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Meios adequados de solução de conflitos como mecanismos de acesso à justiça

RC: 151892
326
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/mecanismos-de-acesso

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

FREDERICO, Guilherme Nascimento [1], ALVAREZ, Anselmo Prieto [2]

FREDERICO, Guilherme Nascimento, ALVAREZ, Anselmo Prieto. Meios adequados de solução de conflitos como mecanismos de acesso à justiça. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 09, Ed. 02, Vol. 02, pp. 139-155. Fevereiro de 2024. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/mecanismos-de-acesso, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/mecanismos-de-acesso

RESUMO

O presente trabalho tem por escopo analisar os métodos alternativos (rectius: adequados) de solução de conflitos previstos nos parágrafos do artigo 3° do Código de Processo Civil como mecanismos de acesso à justiça. Para tanto, parte-se da análise macroscópica do princípio constitucional da inafastabilidade da prestação jurisdicional, esclarecendo que o acesso à justiça não é atividade exclusiva do Poder Judiciário. Em seguida, examinamos, em linhas gerais, o instituto da arbitragem como fórmula heterocompositiva de resolução de controvérsias, notadamente à luz do paradigma do direito de ação. Na sequência, o objeto do estudo recai sobre a mediação e a conciliação, espécies não exaustivas de métodos autocompositivos utilizados pelo ordenamento jurídico brasileiro para dirimir disputas de interesses. Por fim, conclui-se que os métodos não estatais e não jurisdicionais de pacificação de litígios estão em perfeita e absoluta consonância com o princípio constitucional da inafastabilidade da prestação jurisdicional, com a consequente viabilização, ao menos em tese, do acesso à justiça. É sob tal contexto que a interpretação do artigo 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal deve ser ampla, abarcando todo e qualquer remédio previsto no ordenamento jurídico pátrio apto a resolver as contendas em sociedade.

Palavras-chave: Acesso à justiça, Meios adequados de solução de conflitos, Arbitragem, Mediação, Conciliação.

1. INTRODUÇÃO

De plano, é imprescindível estabelecer a seguinte premissa: o acesso à justiça não se confunde com o acesso ao Poder Judiciário. Com efeito, à luz do magistério de Kazuo Watanabe:

O acesso à justiça não se esgota no acesso ao Judiciário e nem no próprio universo do direito estatal, tampouco nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata, pois, de conceder o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, mas, em verdade, viabilizar o acesso à ordem jurídica justa capaz de garantir a efetividade dos direitos fundamentais da pessoa (Watanabe, 1998, p. 71).

Nesse sentido, revela-se possível compreender o acesso à justiça como mecanismo, sobretudo com a adoção de políticas públicas, de concretização dos direitos e garantias fundamentais antes mesmo da instauração de um processo judicial.

Cumpre alinhar que os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal consagram a internalização dos direitos humanos previstos em tratados e convenções. Dessa forma, o acesso à justiça contempla uma abrangência maior do que aquela estampada no artigo 5º, inciso XXXV, da Carta Magna (Brasil, 1988).

Conforme a teoria da eficácia horizontal dos direitos e garantias fundamentais, estes geram efeitos autoaplicáveis também na esfera jurídico-privada, ou seja, no âmbito das relações entre particulares.

Em tal contexto, o acesso à justiça é intimamente conexo à própria justiça social, albergando todo e qualquer instrumento que vise a garantir ou a realizar direitos e garantias fundamentais – ainda que não se desenvolva perante o Poder Judiciário.

Essa assertiva, todavia, não tem o condão de limitar a atuação do Poder Judiciário enquanto provedor de acesso à justiça. Ao contrário, de nada adiantaria a proclamação de direitos e garantias fundamentais sem respectivos mecanismos que os efetivasse. Daí por que Mauro Cappelletti e Bryant Garth assim afirmam:

Entre esses direitos garantidos nas modernas constituições estão os direitos ao trabalho, à saúde, à segurança material e à educação. Tornou-se lugar comum observar que a atuação positiva do Estado é necessária para assegurar o gozo de todos esses direitos sociais básicos. Não é surpreendente, portanto, que o direito ao acesso efetivo à justiça tenha ganhado particular atenção na medida em que as reformas do welfare state têm procurado armar os indivíduos de novos direitos substantivos em sua qualidade de consumidores, locatários, empregados e, mesmo cidadãos. De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos (Cappelletti et al., 1988, pp. 11-12).

