ARTIGO ORIGINAL
REIS, Tainã da Cunha [1]
REIS, Tainã da Cunha. Competência híbrida na lei Maria da Penha. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 09, Ed. 04, Vol. 01, pp. 136-149. Abril de 2024. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/competencia-hibrida, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/competencia-hibrida
RESUMO
Este trabalho procura identificar os principais aspectos da definição de competência e jurisdição frente à Lei Maria da Penha, bem como o instituto da competência híbrida, por meio da análise bibliográfica doutrinária e do estudo de casos jurisprudenciais. Inicialmente, reflete-se acerca dos institutos da jurisdição e da competência no Brasil e sua aplicabilidade em casos de violência doméstica. Em seguida, a partir do posicionamento da doutrina e da jurisprudência sobre o assunto, procura-se compreender dispositivos da Lei Maria da Penha para uma possível (in)aplicabilidade da competência híbrida nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, para além do que já está posto. Por fim, infere-se que em ações que tenham como natureza da causa casos que derivam de violência doméstica, a competência híbrida é autorizada e sua aplicabilidade assegura os direitos das mulheres.
Palavras-chave: Competência híbrida, Violência doméstica, Jurisdição.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo abordar, a partir da promulgação da Lei Maria da Penha, a competência híbrida dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, expondo as perspectivas doutrinárias feministas e conservadoras.
Deste modo, analisar-se-á as definições de jurisdição e competência do Poder Judiciário brasileiro, bem como as especificidades que dispõe a Lei n. 11.340/2006 a respeito do tema. E para melhor compreensão e interpretação, será demonstrado a importância da mutação hermenêutica a respeito da definição de jurisdição e competência.
Por esse motivo, a partir das controvérsias que envolvem as perspectivas doutrinárias sobre essa temática, que se tornaram polêmicas, estará o enfoque deste trabalho. Assim, para cumprir a finalidade proposta, fora utilizado a metodologia de pesquisa exploratória qualitativa, por meio da análise bibliográfica da doutrina e jurisprudência, extraiu-se, por dedução, os principais fundamentos utilizados pelos juristas para a (in)aplicabilidade da competência híbrida nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.
Por fim, prenunciar-se-á conclusivo elucidar as modulações do sistema legislativo, doutrinário e jurisprudencial, assim como a adequação hermenêutica aos moldes atuais da conjectura do Estado Democrático de Direito Brasileiro que consagra os direitos inerentes às mulheres.
2. JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA NO BRASIL E SUA MODULAÇÃO EM CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
A jurisdição enquanto atividade, resumidamente, consiste em um complexo de atos incumbidos ao agente de jurisdição, a fim de que se aplique concretamente a “vontade” do direito. Além disso, socialmente, a jurisdição consiste na resolução de conflitos de interesse entre às partes.
Vista por uma ótica substitutiva, a jurisdição substitui a vontade das partes pela vontade da lei, e está pautada em uma série de princípios, a saber: investidura, territorialidade, indelegabilidade, inevitabilidade, inafastabilidade, juiz natural e promotor natural.
Conforme Neves (2016, p. 2), enxergava-se a jurisdição como fundada em um positivismo acrítico e no princípio da supremacia da lei. Entretanto, autorizada doutrina passou a afirmar que dever-se-ia ela ocupar-se da criação frente ao caso concreto, ou seja, quando da aplicação da norma jurídica.
Desta feita, enquanto atividade, como um complexo de atos incumbidos ao agente de jurisdição que é, estaria esse agente legitimado a aplicar a norma jurídica, seja fundado em um positivismo acrítico, seja promovendo criação frente ao caso concreto na condução da lide.
Sobre essa condução, disciplina Streck (2022, p.139) que:
Tais questões estão diretamente ligadas ao instrumentalismo processual que venho denunciando de há muito, cujos defensores admitem a existência de escopos metajurídicos que permitem que o juiz realize determinações jurídicas mesmo que estas não estejam de acordo com o direito legislado. Assim, o aperfeiçoamento do sistema jurídico estaria condicionado a uma “boa escolha” efetuada pelo juiz e de um “sadio protagonismo”.
Assim, na condução processual, o Estado viu-se na necessidade de escolher determinados sujeitos, investindo-os de poder jurisdicional para que representem o exercício concreto da atividade jurisdicional. Esse sujeito é o
“Estado-juiz”, em outras palavras, o juiz de direito.
A respeito das espécies de jurisdição, importa mencionar neste trabalho a jurisdição penal ou civil. Para a definição destas classificações leva-se em conta a natureza do objeto demandado judicialmente, ou seja, tratando-se de matéria penal, tem-se a jurisdição penal, de modo que, subsidiariamente, tem se a jurisdição civil.
