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Sanções penais atípicas no âmbito da colaboração premiada: legalidade?

RC: 145666
307
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/sancoes-penais

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

TERÇAROLLI, André Fini [1]

TERÇAROLLI, André Fini. Sanções penais atípicas no âmbito da colaboração premiada: legalidade?. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 06, Vol. 02, pp. 74-86. Junho de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/sancoes-penais, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/sancoes-penais

RESUMO

O presente trabalho visa analisar a possibilidade de fixação ou não de sanções penais atípicas em colaboração premiada. Nesse contexto, debate-se o choque entre a legalidade e autonomia de vontade com a possibilidade de formulação de penas extralegais, refletindo na premissa sobre necessidade ou não de se estabelecer uma racionalização legal, de modo a estipular limites a própria discricionariedade inerente ao negócio formalizado entre as partes. Por fim, após a tomada de decisão, será exposto a atual posição jurisprudencial e a conclusão proposta.

Palavras-chave: Colaboração Premiada, Sanções Atípicas, Autonomia da Vontade, Legalidade.

INTRODUÇÃO

Há uma tendência, não apenas no cenário brasileiro, como também no âmbito internacional, de ampliação dos espaços de consenso[2] no processo penal, através da aceitação de acordos na justiça penal. A concepção foi sendo desenvolvida visando enfrentar a crise que paira sobre a persecução penal, em decorrência de sua ineficiência e falta de celeridade (FERNANDES, 2007, p. 55; VASCONCELLOS, 2015, p. 19).

O grande dilema do processo penal é coordenar o indispensável respeito aos direitos fundamentais e de outro alcançar um sistema criminal mais eficiente. Contudo, a eficiência não representa assegurar maior recrudescimento das sanções penais ou franquear o maior número de punições, com sua ideia busca-se um ponto de equilíbrio, assegurando um resultado justo em tempo razoável concomitantemente com as garantias do acusado (FERNANDES, 2009, p. 9-10)

Assim, o incentivo (benefício) oferecido ao acusado para obtenção de sua colaboração – “adota posturas cooperativas com autoridades” (LUAND, 2008, p. 47-48) -, configura instrumento eficaz[3] de combate a determinadas investigações envolvendo tipos penais desprovidos de testemunhas presenciais  (BOTTINO, 2016, p. 360), com a ressalva aos próprios envolvidos, franqueando a melhora na “qualidade do material probatório produzido”(MENDONÇA, 2013, p. 2).

Dentro do cenário exposto, a lei nº 12.850/2013 regulamentou os aspectos procedimentais da colaboração premiada, não obstante de modo muito impreciso, suscitando dúvidas quanto às formulações práticas (VASCONCELOS, 2022, p. 21). A praxe forense de adoção do modelo de justiça negocial tem possibilitado, com bastante frequência, a concessão de penas sem previsão no ordenamento jurídico (atípicas) de modo a fugir das balizas fixadas no ordenamento jurídico, por intermédio da criação de sanções penais sequer estabelecidas em lei.

Nesse contexto, o escopo do presente artigo busca analisar, com embasamento em situações concretas, a possibilidade jurídica de estipulação de penas inéditas (desprovidas de previsão legal) lastreadas na autonomia de vontade, ou na sua inviabilidade por confrontar o  princípio da legalidade. Em outras palavras, perquirir se a legalidade impõe ou não filtros e limites na fixação das sanções a serem fixadas.

Há sensível reflexo prático em discutir a questão, pois a homologação do acordo de colaboração premiada vincula não apenas as partes ao conteúdo estabelecido, mas também o próprio órgão jurisdicional (BOTTINO, 2016, p. 374).

Em suma, como afirmado por Vinícius Vasconcelos: “Tais posturas avessas à legalidade podem ser aceitas?”(VASCONCELLOS, 2022, p. 21).