O enfoque sobre o acesso à justiça – vale dizer, o modo pelo qual os direitos se tornam efetivos – também caracteriza crescentemente o estudo do processo civil. Aqui invoca-se, uma vez mais, a lição de Mauro Cappelletti e Bryant Garth:

Os juristas precisam, agora, reconhecer que as técnicas processuais servem a funções sociais; que as cortes não são a única forma de solução de conflitos a ser considerada e que qualquer regulamentação processual, inclusive a criação ou o encorajamento de alternativas ao sistema judiciário formal tem um efeito importante sobre a forma como opera a lei substantiva – com que frequência ela é executada, em benefício de quem e com que impacto social (Cappelletti et al., 1988, pp. 12-13).

Na clássica definição de Francesco Carnelutti, lide é o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida (Carnelutti, 2000, p. 54). Destarte, a pacificação social, solucionando-se a disputa e atribuindo-se o bem da vida a quem lhe faz jus, é a finalidade precípua da prestação jurisdicional.

A existência de leis, normas gerais e abstratas prescritas pelo Estado à sociedade não é por si só suficiente para eliminar os conflitos que podem surgir entre os particulares. Logo, a tarefa da ordem jurídica é exatamente a de harmonizar as relações sociais intersubjetivas, a fim de ensejar a máxima realização dos valores humanos com o mínimo de sacrifício e desgaste (Cintra et al., 2006, p. 25).

O Estado, restringindo a autotutela a situações excepcionalíssimas e prescindindo da voluntária submissão dos particulares, impõe-lhes com autoridade a sua solução para os conflitos de interesses. À atividade mediante a qual o Estado-juiz examina as pretensões resistidas dá-se o nome de jurisdição. Conforme ensina Cassio Scarpinella Bueno:

A ‘jurisdição’ pode ser entendida como a função do Estado destinada à solução imperativa, substitutiva e com ânimo de definitividade de conflitos intersubjetivos e exercida mediante a atuação do direito em casos concretos. Tal exercício de atuação do Estado, contudo, não se limita à declaração de direitos, mas também à sua realização concreta, prática, com vistas à pacificação social (Bueno, 2012, p. 238).

Para exercer adequadamente a função jurisdicional, o Estado Democrático de Direito vale-se de um método específico, o qual denomina-se processo. Este, na lição de Arlete Inês Aurelli:

É o instrumento por meio do qual o Estado presta a tutela jurisdicional. É também uma sucessão encadeada de atos tendentes a um final conclusivo. Nesse sentido, a noção de processo se confunde com a de procedimento. Portanto, para que se possam diferenciar esses conceitos, é preciso aliar a essa noção a de que o processo corresponde, também, à relação jurídica processual triangular formada entre autor, réu e juiz, na qual cada um terá direitos, deveres, ônus e obrigações (Aurelli, 2015, p. 43).

José Roberto dos Santos Bedaque corrobora e conceitua processo como método de trabalho desenvolvido pelo Estado para permitir a solução de litígios (Bedaque, 2010, p. 73).

De fato, processo é o mecanismo pelo qual o direito material controvertido tende a ser realizado e concretizado (Bueno, 2012, p. 391). Adverte Fredie Didier Jr., porém, que:

Mas não é qualquer processo que legitima o exercício da função jurisdicional. Ou seja: não basta que tenha havido processo para que o ato jurisdicional seja válido e justo.

O método-processo deve seguir o modelo traçado na Constituição, que consagra o direito fundamental ao processo devido, com todos os seus corolários (contraditório, proibição de prova ilícita, adequação, efetividade, juiz natural, duração razoável do processo etc.) (Didier Jr., 2016, p. 32).

