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O positivismo jurídico de Herbert L. A. Hart: da refutação do imperativismo de Austin ao sistema de regras primárias e secundárias

RC: 132420
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PINTO, Fernanda Miler Lima [1]

PINTO, Fernanda Miler Lima. O positivismo jurídico de Herbert L. A. Hart: da refutação do imperativismo de Austin ao sistema de regras primárias e secundárias. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 11, Vol. 08, pp. 49-63. Novembro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/refutacao-do-imperativismo

RESUMO

Seguindo os moldes de uma pesquisa singularmente bibliográfica, esse trabalho se organiza de maneira a fazer apontamentos essenciais acerca dos três questionamentos lançados por Herbert Hart no primeiro capítulo de “O Conceito de Direito” (“em que a obrigação jurídica se difere dos comandos garantidos por ameaças?”; “em que a obrigação jurídica se difere da obrigação moral?”; “o que são regras? elas existem?”). O objetivo deste artigo é apresentar uma das obras mais importantes para se conhecer e compreender o positivismo jurídico, dando ênfase para os pontos principais do pensamento de Hart. Sendo assim, esse artigo obedece a ordem de, primeiramente, introduzir o pensamento de John Austin para, em seguida, demonstrar como Herbert Hart refutou o imperativismo jurídico. O segundo ponto analisado será quanto à ideia de obrigação jurídica para Hart. Em terceiro, será ilustrado como o jurista inglês pensou o sistema escalonado de regras que regem a sociedade, um dos pontos mais marcantes de sua obra. Com esse estudo descritivo-explicativo de uma das teses mais notáveis no estudo da teoria do Direito, pode-se expor os principais argumentos de Hart para superar o imperativismo jurídico e para apresentar sua visão de Direito, que mais tarde será alvo de reflexão, reconhecimento e críticas de diversos juristas pelo mundo.

Palavras-chave: Hart, Austin, Obrigação, Regras.

1. INTRODUÇÃO 

Considerado o mais importante representante contemporâneo da teoria jurídica analítica inglesa, de 1950 até os dias atuais, cuja obra é apogeu do positivismo jurídico, Herbert Lionel Adolphus Hart, nas páginas iniciais de “O Conceito de Direito”, se vincula à tradição analítica, focando no uso da linguagem para entender práticas sociais (DANTAS, 2014). Hart não adentra em responder como o Direito deve ser, mas se concentra em compreender como ele é, deslocando a análise direta sobre fatos brutos para a mediação pela linguagem (LOPES FILHO; LOBO; CIDRÃO, 2018). Por isso, já no prefácio da sua obra, ele alerta que os juristas considerarão seu livro como um ensaio de teoria jurídica analítica, por se preocupar com a clarificação de determinados termos, como “ser obrigado” e “ter uma obrigação”. Por outro lado, admite, também, que podem o vincular à sociologia descritiva, pois as importantes distinções terminológicas, nem sempre óbvias, de “[…] situações ou relações sociais podem ser mais bem trazidas à luz por um exame dos usos-padrão de expressões relevantes e do modo por que estes dependem de um contexto social, ele próprio deixado frequentemente por afirmar.” (HART, 2001, p. 2).

Hart nasceu em Yorkshire, Inglaterra, em 18 de julho de 1907, no seio de uma família que mantinha sua identidade judaica ortodoxa (SIFUENTES, 2017). Entre 1952 e 1969, foi professor de Teoria do Direito (Jurisprudence) na Universidade de Oxford e, entre 1956 e 1957, atuou como professor visitante na Universidade de Harvard. Durante sua carreira, teve notáveis alunos, como Joseph Raz, John Finnis e Ronald Dworkin (a quem chamava the noblest dreamer) (DANTAS, 2014). Além desses, também foi professor de Brian Barry, Vernon Bogdanor, Geoffrey Maccormack, Peter Hacker, Vinit Haksar, Ruth Gavison, Stephen Munzer e Wilfrid Waluchow (seu último discípulo formal) (SIFUENTES, 2017). Herbert Hart faleceu em 26 de dezembro de 1992, com 85 anos de idade, deixando um legado de diversos livros publicados e de ter escrito uma das principais obras entre os estudos jurídicos do século XX, “O Conceito de Direito”, a qual inspirou uma corrente de autores, como Neil MacCormick (DANTAS, 2014; SIFUENTES, 2017).

O presente artigo tem como objetivo expor alguns dos principais pontos debatidos na obra “O Conceito de Direito”, de Herbert Lionel Adolphus Hart, concentrando-se na análise da primeira parte dessa obra, na qual Hart refuta o imperativismo jurídico de John Austin (capítulos II, III, IV). Além disso, esse estudo também se desenvolve no sentido de fazer breves apontamentos e reflexões sobre o entendimento de Hart acerca da obrigação jurídica e do sistema de regras que regem o Direito.

