REVISTACIENTIFICAMULTIDISCIPLINARNUCLEODOCONHECIMENTO
Pesquisar nos:
Filter by Categorias
Administração
Administração Naval
Agronomia
Arquitetura
Arte
Biologia
Ciência da Computação
Ciência da Religião
Ciências Aeronáuticas
Ciências Sociais
Comunicação
Contabilidade
Educação
Educação Física
Engenharia Agrícola
Engenharia Ambiental
Engenharia Civil
Engenharia da Computação
Engenharia de Produção
Engenharia Elétrica
Engenharia Mecânica
Engenharia Química
Ética
Filosofia
Física
Gastronomia
Geografia
História
Lei
Letras
Literatura
Marketing
Matemática
Meio Ambiente
Meteorologia
Nutrição
Odontologia
Pedagogia
Psicologia
Química
Saúde
Sem categoria
Sociologia
Tecnologia
Teologia
Turismo
Veterinária
Zootecnia
Pesquisar por:
Selecionar todos
Autores
Palavras-Chave
Comentários
Anexos / Arquivos

Danos morais por abandono afetivo: principais fundamentações teóricas

RC: 136108
1.164
5/5 - (11 votos)
DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/fundamentacoes-teoricas

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PERNAMBUCO, Juliana Martins [1]

PERNAMBUCO, Juliana Martins. Danos morais por abandono afetivo: principais fundamentações teóricas. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 12, Vol. 07, pp. 112-124. Dezembro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/fundamentacoes-teoricas, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/fundamentacoes-teoricas

RESUMO

O conceito de abandono afetivo surgiu no início dos anos 2000, apesar de estar presente na sociedade muito antes de manifestar-se em decisões judiciais. Configura-se a partir do afastamento praticado por um genitor em relação ao seu filho. Ainda não existe legislação específica para o caso, ocasionando discussões doutrinárias e divergências nos Tribunais no que diz respeito à aplicação ou a não aplicação de indenização pecuniária a título de danos morais de um pai em favor de seu filho. Nesse sentido, surge a pergunta que norteia este estudo: quais são os fundamentos utilizados pelos doutrinadores que defendem a aplicação de indenização por danos morais ocasionados por abandono afetivo? O objetivo deste trabalho é analisar os fundamentos que favorecem a aplicação de uma indenização monetária para penalizar o dano à criança abandonada afetivamente. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica por meio da leitura de livros, artigos, julgados e jurisprudências. Os principais resultados desse estudo apontam como a legislação brasileira evoluiu nas últimas décadas ao estabelecer princípios que igualam os deveres e direitos na sociedade conjugal e o reconhecimento da dignidade para todos, independentemente de sexo ou idade. Mostram também como o abandono afetivo prejudica o desenvolvimento saudável de uma criança, e como a aplicação de uma indenização pecuniária pode, em caráter pedagógico, ensinar a sociedade que condutas lesivas serão punidas e em caráter dissuasório, extinguir o sentimento de impunidade reprimindo comportamentos danosos. Conclui-se que essa punição monetária tem o propósito de conscientizar a sociedade, pois essa evolução gera um remédio, a longo prazo, para a construção de uma sociedade mais desenvolvida tendo em vista que crianças emocionalmente saudáveis se tornam adultos seguros, equilibrados e aptos para construir relações saudáveis.

Palavras-chaves: Abandono afetivo, Danos morais, Indenização.

1. INTRODUÇÃO

Compreende-se por abandono afetivo o afastamento, a falta de convívio ou a negligência que podem ser praticadas pelos genitores em relação aos filhos, impedindo-os de desfrutar da convivência, cuidado e troca afetiva (COSTA, 2008).

O conceito do referido instituto apareceu no início dos anos 2000, mas só ganhou notoriedade em 2004, quando o Tribunal de Alçada de Minas Gerais, hoje Tribunal de Justiça de MG, deferiu o pedido de um filho, o qual solicitava indenização por danos morais decorrentes de abandono afetivo (MINAS GERAIS, 2004).

O Código Civil de 1916, redigido sob influência do direito romano, previa em seu artigo 233 que o marido era o chefe da família e estabelecia em seu artigo 380 que o pátrio poder deveria ser exercido por ele e apenas na sua ausência ou impedimento a mulher o exerceria (BRASIL, 1916).

