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A proteção ao Direito Adquirido e a Reserva do Possível

RC: 43475
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

LARA, Marcelo Bicalho [1]

LARA, Marcelo Bicalho. A proteção ao Direito Adquirido e a Reserva do Possível. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 01, Vol. 06, pp. 182-204. Janeiro de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/protecao-ao-direito

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo realizar a análise do princípio do direito adquirido, identificar seu conceito, verificar as implicações do direito intertemporal e a segurança jurídica, perquirir se há limitação do direito adquirido imposta ao constituinte originário, ao constituinte reformador e ao legislador ordinário, tecer considerações sobre o direito adquirido enquanto princípio e seu núcleo essencial, visualizar conflito entre direito adquirido e o princípio democrático e os direitos sociais, identificar a jurisprudência do STF sobre o tema e a interpretação tópica empregada. Em sequência, realizar a análise da teoria da reserva do possível, sua conceituação e a implicação do conflito entre o direito adquirido e a reserva do possível, indicando se é possível a limitação do referido direito e preservação de seu núcleo essencial. O trabalho se utilizou de metodologia racional dedutiva, com base em pesquisa doutrinária e jurisprudencial do STF.

Palavras-chave: direito adquirido, reserva do possível, ponderação de princípios, núcleo essencial.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho científico terá por escopo perquirir se é possível cercear o direito adquirido ante a aplicação da teoria da reserva do possível. Teoria, esta, como leciona Mendes (2017), também conhecida como a reserva do financeiramente possível (Vorbehalt des finanziell Möglichen), está ligada a uma decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão. Para tanto, o artigo será dividido em dois capítulos.

No primeiro capítulo, buscar-se-á identificar o conceito de direito adquirido, as implicações do direito intertemporal e a segurança jurídica, a limitação do direito adquirido imposta ao constituinte originário, ao constituinte reformador e ao legislador ordinário, considerações sobre o direito adquirido enquanto princípio e seu núcleo essencial, conflito entre direito adquirido e o princípio democrático e os direitos sociais, e a jurisprudência do STF sobre o tema e a interpretação tópica empregada.

O segundo capítulo tem como objetivo a análise da teoria da reserva do possível, sua conceituação e a implicação do conflito entre o direito adquirido e a reserva do possível, questão chave do trabalho.

Para alcançar o desiderato científico proposto, será utilizada a metodologia racional dedutiva, a partir da pesquisa doutrinária e jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal.

Por fim, o objeto deste trabalho científico voltará em verificar se é possível limitar o direito adquirido ante a aplicação da teoria da reserva do possível, verificando as consequências decorrentes em caso positivo ou negativo.

1. O DIREITO ADQUIRIDO

Em tempos de crise econômica, normalmente, não há remédios pouco amargos a serem impostos à população para retomada do crescimento ou fortalecimento da economia. Nesse cenário, é compreensível e, até legítima, a peleja entre os diversos setores dessa população para verem suas parcelas de contribuição (perda) limitada a um dano suportável. A título de exemplo, em 2016, como narra o periódico G1 da GLOBO.COM, milhares de aposentados gregos saíram em protesto contra um corte de 50% em seus ingressos complementares de aposentadoria, sendo este o 13º corte em seus proventos de aposentadoria desde o início da crise naquele país (G1, 2016).

É nesse e em momentos semelhantes que estes grupos buscam socorrer-se ao albergue do direito adquirido visando à proteção contra interferência estatal. Por essa razão, é mister realizar a interpretação do direito adquirido tendo como parâmetro os objetivos elencados em nossa Constituição sem perder de vista a equidade.

1.1 CONCEITO

O direito adquirido figura em nossa Constituição no título II – Dos Direitos E Garantias Fundamentais, no capítulo I – Dos Direitos E Deveres Individuais E Coletivos, no art. 5º, inciso XXXVI “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, sendo considerada por esta, portanto, como um direito e garantia fundamental. Na sua segunda, e última, passagem pela norma fundamental, é mencionado no art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, consoante EC nº 41 de 19/12/2003:

Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título (grifo nosso).

Em ambas as passagens, não optou o constituinte por materializar o conceito preciso do que vem a ser o direito adquirido, delegando esta tarefa aos intérpretes do Direito, notadamente para a doutrina e para a jurisprudência.

Outro importante texto normativo, que traz consigo referência sobre o que vem a ser o direito adquirido, é a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – LINDB, Decreto-Lei 4.657/42, em seu art. 6º “caput” e parágrafo 2º, ambos alterados pela Lei 3.238/57, com o seguinte teor:

Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

(…) § 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

Conforme apontado por Almeida (2012), a supracitada definição mostra-se tautológica, redundante e imprecisa, não inovando em relação ao texto constitucional, sendo a única extração possível desta norma de que o direito adquirido é aquele direito que seu titular possa exercer.

Conclusão semelhante é apontada por França (1994, apud Almeida 2012) ao decompor os termos do preceito anteriormente apontado:

      1. o direito que seu titular possa exercer;
      2. o direito que alguém, como representante de seu titular, possa exercer;
      3. o direito cujo começo de exercício tenha termo prefixo;
      4. o direito cujo começo de exercício tenha condição preestabelecida inalterável a arbítrio de outrem.

Segundo França (1994, apud Almeida 2012), a substância do conceito está unicamente no primeiro elemento desta análise, haja vista que, no que tange ao direito exercido por meio de terceiro, não é matéria fundamental do conceito, porque, em tese, é evidente que os direitos exercidos por representantes são como se fossem exercidos pelo próprio titular, e, no que tange à extensão do conceito aos direitos a termo e aos condicionais, não há questão conceitual e sim de interpretação do alcance do conceito.

