilidade da compreensão de fenômenos psicanalíticos bem como do determinismo psíquico e das relações de objetos via intersecção com mecanismos neurobiológicos que são desenvolvidos por meio de operações mentais (mentalização), intervenção psicofarmacológica e neuromodulação por estimulação magnética transcraniana, ampliando assim o conhecimento sobre o assunto para as áreas em questão.

Palavras-chave: ressentimento, neuropsicoanálise, psicanálise, mentalização.

INTRODUÇÃO   

Baseado no desejo de ampliar o conhecimento na área de pesquisa transdisciplinar entre a neurociência e a psicanálise, desenvolvemos um estudo teórico-qualitativo, apoiado pela experiência clínica dos autores e revisão de textos, livros e artigos, com o objetivo de demonstrar a viabilidade do desenvolvimento de estudos transdisciplinar entre áreas aparentemente tão diferentes, não com o objetivo de validação, mas sim de ampliar a compreensão de cada área, buscando pontos de convergência entre eles (TURATO, 2005; HULLEY et al., 2008).

Para este artigo optou-se por estudar o ressentimento, fenômeno comum, responsável pelo sofrimento emocional e físico de muitos daqueles que procuram atendimento em consultórios médicos, psicológicos e psicanalíticos.

Com base nesta pequena introdução, entendemos, como parte de nossa visão de mundo, que o eu – nossa ideia consciente de quem somos ou o que somos (HOLLIS, 1998) – surge como um elemento virtual que não pode ser tocado, nem sabemos de que matéria é feito, entretanto ele aparece em algum momento do período pré ou neonatal com o objetivo quase obsessivo de buscar segurança para permanecer vivo e preservar a espécie; algo que surge no processo evolutivo, semelhante à garra do animal, seus dentes e velocidade. Dessa forma, o eu pode ser um representante fenomenológico fundamental da vida física e do corpo físico, tendo sua origem natural na função cerebral à medida que este mesmo cérebro se desenvolve.

Dessa forma, o desenvolvimento do eu se realiza como um recurso do corpo físico, semelhante a um software gerenciado pelo cérebro. Sua natureza ou a natureza de sua manifestação no universo tempo/espaço é bioelétrica e bioquímica, e, a qualidade e as formas de expressão, podem ser modificadas, intensificadas ou reprimidas por meio de neuromodulação farmacológica e, muito provavelmente, por neuromodulação magnética por meio de estimulação magnética transcraniana (TMS).

A pesquisa neste estudo realizada permite afirmar que existem sistemas neurais razoavelmente específicos envolvidos no desenvolvimento e aperfeiçoamento do eu, das relações de objeto e da agressividade inata. Esses dados corroboram com a teoria kleiniana.

O EU

Como dito anteriormente, entendemos que o eu é basicamente a ideia consciente de quem somos ou o que somos (HOLLIS, 1998).

No início podemos explicar que o sistema mesolímbico (dopaminérgico), e mesocortical, juntos, formam um sistema que leva o indivíduo a explorar sua relação com o Outro na figura de alguém fora dele, um objeto parcial no início (para satisfazer suas necessidades), e então, um objeto total (para satisfazer seus desejos).

Por isso, esse sistema é fundamental para o desenvolvimento da relação de objetos, da catexia e para o aprimoramento das funções referidas. Até agora entende-se que as relações de objeto são fundamentais para a estruturação do eu, e, para que haja relações com objetos, há a necessidade do cérebro desenvolver mais do que representações de objetos, mas também ser capaz de introjetar objetos essenciais ou primordiais indo além de suas representações.

O eu, como as outras estruturas do 2° tópico de Freud, desenvolve-se, porque ao longo dos anos é alimentado com um conjunto de informações que se acumula dia após dia, provenientes do universo interno e externo ao indivíduo.

O universo externo ao indivíduo é sentido por ele a partir de exterocepção (temperatura, dor, toque, visão, audição, paladar e olfato), propriocepção (percepção sensorial proveniente de tendões, ligamentos, articulações e músculos) e interocepção (o mesmo para vasos sanguíneos e vísceras).

É através desses sentidos que o cérebro é alimentado por um volume incontável de informações cujo objetivo é melhorar a capacidade adaptativa do sujeito e suas relações com objetos. Através desse processo, o eu desenvolve mecanismos ou recursos que visam sua sobrevivência, ou seja, suas defesas do eu; recursos diretamente dependentes do desenvolvimento e maturação do córtex pré-frontal, mas não apenas isso.