Ocorre que o princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional (ou direito de ação) vai além do próprio processo devido, como explica Nelson Nery Junior:

Pelo princípio constitucional do direito de ação, além do direito ao processo justo, todos têm o direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. Não é suficiente o direito à tutela jurisdicional. É preciso que essa tutela seja adequada, sem o que estaria vazio de sentido o princípio (Nery Junior, 2017, p. 214).

Outro aspecto merece especial atenção: a necessidade de adequação da tutela dos direitos não se dá só pela via judiciária. O Código de Processo Civil reconhece que a forma adequada para a solução do litígio pode não ser a jurisdicional. É por isso que seu artigo 3º admite a arbitragem e declara que é dever do Estado promover e estimular a solução consensual das disputas (Brasil, 2015a).

Forçoso concluir que a arbitragem e o deslinde consensual de conflitos não colidem com a garantia de acesso à justiça; ao contrário, com esta se harmonizam. Tal é o entendimento de Humberto Theodoro Júnior:

Segundo os parágrafos do art. 3° do NCPC, não conflitam com a garantia de acesso à justiça a previsão da arbitragem e a promoção estatal da solução consensual dos conflitos (Theodoro Júnior, 2018, p. 75).

Tanto assim o é que Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero assinalam:

Nessa linha, o Código corretamente não alude à arbitragem, à conciliação e à mediação e a outros métodos como meios alternativos, mas simplesmente como métodos de solução consensual de conflitos. Embora tenham nascido como meios alternativos de solução de litígios (alternative dispute resolution), o certo é que o paulatino reconhecimento desses métodos como os meios mais idôneos em determinadas situações (como, por exemplo, a mediação para conflitos familiares, cuja maior idoneidade é reconhecida pelo próprio legislador, no art. 694, CPC) fez com que se reconhecesse a necessidade de alteração da terminologia para frisar semelhante contingência (Marinoni et al., 2016, p. 148) (destaques originais).

Em outras palavras: de métodos alternativos passaram a métodos adequados de solução de conflitos, sendo daí oriunda a ideia de que o sistema encarregado de distribuir justiça não comporta uma única porta, mas sim várias portas (multi-door dispute resolution), cada qual apropriada para um determinado tipo de litígio.

Portanto, o princípio da inafastabilidade da jurisdição deve ser compreendido de maneira ampla, à luz do acesso à ordem jurídica justa. Debruça-se este trabalho, em específico, sobre o acesso à justiça como vetor de resolução de conflitos por meio dos métodos adequados previstos no artigo 3º do Código de Processo Civil (Brasil, 2015a).

2. ARBITRAGEM

Segundo a concepção de Carlos Alberto Carmona, arbitragem é:

(…) uma técnica para solução de controvérsias através da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nesta convenção, sem intervenção do Estado, sendo a decisão destinada a assumir eficácia de sentença judicial (Carmona, 2009, p. 15).

A autonomia da vontade das partes, portanto, revela-se condição sine qua non para a instituição da arbitragem, de modo que os interessados deverão ser capazes de contratar. Ademais, é imprescindível que o litígio verse acerca de direitos patrimoniais disponíveis. As limitações subjetivas e objetivas da arbitragem estão preconizadas no artigo 1° da Lei n° 9.307/1996 (Brasil, 1996). Essas premissas são reforçadas pelos artigos 851 e 852 do Código Civil, respectivamente (Brasil, 2002).

A convenção de arbitragem (gênero) se dá por meio da cláusula compromissória e do compromisso arbitral (espécies). A primeira é o pacto por meio do qual os contratantes avençam, por escrito, submeter à arbitragem a solução de eventual litígio que possa decorrer de uma determinada relação jurídica. O segundo consiste é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial.

Na arbitragem ocorre a renúncia voluntária à jurisdição estatal por manifestação volitiva das partes, admitindo-se não existir violação ao princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional. Inclusive, a Lei n° 9.307/1996 – que regulamenta a arbitragem no Brasil – teve a sua constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (Brasil, 2001).