Sustenta então o autor que o direito adquirido é:

(…) consequência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; consequência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto (França 1994, apud Almeida 2012).

Ante a ausência de conceituação legal e a existência de inúmeros posicionamentos doutrinários divergentes, como aponta Sarmento (2008), seria adequado adotar o entendimento dominante no país, inclusive adotado pelo Supremo Tribunal Federal. Segundo o autor, o STF filiou-se à teoria subjetivista, que teve em Francesco Gabba seu maior expoente. Para Gabba é adquirido todo o direito que:

a) é consequência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo de qual o fato se realizou, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova a respeito do mesmo, e que b) nos termos da lei sob o império da qual se verificou o fato de onde se origina passou a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu (Gabba 1891, apud Sarmento 2008) (grifo nosso).

Para Sarmento (2008), na concepção subjetivista, a proteção conferida ao direito adquirido impede a incidência da lei superveniente, mesmo que de ordem pública, sobre fatos passados, bem como sobre efeitos pendentes e futuros. Conclui, como exemplo, que se uma nova lei proibir determinada cláusula num contrato sucessivo, esta não incidirá nem mesmo sobre efeitos daquele contrato que sejam produzidos posteriormente à data de vigência da lei, haja vista que os efeitos pendentes e futuros do contrato são direitos já adquiridos, derivados de ato jurídico perfeito e que não devem ser atingidos pela nova lei. No exemplo, somente os contratos celebrados após a edição da lei superveniente são regidos por seus efeitos.

Em síntese, das ideias supramencionadas percebemos que o direito adquirido apresenta duas características essenciais: direito que seu titular possa exercer protegido de inovação legislativa e que tenha cunho patrimonial.

1.2 DIREITO INTERTEMPORAL E A SEGURANÇA JURÍDICA

Define o art. 6º da LINDB que “A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. Reputando-se ato jurídico perfeito, nos termos do parágrafo 1º, “o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou” e a coisa julgada ou caso julgado “a decisão judicial de que já não caiba recurso”.

Destas definições, depreende-se preocupação do legislador em afirmar que a lei em vigor, terá aplicação imediata, passando a reger as situações com olhos voltados ao futuro, sem deixar de se preocupar, todavia, com as situações consolidadas no passado. Não obstante, tais limitações são insuficientes para disciplinar as complexidades do caso concreto.

Visando fornecer subsídios para compreensão do fenômeno aplicação da lei no tempo e seus conflitos, surge o Direito Intertemporal que, como aponta Cardozo (1995, apud Almeida 2012), consiste no “conjunto formado pelas normas jurídicas e proposições doutrinárias, que tem por objetivo dimensionar e solucionar problemas da intertemporalidade jurídica, em todas as perspectivas temporais em que está se faz projetar”.

Segundo Almeida o Direito Intertemporal:

(…) fixa o alcance do império de duas normas que se seguem. Tem por objeto determinar os limites do domínio de cada uma dentre duas disposições jurídicas consecutivas sobre o mesmo assunto. Regula, portanto, a aplicação da lei no tempo, o que sempre foi considerado um dos problemas mais sérios, árduos e complexos da ciência do Direito (Almeida 2012, p. 29).

Uma das razões para as profundas controvérsias quando uma lei nova atingir fatos pretéritos reside no aparente conflito entre o princípio da segurança jurídica, uma das expressões máximas do Estado de Direito, com a possibilidade e necessidade de mudança, como ensina Mendes (2017).

Corrobora com este entendimento – segurança jurídica como essencial ao Estado de Direito – a visão de Toledo (2003, p. 114), para a qual este Estado é definido como “organização jurídica de poder, que se assenta em alguns princípios elementares e na declaração e garantia dos direitos fundamentais”, (Toledo 2003, p. 114). Considera a autora, indispensáveis ao Estado Democrático de Direito contemporâneo, o princípio da certeza jurídica, da segurança jurídica, da irretroatividade das leis e do direito adquirido.

Em decorrência do princípio da legalidade, Toledo (2003) entende que todo poder deve ser regido por leis, exercido no âmbito de normas jurídicas delimitadoras de competência e orientadoras de decisões. E prossegue a autora apontando que é em função deste princípio a inter-relação entre Estado e Direito:

(…) ao mesmo tempo em que é o Estado que elabora, executa e aplica leis, somente pode atuar, em qualquer de suas funções legislativa, executiva ou judiciária, vinculado, submetido à lei, à ordem jurídica. Por outro lado, o Estado não fica apenas limitado pela lei (nos moldes do Estado Liberal), mas é através dela que se coloca em condições de realizar intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da sociedade, ou seja, a lei passa a desempenhar relevante papel na transformação da realidade social (Toledo, 2003, p. 114).

A ideia trazida à baila, não deixa dúvida quanto à importância da segurança jurídica enquanto princípio e pressuposto para o império da lei, todavia o mundo dos fatos impõe ao Direito e aos entes políticos respostas e soluções aos anseios por mudança ou equacionamento de graves crises que, por vezes, entrarão em rota de colisão com os princípios supracitados.

1.3 DIREITO ADQUIRIDO ANTE O CONSTITUINTE ORIGINÁRIO, O CONSTITUINTE REFORMADOR E O LEGISLADOR ORDINÁRIO

Este tópico destina-se a verificar se há limitação do direito adquirido imposta ao constituinte originário, ao constituinte reformador e ao legislador ordinário.

