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A igualdade de gênero nas associações privadas

RC: 147991
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/associacoes-privadas

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

BRABO, Gustavo Rosa [1], PEGHINI, Cesar Calo [2]

BRABO, Gustavo Rosa. PEGHINI, Cesar Calo. A igualdade de gênero nas associações privadas. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 08, Vol. 05, pp. 154-170. Agosto de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/associacoes-privadas, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/associacoes-privadas

RESUMO

O objetivo do trabalho foi avaliar a obrigatoriedade das associações privadas na recepção das disposições constitucionais, especificamente a igualdade de gêneros, estabelecida pelo Art. 5º da Constituição Federal de 1988. Com o avanço nas discussões acerca da sexualidade, inclusive como parte das garantias fundamentais inerentes ao indivíduo, a manutenção de normativas, ainda que de natureza privada, que distinguem de algum modo os sujeitos apenas e tão somente em razão do gênero ao qual pertencem, podem provocar uma cadeia discriminatória injustificada de seus associados, bem como de uma coletividade indeterminada de pessoas que um dia possam vir a participar daquela organização. Neste sentido, o presente estudo examinou o real conceito do tratamento igualitário do ser humano e esclareceu os limites da liberdade privada frente à norma maior. Fazendo uso da doutrina, principalmente constitucionalista, somado à análise do caso concreto, a pesquisa demonstrou como o tratamento conflitante de gêneros, em determinadas oportunidades, é causa de mais desigualdades que igualdades.

Palavras-chave: Sexualidade, Garantias fundamentais, Liberdade privada.

INTRODUÇÃO

As discussões acerca das questões de gênero vão muito além da divisão simples em duas classificações como masculina e feminina. Existem relatos ainda na Grécia antiga, por exemplo, de “Hermafrodito”. Segundo a mitologia, ele seria um rapaz muito belo e, certo dia, se banhando em um lago, “Hermafrodito” teria fundido seu corpo com “Salmacis”, uma Náia que era apaixonada pelo rapaz. A fusão gerou um ser intersexual, responsável pela criação das terminologias “hermafrodita” e “hermafroditismo”.

Construído o conceito social de masculino e feminino, se universalizou cores representativas de cada gênero de pessoas, brinquedos e brincadeiras exclusivas de meninos e outros de meninas, bem como vestimentas e comportamentos pré-estabelecidos.

Passados os anos, a sociedade desconstruiu vários destes paradigmas, ampliando questões menores como regras de vestimentas femininas, até grandes atos, como a instituição do direito ao voto das mulheres.

Para além disso, ultrapassadas as discussões meramente bivalentes de gênero vinculado ao nascimento dos sujeitos, a sociedade reconhece a condição daquelas pessoas que não se identificam com o próprio gênero.

Marco importantíssimo desta discussão foi o reconhecimento da sexualidade como direito fundamental do indivíduo, integrando a partir de então o rol exemplificativo das garantias constitucionais, como bem explica Lenza (2022), citando o julgamento do Supremo Tribunal Federal no informativo nº 892.

Pertinente, ainda, a menção de outras duas decisões que marcaram este universo das questões relativas ao gênero. A primeira, o julgamento do REsp 1.626.739, da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, reconhecendo o direito à alteração do nome, mesmo que antes de eventuais intervenções cirúrgicas de alteração de gênero (BRASIL, 2016). Em complemento, cite-se o julgamento em plenário da ADI 4.275 pelo Supremo Tribunal Federal, reconhecendo que o pleito de alteração do nome poderia ocorrer tanto na forma judicial como, e principalmente, na esfera extrajudicial (BRASIL, 2018).

Enfim, muito se avançou na temática em debate, sendo certo que muito ainda há de se discutir. Porém, inúmeros são os reflexos, todos de alta complexidade, da inclusão destas pessoas no conceito ideal de igualdade constitucional, sendo uma tarefa árdua estabelecer freios e contrapesos das relações intersubjetivas, seja no âmbito público ou privado. É neste sentido, portanto, que o trabalho debruça estudos, demonstrando como supostos tratamentos igualitários, por vezes, tornam-se ainda mais discriminatórios.