MENTALIZAÇÃO E RESSENTIMENTO

A mentalização ou tratamento baseado em mentalização (TBM) leva em conta a capacidade de tentar compreender os mecanismos fenomenológicos, relacionais, representativos e biológicos de eventos de natureza mental, tais como: pensamentos, crenças, representações, sentimentos, anseios e desejos (BATEMAN; FONAGY, 2016).

O termo Mentalização surgiu com Peter Fonagy e outros autores na tentativa de compreender melhor e buscar uma abordagem psicoterapêutica modelo para pacientes com transtorno borderline de personalidade.

Segundo Cryan e Quiroga (2013), o vínculo afetivo seguro, especialmente nos primeiros anos de vida, é fundamental para o bom desenvolvimento dos padrões de funcionamento mental que resultam em um sujeito mais adaptado, com relações sociais mais funcionais e, por que não dizer, de aprendizagem. Dessa forma, entende-se que o ressentimento pode ser resultado do desenvolvimento de uma rotina de operações mentais disfuncionais em ambientes que não oferecem à criança condições afetivas seguras.

A mentalização requer análises cuidadosas e contextualizadas. Seu uso e desenvolvimento no campo da psicoterapia tem crescido nos últimos anos, especialmente para o tratamento de transtorno de estresse pós-traumático, transtornos de personalidade, dependência de drogas e transtornos alimentares. É necessário, na mentalização, como abordagem terapêutica, avaliar cuidadosamente as rotinas comportamentais, as relações de objeto e experiências às quais o indivíduo foi exposto no passado. O recrutamento de processos cognitivos complexos e seus mecanismos ocorrem principalmente em um nível pré-consciente (BATEMAN; FONAGY, 2016).

Foram identificadas 4 dimensões diferentes para uma mentalização, a saber: Mentalização automática versus mentalização controlada; Mentalização em si mesmo versus mentalização em outros; Mentalização com vistas a aspectos internos versus externos; e mentalização cognitiva versus afetiva (LIEBERMAN, 2007).

Então, considerando esse modelo teórico e prático com foco psicoterapêutico, ou seja, a Mentalização, podemos dizer que este é resultado de um conjunto de operações rotineiras e mentais de predominância automática, em si mesmo. Com relação aos aspectos internos e afetivos, quando há desequilíbrio, pode dar origem a esse complexo  fenômeno chamado de ressentimento.

Portanto, entende-se que o conhecimento psicanalítico e de outras técnicas, aliado à compreensão dos padrões mentais relacionados ao sujeito ressentido, podem contribuir muito para o desenvolvimento e aplicação de ferramentas psicoterapêuticas em seu tratamento.

MODULAR O EU É A POSSIBILIDADE DA PSICOFARMACOLOGIA PELA TMS

É indiscutível que a administração de antidepressivos de diversas classes é capaz de modular funções cerebrais e fornecer remissão de sintomas depressivos a partir de um mecanismo complicado e intrincado que envolve receptores, recaptação de neurotransmissores, ativação da transcrição do DNA a médio prazo e neuroplasticidade.

Estudos mostraram que a neuroplasticidade é um dos mecanismos de ação de antidepressivos, especialmente a neuroplasticidade, que envolve a porção ventral do giro denteado da formação hipocampal pelo aumento das neurotrofinas, particularmente a BDNF. Os antidepressivos aumentam o BDNF e, portanto, promovem a neuroplasticidade (YAMADA et al., 2013). Esta é uma prova indiscutível de que drogas psicotrópicas promovem mudanças estruturais nos sistemas neurais.

Sabemos, de acordo com trabalhos mais recentes, que é possível reduzir processos cognitivos ruminativos, depressivos e autodepreciativos, estimulando a região dorsolateral do córtex pré-frontal (CPFDL) ou inibindo sua área homóloga contralateral utilizando estimulação magnética transcraniana (TMS). Se tal neuromodulação é viável, modificar características ou, pelo menos, manifestá-las, algo que poderíamos classificar como ego, também é viável.

Assim, se podemos de fato modificar sua expressão, é porque o ego está sujeito a ser influenciado pela química das drogas psicotrópicas e pela aplicação de campos magnéticos com potencial para aumentar ou reduzir a atividade de áreas específicas do cérebro.