Desse modo, o conteúdo aqui apresentado se organiza de maneira a responder os três questionamentos lançados por esse autor no primeiro capítulo de “O Conceito de Direito”,  quais sejam: 1) “Em que a obrigação jurídica se difere dos comandos garantidos por ameaças?”; 2) “Em que a obrigação jurídica se difere da obrigação moral?” e 3) “O que são regras? Elas existem?”. Sendo assim, esse artigo obedece a ordem de, primeiramente, introduzir o pensamento de John Austin para, em seguida, demonstrar como Herbert Hart refutou o imperativismo jurídico. O segundo ponto analisado será quanto à ideia de obrigação jurídica para Hart. Em terceiro, será ilustrado como o jurista inglês pensou o sistema escalonado de regras que regem a sociedade, um dos pontos mais marcantes de sua obra.

2. REFUTANDO O IMPERATIVISMO JURÍDICO DE JOHN AUSTIN

Em “The Province of Jurisprudence Determined”, John Austin pormenoriza acerca do imperativismo jurídico. Segundo esse jurista, o Direito é um conjunto de comandos garantidos por ameaças[2]. Para melhor compreender essa imagem do Direito, vale pensar em um exemplo: um ladrão, para assegurar seu comando a um caixa de uma loja, de modo que esse entregue àquele o dinheiro desse estabelecimento, se vale de uma ameaça (morte ou lesão). O que diferencia o Direito desse caso do assaltante é de onde vem a ordem, que, nesse caso, provém de um ato soberano. Assim, ele formula a relação de soberano e súdito, sendo que esse obedece àquele devido a um hábito de obediência. Soberano é aquele a quem se tem o hábito de obedecer, embora ele não obedeça a ninguém.

Nessa visão do imperativismo austiniano, movido por comandos e ameaças[3], os juízes decidem conforme os comandos do soberano, porém, se esse não tiver se pronunciado sobre a questão em pauta, resta àqueles julgarem como lhes parecer mais adequado. Desse modo, não tendo o soberano decidido previamente sobre a matéria, e não tendo se oposto à decisão derradeira, entende-se que o soberano a aceita tacitamente, portanto, essa será considerada uma decisão do próprio soberano. Acerca disso, Lenio Streck (2017, p. 169) explica como essa visão possibilita que o juiz ponha o “fato”:

O Direito seria constituído de comandos proferidos pelo soberano para uma comunidade específica (autorictas non veritas facit legem). Austin defendia a codificação, pois entendia ser o Direito legislado uma forma superior em relação ao Direito judiciário. Todavia, estando no Commom Law, também considerava que os juízes criavam Direito, de modo particular, por delegação legislativa diante da impossibilidade de as regras darem conta de forma absoluta de todas as hipóteses fáticas. Portanto, juiz põe ‘fato’. Positiva.

É a esse modelo que Hart fará questionamentos, concentrando-se principalmente em três argumentos: 1) Distinguir um comando de uma regra; 2) Demonstrar que existem tipos diferentes de regras e que nem todas se adequam ao modelo formulado por Austin e 3) Defender que as noções de soberano, súdito e hábito de obediência são falhas e que não conseguem explicar o funcionamento das regras jurídicas.

2.1 CRÍTICAS E OBJEÇÕES 

Para Hart, regras e comandos são coisas distintas, e, para melhor compreender essa distinção, ele constrói a ideia do sentido interno e externo das regras.

O sentido externo da regra pode ser entendido como um padrão constatativo, uniforme, repetitivo e estatístico. Por exemplo: em determinada comunidade, as pessoas têm o hábito de ir ao cinema nos finais de semana. Apesar de ser uma característica constatável nesse grupo, que a cumpre de modo uniforme e repetitivo, podendo ser comprovado estatisticamente, as pessoas não interiorizam esse comportamento como uma regra. Quem percebe o caráter externo da regra é o observador. Quando o observado incorpora o hábito como uma regra, estamos falando do sentido interno. Exemplo desse é o fato de se pagar impostos, o qual não precisa de demais justificativas para ser cumprido. Cumpre-se, pois se percebe como uma regra, logo, possui o sentido externo (estatisticamente constatável) e o sentido interno (interiorizada pelos participantes do grupo).

O sentido interno[4] exige que a regra seja obedecida, porque a considera válida e obrigatória. Três elementos nos fazem perceber estarmos diante de uma regra em sentido interno: 1) Quando os participantes a consideram obrigatória; 2) Quando a desobediência da regra pode ensejar críticas ou mesmo uma sanção e 3) Quando o motivo das críticas ou sanções se concentram na própria desobediência da regra. Desse modo, percebe-se que, no caso do sentido interno, a justificativa da regra é nela mesma, não é necessário apelar para razões substantivas que fundamentem a obediência a esse comportamento. Por exemplo: Não é necessário justificar o pagamento de impostos como algo bom a ser feito ou algo benéfico para a sociedade, mesmo porque isso não convenceria grande parte das pessoas. Essa ação se justifica por ser uma regra em sentido interno. Os indivíduos internalizam sua obediência como obrigatória porque o seu descumprimento pode ensejar críticas/sanções, ou seja, o motivo dessas se concentra na desobediência da própria regra. No exemplo do cinema, ninguém seria punido por desobedecer a regra de sentido apenas externo, pois ela não é vista como obrigatória. Essa diferenciação se tornou essencial para compreender o sentido de regra para Hart.