O ADVENTO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Desde o advento da Constituição de 1988, o sistema jurídico brasileiro tem “direcionado seus holofotes” a um tema de extrema relevância, o pleno exercício do Estado Democrático de Direito.

Com a nova Carta Magna, as legislações vigentes tiveram de se adequar aos mandamentos constitucionais, sob pena serem consideradas tacitamente revogadas, ou não recepcionadas como explicado por parte da doutrina. Neste sentido, dá-se uma releitura das leis pátrias à luz da nova constituição, além de editar-se às novas normativas infraconstitucionais já com este propósito específico.

Para os civilistas, após do Código Civil de 2002, é comum a terminologia do que chamam de “Direito Civil Constitucional”, linha de pensamento voltada aos preceitos basilares de preservação dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, no âmbito das relações privadas interpessoais (TARTUCE, 2023).

Processualistas, por sua vez, conceituam o chamado “Processo Constitucional”, evidenciado no Código de Processo Civil de 2015 pelo foco específico ao cumprimento das garantias democráticas da lide (contraditório, celeridade, efetividade etc.), inequívoco pela leitura dos Arts. 1º ao 12 do códex material (THEODORO JÚNIOR, 2022).

De fato, pelo momento histórico que se apresentava (pós ditadura militar), se fazia necessária a aplicação cogente das disposições constitucionais, fazendo com que seus efeitos sobrepusessem toda e qualquer normativa que caminhasse no sentido oposto.

Esclarecido o vínculo obrigatório de atendimento das normas infraconstitucionais face à nova constituinte, é preciso retornar ao estudo específico da Constituição Federal de 1988.

Embora não haja entre os direitos e garantias fundamentais uma relação hierárquica, fator que gera grandes discussões acerca da antinomia destas regras, nota-se que o não atendimento de um destes dispositivos, especificamente, é capaz destruir todo o conceito de um Estado Democrático de Direito, qual seja o direito à igualdade.

A GARANTIA FUNDAMENTAL À IGUALDADE

Como bem aponta Câmara (2018), o princípio constitucional da igualdade se estabelece nas normativas brasileiras com fundamento na máxima Aristotélica segundo a qual devem ser tratados igualmente os iguais e desigualmente os desiguais nos limites da desigualdade.

Lenza (2022), por sua vez, indica que este conceito de igualdade se subdivide em dois tópicos, igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico) e a igualdade material, sendo dever do Estado buscar a efetividade desta última definição.

Seja por uma ou outra interpretação do princípio, é fato que o constituinte de 1988 deixou uma descrição explícita sobre como as eventuais desigualdades devem ser muito bem fundamentadas.

O Princípio da Igualdade, disposto no Art. 5º da Constituição Federal, prevê a mesma métrica de tratamento para todos os seres humanos, independentemente de qualquer pré-requisito. É válido que se faça uma leitura pormenorizada do artigo em questão:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei (…) (BRASIL, 1988).

Apenas pela leitura do início do dispositivo constitucional já é possível auferir a busca do constituinte pela real Democracia, pautada na igualdade de direitos, sendo texto suficiente para o cumprimento da medida. Mas o dispositivo continua:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (…) (BRASIL, 1988).

Ora, se todos são iguais perante a lei, evidentemente seriam sem distinção de qualquer natureza, senão não seriam iguais. Talvez a repetição seja um reflexo da busca pela construção indiscutível da Democracia anteriormente mencionada, enfatizando a igualdade de direitos. Mas continua o texto:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (…) (BRASIL, 1988).

O texto constitucional torna-se quase cansativo pelo excesso de pleonasmos que se apresentam. Ora, se todos são iguais perante a lei, sem nenhum tipo de distinção, brasileiros e estrangeiros também o seriam, senão não poderia se dizer em igualdade a todos.