RESSENTIMENTO; AGRESSIVIDADE DA NATUREZA INATA E SISTEMA AVERSIVO CEREBRAL

Até agora, entende-se que todos esses modelos perceptivos – exterocepção, propriocepção e interocepção – são de natureza externa ao processo mental inato, inclusive os interoceptivos. É fato que toda essa informação participa da construção do universo mental, mas, talvez, Melanie Klein (1996) tenha razão ao afirmar que ao nascer somos dotados de mecanismos inatos que nos mobilizam para a frente, não só através da nutrição e sexualidade, mas também através da agressividade.

Que evidências científicas temos sobre essa afirmação de que a agressividade é tão inata em termos dos metaprogramas neuronais responsáveis pela nutrição e reprodução?

Há um conjunto de estruturas neuronais e circuitos no cérebro descritos como o sistema aversivo cerebral (SAC). Este sistema é formado pela substância periaquedutal, núcleos periventriculares do hipotálamo e núcleos centrais da amígdala. Este sistema aversivo cerebral é modulado pelo córtex pré-frontal e é ativado quando o sujeito se sente fisicamente ou emocionalmente ameaçado. O álcool, por exemplo, inibe o córtex pré-frontal (CPF), que reduz a inibição do SAC, facilitando comportamentos agressivos. Tendo em vista que as drogas inibidoras seletivas de recaptação de serotonina aumentam a atividade sorotonérgica no circuito, podemos antecipar que quando há maior controle sobre o SAC, na prática, haverá maior tolerância social (BRANDÃO et al., 2003)

Em um artigo publicado na revista Nature Neuroscience, Stagkourakis et al. (2018), realizou um estudo pré-clínico com roedores usando optogenética. Neste material foram estudados os mecanismos que regulam a agressão entre os homens na determinação de sua posição social, direcionando o núcleo hipotalâmico pré-mamilar ventral (PMv), como estrutura fundamental na regulação de estímulos agressivos. Segundo os autores, a estimulação do núcleo PMv desencadeia comportamentos agressivos que são mantidos por semanas após uma breve estimulação. Para este fenômeno, o autor usou o termo hysteresis.

A Hysteresis é a tendência de que um sistema se manifesta, preservando suas propriedades na ausência do estímulo que as produziu. Isso significa que, após o estímulo, o núcleo PMv, continua emitindo potenciais elétricos por semanas, cujo representante fenomenológico, neste caso, é a agressividade. Considerando que o núcleo PMv é hipotalâmico, podemos inferir que este sistema subcortical contém um metaprograma comportamental inato e funcional para a agressividade, talvez, mesmo antes do período neonatal. Esse raciocínio corrobora uma melhor compreensão transdisciplinar da alegação, segundo a teoria de Kleinian, de que a agressividade é tão inata quanto outros relatos de metaprogramas à nutrição e à sexualidade.

Hrabovszky et al. (2005), identificaram três fenótipos neuronais na estrutura hipotalâmica que estão envolvidos na indução da agressividade, são eles: neurônios glutamatérgicas, que co-expressam com o hormônio liberador de tireotropina; neurônios glutamatérgicos, sem hormônio liberador de tireotropina; e, neurônios GABA energéticos, espalhados entre células glutamatérgicas.

Estes são, até agora, os elementos de comunicação e regulação da agressividade presentes no hipotálamo e, se o ressentimento era, de fato, um ato agressivo e duradouro contra si mesmo – o impulso da morte –, talvez estes sejam os principais neurotransmissores no processo de comunicação neural cujo fenômeno final é o que chamamos de ressentimento.

RESSENTIMENTO: MECANISMO COMPLEXO FUNCIONAL QUE BUSCA A SOBREVIVÊNCIA DO EU E É USADO NA IDENTIFICAÇÃO PROJETIVA

Para conceituar o ressentimento, utilizou-se o livro “Resentimiento: clínica psicoanalítica”, da autora Maria Rita Kehl (2004).