A concepção desse jurista entende que regras são mais complexas em um sentido normativo que os comandos, e, a partir disso, elenca algumas distinções importantes. Primeiro, Austin vincula a obediência do comando à uma ameaça/uma sanção vinda do soberano aos súditos, porém, mesmo uma lei criminal (que o descumprimento da regra enseja automaticamente uma sanção) tem, muitas vezes, um âmbito de aplicação diferente do de ordens dadas a outros (súditos), porque uma lei pode impor deveres àqueles que a fazem, seus agentes (soberano).

Além disso, as leis são distintas umas das outras, pois elas não somente obrigam as pessoas a fazerem coisas, mas também podem conferir-lhes poderes ou ter a função de organização do sistema. O modelo austiniano previa uma sociedade onde havia somente comandos de obediência obrigatória, porém, nem todas as regras se traduzem apenas em obrigações cujo descumprimento enseja uma sanção, como a regra que determina a validade de um negócio jurídico, por exemplo. Para Hart, o modelo que busca uma uniformidade ilusória configura um erro, porque “uma característica distintiva do Direito, se não a principal, reside na fusão de tipos diferentes de regras.” (HART, 2001, p.57).

Por outro lado, há que se considerar, também, que, embora a promulgação de uma lei seja, em alguns aspectos, análoga à emissão de uma ordem, certas regras de direito são originadas pelo costume e não devem o seu estatuto jurídico a qualquer ato consciente de criação do direito. Isso quer dizer que não dependem da vontade única do soberano, como se entendia no imperativismo jurídico.

Outrossim, o hábito de obediência defendido por Austin também é confrontado pela análise de Hart, porque ele não dá conta de explicar três fenômenos distintos. O primeiro se refere quanto à permanência das leis (paradoxo do soberano sucessor). Nesse caso, a contradição se constrói quando o soberano morre/é destituído e instaura-se um momento de questionamento da validade dos comandos. Isso porque, no modelo austiniano, o comando tem validade porque é proferido pelo soberano, e esse dispõe das maneiras legítimas de fazer a ameaça no caso do descumprimento desses comandos. Se o soberano não exerce mais poder nessa comunidade, seus comandos também estão desvalidados, então, quem dará a legitimidade para que um soberano sucessor possa ditar comandos se não há um comando que o permita? Nisso consiste o segundo problema, a continuidade dos soberanos.

Em terceiro, suscita-se a pergunta: qual a razão para se obedecer ao soberano? A noção de hábito de obediência dá a entender que as pessoas obedecem ao soberano porque costumam obedecê-lo, mas não explica porque deveriam obedecê-lo. Essa concepção não se preocupa em esclarecer sobre a obrigatoriedade, pois apenas atende ao sentido externo (estatisticamente constatável) de que as pessoas costumam obedecer ao soberano, mas não explora a interiorização da obrigatoriedade do cumprimento pelo súdito (sentido interno).

Ademais, amparar-se na visão soberano e súdito, esse que só obedece e aquele que só manda sem ter deveres de obediência, não é compatível com uma democracia. Sem contar que o papel de soberano e súdito varia ao longo da história, porém, o Direito não varia na mesma frequência.[5]

3. CONCEITUANDO A OBRIGAÇÃO EM HART

Para Hart, as regras devem ser obrigatórias, frutos de uma prática constituída, desde que exista uma atividade normativa. Esses dois últimos elementos são compreensíveis a partir do sentido interno e externo das regras, já a obrigação passa por uma análise mais dedicada no trabalho desse jurista.

Partindo da ideia de que, onde existe Direito, a conduta deixou de ser facultativa, Hart determina que a obrigação deve decorrer de uma regra, ela depende da aplicação dessa regra ao caso particular, e essa regra da qual decorre deve ser extremamente relevante do ponto de vista social (forte pressão social).

Devemos, aqui, relembrar do exemplo do assaltante que obriga o caixa de uma loja a lhe entregar o dinheiro (vide tópico anterior deste artigo). Se o autor do roubo fosse uma criança de sete anos, afirmando que se ele não a entregasse o dinheiro ela lhe daria um beliscão, o caixa se sentiria obrigado a obedecer? Por óbvio que a resposta seria negativa. Questões psicológicas não criam obrigações. O simples fato de se ameaçar outro indivíduo não é capaz de criar uma obrigação.