1.3.1 DIREITO ADQUIRIDO ANTE O CONSTITUINTE ORIGINÁRIO

Na contraposição entre o direito adquirido e o constituinte originário, que inaugura uma nova ordem constitucional, não prevalece o primeiro sobre a norma constitucional, salvo disposição expressa em contrário. É o que se infirma a partir da posição do STF no RE 140.499/GO, Rel. Min. Moreira Alves:

Já se firmou a jurisprudência desta Corte no sentido de que os dispositivos constitucionais têm vigência imediata, alcançando os efeitos futuros de fatos passados (retroatividade mínima). Salvo disposição expressa em contrário – e a Constituição pode fazê-lo -, eles não alcançam os fatos consumados no passado nem as prestações anteriormente vencidas e não pagas (retroatividades máxima e média) (grifo nosso).

No mesmo sentido, explica Mendes (2017) que a Constituição é “o diploma inicial do ordenamento jurídico e que as suas regras têm incidência imediata. Somente é direito o que com ela é compatível, o que nela retira o seu fundamento de validade”. É o constituinte originário que define o que pode ser aceito ou não, sendo o objeto repudiado não recepcionado com status de direito, mesmo que compatível com a Constituição anterior, (Mendes 2017, p. 110), e prossegue:

Somente seria viável falar em direito adquirido como exceção à incidência de certo dispositivo da Constituição se ela mesma, em alguma de suas normas, o admitisse claramente. Mas, aí, já não seria mais caso de direito adquirido contra a Constituição, apenas de ressalva expressa de certa situação (Mendes 2017, p. 110).

Pelo exposto, entende o autor que se não houver ressalva expressa, incide norma constitucional contrária à situação antes constituída.

Neste momento, é relevante destacar a contribuição da doutrina de Peixoto (1943) aos três graus de retroatividade da lei, empregada no voto do ministro Moreira Alves na ADI 493:

Dá-se a retroatividade máxima, também chamada restituitória, quando a lei nova abrange a cousa julgada (sentença irrecorrível) ou os fatos jurídicos consumados. Está nesse caso, por exemplo, a lei canônica que aboliu a usura e obrigava o credor solvável a restituir ao devedor, aos seus herdeiros ou, na falta destes, aos pobres os juros já recebidos.

(…) A retroatividade é média quando a lei nova atinge os direitos exigíveis, mas não realizados antes da sua vigência. Exemplo: uma lei que diminuísse a taxa de juros e se aplicasse aos já vencidos, mas não pagos.

Enfim a retroatividade é mínima (também chamada temperada ou mitigada), quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos fatos anteriores, verificados após a data em que ela entra em vigor. Tal é a constituição de Justiniano que limitou a 6% em geral, após a sua vigência, à taxa de juros dos contratos anteriores. No mesmo caso está o dec. 22.626 de 7 de abril de 1933 (lei da usura), que reduziu a 12% em geral as taxas de juros vencidos após a data da sua obrigatoriedade (grifo nosso).

Ainda sobre a aplicação dos três graus de retroatividade da lei, Mendes (2017) apresenta breve síntese correlacionando com as possibilidades do direito adquirido ante o constituinte originário:

Reconhece-se, assim, como típico das normas do poder constituinte originário serem elas dotadas de eficácia retroativa mínima, já que se entende como próprio dessas normas atingir efeitos futuros de fatos passados. As normas do poder constituinte originário podem, excepcionalmente, ter eficácia retroativa média (alcançar prestações vencidas anteriormente a essas normas e não pagas) ou máxima (alcançar fatos consumados no passado), mas para que opere com a retroatividade média ou máxima, o propósito do constituinte deve ser expresso. É nesse sentido que se diz, hoje, que não há direito adquirido contra a Constituição (MENDES 2017, p.112) (grifo nosso).

1.3.2 DIREITO ADQUIRIDO ANTE O CONSTITUINTE REFORMADOR E O LEGISLADOR ORDINÁRIO

O art. 5º, inciso XXXVI, da CF/88 dispõe que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. A partir das interpretações possíveis, consoante Mendes (2017), há corrente que defende que apenas o legislador ordinário está limitado ao referido comando, porque o termo lei, em sentido estrito não abarcaria o legislador constitucional uma vez que a emenda à Constituição não figuraria como lei neste sentido. Segue o autor, enunciando que a outra posição parte do pressuposto de que “a garantia do direito adquirido foi concebida também em face do legislador constitucional”. Neste caso, o termo lei não está adstrito “na sua acepção estrita, mas abrange todos os instrumentos normativos, inclusive as emendas à Constituição” (Mendes 2017, p.124).

Adotando o posicionamento do STF, Mendes (2017) conclui:

Por ferirem direito adquirido e a garantia da coisa julgada, além de destoarem do direito fundamental à igualdade, o STF suspendeu, por inconstitucionais, dispositivos da Emenda n. 30/2000 à Constituição, confirmando a possibilidade de se arguirem esses direitos e garantias individuais contra deliberações do poder constituinte de reforma (Mendes 2017, p.124).

Logo, nosso ordenamento, interpretado por sua Suprema Corte, admite a proteção do direito adquirido ante o constituinte reformador de acordo com o caso em apreço.

Portanto, como corolário à conclusão anterior, se o direito adquirido está guarido do constituinte reformador, melhor protegido estará do legislador ordinário. Precipuamente, por existir comando constitucional nesse sentido, art. 5º, inciso XXXVI, da CF/88, “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, bem como por norma constante da LINDB, art. 6º, “A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.