Evidenciado o “vício” constitucional pela igualdade, o legislador continua e discorre no inciso I do mesmo artigo que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

A redundância, em um único artigo, por certo não se trata de mero erro material, mas sim um enfatismo à promoção da igualdade de direitos, dado o significado puro do Estado Democrático de Direito.

Nas palavras de Bandeira de Mello (2015), por via do princípio da igualdade, o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas, ou seja, em regra todos estes sujeitos, detalhadamente descritos, serão detentores dos mesmos direitos e deveres.

Mais que isso, Marinoni (2016), classificando os interesses do civil law, aponta que lei se apresenta, ou deveria se apresentar, como um limitador indiscutível das arbitrariedades do Estado e do universo privado, sempre com o fim de observância ao conceito de segurança jurídica aos indivíduos na aplicação igualitária das normas postas.

É claro que, retornando à afirmação de Aristóteles, alguns sujeitos de direito demandam uma desequiparação para que, então, estejam devidamente equiparados. Porém, este tratamento desigual deve ser fundamentado, deve basear-se em uma justificativa de extrema solidez a ponto de que a “violação” ao princípio da igualdade não nos pareça uma mera vantagem desarrazoada.

A SEXUALIDADE COMO GARANTIA FUNDAMENTAL

Tópico que tem sido alvo de grande atenção pelo mundo jurídico atual, a sexualidade se apresenta, talvez de maneira já incontroversa pela doutrina, como integrante das garantias fundamentais do ser humano.

Expandindo as discussões que anteriormente se limitavam em direitos iguais entre homens e mulheres, referenciados pelo sexo biológico, questões de maior amplitude aderem o conceito de igualdade entre os gêneros, margeando um longo alcance da ferramenta constitucional aos sujeitos de direito.

O Informativo 892 do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, aponta que o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou a expressão de gênero. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. A pessoa não deve provar o que é, e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental.

Apesar da ainda modesta atividade legislativa em prol da garantia ao direito da sexualidade, o Poder Judiciário tem cumprido papel de grande relevância no suprimento das necessidades que surgem rotineiramente, estabelecendo seu papel suplementar.  Dentre tantas decisões, é importante estudar alguns “divisores de águas” desta matéria.

Em primeiro, o julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça, no REsp. 1.626.739, da 4ª Turma, sob a relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, publicado em 1 de agosto de 2017, decisão paradigmática que entendeu pela possibilidade da alteração do nome e gênero do sujeito transexual em seus documentos de identificação pessoal, ainda que prescindirem da realização de qualquer intervenção cirúrgica (BRASIL, 2017).

Em segundo momento, o julgamento da ADI 4.275, em 1º de março de 2018, pelo Supremo Tribunal Federal, decisão que não apenas confirmou o que já prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça, mas também viabilizou que a alteração do prenome dos transexuais se desse na via administrativa, ou seja, diretamente perante o Registro Civil competente, decisão prolatada com efeitos erga omnes e força vinculante (BRASIL, 2018).

Como já discutido, a intervenção jurisdicional, em razão da baixa densidade normativa da temática, se mostra não apenas necessária, mas também mantenedora da proteção dos direitos individuais correlatos a sexualidade em geral, fator que privilegia o princípio alvo de todo o debate aqui estudado, a igualdade constitucional.

Portanto, o presente estudo propõe a discussão acerca das distinções de gênero praticadas no âmbito das associações privadas, sob o prisma do Art. 55 do Código Civil, na tentativa de esclarecer se os atos associativos denotam um equilíbrio de direito pelo tratamento desigual ou, de maneira deturpada, a aplicação de benefícios ilícitos (BRASIL, 2002).

ASSOCIAÇÕES E A LIBERDADE ASSOCIATIVA CONSTITUCIONALRESUMO

A Constituição Federal assegura a todos a plena liberdade de associação, segundo expressão do Art. 5º, inciso XVII. Citada disposição é reforçada pelo inciso XX do mesmo dispositivo, segundo o qual ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado (BRASIL, 1988).