Isso significava que a família da época, composta por pai, mãe e filhos, era organizada pelo pai, que detinha todos os poderes da sociedade matrimonial. Nesse sentido, a figura paterna possuía os direitos absolutos sobre sua esposa e sobre seus filhos. No entanto, esse dispositivo começou a ser extinto com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que trouxe em seu texto o princípio da isonomia entre os seres humanos. Com isso, as definições de família foram renovadas e o poder familiar passou a ser do casal e não apenas do pai. Além disso, a nova constituição estabeleceu o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, fundamental para a proteção dos interesses da criança (BRASIL, 1988).

Apesar dos dispositivos existirem há mais de 30 anos, ainda há a proliferação da ideia de que o poder patriarcal é o que rege as relações familiares, principalmente em cidades pequenas e interioranas (ESCOLA BRASILEIRA DE DIREITOS DAS MULHERES, 2021). Nesse sentido, a dissolução matrimonial é associada ao rompimento da relação pai e filho, já que, muitas vezes, ao separar-se da mãe, o pai também corta o vínculo com o filho e essa separação pode ocasionar grandes lesões emocionais (HIRONAKA, 2007)

É importante destacar que existe diferença entre abandono afetivo e abandono financeiro, já que o direito aos alimentos já possui legislação específica e é pacificado nos tribunais. Quando se fala, porém, em abandono afetivo, ainda existe confusão. Muitos entendem que não existe pelo simples fato de que o genitor cumpre com as obrigações financeiras, mas esse pensamento desconsidera as necessidades afetivas e emocionais que são tão importantes para o desenvolvimento humano. Compreendem que o descumprimento dos deveres deveria ocasionar, como maior penalidade, a perda do poder familiar. Entretanto, essa medida se tornaria uma recompensa para o pai que ficaria “livre” da convivência e da responsabilidade com o filho (FULLER, 2018). A quebra do vínculo afetivo pode gerar consequências drásticas na vida de uma criança que podem, muitas vezes, refletir na vida adulta (SILVA, 2014)

O ordenamento jurídico brasileiro, por meio do instituto da Responsabilidade Civil na modalidade dano moral, estabelece que os prejuízos causados a alguém sejam reparados (DINIZ, 2015). Entretanto, a aplicabilidade do referido instituto para questões familiares ainda não possui legislação específica e, diante disso, ocorrem as divergências nos tribunais.

Nessa perspectiva, surge a questão norteadora deste trabalho: quais são os fundamentos utilizados pelos doutrinadores que defendem a aplicação de indenização por danos morais ocasionados por abandono afetivo? O objetivo deste trabalho é analisar os fundamentos que favorecem a aplicação de uma indenização monetária para penalizar o dano à criança abandonada afetivamente.

2. DESENVOLVIMENTO

A sessão de desenvolvimento está dividida em três tópicos. O primeiro, busca auxiliar na compreensão do conceito de família; o segundo aborda sucintamente alguns princípios inerentes ao direito de família e o conceito de responsabilidade civil; e o terceiro descreve o posicionamento dos principais doutrinadores que defendem a aplicação da indenização por danos morais.

3. EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CONCEITO DE FAMÍLIA

O direito romano, forte influenciador do Código Civil brasileiro de 1916, estabelecia o pátrio poder. Nesse sistema, a figura masculina detinha todos os direitos sobre sua esposa e filhos. Cabia ao pai, chefe da sociedade matrimonial, a tomada de decisões na educação e na vida dos filhos, podendo até mesmo vendê-los ou matá-los. Nesse momento da história, o homem mais velho da família era, simultaneamente, chefe político, sacerdote e juiz e a família nada mais era do que uma unidade política, econômica, jurisdicional e religiosa (GONÇALVES, 2021).

Entretanto, no início do reinado do Imperador Constantino, no século IV, surgiu a ideia de uma família cristã, a qual diminuiu o poder do homem e ofereceu mais autonomia à mulher e aos filhos (GONÇALVES, 2021).

Como dito anteriormente, por influência do direito romano, o Código Civil brasileiro não considerava filhos fora do casamento e nem uniões extraconjugais. O conceito de família definia que aquela era constituída exclusivamente pelo casamento (MADALENO, 2022).