1.4 O DIREITO ADQUIRIDO ENQUANTO PRINCÍPIO E SEU NÚCLEO ESSENCIAL

A Constituição brasileira não traz de forma expressa menção ao princípio do núcleo essencial dos direitos fundamentais, todavia traz importante normatização sobre limitações às modificações de nossa Carta em seu art. 60, parágrafo 4º e incisos:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I – A forma federativa de Estado;

II – O voto direto, secreto, universal e periódico;

III – A separação dos Poderes;

IV – Os direitos e garantias individuais (grifo nosso).

Pela análise da norma, depreende-se que propostas tendentes a abolir os direitos e garantias individuais não deverão nem mesmo ser passíveis de apreciação pelo processo legislativo. Porém, o constituinte originário limitou a atuação do constituinte reformador de forma a evitar que este viesse a fulminar ou extinguir direitos e garantias individuais, não constituindo, por conseguinte, amarras que impeçam a limitação casuística a esses direitos.

Nesse sentido, aponta Mendes (2017) que as restrições aos direitos e garantias individuais são limitadas, são os “limites dos limites”, decorrem da própria Constituição e referem-se tanto à necessidade de proteção de um núcleo essencial do direito fundamental quanto à clareza, determinação, generalidade e proporcionalidade das restrições impostas.

Restaria, portanto, identificar o que seria o núcleo essencial de um direito fundamental, conceito bastante controvertido e polêmico, havendo várias correntes na doutrina europeia a propósito do significado deste instituto, consoante Sarmento (2008).

Mendes (2017) defende que, independente se expresso na Constituição ou enquanto postulado imanente, o princípio da proteção do núcleo essencial “destina-se a evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental decorrente de restrições descabidas, desmesuradas ou desproporcionais” (Mendes 2017, p.190).

Para Hӓberle (2003, apud Almeida 2008) a ponderação de bens deve ser o meio de determinação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Para o autor, o conteúdo e os limites de um direito sempre hão de ser determinados em relação a outros bens jurídicos e devem deduzir-se em uma operação intelectual diferenciada, originando-se os direitos fundamentais em situações de conflito, sendo sempre atualizados e concretizados caso a caso.

Corrobora com a proposição de Hӓberle, o posicionamento de Sarlet (2004, apud Sarmento 2008) no sentido de que a salvaguarda ao núcleo essencial dos direitos fundamentais resta nos ditames da proporcionalidade, como leciona:

(…) é possível comungar o entendimento que a proteção imprimida pelas “cláusulas pétreas” não implicam a absoluta intangibilidade do bem constitucionalmente protegido, pelo menos não no sentido de impedir todo e qualquer tipo de restrição. Não se pode negligenciar, neste contexto, que os direitos e garantias fundamentais (a despeito de constituírem limites materiais a reforma) podem ser objeto de restrição até mesmo pelo legislador infraconstitucional, desde que preservadas as exigências da reserva legal (quando for o caso) bem como salvaguardando o núcleo do direito restringido e observado os ditames da proporcionalidade, de tal sorte que não nos parece aceitável a tese de que o poder reformador (ainda que limitado) possa menos que o legislador ordinário (Sarlet 2004, apud Sarmento 2008).

Outro relevante apontamento para o presente estudo diz respeito às clássicas lições de Alexy (2008) quanto à identificação dos princípios como “mandamentos de otimização”. Os princípios são caracterizados “por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também possibilidades jurídicas”. Para o autor, na colisão entre princípios, um deles deverá ceder, sem que isso implique que o princípio cedente deva ser considerado inválido, nem que dele deverá ser introduzida cláusula de exceção. São nos casos concretos, que se verifica que os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com maior peso têm precedência caso a caso, explica o autor (Alexy 2008, p. 94).

1.5 DIREITO ADQUIRIDO ANTE O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E OS DIREITOS SOCIAIS

Há corrente que defende maior autonomia e capacidade reformatória da Constituição ao constituinte reformador, possuindo esta legitimidade para tanto, uma vez que figuram como representantes do povo e que cada geração tem o direito de decidir sobre quais adequados caminhos trilhar, é o que sugere Sarmento (2008).

Para o autor, proibir de forma absoluta que as futuras gerações possam deliberar determinadas questões é algo grave, haja vista que a maioria do passado cria obstáculos incontornáveis para a prevalência da vontade das maiorias do presente e do futuro. Essa limitação, prossegue Sarmento (2008), viola o princípio da democracia, por impedir que o povo, por meio de representantes, promova de tempos em tempos as “correções de rumos necessárias à eliminação paulatina das distorções, dos incríveis e inaceitáveis privilégios que todos conhecemos” (Sarmento 2008, p. 7).

Em sintética conclusão, o autor afirma que congelar prescrições constitucionais originárias pode ensejar em “esclerose precoce da Constituição”, na medida em que prejudica a sua capacidade de adaptação. E assim conclui:

Com isso, ao invés de garantirem a estabilidade, as cláusulas pétreas convertem-se em instrumento de instabilização do sistema constitucional, já que passam a catalisar os anseios por ruptura da ordem jurídica – que se torna a única alternativa possível para a superação do obstáculo normativo (Sarmento, 2008, p.7).