Ressentir-se, de acordo com a autora, significa atribuir a outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer, uma vez que neste Outro é imputado a culpa daquele cuja expectativa não foi recíproca. Assim, o ressentido se sente incapaz de se envolver como um sujeito de desejo e, mesmo que o ressentimento não seja um conceito psicanalítico, aparentemente “(…) é uma solução de compromisso entre o campo do narcisismo e o do Outro.” (KEHL, 2004, p.11). Segundo o autor, “(…) o ressentido não é alguém incapaz de esquecer ou perdoar, é aquele que não quer esquecer ou que não quer ser esquecido, não perdoar, não deixar barato o mal que o vitimou”. (KEHL, 2004, p.12).

Segundo Scheler (1958), o envenenamento psicológico – ressentimento – é resultado da reorientação de impulsos agressivos para o eu, gerando, assim, a impossibilidade de afastar da memória a atitude considerada como sendo a natureza de seu ressentimento. A culpa é o sentimento que o ressentido procura atribuir ao Objeto de seu ressentimento; e, em termos kleinianos, isso acontece por meio de identificação projetiva (KLEIN, 1996). Dessa forma, o ressentido busca fazer com que o outro sofra seu sofrimento, o sofrimento da culpa, o vazio, o abandono, a negligência e a agressividade contra si mesmo.

Segundo Rosenfeld (1971), o processo de identificação projetiva (IPry) refere-se a um processo de decisão do eu mais arcaico. Considerando que o processo de ressentimento envolve, dentro de outros mecanismos defensivos do eu, o IPry, podemos dizer que o ressentido, como resultado dessa incisão, projeta objetos parciais representados pelo amor ou objetos de ódio em objetos externos (OExt).

Se ele estivesse na posição esquizofrênica, o ressentido, perceberia o OExt como um perseguidor (ALMEIDA, 2003), mas se estivesse na posição viscodárdica (MELLO et al., 2017), o agressor será percebido como o objeto desejado, aquele que abandona o ressentido ao seu próprio destino, como se não fosse capaz de se sustentar e sobreviver na ausência do OExt, como se representasse a mãe ou mesmo o útero que nutre, ou que deveria, em sua concepção inconsciente, alimentá-lo. É um objeto aglutinado, que segundo Bleger (1977), compreende um complexo sistema simbólico onde objetos parciais bons e ruins (OPc) se misturam e não podem ser discriminados (KLEIN, 1996).

Dessa forma, não há delimitação clara entre o eu e o não-eu, entre o interno e o externo; e, por essa razão, o ressentimento é mobilizado em bloco tentando arrastar consigo a parte que considera ser sua, seu agressor, dentro do processo simbiótico, é por isso que o IPry é usado como um recurso primário.

Uma condição fundamental para o desenvolvimento do ressentimento é que a pessoa ressentida se sinta enfraquecida pelo seu agressor, somada à recusa do sujeito em deixar a dependência instituída pelo seu agressor, a dependência da criança de alguém que deveria protegê-lo (KEHL, 2004) e oferecer-lhe nurturance, continência.

Assim, na infância, o Outro, o agressor do ressentido é representado pelas figuras que tinham poder efetivo para proteger, recompensar e punir a criança (KEHL, 2004).

Em uma visão neo-kleiniana, a relação simbiótica e funcional, inerente à posição Viscocárica, inicialmente descrita em espanhol como Ghlischro-cárica por José Bleger (1977), tornaria o ressentimento explícito como um ato desesperado do eu permanecer fundido ao Objeto referencial, para quem, sua demanda por amor, desejo de proteção e continência é projetada e, no mínimo, parcialmente frustrada (MELLO et al., 2017).

Manter fundido, para o ressentido é um objetivo de sobrevivência, pois acredita que não pode se sustentar e sobreviver na ausência do objeto aglutinado. Quando esse sistema falha, surge a difusão e um profundo sentimento de medo é instalado, o que chamamos de ansiedade disfuncional, sensação de morte iminente e desorganização do pensamento, especialmente, em sua forma, manifestando-se, na dimensão física como: falta de ar, palpitações, dor torácica, fraqueza ou formigamento pelo corpo, resultado da desconstrução do núcleo aglutinado e enfraquecimento do eu. 

No campo da neurociência e da saúde mental, este quadro não se assemelha apenas ao que a psiquiatria e a neurologia denominam como transtorno de ansiedade do pânico, mas, na verdade, é uma síndrome do pânico, exceto na situação em que tais sintomas se manifestam como resultado de ansiedade persecutória, comum à posição esquizofrênica ao inverso de se manifestar como resultado de uma ansiedade de difusão, objeto do nosso estudo, comum à posição viscocárica (MELLO et al., 2017).