Por sua vez, a definição de competência, em parte, relaciona-se com a definição de jurisdição. Contudo, a definição de competência reside justamente na limitação do exercício legítimo da jurisdição, que em regra busca atingir dois objetivos, quais sejam: organizar tarefas e racionalizar o trabalho (Neves, 2016), e no que tange a competência em razão da matéria, essa é determinada pela natureza da causa.
No que pertine a jurisdição e competência frente a casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, há controvérsias entre a doutrina especializada sobre a abrangência da competência civil da Vara Especializada, formando-se assim correntes antagônicas. O cerne da questão debatida é se estaria tal competência restrita às medidas protetivas – disciplinadas nos arts. 22, incisos II, IV e V; 23, incisos III e IV; e 24, da Lei n. 11.340/2006 –, bem como à execução de seus julgados, ou se os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher também teriam competência para conhecer das ações principais inseridas em espectro outros aspectos do Direito.
Para a vertente restritiva, quando da feitura da Lei n. 11.340/2006, não teria o legislador o propósito interpretativo de superdimensionar a competência desses Juizados em relação às ações de índole familiar, devendo-se, pois, observar, necessariamente, as regras de Organização Judiciária local.
Defende-se a ideia de que a competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher é somente para a concessão de medidas protetivas, devendo os feitos não criminais serem resolvidos no juízo competente.
Contudo, explicita-se doutrina que, tende ao superdimensionamento da competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e em atenção à estrita disposição legal, defende que a competência cível, quando a lide tiver por fundamento a ocorrência de violência doméstica, deve ser implementada em sua integralidade. Vejamos o que ressalta Dias (2013, p. 184-185):
[…] Foi delegado aos JVDFMS competência para o processo, julgamento e execução das ações cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 14). Unem-se as competências em um só magistrado. A previsão de um juizado com competência tão ampla reforça a ideia central da Lei de proteção integral à mulher vítima de violência, facilitando seu acesso à justiça e permitindo que o mesmo julgador tome ciência de todas as questões envolvendo o conflito a ação penal, a separação de corpos, a fixação de alimentos etc. Para garantir efetividade à Lei, no âmbito da solução judicial dos conflitos, é preciso afastar a tradicional visão fracionada do direito que divide e limita competências. No mesmo processo torna-se viável punir o agressor, na órbita criminal, tomandose medidas de natureza civil. […] A competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é para o processo, o julgamento e a execução não só das medidas protetivas, mas também das ações criminais. […] Igualmente as ações cíveis intentadas pela vítima ou pelo Ministério Público, que tenham por fundamento a ocorrência de violência doméstica serão julgadas nos JVDFMs. A depender da natureza da ação, dispõe a autora de foro privilegiado. Para que as demandas cíveis sejam apreciadas nos JVDFMs, basta que a causa de pedir seja a prática de ato que configure violência doméstica. Não é necessário que tenha havido registro de ocorrência, pedido de medidas protetivas, desencadeamento de inquérito policial ou instauração da ação penal para garantir a competência destes juizados especializados (Dias, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 3ª Edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2013. p. 184-185).
Registre-se que, neste sentido, o princípio da indelegabilidade da jurisdição preleciona que, em um aspecto interno, a partir da determinação concreta de competência para uma demanda, o órgão jurisdicional não poderá furtar-se de tal jurisdição, tampouco delegá-la a outro órgão jurisdicional.
E, ainda neste diapasão, a par de outro princípio, o da inafastabilidade, consagrado no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), registre-se nesse tocante interessante visão moderna, por meio da qual entende-se que tal princípio importa-se com a concreta efetivação da promessa constitucional, incluindo neste aspecto o acesso à tutela jurisdicional adequada, a ampliação do acesso ao processo, e inclusive, os aspectos econômicos (Neves, 2016).
3. LEI MARIA DA PENHA: ESPECIFICIDADES E ALTERAÇÕES
A Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, dispôs sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, bem como estabeleceu medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar (Brasil, 2006).
A respeito das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, trouxe à voga uma série de violências, a saber: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Quanto à competência, dispôs no artigo 14, caput da referida Lei, sobre a implementação de instâncias judiciárias especializadas em violência doméstica. Vejamos (Brasil, 2006):
Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Constata-se, a partir da literalidade do caput do artigo 14, que o legislador não tratou de especificar o modus de tramitação da gama de ações decorrentes das formas de violência domésticas que poderiam acometer as mulheres. De modo abrangente, preconizou a competência desse “Juizado” para as ações de natureza civil que tenham por causa de pedir, necessariamente, a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Neves (2016) ensina que, quanto a definição de competência em razão da matéria, as normas de organização judiciária criam varas especializadas, de modo a concentrar as demandas pertencentes matéria específica. O objetivo é bastante nítido, a saber: especializar os servidores da justiça, inclusive e principalmente o juiz. São tempos de especialização.