BENEFÍCIOS ESTIPULADOS EM LEI (ESVAZIAMENTO PRÁTICO):

De acordo com as previsões da lei nº 12.850/2013, foram estipuladas estritamente as sanções premiais que podem ser concedidas ao colaborador, entre elas: (i) concessão de perdão judicial[4]; (ii) redução da pena privativa de liberdade em até 2/3 (dois terços); (iii) substituição em restritiva de direitos; e (iv) sendo posterior à sentença (fase de execução), redução da pena até a metade ou progressão de regime, ainda que ausente os requisitos objetivos.

De acordo com o Guilherme de Souza Nucci a “opção deve levar em consideração o grau de cooperação do delator, pois quanto mais amplo o benefício aos interesses do Estado, maior deve ser o seu prêmio”(NUCCI, 2021, p. 76).

Finalizando as hipóteses legais, reservadas a casos específicos, poderá ser concedida a imunidade processual, a qual implica no não oferecimento de denúncia para infração penal desconhecida das autoridades públicas, voltada para colaborador que não seja o líder da organização e o primeiro a prestar efetiva cooperação (MENDONÇA, 2017, p. 74).

Outra questão que deve ser sopesada é sobre a possibilidade de concessão de outras sanções premiais previstas na legislação penal, que também disciplinam a colaboração premiada. Nos filiamos a posição que possibilita a aplicação dos benefícios estipulados em outras leis que regulam o mesmo tema em decorrência de estarem também subordinados a legalidade, formando o que se convencionou denominar de “microssistema de colaboração premiada” (MENDONÇA, 2017, p. 76).[5]

Dentro dessa ótica, para exemplificar seria possível a concessão de regime inicial mais favorável (aberto ou semiaberto) do que o inicialmente previsto de acordo com as condições legais, com apoio na lei nº 9.613/1998.

Outrossim, não verificamos impedimento à concessão de benefícios cumulativos ou simultâneos para o mesmo colaborador, por exemplo, a diminuição da pena em 2/3 com posterior substituição por restritivas de direito, ou “a concessão de imunidade em relação a parte dos fatos, concedendo-se os benefícios previstos para os demais fatos restantes” (MENDONÇA, 2017, p. 76).

Embora não se ignore posição contrária argumentando eventual risco de estabelecimento de “sanções simbólicas”(NUCCI, 2021, p. 77), em nosso sentir, representa desdobramento lógico da justiça consensual, ao conferir maior espaço de atuação para as partes transigirem dentro dos parâmetros legais previamente estabelecidos, bem como funciona como um atrativo maior ao pretenso interessado em colaborar de forma mais contundente e contribuir com a eficiência do processo penal (MASSON, 2020, p. 189; GOMES; SILVA, 2015, p. 278).

Entretanto, apesar da legislação ter estabelecido precisamente as sanções premiais, ainda que dentro da concepção de microssistema de colaboração premiada, acordos têm sido firmados, em especial no curso da Operação Lava Jato, estabelecendo penas sem base legal. A mencionada operação foi instaurada para apurar práticas de corrupção e lavagem de dinheiro perpetradas no âmbito da maior empresa estatal do país, a Petrobras, por intermédio de um cartel formado entre empreiteiras que pagavam vantagens indevida a agente público em troca de favorecimento nos contratos públicos. Nesse contexto, os empresários, diretores das construtoras e até agentes públicos firmaram uma série de acordos de colaboração premiada, estabelecendo benefícios que ultrapassam as balizas legais e alguns deles desprovidos de base legal, de forma a não observar o regramento estabelecido em lei, como, por exemplo, a determinação do quantum de pena a ser aplicado em ofensa à individualização de pena (tarefa a ser realizada exclusivamente pelo juiz na sentença), a serem cumpridas em regimes diferenciados e com hipóteses de progressões avessos à nossa legislação, impossibilidade de recorrer, não persecução a parentes dos delatores, não investigação de outros crimes, exclusão do perdimento de bens originados de atividades ilícitas etc (CORDEIRO, 2020, p. 98).