No entanto, com a promulgação da Constituição de 1988, esse entendimento começou a mudar. A Carta Magna trouxe como princípio básico a Dignidade da Pessoa Humana, fazendo com que o ser humano, de forma geral, fosse o centro protetor do direito (DIAS, 2016).

Esse foi o ponto de partida para a evolução do conceito de família. A partir desse momento a Constituição validou a entidade familiar constituída não só pelo casamento, mas também pela União Estável e a família monoparental, formada por um dos pais e seus descendentes (DOLCE, 2018).

É importante destacar que a norma, apesar de estática no papel, sofre alterações em sua interpretação de acordo com a evolução da sociedade. Esse fenômeno é conhecido como Mutação Constitucional e permite a adaptação da norma fundamental ao caso concreto sem alterar o seu dispositivo. Dessa forma, o ordenamento jurídico brasileiro passou a reconhecer a União Homoafetiva como entidade familiar e reconheceu a legitimidade dos filhos adotados ou não dessa união (PAVARINA; FERREIRA; SANTOS, 2020).

4. BREVE ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO DE FAMÍLIA E O CONCEITO DE RESPONSABILIDADE CIVIL

Os princípios fundamentais são as normas básicas que conduzem o Estado Democrático de Direito para a garantia dos direitos dos cidadãos (SILVA, 2014).

Esses princípios, consolidados com a promulgação da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), ocasionaram uma revolução no direito de família (DOLCE, 2018).

Rolf Madaleno diz que:

No direito de família, a revolução surgida com o advento da Constituição Federal de 1988 retirou de sua gênese o caráter autoritário da prevalência da função masculina quando tratou de eliminar as relações de subordinação até então existentes entre os integrantes do grupo familiar. (MADALENO, 2022)

A Carta Magna estabelece:

Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – A soberania;

II – A cidadania;

III – A dignidade da pessoa humana;

IV – Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – O pluralismo político.

(BRASIL, 1988)

O princípio definido no inciso III estabelece dignidade igual para todos os membros da família. Dessa forma é vedado o tratamento diferenciado aos filhos frutos de uma relação matrimonial dissolvida em detrimento de filhos constituídos em uma nova família (DIAS, 2016).

O autor Ingo Wolfgang Sarlet (2021, p. 2) diz que “nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana”. O ser humano, independentemente de raça, sexo, credo ou idade, passa a ser o protagonista com seus direitos individuais garantidos com base no respeito e na igualdade.

A doutrina, de modo geral, entende que a aplicabilidade do princípio da dignidade da pessoa humana deve guiar o direito de família para que sejam preservadas as integridades física e psíquica de seus membros e cercear condutas danosas, preservando a saúde de todos os seus membros (GRACIANE, 2018).

O princípio da igualdade também faz parte das mudanças ocasionadas com a promulgação da Constituição de 1988. Rolf Madaleno (2022) diz que o princípio da igualdade é uma das bases que sustentam o princípio da dignidade, já que sua aplicação impossibilita tratamentos segregatórios entre gêneros sexuais e afasta discriminações relacionadas à origem dos filhos.

O artigo 226 da Constituição, § 5º, estabelece que “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.” Já o artigo 227, § 6º, diz: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. (BRASIL, 1988).

O código civil de 1916 determinava, além do domínio paterno já mencionado acima, a distinção entre filhos concebidos dentro e fora do matrimônio classificando-os como legítimos ou ilegítimos. Tais termos motivavam a utilização de adjetivos humilhantes para a criança concebida fora do matrimônio (BERALDO, 2020).

Entende-se como consequência lógica que o referido princípio estabeleceu a igualdade entre cônjuges e companheiros surgindo o princípio da igualdade na chefia familiar. Significa dizer que a entidade familiar deverá ser chefiada tanto pelo homem quanto pela mulher, incluindo até a opinião dos filhos. Esse novo regime de colaboração extinguiu a hierarquia masculina e fez desaparecer a figura do pater família e inutilizou a expressão pátrio poder, que foi substituída pelo conceito de poder familiar (TARTUCE, 2007).