Afirmações de cunho psicológico não bastam para criar uma obrigação porque, na verdade, uma pessoa pode ser obrigada mesmo se acreditar que nenhuma consequência desagradável irá ocorrer caso desobedeça. A obrigação que todos os homens possuem de se apresentarem ao serviço militar quando completarem 18 anos continuará existindo mesmo se alguém tiver certeza que não será punido se não obedecer (ele pode ter subornado alguém, por exemplo; ou ido morar em outro país). O erro da teoria imperativa é não diferenciar entre “sentirse” obrigado e “estar” obrigado. Nas palavras de Hart: “há uma diferença, ainda por ser explicada, entre as afirmações de que alguém foi obrigado a fazer alguma coisa e de que tinha a obrigação de fazê-lo” (2009, p. 107). Uma pessoa pode se sentir na obrigação de desejar bom dia para as outras pessoas, mas isso não é a mesma coisa que ter a obrigação de desejar bom dia (Sgarbi, 2006, p. 122). (MARTINS, 2012, p. 70).

Reduzir a obrigação a um simples ato de obediência à uma ameaça é negligenciar diversos aspectos da complexidade das relações sociais e jurídicas. De acordo com Hart, a dimensão normativa do Direito somente pode ser compreendida a partir da noção de regras. E, nesse ponto, a teoria imperativista falha significativamente no aspecto das obrigações por desconsiderar a concepção de regras.

A objeção fundamental é que a interpretação preditiva obscurece o fato de que, onde existem regras, as infrações não são apenas motivos para prever-se que reações hostis se seguirão, ou que um tribunal aplicará penas ou sanções àqueles que violem as regras, mas também uma razão ou justificativa para aquelas reações e para a aplicação dessas sanções (HART, 2009, p. 109).

Surge, assim, a diferenciação entre duas faces da mesma moeda, o “ser obrigado a” e o “ter a obrigação de”. O primeiro implica dizer que alguém foi obrigado a fazer alguma coisa, impelido por uma ameaça forte o bastante para obrigá-lo a fazer algo contra sua vontade. Por outro lado, o segundo se traduz na ideia de se ter um dever, independentemente da existência de uma ameaça ou da necessidade de cumprimento dessa obrigação.  Para Austin, “ser obrigado a” e “ter obrigação de” eram reduzidos a uma só ação (comando + ameaça), não havia essa diferenciação. Hart propõe essa distinção justamente para explicar que determinadas regras não são asseguradas por meio de uma ameaça, mas pela ideia de “ter obrigação de”. Ambos são determinantes numa sociedade, mesmo que muitas pessoas apenas funcionem na lógica do “ser obrigado a”, o “ter obrigação de” é fundamental para a internalização da obrigação. Isso é, devido ao grau de normatividade contido em “ter obrigação de”, sendo que esse não é afetado pelas subjetividades a quem é dirigido. Por outro lado, “ser obrigado a” depende do grau da ameaça e a sensação em quem o recebe.

Outra distinção se faz significante entre os pontos de vista dos participantes do sistema, que vai determinar como esses respondem ao Direito[6]. O ponto de vista externo se refere àqueles que cumprem as obrigações desde que haja consequências para o caso de sua obediência ou desobediência. O ponto de vista interno é adotado pelos funcionários que aplicarão o Direito e por aqueles que se preocupam sobre a garantia dos seus direitos pelas regras na sociedade. É preciso adotar os dois pontos de vista, pois, se o ponto de vista interno for ignorado, não há como explicar o conceito de “ter obrigação a”.

Então, até aqui, pode-se concluir que uma obrigação social exige apenas que haja uma forte pressão social que a sustente, enquanto uma obrigação jurídica existe independentemente do sentimento ou da pressão sobre ela. Por exemplo, não importa que alguém não se sinta obrigado a cumprir a lei, a obrigação jurídica continuará existindo.

A ideia de obrigação jurídica pressupõe a existência de regras jurídicas que exigem das pessoas uma determinada conduta e que são consideradas válidas em virtude da regra de reconhecimento. Quando um juiz afirma que alguém descumpriu uma obrigação jurídica disposta em uma regra, ele identifica essa regra como válida por ter respeitado os critérios da regra de reconhecimento. E, se a regra é válida, as autoridades de um sistema jurídico têm o dever de aplicá-las. Portanto, se alguém descumprir uma obrigação jurídica disposta por uma regra identificada como jurídica pela regra de reconhecimento, “o juiz toma a regra como guia, e a infração àquela como sua razão e justificativa para punir o infrator” (Hart, 2009, p. 14). O dever que as autoridades possuem de aplicar uma punição em caso de desobediência é, na visão de Hart, diferente da forma como é posta pela teoria imperativa: quando Hart afirma que as autoridades possuem esse dever, a palavra “dever” faz referência a uma prática social. (MARTINS, 2012, p. 73).