Sarlat, Marinoni e Mitidiero (2022) explica que a liberdade de associação inclui, primordialmente, dois âmbitos ou faces, que podem ser assim divididos: liberdade positiva de associação, consistente no direito de constituir e organizar novas associações, assim como de ingressar e participar de associações já existentes (art. 5.º, XVII, CF); e liberdade negativa de associação, que se expressa no direito de não se associar e de abandonar a associação da qual se é membro (art. 5.º, XX, CF).

Em sequência, conforme disposição do Art. 5º, inciso XVIII, a Constituição Federal assegura a criação de associações, independentemente de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento (BRASIL, 1988).

Motta (2021), por sua vez, disserta que o dispositivo constitucional pode nos levar à conclusão de que o constituinte está tratando da constituição formal da associação, ou seja, da aquisição de sua personalidade jurídica, fator que, para se dizer liberdade, está intimamente condicionada à independência de autorização do Poder Público. Do mesmo modo, uma vez constituída a associação, é vedada qualquer interferência estatal em seu funcionamento.

A autonomia da associação, entretanto, parece encontrar limites de sua autogestão nas bases legais, principalmente no texto constitucional, de modo que se mantenha requisitos mínimos de uma organização democrática do ente privado para que não promova ilegalidades severas.

ASSOCIAÇÕES NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Já no Código Civil, as associações encontram guarida nos Arts. 53 a 61, dispondo acerca de sua constituição, gestão da própria pessoa jurídica e de seus associados, bem como preceitua as hipóteses e regras de sua eventual extinção (BRASIL, 2002).

Dentre os dispositivos, destaca-se o texto do Art. 55 do Código Civil: Os associados devem ter iguais direitos, mas o estatuto poderá instituir categorias com vantagens especiais (BRASIL, 2002).

Sem maiores explicações do texto legal, resta dúvidas quanto à aplicação da segunda parte do dispositivo infraconstitucional frente ao princípio da igualdade expresso na Lei Maior, sendo necessária a análise dos limites das normas estatutárias destas associações.

O TRATAMENTO IGUALITÁRIO DOS SÓCIOS

Primeiramente, se verifica a constitucionalização da norma em questão, fazendo constar expressamente o mandamento da igualdade de direito. Porém, por excepcionalidade, o códex autoriza a atribuição de “vantagens especiais” de determinadas “categorias” de associados.

Como já foi mencionado, não há definição exata de quais as vantagens que poderiam ser atribuídas a esta chamada categoria especial de associados, restando meros exemplos desta intercorrência pela doutrina.

Tartuce (2023) traz a figura de um clube esportivo e de recreação que cria a categoria de associado contribuinte (que não tem poder de decisão ou direito de voto) e associado proprietário (que tem poder diretivo e direito ao voto). Na hipótese apresentada pelo professor, é clara a distinção entre associados, mas sem que seja ferido o preceito da igualdade constitucional.

Sob o mesmo prisma das associações desportivas, pode-se imaginar outras hipóteses de categorias especiais, como por exemplo um desconto na mensalidade daqueles associados maiores de sessenta e cinco anos ou a isenção de mensalidade aos sócios atletas.

Nery Junior e Nery (2017), explicam que, para que esta norma opere no mundo jurídico, com a exceção que ela própria autoriza, sem ofensa ao princípio da isonomia, é necessário que as vantagens especiais instituídas em favor de alguns associados, e não de todos, tenham relação direta com a maior eficácia de consecução da finalidade da associação. A organização da associação, quando da formação de seu estatuto, é condicionada pela lisura de seus propósitos.

Pela explicação doutrinária, as categorias especiais não seriam criadas pelo mero deleite e livre interpretação da associação, mas sim para que aqueles sujeitos com vantagens distintas, em razão de uma qualificação específica, auxiliassem a associação a atingir sua finalidade com maior eficácia ou desenvoltura.

Claramente, ainda que o Art. 5.º, inciso XVII, da Constituição Federal, disponha a respeito da autonomia privada das associações para sua atividade e disposição de regras internas, a ordem constitucional ainda representa um limitador claro à autonomia destas entidades associativas (BRASIL, 1988).