Contudo, a reunião da competência cível e criminal para processar, julgar e executar as demandas supracitadas, apesar de explicitar determinação de competência cumulativa integral, ou seja, competência híbrida, acaba por transcender os limites estabelecidos pela dogmática jurídica de outrora.
A respeito do marco legislativo, que estabeleceu mudanças processuais no direito brasileiro, Campos e Carvalho (2011, p. 149) relatam que:
[…] Logicamente a racionalidade jurídica, através dos detentores dos discursos autorizados (doutrina e jurisprudência), refutou (e ainda refuta) radicalmente esta aproximação do problema em uma única esfera jurisdicional, visto ser inconcebível para dogmática ortodoxa a superação das fronteiras da jurisdição civil e criminal. A grande questão, porém, é que o movimento feminista, a partir da Lei Maria da Penha, realizou um choque de realidade no campo jurídico, impondo que as formas e os conteúdos do direito tenham correspondência com a realidade dos problemas sofridos pelas mulheres. […]
Há, ainda, o art. 33 da Lei n. 11.340/2006, que consagra a cumulação de competência cível e criminal, essa teve sua constitucionalidade reafirmada por meio ADC 19. Quando desse reconhecimento, do voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, deixou-se assente:
Por meio do artigo 33 da Lei Maria da Penha, não se criam varas judiciais, não se definem limites de comarcas e não se estabelece o número de magistrados a serem alocados aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar, temas evidentemente concernentes às peculiaridades e às circunstâncias locais. No preceito, apenas se faculta a criação desses juizados e se atribui ao juízo da vara criminal a competência cumulativa das ações cíveis e criminais envolvendo violência doméstica contra a mulher, ante a necessidade de conferir tratamento uniforme, especializado e célere, em todo território nacional, às causas sobre a matéria. O tema é, inevitavelmente, de caráter nacional, ante os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil e a ordem objetiva de valores instituída pela Carta da República. […] (ADC 19, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/02/2012, publicado em 29/04/2014). (Brasil, 2014)
Campos e Carvalho (2011, p. 149), refletem que tal demanda – abrangência da competência em casos de violência doméstica – surge a partir de problemas concretos enfrentados pelas mulheres: percorrer vários caminhos e incontáveis esferas para tentar solucionar problemas que decorrem do mesmo fato gerador, a violência doméstica. Pois, sendo a de violência que deflagra a demanda jurídica, entende-se como inconcebível a fragmentação na prestação jurisdicional, com processualização no âmbito cível e criminal.
Nesta senda evolutiva, tem-se o enunciado ENUNCIADO 3 do XV FONAVID
(2023), (Fórum Nacional de Juízes e Juízas de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher), que trata de especificar a competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, restringindo-a às medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, devendo as ações cíveis e as de Direito de Família ser processadas e julgadas pelas varas cíveis e de família, respectivamente.
A respeito de tal protagonismo judicial, traduzido na supracitada orientação aos procedimentos, Badeque apud Streck, (2022), ressalta que o instrumentalismo, procura resolver o problema da efetividade do processo, a partir de certa espécie de delegação em favor do julgador, conferindo a ele maiores poderes para reduzir as formalidades que “impedem” a realização do direito material em conflito, por meio de um novo princípio processual, decorrente da instrumentalidade das formas, o “princípio da adequação do procedimento a correta aplicação da técnica processual”.