Desse modo, Hart afasta a teoria imperativista, para firmar que a obrigação jurídica requer a existência de uma regra jurídica que obrigue certa conduta, amparada pelo reconhecimento dela como tal (a noção de regra de reconhecimento, no tópico a seguir). “Se a uma regra que impõem uma obrigação é considerada válida pela regra de reconhecimento, ela gerará obrigações, e as autoridades a aplicarão, mesmo que os indivíduos não concordem com a regra.” (MARTINS, 2012, p. 74)

4. DESCREVENDO O DIREITO: A SOCIEDADE REGIDA POR REGRAS

Hart defendeu que o sistema jurídico é composto de um conjunto de regras escalonadas, as quais ele separou entre regras primárias, que determinam a conduta dos participantes do grupo, e secundárias, que regulam o sistema e possibilitam criar, extinguir, modificar ou controlar a aplicação das regras.

As regras secundárias surgem em decorrência das deficiências que as regras primárias não conseguem suprir. Uma sociedade composta somente de regras primárias incorreria nos problemas de uma sociedade mantida somente por comandos, o que já se comprovou incabível na crítica ao modelo anterior. As regras primárias, ou de tipo básico, são regras de obrigação, e exigem das pessoas o ato de fazer ou não fazer algo, independentemente do seu querer. Imagina-se uma “[…] comunidade primitiva onde só houvesse regras primárias: uma estrutura social sem poder legislativo, juízes ou qualquer tipo de agente público. Só haveria regras de conduta costumeiras identificadas e aplicadas pelos próprios membros da comunidade.” (STRECK; MOTTA, 2018, p. 59).

Desse modo, Hart divide as regras secundárias de acordo com suas funções, em resposta aos problemas que elas são evocadas a solucionar. Numa comunidade onde existem apenas regras primárias, existirá um problema de incerteza na aplicação ou âmbito de uma regra ao caso concreto, visto que não há um processo para dirimir essas dúvidas. Para esse problema, a solução aparece na regra de reconhecimento, que é capaz de determinar os critérios pelos quais uma norma é identificada.

A regra de reconhecimento surge por uma questão empírica, sua existência, na maior parte das vezes, não é enunciada. Essa regra representa o fundamento do sistema e justifica a existência do ordenamento jurídico. Além disso, a regra de reconhecimento estabelece os critérios de validade das normas e é considerada a última regra do sistema (KOZICKI; PUGLIESE, 2017). Essa ideia introduz a noção de validade jurídica “[…] na medida em que se conta, a partir dela, com um instrumento para identificação de uma regra social como regra pertencente ao sistema jurídico. Trata-se de fornecer às ‘autoridades públicas’ os ‘critérios válidos para a identificação das normas primárias de obrigação’” (STRECK; MOTTA, 2018, p. 59-60).

O segundo defeito das regras primárias é o caráter estático, que ocorre por não existir autoridades incumbidas de alterar, criar ou extinguir regras nesse sistema jurídico. A responsável por resolver esse problema é a regra de alteração, que confere poder para que haja modificações nesse ordenamento.

Por último, as regras de julgamento surgem para sanar problemas da ineficácia da pressão social difusa pela qual as regras são mantidas. Elas consistem em “[…] dar poder aos indivíduos para proferir determinações dotadas de autoridade respeitantes à questão sobre se, numa ocasião concreta, foi violada uma norma primária. Além de identificar os indivíduos que devem julgar, tais regras definirão também o processo a seguir” (HART, 2001, p. 106).

Apesar do modelo de união de regras primárias e secundárias ser o ponto central dos estudos de Hart, ele alerta que o sistema, por si só, não tem condições de solucionar todos os problemas. “A união de regras primárias e secundárias está no centro de um sistema jurídico; mas não é o todo, e à medida que nos afastarmos do centro teremos de acomodar, […], elementos de uma natureza diferente.” (HART, 2001, p. 109).

Hart defende que os deveres jurídicos são criados por regras, socialmente reconhecidas e imbuídas de normatividade. Desse modo, cria-se a tese do Direito como uma instituição social, “[…] na qual a linguagem ocupa papel constitutivo, pois as regras gerais, os padrões de conduta e os princípios, que seriam necessariamente o ‘principal instrumento de controle social’, devem ser comunicados às pessoas.” (STRECK; MOTTA, 2018, p. 61).