A atividade jurisprudencial não apresenta muitos casos de debate sobre a matéria em análise, mas é pertinente a citação de dois julgados representativos. O primeiro, o julgamento do Supremo Tribunal Federal no RE 201819, sob relatoria da Ministra Ellen Gracie e relatoria de acórdão do Ministro Gilmar Mendes, em 27 de outubro de 2006, no qual se firmou o seguinte entendimento:

EMENTA: (…) As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. (BRASIL, 2006)

Em momento posterior, replicando o entendimento citado, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do AgInt no AREsp 330494 / SP, sob relatoria da Ministra Maria Isabel Gallotti, em 29 de setembro de 2016, fixou entendimento de que a interpretação dos arts. 54 e 55 do Código Civil deve ser feita à luz dos princípios constitucionais, que impedem discriminações arbitrárias em associações profissionais (BRASIL, 2016).

Ainda que matéria de baixa densidade jurisprudencial, os entendimentos exarados pelas Cortes Superiores, somados aos ensinamentos da doutrina, apresentam um claro impedimento às associações privadas para que, de forma genérica e imotivada, promovam desequiparações fortuitas, devendo se aterem à finalidade associativa.

ANTINOMIAS DE NORMAS FUNDAMENTAIS

O estudo carrega delicada discussão, o confronto de normas fundamentais, o direito à igualdade (Art. 5º, caput, CF) frente à autonomia privada das associações (Art. 5º, inciso XVII, CF). Por tudo que já foi discutido, é sabido que tal liberdade privada é limitada pelo texto constitucional, mas não é claro o exato limite desta autonomia.

Levando em consideração que as normas citadas surgem ao mesmo tempo, dispostas no mesmo arcabouço legal, sem nenhuma regra de hierarquia normativa, resta apenas a ponderação da aplicação da norma no caso concreto, balizando a finalidade associativa como direcionador da distinção entre os associados nas disposições estatutárias.

Evidente que a garantia constitucional não pode ser interventora ao ponto de inutilizar a norma civil, muito pelo contrário, deve lhe servir de “manual de instrução” para a criação das tais “categorias com vantagens especiais” dispostas pelo Art. 55 do Código Civil (BRASIL, 2002).

Na prática, podem exemplificar associações que se prestam às mais diversas finalidades, altruístas, desportivas, estudantis, entre tantas outras que apresentariam necessidades diferentes e, casuisticamente, justificativas plausíveis à instituição de vantagens especiais a determinados sujeitos.

Porém, o alvo do estudo é: seria possível a criação de uma associação sob a qual os associados possuem vantagens especiais, como possibilita o Art. 55 do Código Civil, exclusivamente em razão do gênero ao qual pertencem? Note, diz gênero, como já explicado na introdução, de forma ampliativa, ou seja, atendendo às pessoas cisgêneras ou transgêneras.

Para ilustrar o epicentro de estudo, o exame de um caso prático parece adequado a aplicação da técnica de ponderação e prevalência das normas fundamentais. Neste sentido, foi analisado em detalhes o estatuto de uma associação desportiva intitulada “Clube de Campo de Bragança Paulista”.

ANÁLISE DO CASO “CLUBE SE CAMPO DE BRAGANÇA”

O Clube de Campo de Bragança (CCB) é uma associação desportiva, localizada na cidade de Bragança Paulista, interior do estado de São Paulo. O ente privado foi fundado em 31 de março de 1971, destinado a acolher e a proporcionar, a seus associados e dependentes, reuniões sociais e culturais, bem como a promover-lhes meios para o lazer e o condicionamento físico, através da prática de esportes em geral, conforme estabelece o estatuto da associação.