Apesar de defender a flexibilidade das cláusulas pétreas, em especial do direito adquirido, Sarmento (2008) consigna que tal revisão não fica imune ao controle, pois “será sempre possível verificar se outros princípios constitucionais condicionantes do poder de reforma foram atingidos, dentre os quais os direitos fundamentais individuais, políticos, sociais e coletivos, no seu núcleo essencial”.

Posição semelhante é defendida por Rossi (2006) ao expor que o direito adquirido surgiu como fenômeno que procurava equilibrar a força do Estado com a fragilidade do particular, porém o instituto foi subvertido, “na medida em que passou a ser utilizado pelo particular em detrimento do Estado e da coletividade”. Para o autor, o direito adquirido tem sido utilizado pelo interesse individual para “promover a manutenção de privilégios conquistados através de barganhas legislativas e que se intitulam eternos, graças ao instituto em comento” (Rossi 2006, p. 110).

Em que pese a reflexão considerável dos referidos autores, é forçoso concluir que a concepção de “privilégio” não é consensual, dependendo do caso concreto. O que um grupo considera privilégio, pode ser considerado para outro como legítimo direito.

Não é razoável concluir, por exemplo, que o Estado ao promover um incentivo ou vantagem de incorporação patrimonial a uma classe de seus servidores esteja criando um privilégio, por si só. Pode o ente, naquele momento, estar buscando melhores quadros, valorização da carreira, motivação com vistas a um serviço mais eficiente o que é perfeitamente aceitável, e por essa razão e em observância ao princípio da proteção da confiança não deve o particular arcar de maneira desarrazoada com lei posterior que lhe fulmine direitos adquiridos.

1.6 JURISPRUDÊNCIA DO STF E A INTERPRETAÇÃO TÓPICA

Antes de proceder à análise da jurisprudência do STF propriamente dita, é oportuno abordar a divergência apontada, dentre outros, por Mendes (2017) e Almeida (2012) se a aferição de violação ou não ao direito adquirido por lei nova é questão constitucional, a ser tratada em última instância pelo STF ou se é matéria infraconstitucional, não devendo ser conhecida por esse tribunal.

A divergência foi enfrentada pelo STF no RE 266855-7/RS, tendo o voto do ministro Moreira Alves, relator, prevalecido com o seguinte teor sobre essa divergência:

O próprio Superior Tribunal de Justiça já chegou à conclusão de que, quando há alegação de direito adquirido, a questão é puramente constitucional, pois não se pode interpretar a Constituição com base na lei, sendo certo que o artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil nada mais faz do que explicitar conceitos que são os da Constituição, dado que o nosso sistema de vedação da retroatividade é de cunho constitucional. E para se aferir se há, ou não, direito adquirido violado pela lei nova é preciso verificar se a aquisição dele se deu sob a vigência da lei antiga, não podendo, pois, ser ele prejudicado por aquela. A não ser que se faça esse confronto, jamais teremos hipótese em que esta Corte possa fazer prevalecer à vedação constitucional da retroatividade. Foi o que sempre se fez com relação aos reajustamentos de vencimentos em face dos planos econômicos. O contrário não é consagrado na jurisprudência deste Tribunal (grifo nosso).

Ratificando o entendimento do Min. Moreira Alves, Mendes (2017) conclui que a orientação adotada pelo STF foi decisiva para a própria aplicação do princípio do direito adquirido no controle incidental de constitucionalidade. Caso se decidisse pelo contrário, “as questões relacionadas com direito adquirido dificilmente poderiam ser apreciadas pela Corte (pelo menos no controle difuso) e, muito provavelmente, a garantia do art. 5º, XXXVI, teria desaparecido enquanto direito de hierarquia constitucional” (Mendes 2017, p. 320).

Identificada a controvérsia, necessário agora verificar como é feita a interpretação do direito adquirido pelo STF ante o caso concreto. Para tanto nos apoiaremos nos estudos de Almeida (2012), por sua obra Direito Adquirido: uma questão em aberto, em que a autora procede à análise de diversos casos levados ao Supremo em que há o conflito entre o direito adquirido e direito civil, ante a execução penal, a Administração Pública, Direito Tributário, regime jurídico de servidor público, estabilidade financeira, irredutibilidade de vencimentos, concessão de aposentadoria entre outros.

Com o fim de promover breve exemplificação apontada por Almeida (2012) seguem-se os seguintes apontamentos:

a) “o STF declarou a legitimidade da mudança de regime jurídico do direito de propriedade, inobstante eventuais reflexos sobre as posições individuais, não sendo invocável, portanto, o respeito ao direito adquirido”. A partir da súmula 170 do STF: “É resgatável a enfiteuse instituída anteriormente à vigência do Código Civil”.

b) “Na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.938, definiu o Tribunal que “se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado”.

c) O art. 127 da lei de execução penal (Lei 7.210/84), “o condenado que for punido por falta grave perderá o direito ao tempo remido, começando o novo período a partir da data da infração disciplinar”, não afronta o direito adquirido, RE 452.994.

d) Súmula 473 do STF: “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”

e) “No que tange especificamente à alegação de afronta ao direito adquirido na seara do Direito Tributário, verifica-se que o STF tem afirmado inexistir direito adquirido à não tributação”, vide ADI 3.105.

f) Inexistência de direito adquirido a regime jurídico, vide MS 27.093/DF. “Assentou-se que o princípio do respeito ao direito adquirido não se mostra adequado a proteger as posições jurídicas contra eventuais mudanças dos institutos jurídicos ou dos próprios estatutos jurídicos previamente fixados”.

g) Súmula 359 do STF: “Ressalvada a revisão prevista em lei, os proventos da inatividade regulam-se pela lei vigente ao tempo em que o militar, ou o servidor civil, reuniu os requisitos necessários, inclusive a apresentação de requerimento, quando a inatividade for voluntária”.