O voto vencedor do Ministro Nelson Jobim ilustra de forma muito didática o posicionamento da Corte Suprema a respeito do tema:

A Constituição proíbe que lei exclua da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5°, XXXV).

Ela não proíbe que as partes pactuem formas extrajudiciais de solução de seus conflitos, atuais ou futuros.

Não há nenhuma vedação constitucional a que partes, maiores e capazes, ajustem a submissão de conflitos, que possam decorrer de relações jurídicas decorrentes de contrato específico, ao sistema de arbitragem.

Não há renúncia abstrata à jurisdição.

Há isto sim convenção de arbitragem sobre litígios futuros e eventuais, circunscritos a específica relação contratual, rigorosamente determináveis.

Há renúncia relativa à jurisdição.

Circunscreve-se a renúncia aos litígios que decorram do pacto contratual, nos limites fixados pela cláusula.

Não há que se ler na regra constitucional (art. 5°, XXXV), que tem como destinatário o legislador, a proibição das partes renunciarem à ação judicial quanto a litígios determináveis, decorrentes de contrato específico (Brasil, 2001).

No âmbito doutrinário, discorrendo justamente sobre o aludido julgamento, Carlos Alberto de Salles ressalta que:

Na arbitragem, de fato, não se cogita de exclusão geral do acesso à jurisdição estatal. Fosse assim, por certo haveria inconstitucionalidade. Por essa razão, a convenção arbitral deve ser relativa a um litígio discriminado, circunscrito à determinada relação jurídica. Situação diversa – e indesejada – seria aquela decorrente de cláusula geral, excluindo, de forma indeterminada, a possibilidade de as partes levarem à apreciação judicial qualquer litígio que viesse a surgir entre elas (Salles, 2006, p. 784).

A assimilação pelo sistema jurídico brasileiro de mecanismos alternativos (rectius: adequados) de solução de conflitos leva a uma nova consideração do próprio conceito de jurisdição. Por certo, o contorno contemporâneo desse instituto exalta suas características de função e atividade e abranda sua perspectiva enquanto poder estatal.

Dessa maneira, em uma definição alargada, o conceito de jurisdição poderá contemplar outros mecanismos de solução de controvérsias, ainda que não abrigados pelo aparato judiciário do Estado.

Com efeito, o artigo 31 da Lei n° 9.307/1996 determina que a decisão final do árbitro produzirá os mesmos efeitos da sentença estatal, constituindo título executivo judicial. O legislador optou, portanto, por adotar a tese da jurisdicionalidade da arbitragem.

Nesse passo, Carlos Alberto Carmona ensina que:

O conceito de jurisdição, em crise já há muitos anos, deve receber novo enfoque, para que se possa adequar a técnica à realidade.

(…)

O fato que ninguém nega é que a arbitragem, embora tenha origem contratual, desenvolve-se com a garantia do devido processo e termina com ato que tende a assumir a mesma função da sentença judicial. Sirva, pois, esta evidência para mostrar que a escolha do legislador brasileiro certamente foi além das previsões de muitos ordenamentos estrangeiros mais evoluídos que o nosso no trato do tema, trazendo como resultado final o desejável robustecimento da arbitragem (Carmona, 2009, pp. 26-27).

Em rigor, a conclusão de que o árbitro exerce jurisdição emerge da própria Lei n° 9.307/1996, que, em seu artigo 18, assim prevê:

Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário (Brasil, 1996).

Portanto, a arbitragem não viola o princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional; ao contrário, potencializa-o.

3. MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO COMO TÉCNICAS DE SOLUÇÃO CONSENSUAL DE CONFLITOS

Ao vedar a justiça de mão própria e afirmar que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, a Constituição Federal assegura a existência de direito à tutela jurisdicional adequada e efetiva. Esta, porém – conforme já ponderado –, não é atividade privativa do Poder Judiciário.