Assim como exemplificou Flávio Tartuce (2023), a agremiação em questão também distingue sócios pagantes e não pagantes, estes últimos chamados de dependentes. Quantos aos pagantes, estes podem ser unitários, aqueles que exercem os benefícios da associação de forma individual, ou familiares, os que têm consigo familiares em geral que também usufruem das atividades associativas, conforme disposição dos Arts. 8º, caput, e 11 do estatuto em questão:

Art. 8º. Familiar é o sócio casado e o que vive em regime matrimonial, bem como o solteiro, viúvo, divorciado ou separado de fato ou de direito, com filhos menores de 18 anos ou dependentes de acordo com os parágrafos seguintes.

(…)

Art. 11. Sócio Individual é aquele sem família constituída, ou cuja família não esteja incluída na condição de dependente por iniciativa do próprio sócio. (BRAGANÇA PAULISTA/SP, 1971)

Mais uma vez, é possível deparar com uma classificação distinta de associados, mas sem nenhum problema aparente, afinal a divisão associativa entre membros unitários e familiares se apresenta plausível e inofensiva a ordem constitucional, no exato formato que nos recomenda a jurisprudência e a doutrina.

O prejuízo estudado começa, porém, nas disposições dos parágrafos do Art. 8º, os quais tratam dos chamados “sócios dependentes”, aqueles autorizados a usufruir dos benefícios da associação por intermédio do sócio familiar, sem custos adicionais:

Art. 8º. (…)

      • 1º – São considerados dependentes de sócio familiar, portanto, autorizados a frequentar o Clube, gozando dos mesmos direitos e deveres, com as exceções previstas neste estatuto, as seguintes pessoas:

a-) o cônjuge e os filhos solteiros menores de 18 (dezoito) anos; b-) as filhas solteiras e as que não constituírem união estável; (BRAGANÇA PAULISTA/SP, 1971)

Como se observa, as alíneas “a” e “b” distinguem os direitos de filhos (homens) e filhas (mulheres), exatamente na manutenção de suas condições como sócios dependentes.

Em resumo, a “filha” dependente perderá tal benefício apenas quando, e se, contrair algum tipo de contrato conjugal, quando então poderá exercer a mesma condição frente ao marido, caso este também seja sócio titular do grêmio. O “filho”, por outro lado, completos dezoito anos, perde imediatamente sua condição de dependente, ainda que solteiro e pertencente ao mesmo núcleo familiar do sócio titular na condição de dependente econômico.

Claramente, a associação em debate cria entre os chamados sócios dependentes uma distinção de benefícios, ocorre que tal vantagem se resume, única e exclusivamente, em razão do gênero do sujeito.

Tendo em vista a formação do grêmio remontar à década de 70, é compreensível o tratamento da mulher como dependente necessária do pai, quando solteira, ou do marido, quando casada, dado o contexto histórico da época.

Ao que parece, não haveria nenhuma outra justificativa para a desequiparação praticada pelo entre privado, senão as reconhecidas distinções econômicas e de trabalho entre os gêneros “homem e mulher”. A questão em debate é se a norma desigual deveria ser mantida na atualidade.

Novamente, considerando as normativas e costumes da década de 70, o estatuto seria admissível à época. Podemos citar, por exemplo, o extinto “Estatuto da Mulher Casada”, que, alterando o Art. 242 do Código Civil de 1916, dispunha que a mulher não poderia, sem autorização do marido, alienar ou gravar de ônus real, os imóveis de seu domínio particular, qualquer que fosse o regime dos bens (BRASIL, 1916).

Normas semelhantes predominavam no período em questão, porém há muito não subsistem. Após a Constituição de 1988, os direitos da mulher encontram guarida legal e jurisprudencial. É claro que não se nega a ocorrência de atos discriminatórios ainda na atualidade, mas a lei não mais desfavorece os sujeitos em razão do gênero ou por qualquer outra particularidade.

Seguindo o entendimento doutrinário citado anteriormente, parece claro que, pensando na modalidade da associação em exame, a mulher, exclusivamente por ser mulher, bem como a interpretação inversa em relação ao homem, não auxilia a agremiação ao alcance ou melhor desenvoltura de sua finalidade associativa.