A síndrome do pânico surge da alteração na sensibilidade excitatória de uma rede de circuitos que circundam estruturas como o córtex pré-frontal, o giro cingulado, a ínsula, o tálamo, as amígdalas e projeções do núcleo tonsilite para o sistema cerebral, hipotálamo e septo-hipocampal. Os neurotransmissores mais envolvidos nesta modulação são a noradrenalina e a serotonina (MEZZASALMA et al., 2004).

Aparentemente, o cérebro entra em estado de emergência e, em seguida, de urgência, ativando núcleos, circuitos e sistemas que geram um intenso estado de atenção e, em seguida, de desorientação na recorrência da ativação noradrenérgica nas áreas mencionadas. Talvez a natureza imediata dessa disfunção seja a separação entre objetos, segundo o autor Walter Trinca:

Percibiéndose sólo, toma consciencia de sus relaciones internas, lo que parece insoportable (…) perdura una sensación intima de que allá en el fondo, en vez de este núcleo del ser, hay la nada (…) si pudiese contar con la seguridad existencial de un contacto permanente con los fundamentos de sí mismo, el fóbico no tendría miedo de representarse solo y separado. (TRINCA, 1997, p.39).

Esta, talvez, seja a natureza imediata do medo, que surge quando os recursos psicológicos e as operações mentais utilizadas durante o complexo referido, como ressentimento, não funcionam adequadamente. Enquanto isso, é verdade que, além das referidas causas imediatas, existem as causas e causas mediadas e causas do recurso.

Apontamos como causas imediatas, aquelas ligadas ao desencadeamento imediato do medo, ou seja, a difusão, a separação entre objetos, como referido por Walter Trinca e José Bleger. As causas mediadas – referidas como parte do determinismo psíquico da psicanálise – envolvem mecanismos epigenéticos decorrentes da exposição do bebê e suas relações com os objetos referenciais, especialmente à figura materna, ao ambiente familiar e, talvez, até mesmo, ao ambiente intrauterino. Já, as causas do recurso, são aquelas determinadas por traços genéticos de comportamento.

Estudos pré-clínicos, como o realizado por Dias (2014), demonstram respostas transgeracionais relacionadas ao medo aprendido por até duas ou mais gerações anteriores. Não vemos razão para que esse raciocínio não possa ser usado para humanos e, se realmente for aplicado a humanos, o medo aprendido ou apreendido por nossos avós pode resultar em reações de medo semelhantes nas gerações subsequentes; Por esse motivo, optamos pelo termo causa do traço (causa das características determinadas pela genética do sujeito), para ansiedade defusional cuja natureza tem seu início em uma, duas ou talvez até mais de três gerações anteriores.

CONCLUSÃO

É fato que tanto o ressentimento, em termos de depressão ou mesmo medo derivado do fracasso dos recursos psicológicos que o sustentam, são o resultado de um sistema complexo, que, pelos pontos de vista da ciência, abrange o cérebro e os circuitos estruturados, formatados e reformatados sobre a influência da genética e epigenética; e que no âmbito kleiniano pode ser entendido conforme José Bleger definiu.

Bleger refere-se a este sistema precoce na relação simbólica mãe-filho. Uma desorganização neste sistema, de natureza neuronal ou objetual, traz à tona um conjunto complexo de sintomas depressivos e de medo ao mesmo tempo.

Para José Bleger (1977), há uma parte que não é discriminada, nem diferenciada, que pertence ao eu do sujeito e, na realidade externa, é chamado de objeto aglutinado. Segundo Bleger, é um conglomerado com muitas experiências frustrantes e também gratificantes desde o início da vida do bebê.

Entendemos então que inferir uma única natureza ao fenômeno do ressentimento, seja ele objetual ou estrutural – em termos biológicos – é, a nosso ver, reducionista. Acreditamos que uma visão mais sistêmica e transdisciplinar desses fenômenos psicanalíticos e biológicos aumenta sobremaneira nossa capacidade de intervir na busca de um desperdício mais adequado na direção do desenvolvimento humano a partir do ser; Seja pela compreensão e manipulação do setting  terapêutico e das relações de transferência e contratransferência, ou mesmo concomitantes, pela neuromodulação cuidadosa com psicotrópicos ou estimulação magnética transcraniana (TMS), que será objeto de pesquisas do GEPECH em futuro próximo (LEFAUCHEUR et al., 2014).