Hart observa que a linguagem geral em que as regras se expressam não fornecem uma orientação precisa, e que isso pode gerar incertezas com relação à sua aplicação. Os chamados “cânones de interpretação”, de igual forma, não eliminam totalmente as incertezas, visto que constituem normas gerais para o uso da linguagem e empregam termos gerais que exigem, eles próprios, interpretação. Assim, a sua visão é a de que a própria linguagem, dada a sua imprecisão, confere ao intérprete discricionariedade. (STRECK; MOTTA, 2018, p. 61)

Para Hart, não há saída para se fugir da discricionariedade, em algum momento os padrões de comportamento se mostrarão tão imprecisos a ponto de transferir a escolha da solução mais adequada às mãos das autoridades competentes. Isso porque “esses padrões terão em todo o caso, assim, o que se chama de textura aberta: uma característica geral da linguagem humana, que gera incerteza nas zonas limítrofes.” (STRECK; MOTTA, 2018, p. 61).[7]

Em outras palavras, o positivismo, ao reconhecer que é impossível — quando se fala em Direito — conceber um código, uma legislação, um sistema completo, infinito, aceita que, quando a convenção termina, o juiz decida com base em seu juízo discricionário. Dworkin, em suas críticas, resumiu bem: para o positivista, “quando não há regra clara disponível, deve-se usar o poder discricionário pra julgar”. Ora, esse resultado nem poderia ser diferente: o positivista não tem pretensões de dizer como o Direito deve ser aplicado. A discricionariedade torna-se, pois, nada mais que um resultado natural. (STRECK, 2018, p. 897).

Esse é um problema que o positivismo jurídico de Hart não conseguiu enfrentar: a discricionariedade, a principal característica do positivismo pós-exegético (STRECK, 2014). Pois, estando em face de casos duvidosos, não haveria outra saída que não fosse a descrição judicial, na qual o juiz pode se valer, legitimamente, da decisão que considerar mais adequada. “Seja a decisão judicial boa ou má, justa ou injusta, não importa: ‘no quadro do campo da discricionariedade, a […] decisão está sempre certa'” (STRECK; MOTTA, 2018, p. 62).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Herbert Hart é considerado um dos juristas mais relevantes de importância acadêmica, sendo que seus trabalhos marcaram as discussões filosóficas referentes à linguagem na teoria do Direito (MACEDO JUNIOR, 2010, p. 203).  Após a publicação de sua obra “O Conceito de Direito”, modificou vários padrões anteriormente seguidos e possibilitou a existência de importantes debates, como o de Hart-Fuller e o famoso Hart-Dworkin, o qual possibilitou a divisão entre positivistas inclusivos e exclusivos (MACEDO JUNIOR, 2010).

Cronologicamente, Hart foi o primeiro grande positivista após Kelsen. Ele desenvolveu importantes teses como a da discricionariedade e a da separação de Direito e Moral (STRECK, 2017), na qual ele não nega que possa existir uma invocação de conceitos e normas morais, mas apenas na medida que o sistema jurídico a admite. Por isso, essa ideia inaugura o conceito de positivismo brando ou moderado (soft positivism), que se inicia com Hart (2009) em resposta à Dworkin (2002), cujo qual ignora que a regra de reconhecimento se paute apenas em critérios formais de pedigree para determinar o que é ou não Direito, possibilitando, para isso, a adoção de critérios morais (LOPES FILHO; LOBO; CIDRÃO, 2018, p. 355)[8].

No entanto, apesar dos esforços, o positivismo nunca conseguiu se desvencilhar da discricionariedade, a qual é negativa, pois trata-se de uma autorização para que se possa decidir conforme a consciência do julgador. Lenio Streck (2017, p. 61) explica que, sob um plano de quaisquer teorias contemporâneas, este ato não é democrático. Direito e discricionariedade não podem conviver harmonicamente, pois, ao se admitir o uso da decisão discricionária, afirma-se que esta poderá ser embasada em critérios não jurídicos (STRECK, 2017, p. 61).

Embora, hoje, esse debate seja possível, ele se deve à análise das teorias anteriores e à reflexão atenta dessas formas. Desse modo, torna-se de extrema importância, ainda, nos dias atuais, o estudo dedicado ao trabalho de Herbert Hart, principalmente quanto à sua obra principal “O Conceito de Direito”. Esse artigo teve o escopo de expor alguns pontos relevantes dessa obra, quais sejam: o pensamento de John Austin, os argumentos utilizados por Hart para refutar o imperativismo jurídico, a obrigação jurídica hartiana e o sistema escalonado de regras primárias e secundárias, um dos pontos mais marcantes de sua obra.

Desse modo, o conteúdo aqui apresentado se organiza de maneira a fazer apontamentos essenciais acerca dos três questionamentos lançados por esse autor no primeiro capítulo de “O Conceito de Direito”, quais sejam: 1) “Em que a obrigação jurídica se difere dos comandos garantidos por ameaças?”; 2) “Em que a obrigação jurídica se difere da obrigação moral?” e 3) “O que são regras? Elas existem?”.

Hart refutou a teoria imperativa de Austin, que sustenta uma visão do Direito em comandos (assegurados por ameaças e obedecidos por hábito, num cenário de soberanos que somente mandam e súditos que somente obedecem), para estabelecer as noções de normatividade e obrigação. Para o jurista inglês, as regras determinam a obediência, não um simples hábito, que pode gerar os problemas por ele apontados: permanência das leis após a deposição do soberano, a continuidade do poder (paradoxo do soberano sucessor) e a legitimidade da obediência ao soberano.