Compreende-se que o poder familiar é desempenhado igualmente pelos genitores, os quais têm o dever de garantir a guarda, o sustento e a educação dos filhos menores de 18 anos. Além disso, devem proporcionar aos filhos uma relação afetuosa e cuidadosa para garantir um crescimento emocionalmente saudável. Nesse sentido, escreve Maria Helena Diniz (2015):

O exercício do poder familiar deve ocorrer de modo permanente e efetivo, revelando afetividade, solidariedade e reciprocidade de sentimentos no convívio familiar. Tal ocorre porque o afeto é a matéria-prima do desenvolvimento mental da criança e do adolescente e a força motivadora do aprendizado e da construção de sua inteligência.

O planejamento familiar está determinado na Constituição, justificado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.

Vejamos o artigo 226:

A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(…)

§ 7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas (BRASIL, 1988).

A redação do dispositivo é clara, porém, cabe ressaltar que o Estado não tem o poder de decidir sobre o planejamento familiar, mas tem o dever de proporcionar recursos educacionais e científicos para garantir a dignidade humana. Aos pais, cabe a responsabilidade de assegurar aos filhos uma vida digna, com educação, apoio emocional, livre de violência, preconceito, exploração e qualquer tipo de crueldade, principalmente durante a infância, porque é nesse momento que o indivíduo está construindo a sua personalidade (MADALENO, 2022).

O princípio da solidariedade também está expresso na Carta Magna e originou-se a partir de vínculos de afeto dentro da unidade familiar (BERALDO, 2020).

Na esfera jurídica entende-se não só como dever dos pais educar e cuidar dos filhos, mas também que cabe aos filhos o amparo aos pais na velhice (BICCA, 2018).

O princípio da afetividade não está expresso no texto constitucional, entretanto é considerado essencial, já que os vínculos afetivos conectam as pessoas e originam relações (PESSANHA, 2019).

Rolf Madaleno entende o afeto como:

O afeto é a mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, para ao fim e ao cabo dar sentido e dignidade à existência humana. A afetividade deve estar presente nos vínculos de filiação e de parentesco, variando tão somente na sua intensidade e nas especificidades do caso concreto. (MADALENO, 2022)

Ao analisar a evolução histórica e jurídica das relações familiares, percebe-se o tamanho da importância que os legisladores deram aos interesses da criança ao redigirem as normas constitucionais. O ordenamento jurídico brasileiro percebeu que o rompimento dos laços familiares pode ocasionar grandes transtornos no desenvolvimento infantil. Uma criança abandonada afetivamente pode manifestar transtornos de identidade, personalidade introspectiva, insegurança e baixa autoestima. Esses fatores, além de prejudicar a vida escolar e social da criança, podem refletir na vida adulta, interferindo nas relações sociais e no ambiente de trabalho (ROSA, 2020).

Apesar de não estar expresso na norma, como dito acima, a sensibilidade dos juristas comprova que a afetividade é um princípio, já que os princípios jurídicos se originam a partir de interpretações das normas, dos costumes, da doutrina e da jurisprudência, como também a partir de aspectos políticos econômicos e sociais (TARTUCE, 2012).

O dispositivo jurídico que fundamenta o dever de reparar ou ressarcir o dano causado a um indivíduo é a Responsabilidade Civil.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho conceituam como:

Responsabilidade, para o direito, nada mais é, portanto, que uma obrigação derivada – um dever jurídico sucessivo – de assumir as consequências jurídicas de um fato, consequências essas que podem variar (reparação dos danos e/ou punição pessoal do agente lesionante) de acordo com os interesses lesados. (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2022)

Na perspectiva de Nelson Rosenvald (2017), a obrigação de reparar o dano é o que norteia o instituto da Responsabilidade Civil. Sobre isso o Código Civil estabelece que, quem violar direitos ou causar danos, comete ato ilícito. Vejamos o dispositivo: “Artigo 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” (BRASIL, 2002)

De acordo com o dispositivo, a presença dos quatro requisitos: ação ou omissão, ato ilícito, dano e nexo causal configura a responsabilidade civil. Atribuindo ao responsável pela conduta que gerou o dano o dever de repará-lo. É importante conceituar esses elementos:

– A ação é dividida em comissiva e omissiva. A primeira se configura a partir da realização de um ato que não deveria ter sido efetuado, já a segunda se caracteriza pelo ato de não praticar uma ação que deveria ter sido realizada (NADER, 2016).