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, R. Identificação projetiva, contratransferência e impasse no setting analítico. Revista Mudanças (Universidade Metodista de SP), v. 11, n. 2, p. 213–226, 2003.

BATEMAN, A; FONAGY, P. Mentalization based treatment for personality disorders. A practical guide. Oxford, United Kingdom: Oxford University Press, 2016.

BRANDÃO, M. L. et al. Neural organization of different types of fear: Implications for the understanding of anxiety. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 25, n. SUPPL. 2, p. 36–41, 2003.

HOLLIS, J. Os pantanais da Alma: nova vida em lugares sombrios. Toronto. Canadá: Editora Paulus, 1998.

HULLEY, SB; CUMMINGS, SR; BROWNER, WS; GRADY, DG; NEWMAN, T. Delineando a pesquisa clínica: uma abordagem epidemiológica. 3. ed. Porto Alegre: Editora Artimed, 2008.

LEFAUCHEUR, J. P. et al. Evidence-based guidelines on the therapeutic use of repetitive transcranial magnetic stimulation (rTMS). Clinical Neurophysiology, v. 125, n. 11, p. 2150–2206, 2014.

LIEBERMAN, M. D. Social cognitive neuroscience: A review of core processes. Annual Review of Psychology, v. 58, p. 259–289, 2007.

MELLO, P; MONSON, CA; BERTINI, E; COSTA RRPC; MARTINS, MBA; YAMAMOTO, MN; LEITE, J. Neuropsicanálise e a classificação das posições psicanalíticas neokleinianas. Neurociências e Psicologia, v. 13, p. 21–32, 2017.

MEZZASALMA, M. A.; VALENÇA, A. M.; LOPES, F. L.; NASCIMENTO, I.; ZIN, W. A.; NARDI, A. E. Neuroanatomia do transtorno do pânico. Rev Bras Psiquiatr 26 (3), , 2004. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44462004000300010 >

TRINCA, W. Fobia e pânico em psicanálise. São Paulo. Brasil: Editora Vetor Psico-pedagógica Ltda, 1997.

TURATO, E. R. Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Revista de Saúde Pública, v. 39, n. 3, p. 507–514, 2005.

YAMADA, M. et al. Induction of galanin after chronic sertraline treatment in mouse ventral dentate gyrus. Brain Research, v. 1516, p. 76–82, 2013.

[1] Doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade de Negócios e Ciências Sociais (UCES/Buenos Aires/Argentina); Mestre em Psicologia da Saúde pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP/SP/Brasil); Especialista em Medicina Comportamental pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/SP/Brasil); Neurologista Clínico da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/SP/Brasil); Médico da Universidade de Taubaté (UNITAU/SP/Brasil).

[2] Doutor em Farmacologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas (USP/SP/Brasil). Mestre em Farmacologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas (USP/SP/Brasil). Especialista em Medicina Comportamental (UNIFESP/SP/Brasil). Psicanalista formado em Psicanálise Transpessoal (IBT). Psicanalista formado em análise do Reich (IBAR).

[3] Psicanalista formado em Psicanálise Transpessoal (IBT). Graduado em Engenharia Elétrica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/MG/Brasil). Graduado em Filosofia (UNIFAI/PUC/SP/Brasil).

[4] Psicanalista formado pela Faculdade de Psicanálise e Ciências Humanas (EPCH/SP/Brasil). Especialista em Teoria Psicanalítica (Sorbonne/Paris/França). Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP/SP/Brasil).

[5] Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP/Brasil). Psicanalista da Escola FACEI (SP/Brasil). Graduado em Letras pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP/SP/Brasil).

Enviado: Junho de 2021.

Aprovado: Novembro de 2021.

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Paulo de Mello

2 respostas

  1. Muito interessante a abordagem dada ao ressentimento. Para mim foi uma contribuição, pois estou pesquisando a agressividade humana, e me parece que o ressentimento pode ter um papel muito importante nos casos de suicídio, de feminicídios e crimes passionais, funcionando como “combustível silencioso” para detonar o processo de morte.

  2. Também achei muito interessante este ponto de partida, o ressentimento com toda essa pluralidade no psíquico.

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