Nessa perspectiva, o processo estatal e o procedimento arbitral são métodos heterocompositivos de solução de controvérsias, na medida em o conflito é administrado por um terceiro, escolhido ou não pelos litigantes, que detém o poder de decidir, sendo a respectiva decisão vinculativa em relação às partes.

Não obstante, é razoável cogitar-se que as controvérsias tendam a ser resolvidas, em um primeiro momento, diretamente pelas próprias partes interessadas. Logo, em contraposição aos métodos heterocompositivos, os autocompositivos são compreendidos como aqueles em que os interessados buscam solucionar os conflitos por conta própria, com ou sem a ajuda de terceiro.

De fato, consoante define Fredie Didier Jr., autocomposição:

É a forma de solução do conflito pelo consentimento espontâneo de um dos contendores em sacrificar o interesse próprio, no todo ou em parte, em favor do interesse alheio. É a solução altruísta do litígio. Avança-se no sentido de acabar com o dogma da exclusividade estatal para a solução dos conflitos de interesses (Didier Jr., 2016, p. 167).

As assertivas acima, todavia, não significam que as fórmulas heterocompositivas dependam, necessariamente, do prévio esgotamento dos métodos autocompositivos. Estes, inclusive, podem ocorrer no curso do processo judicial ou do procedimento arbitral, dentro ou fora dos respectivos autos.

Autocomposição é o gênero do qual são espécies a transação e a submissão. Tal classificação é eleita por Fredie Didier Jr.:

Autocomposição é o gênero do qual são espécies: a) transação: os conflitantes fazem concessões mútuas e solucionam o conflito; b) submissão: um dos conflitantes se submete à pretensão do outro voluntariamente, abdicando dos seus interesses. Quando feita em juízo, a submissão do autor é denominada de renúncia (art. 487, III, ‘c’, CPC); a do réu é designada como reconhecimento da procedência do pedido (art. 487, III, ‘a’, CPC) (Didier Jr., 2016, p. 167).

Sob tal prisma, ao mesmo tempo em que o legislador assegura o acesso irrestrito à justiça, destaca também as virtudes da solução consensual de conflitos, atribuindo ao Estado o encargo de promover essa prática pacificadora sempre que possível – a teor do artigo 3º, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil (Brasil, 2015a).

Na verdade, o Estado vem, reiteradamente, incentivando a autocomposição, com a edição de diversas leis nesse sentido. Por sua vez, o Código de Processo Civil ratifica e reforça tal tendência em diversos dispositivos (Brasil, 2015a).

Por tais razões, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero afiançam que:

O novo Código tem como compromisso promover a solução consensual do litígio, sendo uma das suas marcas a viabilização de significativa abertura para a autonomia privada das partes – o que se manifesta não só no estímulo a que o resultado do processo seja fruto de um consenso das partes (art. 3.°, §§ 2.° e 3.°, CPC), mas também na possibilidade de estruturação contratual de determinados aspectos do processo (negócios processuais, art. 190, CPC, e calendário processual, art. 191, CPC) (Marinoni et al., 2016, p. 149).

A autocomposição pode ocorrer após negociação dos interessados, com ou sem a participação de terceiros que orientem as tratativas. Observe-se que nos métodos autocompositivos o terceiro figura como auxiliar – mediador ou conciliador. Por oportuno, transcreve-se o escólio de Fredie Didier Jr. sobre o tema:

Ao terceiro não cabe resolver o problema, como acontece na arbitragem: o mediador/conciliador exerce um papel de catalizador da solução negocial do conflito (Didier Jr., 2016, p. 273).

Mais do que simplesmente estimular a autocomposição, o Codex prevê a criação, pelos tribunais, de centros judiciários de solução de conflitos, os quais serão responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação, assim como pelo desenvolvimento de programas destinados a fomentar a autocomposição.

Inclusive, posteriormente à sanção do Código de Processo Civil, a Lei n° 13.140/2015 dispôs sobre a mediação extrajudicial e judicial entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública (Brasil, 2015b).