Dá análise de procedimento argumentativo e decisório utilizado pelo STF em sua jurisprudência sobre o direito adquirido, em seus diversos acórdãos, Almeida (2012) vislumbra a interpretação através do raciocínio tópico tanto na argumentação quanto na fundamentação das decisões.

O método tópico foi retomado por Theodor Viehweg, sendo o pensamento tópico da Antiguidade greco-romana, expõe Almeida (2012). Viehweg (1979) caracteriza a tópica em três elementos, a saber:

1) do ponto de vista do seu objeto, a tópica é uma técnica do pensamento problemático;

2) do ponto de vista do instrumento com que opera, a tópica é os topos, ou lugar-comum;

3) do ponto de vista do tipo de atividade, a tópica é uma busca e exame de premissas; isto a caracteriza como um modo de pensar, no qual a ênfase recai nas premissas e não nas conclusões (Viehweg 1979, apud Almeida 2012) (grifo nosso).

Viehweg (1979) divide a tópica em primeiro e segundo grau. A tópica de primeiro grau é:

(..)aquela que resulta de um procedimento em que se está́ diante de um problema para o qual não existe um referencial decisório prévio, sendo necessário oferecer imediatamente uma solução. Buscam-se, desse modo, premissas que sejam objetivamente adequadas e fecundas e que levem a consequências que nos iluminem (Viehweg 1979, apud Almeida 2012).

 A tópica de se segundo grau:

(…) corresponde ao procedimento segundo o qual se parte de pontos de vista consolidados, contidos nos catálogos de topoi. Destaque-se que estes catálogos não estão organizados por um nexo dedutivo e, por isso, são especialmente fáceis de ser ampliados e completados. A amplitude e incidência dos topoi é variada, representando lugares-comuns próprios de cada esfera do conhecimento. Alguns podem ser genéricos, outros relacionados especificamente a determinadas matérias, mas deve-se observar que quando aparecem em forma de catálogo, não constituem um conjunto (Viehweg 1979, apud Almeida 2012).

Almeida (2012) entende que o STF parte de um problema, caso concreto, para reconhecer ou não o direito adquirido. Ante a inexistência de um referencial decisório prévio (precedentes) sobre determinada situação que envolva o direito adquirido, afirma a autora, que o STF utiliza a tópica de primeiro grau para oferecer uma solução.  De outro modo, se o Supremo parte de pontos de vistas consolidados (precedentes) para reconhecer ou não o direito adquirido, ele utiliza a tópica de segundo grau, Almeida (2012).

Constata a autora, em consequência, que os esquemas meramente lógico-dedutivos são “inadequados para lidar com as questões sobre o direito adquirido, eis que estas exigem raciocínios dialéticos”, haja vista que as circunstâncias concretas, a realidade e as situações que envolvem o direito adquirido “estão em constante mutação”, portanto “a construção do sentido do direito adquirido, de seu núcleo essencial, dificilmente poderá ocorrer de forma dissociada do caso concreto” (Almeida 2012, p.175).

Desta forma, o núcleo essencial do direito adquirido só poderá ser aferido conforme a incidência fática se apresente. E, corroborando com os autores anteriormente citados, o processo de aferição haverá de ser dialético, mediado pelos princípios da ponderação (Alexy), proporcionalidade (Sarlet) e ponderação de bens (Hӓberle).

2. DA RESERVA DO POSSÍVEL

Em nossa Constituição, os direitos sociais são considerados garantias fundamentais, estando eles elencados no art. 6º “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. São verdadeiros objetivos fundamentais de nossa República, conforme art. 3º da CF/88:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

 I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Não obstante, é notório que nosso país está longe de possuir os recursos adequados para suprir todas estas demandas, cabendo ao poder político, em especial ao Executivo e Legislativo, gerenciar o orçamento a que couber e promover a eficiente alocação desses meios. Na perspectiva do conflito entre o dever prestacional de direitos sociais por parte do Estado e a ausência de recursos para a promoção de tais direitos, utiliza-se o ente estatal da teoria da Reserva do Possível para justificar sua conduta omissiva ante eventual questionamento levado ao Poder Judiciário, por exemplo.

2.1 CONCEITO

Segundo Mendes (2017) a reserva do financeiramente possível (Vorbehalt des finanziell Möglichen) está ligada a decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão que tratou sobre o “número de vagas nas Universidades do país e o fato de a liberdade de escolha de profissão ficar sem valor caso inexistentes as condições fáticas para sua efetiva fruição”. Decidiu o Tribunal que “pretensões destinadas a criar os pressupostos fáticos necessários para o exercício de determinado direito estão submetidas à reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen), enquanto elemento externo à estrutura dos direitos fundamentais”, (Mendes 2017, p. 581).

Na visão de Pimenta (2012) o núcleo da teoria da reserva do possível, presente neste julgado, reconhece a existência de limitações orçamentárias à realização das pretensões asseguradas por dispositivos constitucionais, cabendo portando ao legislador “realizar a escolha das prioridades, eis que detém competência constitucional para elaborar o orçamento, estando adstrito ao cumprimento de determinadas regras constitucionais ao realizar essa tarefa”. Conclui o autor que por essa razão “o indivíduo só pode exigir o que a sociedade lhe pode oferecer em condições razoáveis” (Pimenta 2012, p.14).