Todavia, é importante ressaltar que tal evolução especifica a competência desses Juizados de forma que prestigia a fragmentação da prestação jurisdicional. Ademais, o STJ formou entendimento de que é incabível cindir artificialmente situações que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher, como se as questões cíveis e criminais fossem instâncias distintas da relação afetiva que as originou. Vejamos o Recurso Especial nº 1550166/DF:
RECURSO ESPECIAL. PEDIDO DE SUPRIMENTO JUDICIAL DE AUTORIZAÇÃO PATERNA PARA QUE A MÃE POSSA RETORNAR AO SEU PAÍS DE ORIGEM (BOLÍVIA) COM O SEU FILHO, REALIZADO NO BOJO DE MEDIDA PROTETIVA PREVISTA NA LEI N. 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA). 1. COMPETÊNCIA HÍBRIDA E CUMULATIVA (CRIMINAL E CIVIL) DO JUIZADO ESPECIALIZADO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. AÇÃO CIVIL ADVINDA DO CONSTRANGIMENTO FÍSICO E MORAL SUPORTADO PELA MULHER NO ÂMBITO FAMILIAR E DOMÉSTICO. 2. DISCUSSÃO QUANTO AO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. CAUSA DE PEDIR FUNDADA, NO CASO,
DIRETAMENTE, NA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA SOFRIDA PELA GENITORA. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIALIZADO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER 3. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. O art. 14 da Lei n. 11.340/2006 preconiza a competência cumulativa (criminal e civil) da Vara Especializada da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para o julgamento e execução das causas advindas do constrangimento físico ou moral suportado pela mulher no âmbito doméstico e familiar.
1.1 A amplitude da competência conferida pela Lei n. 11.340/2006 à Vara Especializada tem por propósito justamente permitir ao mesmo magistrado o conhecimento da situação de violência doméstica e familiar contra a mulher, permitindo-lhe bem sopesar as repercussões jurídicas nas diversas ações civis e criminais advindas direta e indiretamente desse fato. Providência que a um só tempo facilita o acesso da mulher, vítima de violência familiar e doméstica, ao Poder Judiciário, e confere-lhe real proteção.
[…] 2. Em atenção à funcionalidade do sistema jurisdicional, a lei tem por propósito centralizar no Juízo Especializado de Violência Doméstica Contra a Mulher todas as ações criminais e civis que tenham por fundamento a violência doméstica contra a mulher, a fim de lhe conferir as melhores condições cognitivas para deliberar sobre todas as situações jurídicas daí decorrentes, inclusive, eventualmente, a dos filhos menores do casal, com esteio, nesse caso, nos princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança e demais regras protetivas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. […] (REsp 1550166/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/11/2017, publicado em 18/12/2017). (Brasil, 2017)
Ainda, nesta senda, a partir da alteração da Lei Maria da Penha pela Lei nº 13.894/19, que incluiu o art. 14-A, por meio da qual se estabeleceu que doravante os juizados e varas especializadas em Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher são competentes para processar e julgar as ações de divórcio ou de dissolução de união estável (Brasil, 2019), nota-se novamente o ímpeto de especificar a abrangência da Lei Maria da Penha.
Assevera-se, não estar-se-ia inovando juridicamente, posto que o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 438639/MG, por meio do voto do Ministro Cezar Peluso, quando do Conflito de Competência nº 7.204-1/MG, já assentava entendimento de que não é conveniente que sejam decididas por juízos distintos causas com qualificações e pedidos jurídicos diversos, mas com origem no mesmo fato evitando-se graves riscos de decisões contraditórias, de difícil compreensão pelos cidadãos e altamente depreciativas ao Judiciário.
É dizer, a aplicabilidade da competência híbrida encontra-se amparada no próprio princípio da unidade de convicção.
Sobre o tema, salienta-se que o parágrafo 1º do art. 14-A tratou de excluir da competência qualquer pretensão relacionada à partilha de bens, ou seja, novamente prestigia-se, ao menos em parte, a fragmentação da prestação jurisdicional.
Estar-se-ia diante do entrecruzamento da definição de competência em razão da matéria – esferas cível e criminal –, que passam a prestigiar que a prestação dos serviços judiciários se dê em rede, entretanto de forma limitada.
A respeito da parametrização dos trâmites de ações que versam sobre violência doméstica e familiar, parcela dos intérpretes do direito entenderam tais disposições como distorções por completo da literalidade da lei, bem como a sua intencionalidade quando elaborada, limitando o próprio acesso das vítimas de violência doméstica à justiça (Basílio, 2020).
Ademais, dentre as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, especificamente a “prestigiada” no inciso IV do artigo 7º da Lei n.
11.340/2006, a violência patrimonial, em verdade, encontra-se desprestigiada quando da expressa possibilidade de divórcio, mas sem a separação de bens. Em outros termos, viola a perquirição dos direitos patrimoniais das mulheres.
Ainda, o processo de interpretação, plenamente aplicável a Lei Maria da
Penha, constitui-se no “dar sentido” e não o reproduzir tão somente, no entanto, não se está a propor o estímulo ao subjetivismo ou ao axiologismo. Há, na verdade, limites no processo interpretativo. Deste modo, o processo hermenêutico, que não autoriza atribuições discricionárias ou segundo a vontade e o conhecimento do intérprete, deve estar pautado no constitucionalismo, a fim de colocar freios à discricionariedade interpretativa, bem como velar pela aplicação dos direitos inerentes às minorias, neste caso, as mulheres (Streck, 2017).