A título de exemplo, podemos citar a cláusula 5ª, inciso I, alíneas b e c, do acordo homologado pelo Supremo Tribunal Federal na Petição 5.210[6], que estabeleceu o cumprimento da pena privativa de liberdade transitada em julgada, em regime semiaberto no período de zero a dois anos, com a posterior progressão para o regime aberto até o cumprimento total da pena.

Em outro caso, fugindo aos contornos da lei, temos a cláusula 5ª, parágrafo 1º, do acordo homologado pelo Supremo Tribunal Federal na Petição 6.138[7], na qual restou definida o apenamento máximo em vinte anos a ser cumprido, independente da observância dos artigos 33 e 48 do Código Penal, dois anos e três meses no regime fechado diferenciado e, finalizando, com nove meses no regime semiaberto diferenciado (VASCONCELLOS, 2022 p. 206).

Com o aval do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Habeas Corpus nº 127.483/PR, foi mitigado um dos efeitos extrapenais da condenação relativo ao perdimento de bens que sejam produto de crime, através de permissão da utilização por familiares do delator (veículos blindados e imóveis), sob a justificativa de que o Estado estaria se desonerando do dever de prestar assistência material ao colaborador e sua família.[8]

AUTONOMIA DE VONTADE X LEGALIDADE:

Apesar da colaboração premiada possuir natureza de negócio jurídico processual (Brasil 2013)[9], não está sujeita a ampla liberdade contratual para estabelecer o conteúdo dos acordos como ocorre na esfera do direito privado. A autonomia de vontade inerente aos negócios jurídicos sofre limitações normativas derivadas da natureza pública do acordo, condicionado aos limites legais impostos pelo próprio ordenamento jurídico (CORDEIRO, 2020, p. 97; CALLEGARI; LINHARES, 2021, p. 26).

De acordo com Didier Júnior e Bomfim “em nenhum âmbito do direito, pode-se falar em autorregulação sem limites; ao contrário, o autorregramento pressupõe um espaço atribuído ao sujeito”(DIDIER; BOMFIM, 2016, p. 191). Assim, os limites de atuação das partes na colaboração premiada devem respeitar o espaço estritamente definido em lei, não podendo pactuar (ou até mesmo inventar) sanções premiais não previstas ou admitidas pelo sistema.

Como exemplificadamente observado, a Operação Lava Jato criou uma série de sanções extralegais destoando do regime estabelecido no Código Penal e na Lei de Execução Penal. Porém, tal posicionamento encontra respaldo em alguns julgados do Supremo Tribunal Federal, como no Agravo Regimental no Inquérito nº 4.405/DF:

O princípio da legalidade veda a imposição de penas mais graves do que as previstas em lei, por ser garantia instituída em favor do jurisdicionado em face do Estado. (…) não viola o princípio da legalidade a fixação de penas mais favorável (…) (BRASIL, 2018, p.2).

Com as devidas vênias, não temos como concordar com o referido posicionamento, pois o princípio da legalidade não pode ser excepcionado para funcionar como válvula de escape para justificar determinadas situações, sua aplicação é cogente e não pode ser flexibilizada para impor penas não previstas em lei, ainda que mais benéfica ao acusado. O princípio da legalidade determina que a pena para ser aplicada deve estar estabelecida em lei antes da realização do fato, de modo a dar conhecimento e evitar surpresas no momento de sua aplicação. Assim, impede a criação de penas sem previsão em lei, ainda que sejam estabelecidas em favor do acusado por serem mais benéficas, e simboliza a indevida ingerência sobre as funções atribuídas ao Poder Legislativo ao possibilitar ao Poder Judiciário criar uma nova lei.

A lei funciona como limitador da atuação estatal, como enfatiza Guilherme de Souza Nucci “existe para estipular a justa medida da ação do órgão estatal”(NUCCI, 2021, p. 78), pois ainda que confira certa discricionariedade para disciplinar o conteúdo da colaboração premiada, a liberdade de atuar está adstrita aos limites fixados dentro da estipulação legal, impedindo que se opte por sanções não previstas em lei, mesmo sob eventual justificativa de beneficiar o acusado. No mesmo sentido Callegari e Linhares: “A vinculação à legalidade, aqui, é exigência inafastável”(CALLEGARI; LINHARES, 2021, p. 159).