– O dano é dividido em duas espécies: material e moral. O primeiro está relacionado a perdas patrimoniais e o segundo aos efeitos lesivos à personalidade da pessoa, atingindo seus sentimentos e sua dignidade (PEREIRA, 2022).

Entende-se como nexo causal a relação de causa e efeito entre o ato provocado pelo agente (ação comissiva ou omissiva) e o dano sofrido pela vítima (PEREIRA, 2022).

Atendendo aos requisitos expostos, está configurada a responsabilidade civil e, a partir desse momento, inicia-se o conceito de reparação do dano por meio de indenização pecuniária.

5. DANO MORAL 

Uma criança abandonada afetivamente tem grandes chances de desenvolver problemas escolares, transtornos emocionais, crises de ansiedade, baixa autoestima, insegurança etc. São muitos os prejuízos causados especialmente na infância, pois é nesse momento que a criança constrói a sua personalidade (DANILISZYN e WISNIEWSKI, 2017). Nesse sentido, entra a possibilidade de um pedido jurídico indenizatório já que sua função é compensar um dano causado. Nos casos de abandono afetivo a compensação financeira objetiva reparar a lesão emocional causada ao filho e penalizar o dano à dignidade de uma criança em estágio de formação (MADALENO, 2022).

Esse tema ganhou grande relevância nacional em 2004, quando o extinto tribunal de alçada de Minas Gerais deferiu a tese do advogado Rodrigo da Cunha Pereira, que pedia reparação por danos morais em face de um pai por ter abandonado afetivamente o seu filho (TJMG, Apelação Cível nº 408550-5). Entretanto, o STJ, atendendo ao pedido recursal do réu (pai do autor) concluiu que não caberia indenização em face de um pai que abandonou moralmente seu filho. O Ministro relator Fernando Gonçalves, da Quarta Turma, entendeu que não existia ato ilícito na conduta do pai porque o afeto não pode ser imposto (STJ, REsp 757.411/MG, julgado em 29/11/2005).

Em 2012, o STJ se viu novamente discutindo o tema, mas, dessa vez, a reparação civil pelo abandono afetivo foi admitida. A Ministra Relatora, Nancy Andrighi, aplicou a ideia do cuidado como valor jurídico e ressaltou que os pais têm o dever de auxiliar psicologicamente os filhos. Ela não defende a obrigatoriedade do amor, mas sim o dever de cuidar. Essa decisão impactou significativamente o reconhecimento do afeto como princípio no ordenamento jurídico (TARTUCE, 2012).

Os juristas contrários à reparação do afeto entendem que um pai condenado por sua ausência não buscaria se aproximar do filho que buscou auxílio no judiciário, mas é importante destacar que a reparação não é apenas pelo dano causado, mas também pela violação de direitos, uma vez que cabe aos pais garantir aos filhos uma vida digna. Também entendem que os fundamentos dessas demandas podem ser utilizados para casos mal-intencionados, vingativos, por exemplo, o que fomentaria o surgimento de uma indústria indenizatória do afeto (HIRONAKA, 2007). Essa preocupação também é compartilhada pelos doutrinadores favoráveis à reparação pecuniária. Entretanto, o medo da concretização dessa indústria não pode ser um obstáculo diante dos benefícios já adquiridos para a formação de um direito de família mais humano (HIRONAKA, 2007). Dizer que não cabe reparação é o mesmo que premiar a irresponsabilidade e o abandono (PEREIRA, 2008).

Compreende-se que a reparação pecuniária, se utilizada com moderação e bom senso, pode se tornar um importante instrumento para o direito de família, coibindo essa prática e educando a sociedade no que tange à importância da presença dos pais para o desenvolvimento físico e psíquico saudáveis de uma criança (HIRONAKA, 2007).

Entende-se que não existe valor financeiro capaz de devolver à criança o afeto e o sentimento de cuidado que ela não teve, mas a partir do momento que o judiciário acolhe essa demanda, ele divulga para a sociedade o valor pedagógico e dissuasório dessa condenação. Pedagógico no sentido de ensinar que tal conduta não deve ser praticada e dissuasório para demonstrar que o sentimento de impunidade deve ser extinto, dessa forma evitará que mais casos de abandono existam no futuro. O tempo foi o senhor dessa transformação, hoje não é mais admissível que um pai simplesmente decida se ausentar das suas responsabilidades. Pai e mãe devem trabalhar em igualdade para a construção de uma unidade familiar forte e estruturada (MADALENO, 2017).