Sarlet e Figueiredo (2010,) dispõe que a reserva do possível apresenta uma dimensão tríplice, pois “alcança a efetiva disponibilidade fática dos recursos financeiros necessários à efetivação de direitos fundamentais”, alcança a “disponibilidade jurídica dos recursos humanos e materiais – que se refere à distribuição de receitas, competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, e finalmente a proporcionalidade e a razoabilidade da prestação postulada pelo cidadão (Sarlet e Figueiredo 2010, apud Pimenta 2012).

2.2 PONDERAÇÃO ENTRE DIREITO ADQUIRIDO E A RESERVA DO POSSÍVEL

A partir do julgamento emblemático anteriormente citado, perseverou na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão a ideia de que “a efetivação de direitos constitucionais sociais se submete à reserva da capacidade financeira do Estado, pois depende de prestações financiadas pelos cofres públicos”, (Pimenta 2012, p.14).

Dentre os reflexos para a doutrina e jurisprudências pátrias, temos que a avaliação da disponibilidade financeira, como entende o autor, cabe ao Poder Legislativo, uma vez que é “o órgão que detém competência constitucional para elaborar o orçamento público”, sendo o órgão que deve decidir o que corresponde “a uma exigência razoável, suscetível de ser atendida pelo orçamento”. Porém, quando o dever prestacional é levado à apreciação pelo Poder Judiciário, a implementação do dever acaba recaindo sobre o Poder Executivo (Pimenta 2012, p.14).

Em conformidade com este entendimento, Mendes (2017) ressalta que em tempos recessão financeira é inegável que a função do Estado de garantir direitos sociais estará limitada a restrições de recursos, não podendo a interpretação constitucional “se desenvolver alheia aos óbices econômicos postos”. Traz ainda o autor, a análise do professor Blanco de Morais sobre o contexto europeu no período pós-crise internacional de 2008, em que o professor avalia que “a redução drástica de prestações sociais em decisões da Suprema Corte Portuguesa abalou decisivamente utopias e mitos constitucionais sobre direitos adquiridos” (Mendes 2017, p. 581). Para Morais (2014) num cenário de forte recessão, há de se compatibilizar o reconhecimento de direitos com o contexto de crise do Estado, e justifica ou autor:

(…) interpretar evolutivamente a Constituição é adequar o sentido da norma à realidade do tempo presente, ajustá-la ao seu ‘ambiente normativo’ (onde o contexto da necessidade financeira assume importância central) e descobrir sua relação objetiva de significado, tomando como base o seu programa imperativo (Morais 2014, apud Mendes 2017).

Ante o cenário apresentado, Mendes (2017) afirma que as escolhas devem ser tomadas segundo critérios de “justiça distributiva”, sendo estas típicas “opções políticas, as quais pressupõe escolhas trágicas pautadas por critérios de justiça social (macrojustiça)”.

A partir dessas considerações, sem perder de vista a importância do princípio do direito adquirido como essencial à segurança jurídica, não há como sustentar a preponderância deste quando em confrontação com a realidade da escassez de recursos. Em uma perspectiva de crise econômica ou em sua iminência, a vigência de lei nova, independentemente se proveniente de legislador constitucional reformador ou infraconstitucional, poderá atingir os três graus de retroatividade, atingindo inclusive a coisa julgada e os fatos jurídicos consumados.

Não é difícil perceber, hodiernamente, como tal conjectura se mostra tão verdadeira. Uma realidade crescente é o número de Estados e Munícipios que deixam de realizar o pagamento dos salários, atrasando inclusive por meses, como é o caso trazido pela matéria do site G1, de 30/11/2018, em que cinco Estados (RN, PE, MG, RJ e RS) não pagaram o 13º salário de seus servidores no prazo ou não havia previsão para o pagamento. De acordo com o periódico, o Rio Grande do Norte e o Rio Grande do Sul sequer haviam quitado o pagamento do 13º salário referente a 2017.

Na mesma ou em situação pior encontram-se os municípios brasileiros. Estudos técnicos da Confederação Nacional dos Municípios, do ano de 2015, já apontavam que em um total de 3.547 municípios pesquisados, 253 (7,1%) deles estavam com atraso no pagamento de salários de seu pessoal, 1.801 (50,8%) estavam com atraso no pagamento de fornecedores.

Pelo RE 298.694, de relatoria do min. Sepúlveda Pertence, constatamos a firme jurisprudência do STF no sentido do direito à irredutibilidade dos vencimentos, considerada “modalidade qualificada da proteção ao direito adquirido”. Não obstante, esse princípio amplamente consagrado, vê-se completamente esvaziado quando um ente deixa de realizar o pagamento por insuficiência de recursos. De que adianta o direito adquirido a receber determinado provento, garantido pela irredutibilidade dos vencimentos, se não há sequer recursos para o pagamento de salários?

Acreditamos que as reduções drásticas de prestações sociais, tal como ocorreu com Portugal e com a Grécia, não tardará a forçar o entendimento de nossa doutrina e jurisprudência sobre as “utopias e mitos constitucionais sobre direitos adquiridos” como ensinou Morais (2014).

Defendemos que é possível a limitação ou redução do direito adquirido, sem contanto fulminá-lo, especialmente em contexto de recessão ou sua iminência, quando tal limitação presta-se primordialmente a preservar o núcleo essencial deste direito. Para tanto, é desejável que tal supressão decorra de vontade do legislador constitucional, de forma a garantir maior legitimidade popular da decisão, em observância ao princípio democrático. Porém, ante a gravidade dos fatos, poderá ver-se o Executivo ou Legislativo diante de imperativo que os obrigue a promover tal alteração a partir de lei ordinária.