Além disso, Hart apresenta importantes distinções terminológicas, capazes de modificar todo o entendido dessa teoria, como é a diferença entre o “ser obrigado a” e o “ter obrigação de”. O primeiro implica dizer que alguém foi obrigado a fazer alguma coisa, impelido por uma ameaça forte o bastante para obrigá-lo a fazer algo contra sua vontade. Por outro lado, o segundo se traduz na ideia de se ter um dever, independentemente da existência de uma ameaça ou da necessidade de cumprimento dessa obrigação.

Por fim, nesse trabalho, mereceu destaque o sistema elaborado por Hart, de uma sociedade regida por regras primárias e secundárias, amparadas sob uma regra de reconhecimento que as justifica, sendo essa a regra última desse sistema, uma espécie de convenção entre os operadores do sistema que são responsáveis pela aplicação do Direito. A partir desta, estes indivíduos acatam e adotam os critérios e os padrões que regem o sistema jurídico (STRECK, 2018, p. 896).

REFERÊNCIAS

AUSTIN, J. The province of jurisprudence determined. London: John Murray, 1832

BUSTAMANTE, T. A breve história do positivismo descritivo: o que resta do positivismo jurídico depois de H. L. A. Hart? Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 1, n. 20, p. 307-327, 2015.

COELHO, A. L. S. Um sistema de regras primárias e regras secundárias: exposição do argumento de Hart em “O Conceito de Direito”. Filósofo Grego, 2011. Disponível em: http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/search?q=hart. Acesso em: 3 fev. 2020.

DANTAS, D. D. Entrevista de Herbert Hart e Ronald Dworkin. Revista Sapere Aude, v. 7, n. 2, p. 1-18, 2014.

HART, H. L. A. O conceito de direito. Tradução por Ribeiro Mendes. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

KOZICKI, K.; PUGLIESE, W. O conceito de direito em Hart. Enciclopédia jurídica da PUC-SP, v. 1, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/137/edicao-1/o-conceito-de-direito-em-hart. Acesso em: 3 set. 2019.

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APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. Segundo John Austin, o Direito é composto por espécies de comandos que somente são assegurados por meio de um mal, uma consequência negativa no caso de desobediência. “Every law or rule (taken with the largest signification which can be given to the term properly) is a command. Or, rather, laws or rules, properly so called, are species of commands. […] A command is distinguished from other significations of desire, not by the style in which the desire is signified, but by the power and the purpose of the party commanding to inflict an evil or pain in case the desire be disregarded.” (AUSTIN, 1832, p. 6).

3. Para Austin, quanto mais grave o grau da ameaça/sanção, maior a eficácia do comando. Ou seja, para um comando ser assegurado, para que seja garantida sua obediência, é necessário que haja uma sanção. O excerto a seguir, de “The Province of Jurisprudence Determined”, pode ilustrar melhor essa ideia: “The truth is, that the magnitude of the eventual evil, and the magnitude of the chance of incurring it, are foreign to the matter in question. The greater the eventual evil, and the greater the chance of incurring it, the greater the efficacy of the command, and the greater is the strength of the obligation: Or (substituting expressions exactly equivalent) the greater is the chance that the command will be obeyed, and that the duty will not be broken. But where there is the smallest chance of incurring the smallest evil, the expression of a wish amounts to a command, and, therefore imposes a duty. The sanction, if you will, is feeble or insufficient; but still there is a sanction, and, therefore, a duty and a command.” (AUSTIN, 1832, p. 09).

4. Hart utiliza um exemplo do jogo de xadrez para explicar o sentido interno das regras, conforme esse excerto de “O Conceito de Direito”: “Este aspecto interno das regras pode ser ilustrado de forma simples a partir das regras de qualquer jogo. Os jogadores de xadrez não têm apenas hábitos semelhantes de movimentar a rainha da forma idêntica que um observador externo, ignorante em absoluto da atitude deles em relação aos movimentos, pode registrar. Para além disso, têm uma atitude crítica reflexiva em relação a este tipo de comportamento: encaram-no como um padrão para todos quantos pratiquem o jogo. Cada um deles não se limita apenas a movimentar a rainha dum certo modo, mas ‘tem opinião formada’ acerca da correcção de todos os que movimentam a rainha dessa maneira. Essa opinião se manifesta na crítica e nas exigências de conformidade feitas aos outros, quando ocorre ou ameaça haver desvio, e no reconhecimento da legitimidade de tal crítica e de tais exigências quando recebidas de outros.” (HART, 2001, p. 65-66)