6. CONCLUSÃO

No meio jurídico existe a grande preocupação da interferência que a aplicabilidade de indenizar pode causar nas relações familiares. Nesse sentido responde-se à questão norteadora desta pesquisa: quais são os fundamentos utilizados pelos doutrinadores que defendem a aplicação de indenização por danos morais ocasionados por abandono afetivo? Após o estudo, foi possível perceber que a principal argumentação se baseia na interpretação de que o dano moral é uma penalidade aplicável ao abandono afetivo. A partir desse primeiro entendimento, a penalização adquire caráter pedagógico e dissuasório. O caráter pedagógico visa educar as famílias e a sociedade, ensinando que o abandono afetivo tem consequências ruins para o desenvolvimento da criança enquanto ser humano e que tal conduta será punida. O caráter dissuasório visa extinguir o sentimento de impunibilidade enraizado na sociedade coibindo e prevenindo que ações de abandono ocorram no futuro.

Vale ressaltar também a preocupação em comum que os doutrinadores Giselda Hironaka (2007) e Rodrigo Pereira (2022) dividem sobre a possibilidade da formação de uma indústria indenizatória fundamentada no abandono afetivo. Infelizmente existe, mas cabe ao poder judiciário analisar caso a caso e verificar a presença de danos causados decorrentes de abandono afetivo. Compreendeu-se que a multa não visa reparar a falta de amor, mas a negligência perante as responsabilidades de progenitores para com os seus filhos, para além da função de provedor financeiro.

O presente estudo buscou demonstrar a importância que o núcleo familiar desempenha na formação de um indivíduo. Entendemos que a busca por uma sociedade equilibrada se inicia com a formação da personalidade de uma criança e que o Estado, ao redigir normas, preocupou-se em garantir a defesa daqueles que foram discriminados no passado. A promulgação da Constituição de 1988, ao estabelecer a igualdade entre homens e mulheres, extinguiu a ideia do homem como chefe da relação familiar e deu mais voz às mulheres que sempre foram vistas com inferioridade cognitiva para a tomada de decisões. Esse princípio serviu como base para o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual é um dos guias para as relações familiares, já que preserva a integridade física e emocional das pessoas de maneira geral, extinguindo qualquer conduta que prejudique ou lesione o indivíduo.

Entendemos que é dever dos pais garantir aos filhos uma vida digna, segura, com educação e livre de qualquer conduta que possa lesionar sua dignidade e prejudicar o seu desenvolvimento. Logo, qualquer ação, comissiva ou omissiva, que viole esses deveres compreendidos no ordenamento jurídico brasileiro deve ser reparada. A penalidade atribuída nas ações de indenização por abandono afetivo não busca penalizar a falta de amor, mas sim a lesão à dignidade da criança e mostrar para a sociedade condutas que devem ser extintas.

REFERÊNCIAS 

BERALDO, Maria Clara Bomtempo. Filiação socioafetiva e multiparentalidade: efeitos jurídicos quanto ao direito de guarda e ao direito de visitas. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2020. 133 f.

BRASIL. Lei n° 3.071 de 01 de Janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Coleção de Leis do Brasil, Ministério da Justiça. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro. Código Civil, 1916. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm. Acesso em: 25 nov. 2022.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 nov. 2022.

BRASIL. Lei n° 10.406 de 10 de Janeiro de 2002. Código Civil, Direito Civil. Brasília, DF, 2002.

COSTA, Walkyria C. N. Abandono Afetivo Parental. Revista Jurídica Consulex, Brasília, n. 276, p. 49-90, jul. 2008.

DANILISZYN, Leticia; WISNIEWSKI, Maurício. As consequências do abandono afetivo parental. In: Anais da Jornada Científica dos Campos Gerais, v. 15, 2017.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito de Família. 11ª Ed. Revista dos Tribunais, 2016.

DINIZ, Maria Helena. Guarda: novas diretrizes. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 3, p. 207-212, 2015.

DOLCE, Fernando Graciani. A responsabilidade civil por abandono afetivo. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018. 142 f.