Em uma análise hermenêutica constitucional, pela ótica feminina, demonstra-se a importância da condensação de um ideal feminino a Constituição Federal de 1988, como tratam Silva et al. (2018, p.311 e 312):
A constituição feminina é o conjunto normativo que acolhe, acomoda, nutre e compromete-se com as divergências, com os paradoxos, com as impossibilidades, com os projetos, com os programas de futuro, com as singularidades, com as complexidades, enfim, com o complexo desafio de entregar para a sociedade regras, princípios e decisões constitucionais que proporcionem condições efetivas de uma dinâmica social livre, justa e solidária.
Sobre o tema da competência híbrida, cumpre explicitar que esse propicia também a economia de atos processuais. E quanto a economicidade de atos processuais, é preciso observar que a fragmentação da prestação jurisdicional, ainda que sirva aos moldes convencionais de aplicação do direito, não é o meio mais econômico de prestação jurisdicional, tampouco eficaz aos desdobramentos da violência doméstica.
Por ultrapassar os limites da competência criminal, englobando uma série de matérias de diversos ramos do direito material: separação judicial, divórcio, reconhecimento e dissolução de união estável, alimentos, guarda dos filhos, partilha de bens etc, tem-se que o entendimento jurisprudencial caminha no sentido da possibilidade de implementação da competência híbrida quando a natureza da causa seja a violência doméstica.
Do exposto, constata-se que a competência híbrida encontra amparo na doutrina, na jurisprudência do STF e do STJ, na Lei nº 11.340/06, no princípio da unidade de convicção, sobretudo, na proteção da dignidade da mulher.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Identifica-se que a aplicabilidade da competência híbrida dos Juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher está pautada na natureza da causa, que consista justamente na prática de violência doméstica ou familiar contra a mulher.
Justamente por essa razão, para se ter um tratamento uniforme nas situações de violência doméstica e familiar contra a mulher, previu-se a cumulação de competências nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que sequer se trata de inovação em competência processual em razão da matéria.
É irrefutável que a Lei Maria da Penha tratou de consagrar, de maneira ampla e simbiótica, que os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher, tenham competência cível e criminal. Desta feita, o instrumentalismo – leia-se, protagonismo judicial – estaria posto de modo a impedir realização do direito material em conflito, desprestigiando a competência híbrida como instrumento de efetivação dos direitos das mulheres.
Nesse sentido, é exegese lógica que uma vez posto o Direito, o papel do Poder Judiciário, na pessoa do Estado-Juiz, é o de realizar uma “costura” do dispositivo legal, de modo a adequá-lo ao caso concreto, sem desvincular-se da natureza que enseja a causa, tampouco construir um Direito novo ou substitui-lo.
Uma jurisdição cível restrita às medidas protetivas estaria desvinculada da natureza da causa da lide, utilizando-se de interpretação restritiva e conveniente, mantendo-se seccionada uma competência expressamente prevista na Lei, o que não divergiria do status quo, bem como retrocederia em relação aos avanços nos direitos das mulheres
Tem-se que o juízo da Especializada detém, inarredavelmente, os melhores subsídios cognitivos para preservar e garantir os direitos das mulheres, sendo salutar a implementação da competência híbrida, que prestigia a funcionalidade do sistema judicial e deliberação sobre situações jurídicas decorrentes prática de violência doméstica ou familiar contra a mulher.
Diante desta explanação, a expectativa é que quando as ações intentadas tiverem por fundamento a ocorrência de violência doméstica nas formas física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, ou seja, derive a natureza da causa desta mesma matéria, a tramitação das causas advindas dessas demandas seja autorizada, bem como preferível, tanto em prestígio à proteção da dignidade das mulheres, quanto ao fiel cumprimento dos dispositivos legais – constitucionais e infraconstitucionais – que asseguram os direitos das mulheres.
REFERÊNCIAS
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[1] Pós-graduação Lato Sensu em Direito Público com Ênfase em Contratos e Licitações pela Faculdade Educacional da Lapa, FAEL; Pós-graduação Lato Sensu em Direito Processual Civil pela Faculdade Educacional da Lapa, FAEL; Graduada em Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia, UNIR. ORCID: https://orcid.org/0009-0000-9524-9455. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7797133776779158.
Material recebido: 02 de abril de 2024.
Material aprovado pelos pares: 17 de abril de 2024.
Material editado aprovado pelos autores: 19 de abril de 2024.