Seria, portanto, justificável a tributação de vencimentos antes livres de tributação, ou sua redução, notadamente, das categorias menos vulneráveis aos efeitos das oscilações econômicas. Também, justificável seria a impossibilidade de cumulação total de dois salários integrais pagos pelos entes, se o objetivo for justamente garantir o pagamento mesmo que minorado dessas remunerações.

Não poderia toda a coletividade, menos ainda a maioria hipossuficiente em recursos, arcar com as consequências da utilização, por parte do Estado, de artifícios fraudulentos ou insensatos que levariam, necessariamente, a desarrazoado endividamento e galopante inflação, com o fito de garantir o direito adquirido de parcela desta sociedade. A Venezuela, país vizinho, é um exemplo vivo da catástrofe econômica de um país que nega a primazia da realidade e a reserva do possível para favorecer “direitos sociais” benéficos à parcela específica daquela população.

3. ANÁLISE DOS RESULTADOS

Da presente pesquisa bibliográfica e de análise jurisprudencial, identifica-se que conceito de direito adquirido foi deixado pelo constituinte originário à doutrina e jurisprudência. Apesar de não haver consenso sobre sua conceituação, é possível extrair que é o direito adquirido é um direito que seu titular possa exercer protegido de inovação legislativa e que tenha cunho patrimonial.

Apesar da divergência, majoritariamente e conforme o STF, não é possível alegar direito adquirido contra o constituinte originário ao inaugurar nova ordem constitucional; o constituinte reformador e o legislador ordinário devem atuar garantindo o direito adquirido, ao menos em seu núcleo essencial, ocorrendo essa apuração conforme cada caso.

O núcleo essencial do direito adquirido é o mínimo que deve ser preservado do referido princípio de modo a não esvaziar seu conteúdo ou eliminá-lo quando em confrontação com outros princípios igualmente relevantes. Para tanto, deve prevalecer como método de solução destas colisões a ponderação de bens e proporcionalidade, de forma a garantir a harmonia com ordenamento.

Apesar da relevância dos direitos sociais, inclusive enquanto orientadores dos rumos de nossa República, estão eles irremediavelmente condicionados a reserva do possível. Cabe ao Poder Legislativo, na elaboração do orçamento, alocar os recursos conforme a gravidade e prioridade que entender devida. A eficiente execução deste orçamento cabe ao Poder Executivo, figurando este no polo passivo em eventual lide levada ao Judiciário por omissão em dever prestacional essencial.

Países que passam por graves crises e recessões econômicas tendem a relativizar a proteção excessiva ao direito adquirido, haja vista que na ausência de recursos para cumprir com estes, a violação pode de toda maneira ser inevitável.

CONCLUSÕES

A presente pesquisa teve como principal objetivo perquirir se é possível cercear o direito adquirido ante a aplicação da reserva do possível. E nesse caminho verificamos que em situações excepcionais, contexto de grave recessão econômica ou sua iminência, a reserva do possível e a realidade fática assumem grande peso quando do confronto com o princípio do direito adquirido, por razões que superam a vontade dos atuais governantes e mesmo a do constituinte originário.

Por esse motivo, como apontado anteriormente, é desejável que tal supressão decorra de vontade do legislador constitucional, de forma a garantir maior legitimidade popular da decisão, em observância ao princípio democrático. Porém, ante a gravidade dos fatos, poderá ver-se o Executivo ou Legislativo diante de imperativo que os obrigue a promover tal alteração a partir de lei ordinária.

Defendemos que é possível a limitação ou redução do direito adquirido, sem contanto fulminá-lo, especialmente em contexto de recessão ou sua iminência, quando tal limitação presta-se primordialmente a preservar o núcleo essencial deste direito.

São fundamentais nos processos decisórios que pressupõe “escolhas trágicas” a utilização de métodos de solução de conflitos principiológicos amplamente reconhecidos e aceitos, tais como a ponderação entre princípios (Alexy), aplicação do princípio da proporcionalidade (Sarlet), e com a técnica de ponderação de bens (Hӓberle) de modo que se preserve o núcleo essencial dos interesses conflitantes.

Não se pode olvidar da preservação do interesse público sobre o particular, voltando-se os olhos à maioria hipossuficiente e mais vulnerável, de modo a pautar decisões duras por critérios de justiça social e equidade.

Por fim, cabe ao STF mediar e apontar caminhos para a superação destes conflitos. A partir dos pressupostos da interpretação tópica, estabelecerá solução com base nas normas e precedentes de nosso sistema, sempre atento à realidade da vida e à reserva do possível, sem as quais suas decisões podem tornar-se inócuas.

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TOLEDO, Cláudia. Direito Adquirido e Estado Democrático de Direito. São Paulo. Landy, 2003.

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Brasília. Imprensa Nacional, 1979.

[1] Pós-Graduado em Direito Público da Universidade Estácio de Sá.  Pós-graduado em Direito Administrativo e Direito Civil pela rede de ensino LFG/Anhanguera. Pós-graduado em Operações Militares pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais – EsAO. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Sete Lagoas – UNIFEMM. Bacharel em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras – AMAN.

Enviado: Julho, 2019.

Aprovado: Janeiro, 2020.

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Marcelo Bicalho Lara

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