ESCOLA BRASILEIRA DE DIREITOS DAS MULHERES – EBDM. Sociedade Patriarcal: como ela evoluiu e quais são os seus reflexos. Escola Brasileira de Direitos das Mulheres,  2021. Disponível em: https://www.escolaebdm.com/post/sociedade-patriarcal-como-ela-evoluiu-e-quais-s%C3%A3o-seus-reflexos. Acesso em: 22 de nov. de 2022.

FULLER, Mayara Oddone Volpe. Perda do poder familiar por violação do dever de cuidado: da sanção à proteção. Monografia (Especialização em Direito de Família e Sucessão) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2018. 72f.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo Mario Veiga. Novo Curso de Direito Civil 3. Responsabilidade Civil. 20ª edição, 2022.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol. 6: Direito de Família, 18 edição: Saraiva 2021 edição Kindle. 

HIRONAKA, Giselda Maria Fernanda Novaes. Os contornos jurídicos da responsabilidade afetiva na relação entre pais e filhos- além da obrigação legal de caráter material. Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, 2007. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/289/Os+contornos+jur%C3%ADdicos+da+responsabilidade+afetiva+na+rela%C3%A7%C3%A3o+entre+pais+e+filhos+%E2%80%93+al%C3%A9m+da+obriga%C3%A7%C3%A3o+legal+de+car%C3%A1ter+material.%2A. Acesso em: 08 dez. 2022.

MADALENO, Rolf. Direito de Família. Editora Forense, 2022, versão Kindle.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível n° 408550-5. Apelante: […]. Apelado: […]. Relator: Des. Unias Silva. Belo Horizonte, MG, 01 de abril de 2004. Disponível em: https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do?pesquisaNumeroCNJ=true&ttriCodigo=2&codigoOrigem=0&ano=0&numero=408550&sequencial=0&sequencialAcordao=0&numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=20. Acesso em: 18 de nov. de 2022.

NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Vol. 7: Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

PAVARINA, Gabriela; FERREIRA, Maria Eduarda Oliveira; SANTOS, Rafael Henrique. Possibilidade do poder judiciário como reformador do poder constituinte derivado frente à mutação constitucional. In: ETIC – Encontro De Iniciação Científica, v. 16, n. 16, 2020.

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. Versão Kindle, 2022.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha.  Nem só de pão vive o homem: Responsabilidade civil por abandono afetivo. Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, 2008. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/392/Nem+s%C3%B3+de+p%C3%A3o+vive+o+Homem:+Responsabilidade+civil+por+abandono+afetivo. Acesso em: 08 dez. 2022.

PESSANHA, Jackelline Fraga. A afetividade como princípio fundamental para a estruturação familiar. Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, 2019. Disponível em: https://ibdfam.org.br/_img/artigos/Afetividade%2019_12_2011.pdf. Acesso em: 05 dez. 2022

ROSA, Angélica Ferreira. Justiça restaurativa: paradigma do uso da palavra nos conflitos de abandono afetivo no direito de família brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) – Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2020. 175 f.

ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil – A reparação e a pena civil. 3ª ed. Editora: Saraiva, versão Kindle, 2017.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais: na Constituição Federal de 1988. Livraria do Advogado Editora, 2021.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 119.

STJ. Recurso Especial nº 757.411-MG, Relator: Ministro FERNANDO GONÇALVES, data do julgamento: 29/11/2005, T4 – QUARTA TURMA. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/7169991/relatorio-e-voto-12899600 Acesso em: 02 dez. 2022

TARTUCE, Flávio. Novos princípios do direito de família brasileiro. Flávio Tartuce, 2007. Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.br/artigos/4. Acesso em: 01 dez. 2022.

TARTUCE, Flávio. O princípio da afetividade no direito de família. Breves Considerações. Flávio Tartuce, 2012. Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.br/artigos/4. Acesso em: 01 dez. 2022.

[1] Pós-graduação em Direito de Família, Pós-graduação em Direito Internacional, Bacharel em Direito. ORCID: 0000-0002-7631-6330.

Enviado: Junho, 2022.

Aprovado: Dezembro, 2022.

5/5 - (11 votos)
Juliana Martins Pernambuco

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pesquisar por categoria…
Este anúncio ajuda a manter a Educação gratuita