Não obstante a tese pareça ser sedutora, a definição da pena tem delimitação em lei  prévia, derivando exclusivamente daquela única fonte normativa. Assim, nenhuma outra espécie de norma poderia cominar sanções penais, muito menos acordos de colaboração premiada. A legalidade determina a impossibilidade de aplicação de sanção penal diversa da estipulada em lei, seja de caráter inovador, aperfeiçoada ou favorável.

Há autores que defendem a flexibilização das garantias do acusado, entre elas a legalidade, argumentando que não seriam completamente aplicáveis no âmbito do processo consensual por serem voltadas para as hipóteses de existência de conflito entre partes. Dessa forma, pugnam pela diferenciação entre o processo tradicional e o consensual, pois o último acabaria por aqueles direitos consagrados (MENDONÇA, 2017, p. 68).

Ainda que vislumbramos diferenças entre o processo tradicional e o consensual, não compartilhamos com a posição exposta, porquanto ainda que comportem procedimentos diversos, alguns deles com a possibilidade de abreviação do rito através da antecipação de pena, ou até mesmo subtrair do acusação a posição de resistência para se tornar um colaborador em troca de benefícios, as garantias fundamentais não podem ser flexibilizadas de forma alguma, sob pena da “tendência de contaminação de todo o sistema em oposição às garantias tradicionais”(VASCONCELLOS, 2022, p. 48).

Visando conter a sensível violação às garantias fundamentais e o sistêmico desrespeito à legalidade, o Pacote Anticrime, por meio da lei nº 13.965/2019, inseriu dispositivos na lei nº 12.850/2013 limitadores da autonomia negocial, de modo a deixar explícito que a discricionariedade conferida aos acordos são subordinadas à legalidade. Em especial, quanto a possibilidade de pactuação de sanção premial atípica, aclarando a vontade legislativa  de vedar a concessão de benefícios não estipulados em lei, não sinalizando a possibilidade de criação de outras modalidades, de modo a buscar “impedir a burla as normas penais vigentes” (NUCCI, 2021, p. 78). De acordo com Callegari e Linhares “restou ainda menor espaço para problematização a respeito da definição de sanções premiais extralegais”(CALLEGARI; LINHARES, 2021, p. 159).

O referido diploma legislativo, determina ao magistrado a realização de um controle de adequação à legalidade em relação às sanções previstas em lei e às cláusulas estabelecidas no bojo do acordo de colaboração, considerando nulas as que violem as regras de regime inicial de cumprimento de pena, os regramentos dos regimes previstos (estipulação dos regimes diferenciados) e os requisitos para progressão de regime estabelecidos na lei nº 12.850/2013.

Cumpre enfatizar que a motivação da alteração legislativa buscou coibir os abusos verificados em acordos celebrados no âmbito da Operação Lava Jato (NUCCI, 2021, p. 78; CALLEGARI; LINHARES, 2021, p. 159). Todavia, embora a clareza da alteração promovida pelo Poder Legislativo, no mês de outubro de 2022, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento da Pet. 13.974, contornando a norma legal admitiu a fixação de sanções penais atípicas, mais brandas, em acordo de colaboração premiada. De acordo com seus termos, foi estabelecido tempo máximo de doze anos de pena privativa de liberdade, bem como critérios diferenciados para o regime de cumprimento (prisão domiciliar) e para progressão de regime (prazos inferiores ao legal).

Embora inicialmente a Relatora, Ministra Nancy Andrighi, tenha indeferido a homologação do acordo de colaboração premiada, em razão das ofensas ao estipulado pelo Pacote Anticrime, a Corte Especial ao analisar o Agravo Regimental contra a decisão da Relatora, por intermédio do voto divergente do Ministro Og Fernandes, deu provimento à insurgência recursal para devolver os autos à Ministra para análise de homologação da proposta de acordo.