Mais que isso, a distinção criada pela agremiação se refere às expressões “filho” (masculino) e “filha” (feminino), sem traçar maiores explicações quanto às pessoas que não se identificam com o próprio gênero. Ou seja, o estatuto não dispõe qual seria a tratativa, por exemplo, de um “filho” ou “filha” transexual de um sócio familiar. Teriam estes as vantagens especiais destinadas às “filhas”?

Neste sentido, parece que qualquer distinção de gênero praticada pelo ente privado provocaria um verdadeiro ato discriminatório, não apenas pela ausência de justificativa hodierna, mas principalmente pela disposição da norma estatutária não levar em consideração a maior amplitude da sexualidade humana.

CONSIDEDAÇÕES FINAIS

A formação e exercício de associações perfaz um direito fundamental do ser humano, bem como o direito de associar-se ou se manter associado, conforme disposição do Art. 5º, incisos XVIII e XX, da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

A autonomia privada construída pela Carta Magna em favor das associações permite que a sociedade possa se desenvolver nas mais diversas esferas, religiosa, política, educacional, entre tantas outras sem que haja a intervenção maliciosa dos entes públicos, criando uma verdadeira “blindagem” a quaisquer arbitrariedades.

Entretanto, no exato sentido oposto de direção, citada autonomia não significa a inobservância das normas de ordem pública, sendo indiscutível que a Constituição da República, principalmente, exerce função de suma importância do combate às eventuais opressões praticadas pelo ente privado, garantindo o respeito pleno aos direitos e garantias fundamentais do ser humano.

Dissecando a disposição do Art. 55 do Código Civil (BRASIL, 2002), é possível concluir que a criação de categorias de associados com vantagens especiais não deve ser utilizada de forma indiscriminada, mas sim instituída como fundamento de auxílio ao fim social a que se destina a pessoa jurídica. A desconsideração desta medida, como apontou a doutrina e jurisprudência, reduz-se em mera violação ao princípio da igualdade esculpido no Art. 5º, caput, da Constituição (BRASIL, 1988).

Sob a análise do caso concreto, observa-se que vantagens especiais aplicadas em razão exclusiva do gênero dos associados não suportam fundamento de desenvoltura das atividades sociais, além de caracterizarem uma nítida assimetria das garantias fundamentais aos sujeitos transgêneros, causando grande confusão da aplicabilidade de tais benefícios.

Não pode ser reservado apenas ao Estado o dever de respeito e observância aos princípios e garantias fundamentais, sendo coobrigação do direito privado a cautela dos mesmos direitos.

No mesmo sentido que já realizaram as cortes superiores, resta crer que os abusos praticados por entes privados, como a hipótese em estudo, serão devidamente controlados e interferidos pelo poder Judiciário, na função de garantidor da lei posta.

REFERÊNCIAS

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2015.

BRAGANÇA PAULISTA (SP). Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Bragança Paulista/SP. Registro de Pessoa Jurídica do Clube de Campo de Bragança – CCB. Registro nº 129, Livro 1 das Sociedades Civis, em 27 de abril de 1971.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União: p. 1, 05 de outubro de 1988.

BRASIL. Lei nº 3.071, de 01 de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Coleção de Leis do Brasil: 01 de janeiro de 1916.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: p. 1, 11 de janeiro de 2002.

BRASIL. ADI 4275/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin. Direito Civil – Pessoas Naturais. Transgêneros e direito a alteração no registro civil.  Supremo Tribunal Federal, Documento: 14638932 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 01 de março de 2018.

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[1] Mestrando em Direito pela Escola Paulista de Direito (EPD); Pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD); Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário UNIFAAT; Bacharel em Direito pelo Centro Universitário UNIFAAT. ORCID: https://orcid.org/0009-0007-9376-9706. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/0866558068792538.

[2] Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Messina. Doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito FADISP. Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Européia e na Jurisprudência Espanhola, pela Universidade de Castilla-La Mancha, Toledo/ES. Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino ITE. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito – EPD. Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9595-3266. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9161418107804194.

Enviado: 5 de junho, 2023.

Aprovado: 26 de julho, 2023.

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Gustavo Rosa Brabo

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