5. “Para Austin, o súdito é aquele que tem o hábito de obedecer ao soberano, enquanto o soberano é aquele que, embora sendo obedecido, não tem o hábito de obedecer a ninguém. Contra isso, Hart observa, em primeiro lugar, que a definição dada para o soberano supõe um tipo de governante absoluto que, ao menos nas modernas democracias, não pode ser encontrado. Qualquer governante terá que obedecer às leis e à Constituição e não poderá extrapolar os poderes que lhe são atribuídos. Portanto, não há aquele que, sendo obedecido, não obedece a ninguém. Mais ainda: Nas democracias, os governantes agem como representantes do povo, sendo este, e não os governantes, o verdadeiro soberano. Como o povo é também a coletividade de todos os destinatários das normas, as noções de soberano e de súdito tendem a se confundir entre si até o ponto em que não faça mais sentido distingui-las de modo tão estanque. Vale notar ainda que quem ocupa o papel de soberano e de súdito varia ao longo do tempo, sem que o Direito varie correspondentemente. Uma norma criada num século poderá, se não tiver sido revogada, ainda valer um século depois, mesmo que todos os seus criadores originais estejam mortos e mesmo que nenhum dos seus destinatários originais se encontra mais no mundo. Essa aptidão para passar de uma pessoa para outra, a autoridade de um e a obrigação do outro têm porque são instituídas por regras, uma vez que comandos não sobrevivem além de seus criadores e destinatários originais.” (COELHO, 2011).

6. Thomas Bustamante (2015, p. 315) explica os pontos de vista interno e externo de Hart: “Como explica Hart, é possível analisar as regras de um sistema normativo tanto como um mero observador externo que não as aceita, ele próprio, quanto como um ‘membro do grupo que as aceita e usa como guias para a sua conduta’. Enquanto a primeira perspectiva pode ser denominada ‘externa’, a segunda é o denominado ‘ponto de vista interno’. Hart vê o sistema jurídico como um sistema de normas sociais, no duplo sentido de que essas normas ‘governam a conduta de seres humanos nas sociedades’ e de que ‘elas devem a sua origem e existência exclusivamente a práticas sociais humanas’. Essas práticas sociais, contudo, só existem em função da aceitação, pelos oficiais do direito que atuam no ponto de vista interno, de uma regra última de reconhecimento que contenha os critérios fundamentais de validade das outras regras que componham o sistema jurídico.”

7. Katya Kozicki e William Pugliese (2017) explicam o que significa a textura aberta no pensamento de Hart: “Reconhecendo uma textura aberta da linguagem, Hart fundamenta a existência de uma textura aberta do Direito. Isto, no conjunto de O Conceito de Direito, determina que se compreenda o Direito como sistema aberto e auto-referente. Os limites naturais da linguagem impedem que o Direito se expresse sempre através de enunciados unívocos, gerando a necessidade do intérprete buscar – dentro desse mesmo sistema – a complementação de significado dos termos não claros. Neste aspecto, ‘em todos os campos da experiência, e não só no das regras, há um limite, inerente à natureza da linguagem, quanto à orientação que a linguagem geral pode oferecer’. É precisamente este limite da linguagem que constitui a sua chamada textura aberta. De acordo com esta teoria, existe uma indeterminação de sentido na linguagem que não pode jamais ser eliminada. Podem ser tomadas inúmeras determinações acerca do sentido de um termo, mas sempre existirão possibilidades em que o conceito ainda não foi delimitado. As principais imprecisões que podem atingir um termo são a vagueza e a ambiguidade. Esta impossibilidade da comunicação ser sempre precisa resulta, em última análise, de que o significado de uma expressão só é obtido em função do seu uso dentro de um determinado contexto. E a multiplicidade dos usos e funções dos diversos jogos linguísticos obsta a uma comunicação sem entraves.”

8. A partir do debate Hart-Dworkin, foi possível existir a diferenciação entre positivismo inclusivo (brando, incorporacionista, soft, moderado) e positivismo exclusivo. Juraci Mourão Lopes Filho, Júlio César Matias Lobo, e Taís Vasconcelos Cidrão (2018, p. 355) explicam, resumidamente, acerca desse último tipo: “Por sua vez, o positivismo exclusivo defende que o Direito é conceitualmente incompatível com a incorporação da moral pelo Direito, seja porque é incompatível com a lógica da autoridade – versão de Raz (1979) ao defender que o Direito, como razão de segunda ordem, requer autoridade no sentido de que as prescrições jurídicas são obrigatórias não porque sejam morais, mas porque são jurídicas, sob pena de o Direito ser desnecessário ao ponto de bastar a moral –; seja porque atenta contra a lógica dos planos – versão de Shapiro (2017), ao entender que o Direito pressupõe um planejamento que impede a constante revisão do que foi prescrito, o que é possibilitado caso se insira elementos morais.”

[1] Mestranda em Direito Público (UNISINOS). Especialista em Direito Penal (FDDJ). ORCID: 0000-0003-2856-0299.

Enviado: Janeiro, 2022.

Aprovado: Novembro, 2022.

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Fernanda Miler Lima Pinto

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