O pronunciamento judicial foi dado por maioria, seis votos a cinco, fundamentado na impossibilidade da legalidade constituir uma garantia do acusado frente ao Estado, não podendo ser utilizada em seu prejuízo. Com base em tal premissa, foi admitida a flexibilização da lei para estipular sanções penais atípicas, desde que mais benéficas.

Os vencidos, aduziram que a admissão de sanções atípicas, conforme estipuladas no caso concreto, após as alterações promovidas pelo Pacote Anticrime, implicaria em afirmar que a lei não é mais aplicável ou teria perdido sua validade. Nesse contexto, a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, criticou:

Assim, nós revogamos a lei ou vamos passar a entender que tudo pode, que não há nenhum limite e que portanto não precisamos da lei (CONSULTOR JURÍDICO, 2022).

Na praxe forense, verifica-se que a relevância da matéria tratada assume grande destaque para fomentar o esvaziamento da legalidade. Não obstante, ao abordar o assunto, adverte Vírgilio Afonso da Silva, a

(..) importância de determinadas pautas não é razão suficiente para transferir ao STF uma competência decisória que ele não possui (SILVA, 2021, p. 147-148).

CONCLUSÃO

Nesse cenário, debater sobre o tema ainda assume significativa relevância, pois ainda que exista um importante precedente firmado pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, a maioria dos seus integrantes não compõem as cadeiras das Turmas Criminais, circunstância que suscitará ainda muito debate diante das alterações advindas do Pacote Anticrime.

Por tais circunstâncias, defendemos a imperiosa necessidade do estabelecimento de filtros e limitações aos acordos de colaboração premiada por intermédio de um controle de legalidade, em especial quanto a fixação de sanções premiais, de modo a racionalizar sua aplicabilidade e oferecer instrumento de controle a discricionariedade inerente ao instituto.

Os critérios legais não podem ceder espaço frente à autonomia de vontade, ainda que sob a justificativa de beneficiar o acusado, ou tornar o acordo mais atrativo, a ponto de conferir a faculdade de criar sanções penais atípicas. A colaboração por afastar a própria posição de resistência do acusado no processo penal precisa respeitar à legalidade, de maneira que exista a correspondência entre as penas, regimes e hipóteses de progressão previstas na legislação e aquelas estipuladas no acordo. A lei determina os limites e o conteúdo da autonomia negocial.

Lançar mão da teoria dos poderes implícitos, com base na ideia de quem pode o mais (conceder perdão judicial), também pode realizar o menos (sanções menores desprovidas de base normativa), ignora a segurança jurídica ao desprezar as penas previamente fixadas em lei, bem como proporciona atuações ilegítimas do Poder Judiciário.

Muito embora compartilhamos a concepção de microssistema da colaboração premiada, com a possibilidade de concessão de benefícios cominados em outras legislações, representando um atrativo maior para fomentar a realização do acordo e conferindo uma discricionariedade negocial às partes celebrantes, até mesmo com a possibilidade fixação de sanções cumulativas e sucessivas, todos estão rigorosamente subordinados à legalidade.

Assim, todas as sanções premiais estão taxativamente cominadas no ordenamento jurídico, impossibilitando a concessão de benefícios extralegais, por força do princípio da legalidade que impossibilita a criação judicial de penas sem embasamento legal, ainda que mais vantajoso ao acusado, sob pena de invasão da esfera de atuação dos demais Poderes constituídos.

O texto legal representa o limite intransponível para qualquer discricionariedade desenvolvida na colaboração premiada. Certo que o exercício da justiça consensual não transforma o Poder Judiciário em criador de sanções sem embasamento normativo, mas sim em garante do próprio Direito criado pelos Poderes instituídos. Em uma democracia, todos os julgadores são colocados “under the rule of law”.