A mediação, a qual conduz a uma solução não originada de órgão judicial, ocorre através da intervenção de terceiro imparcial que encaminha as partes a negociar e a alcançar um termo consensual para a controvérsia em que se acham envolvidas.

Na definição do artigo 1°, parágrafo único, da Lei n° 13.140/2015:

Considera-se mediação atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia (Brasil, 2015b).

Note-se que a lei processual descreveu a atividade do mediador, o qual atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos.

Por sua feita, o conciliador atuará preferencialmente nos casos em que não houver vínculo anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem.

Nos termos da legislação processual, o conciliador tem uma participação mais ativa no processo de negociação, podendo, inclusive, sugerir soluções para o litígio no intuito de pôr fim de forma harmoniosa ao dissídio instalado entre as partes – embora o faça sem poder decisório vinculante e de maneira não impositiva.

O mediador, conforme já visto, exerce um papel um tanto diverso. Cabe a ele servir como veículo de comunicação entre os interessados, um facilitador do diálogo entre eles, auxiliando-os a compreender as questões e as postulações em conflito, de modo que as partes possam identificar, por si mesmas, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos.

Na técnica da mediação, o auxiliar não propõe soluções aos interessados. Ela é, por isso, mais indicada nos casos em que exista uma relação anterior e permanente entre as partes, como em conflitos familiares e societários. Portanto, a mediação será exitosa quando os envolvidos conseguirem construir a solução negociada do conflito.

À luz de tais fundamentos, o traço distintivo entre a mediação e a conciliação reside, basicamente, no poder maior do conciliador de formular opções para resolução da controvérsia, que não ficam limitadas às meras concessões recíprocas, mas que correspondam à satisfação harmônica dos interesses das partes.

Diferenças à parte, é indubitável que a mediação e a conciliação vêm ganhando força no ordenamento jurídico brasileiro. Nas palavras de Humberto Theodoro Júnior:

Ninguém melhor do que as próprias partes para alcançar soluções mais satisfatórias para suas contendas, chegando à autocomposição, por meio da alternative dispute resolution (ADR), na linguagem do direito norte-americano (Theodoro Júnior, 2018, p. 464).

Os métodos de autocomposição, entretanto, não devem ser estudados como solução para a crise de morosidade do Poder Judiciário, reduzindo-se a quantidade de processos, mas sim como meios para se conferir tratamento mais adequado aos conflitos de interesses que ocorrem na sociedade (Watanabe, 2013, p. 243).

Apenas para que não fique sem o devido registro, é necessário pontuar que os meios autocompositivos de solução de controvérsias não se limitam à mediação e à conciliação. O artigo 3°, parágrafo 3°, do Código de Processo Civil abre oportunidade para “outros métodos de solução consensual de conflitos”. Trata-se de verdadeira cláusula geral.

A tendência atual, principalmente no mundo dos grandes negócios internacionais, é a utilização de uma série de técnicas extrajudiciais para a superação dos conflitos surgidos nas relações contratuais. A título ilustrativo, cita-se o ombudsman, a opinião de experto e a facilitação (Garcez, 2013, p. 31).

Exemplos da atividade própria do ombudsman – pessoa ou entidade que exerce ouvidoria, recebendo e encaminhando reclamações a quem de direito para a devida resposta – são aquelas desenvolvidas, entre nós, pelo Ministério Público (artigo 129, inciso II, da Constituição Federal) (Brasil, 1988) e pelas Agências Reguladoras (artigo 11 da Lei n° 9.986/2000) (Brasil, 2000).

Outrossim, por meio de cláusula contratual ou de negócio processual, pode-se convencionar que o exame técnico de fato controvertido seja feito, com força vinculante para as partes, por expert consensualmente escolhido. Assim, cria-se um caminho assentido para alcançar ou facilitar a composição do litígio.

Já a técnica da facilitação consiste em obter a assistência concedida às partes por terceiro, o qual favorece a construção da saída consensual. Pondera José Maria Rossani Garcez que:

Nos Estados Unidos existem centros de ADRs como grupos de experts formados para esse desiderato, que apenas assistem às negociações, esclarecendo condições e explorando cenários de solução (Garcez, 2013, p. 31).