Em suma, a lei constitui o limite e o espaço de atuação do agente público, não podendo ir além ou aquém do que foi estritamente estipulado pela norma jurídica. No âmbito do Direito Processual Penal, a autonomia da vontade não pode prevalecer frente ao critério determinado por lei, principalmente para criar sanções não estabelecidas pelo Poder Legislativo, ainda que seja para favorecer o acusado. Assim, a autonomia negocial encontra-se limitada pelos critérios definidos na lei, ainda que conceda certa discricionariedade não poderá ultrapassar as barreiras previamente definidas. A pena tem como única fonte a lei, apenas tal espécie normativa pode defini-la e fixar seus contornos de cumprimento, sob pena de franquear ao Poder Judiciário a criação de uma nova lei.

Portanto, ao se admitir apenas sanções premiais típicas, incumbe ao magistrado na etapa de homologação, exercer o controle de legalidade sobre as colaborações firmadas entre as partes, para reconhecer a nulidade das cláusulas avessas à previsão normativa e não chancelar o acordo. Caso contrário, na eventualidade de não reconhecimento da ilegalidade no momento oportuno, a previsão negocial terá que ser aplicada durante o julgamento.

REFERÊNCIAS

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APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. “(…) modelo que se pauta pela aceitação (consenso) de ambas as partes – acusação e defesa – a um acordo de colaboração processual com o afastamento do réu de sua posição de resistência, em regra impondo encerramento antecipado, abreviação, supressão integral ou de alguma fase do processo, fundamentalmente com o objetivo de facilitar a imposição de alguma sanção penal com algum percentual de redução, o que caracteriza o benefício ao imputado em razão da renúncia ao devido transcorrer do processo com todas as garantias a ele inerentes” (VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal. São Paulo: Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2015, p. 55).

3. “Sua relevância é indiscutível: através da colaboração premiada, à Polícia Federal e o Ministério Público Federal têm conseguido compreender, demonstrar e comprovar o funcionamento de esquemas criminosos complexos de corrupção que, provavelmente, jamais seriem desvelados através dos meios tradicionais de investigação” (CAVALI, Marcelo Costenaro. Duas faces da colaboração premiada: visões “conservadora” e “arrojada” do instituto da lei 12.850/2013. In: MOURA, Maria Thereza de Assis; BOTTINI, Pierpaolo da Cruz (Coord.). Colaboração premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 256).

4. “(…) desnaturação da figura do perdão judicial, causa extintiva da punibilidade dissociada de conotação premial, mas essencialmente vinculada à impossibilidade de a sanção penal cumprir qualquer de suas funções em face da dor maior sofrida pelo próprio agente” (CARVALHO, Natalia Oliveira. A delação premiada no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p 106).

5. Em sentido contrário: “Não é viável a combinação de leis, pois surgiria uma terceira lei, jamais prevista pelo Parlamentos” (NUCCI, Guilherme de Souza. Organização Criminosa. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 81).

6. BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria-Geral da República. Termo de Acordo de Colaboração Premiada de Paulo Roberto, homologado em 27 de agosto de 2014. 2014. Disponível em: <https://s.conjur.com.br/dl/acordo-delacao-premiada-paulo-roberto.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2022.

7. BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria-Geral da República. Termo de Acordo de Colaboração Premiada de José Sérgio Machado, homologado em 25 de maio de 2016. 2016. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/peca-pet-6138.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2022.

8. “(…) pode admitir-se alguma espécie de concessão no campo patrimonial apenas na hipótese de atribuição de perdão judicial, tendo em vista a natureza da sentença concessiva de extinção da punibilidade com base no inc. IX do art. 107 do CP” (PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada. Legitimidade e procedimento. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2016, p. 151).

[1] Advogado criminalista, Mestrando em Direito Processual Penal na PUC/SP e Pós- Graduado lato sensu em Direito Penal Econômico pela FGV/SP e FDUSP. ORCID: 0009-0007-5677-8195.

Enviado: 17 de maio, 2023.

Aprovado: 30 de maio, 2023.

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André Fini Terçarolli

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