As considerações traçadas neste capítulo denotam que os métodos autocompositivos de solução de controvérsias constituem meios adequados de acesso à justiça efetiva, não se cogitando eventual infringência ao princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional.

No sistema do Código de Processo Civil brasileiro não é obrigatória a prévia busca da solução conciliatória como requisito para o ingresso em juízo, ao contrário do que ocorre em outros países, como, por exemplo, na Suíça (Câmara, 2013, p. 45).

Importante lembrar que para a obtenção da prestação jurisdicional, no sistema processual brasileiro, deverá o autor demonstrar o preenchimento dos pressupostos processuais e das condições da ação – entre os quais, enfatize-se, não se encontra a tentativa pretérita de composição.

É certo que o artigo 334, caput, do Código de Processo Civil (Brasil, 2015a) estabelece que o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação previamente ao oferecimento de resposta pelo réu. Porém, tal sessão poderá não ser realizada acaso ambas as partes assim disponham.

A propósito, com vênia ao entendimento em sentido contrário, eventual legislação que preveja a tentativa de conciliação ou a mediação como condicionante à prestação jurisdicional incorre em manifesta inconstitucionalidade por, em tese, malferir o direito de ação e o princípio da razoável duração do processo – este previsto no artigo 5°, inciso LXXVIII, da Constituição Federal (Brasil, 1988).

4. CONCLUSÃO

A norma constitucional da inafastabilidade da tutela jurisdicional conduz, em primeira leitura, à afirmação de estarem vedadas quaisquer formas de exclusão de apreciação de litígios pelo Poder Judiciário. Tal ponderação, entretanto, merece temperamento.

Os mecanismos não estatais e não jurisdicionais adequados de solução de controvérsias devem ser vistos como instrumentos de auxílio e complementação do serviço judiciário prestado pelo Estado.

Mesmo quando substituem a prestação da tutela jurisdicional, os meios adequados para dirimir os litígios não constituem obstáculos ao exercício da garantia disposta no artigo 5°, inciso XXXV, da Carta Magna (Brasil, 1988).

Nesse diapasão, o direito à prestação da tutela jurisdicional deve ser interpretado de forma elástica, assegurando-se que toda disputa em sociedade tenha o correspondente, adequado e efetivo remédio.

A conceituação do princípio elencado no artigo 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal merece revisitação, de modo a contemplar os meios adequados de solução de conflitos como sucedâneos válidos da jurisdição estatal (Brasil, 1988).

Trata-se, na verdade, de caminhar para uma nova concepção de jurisdição, não compreendida a partir do monopólio do Estado, mas concebida como um entre várias formas de resolver as disputas de interesses em sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AURELLI, Arlete Inês. Institutos fundamentais do processo civil: jurisdição, ação e processo. In Revista Brasileira de Direito Processual. Belo Horizonte, ano 23, n° 89, janeiro/março 2015.

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2010.

BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistemático de direito processual civil, v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1988.

BRASIL. Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1996.

BRASIL. Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000. Dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras e dá outras providências. Brasília, DF. Diário Oficial da União, 2000.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2002.

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[1] Mestrando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Pós-graduado em Direito Processual Civil e em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. ORCID: 0009-0003-4737-4202. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/6853701666480897.

[2] Pós-doutor pelo Instituto Ius Gentium Conimbrigae/Centro de Direitos Humanos de Coimbra, associado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Portugal. Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor de Direito Processual Civil dos cursos de graduação, extensão e pós-graduação da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ORCID: 0000-0002-4464-0128. Curriculo Lattes: https://lattes.cnpq.br/7855142507591870.

Material recebido: 12 de janeiro de 2024.

Material aprovado pelos pares: 23 de janeiro de 2024.

Material editado aprovado pelos autores: 23 de fevereiro de 2024.

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Guilherme Nascimento Frederico

Uma resposta

  1. Artigo muito bem escrito, com uma série de informações relevantes sobre o tema trazido. Parabéns.

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