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Contribuições de uma disciplina sobre narrativas como fontes para a pesquisa

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SILVA, José Roberto Damasceno da [1]

SILVA, José Roberto Damasceno da. Contribuições de uma disciplina sobre narrativas como fontes para a pesquisa. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 09, Vol. 04, pp. 15-35. Setembro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/narrativas-como-fontes

RESUMO

Este artigo faz uma reflexão sobre a importância de uma disciplina de doutorado para a formação de futuros pesquisadores e orientadores de pesquisas no campo da educação para a ciência. Especificamente, para aqueles professores que nunca tiveram contato com a história oral como metodologia de pesquisa. Não só por vir a conhecer essa metodologia, ampliando seus modos de realizar pesquisas, mas, também, por vir a ter a possibilidade de conhecer diversos trabalhos que se utilizaram dessa metodologia e que trouxeram experiências sobre possibilidades de pedagogias diferenciadas ocorridas no passado recente da educação brasileira, contribuindo assim, para base da análise da atual situação educacional do país.

Palavras-chave: História Oral, Narrativas, Entrevistas, Metodologia de Pesquisa, Ensino de Ciências e Matemática.

1. INTRODUÇÃO

A história das civilizações sempre se pautou e se referendou pela percepção das grandes lideranças políticas, religiosas, ideológicas e pelos grandes acontecimentos de alguma forma registrados e passados de gerações em gerações. Porém, é de se imaginar que muitos acontecimentos poderiam ter chegado até nós de uma forma um pouco diferente se pequenos grupos e outras pessoas que viveram esses aconteci­mentos tivessem sido ouvidas e tivessem suas narrativas devidamente registradas. Na história do Brasil, por exemplo, muitas contestações são vistas por parte de historiadores sobre a veracidade dos fatos narrados, principalmente, nos livros didáticos. Os acontecimentos teriam alcançado um nível maior de aceitabilidade e confiabilidade, se outras pessoas que viveram cada período da história do país tivessem suas narrativas consideradas para a composição do que temos hoje como história do Brasil. Pois cada pessoa foi um sujeito na história de sua época, no mínimo como uma testemunha dos fatos ocorridos.

Para, inicialmente, dar um maior respaldo à história escrita, surge nos Estados Unidos, ainda na década de 50, a história oral. Na década de 60, Paul Thompson, professor aposentado de sociologia da Universidade de Essex, surge como um dos pioneiros da história oral na Grã-Bretanha e graças a ele começam a surgir grupos de historiadores defensores da história oral que buscavam, até de forma equivocada, defender a história oral como sendo a única forma de se garantir a veracidade dos fatos.

Em relação ao uso da história oral como uma metodologia de pesquisa, o pro­fessor Antonio Vicente Marafioti Garnica, em seu artigo “História Oral e Educação Matemática: O Estado da Arte” busca sistematizar as primeiras pesquisas produzidas na interface História Oral/Educação Matemática. São apresentados seis trabalhos desenvolvidos entre 1997 e 2002, como apoio para a compreensão da constituição de um cenário de pesquisa. A partir de 2002, a formação do grupo de pesquisa deno­minado Grupo História Oral e Educação Matemática – GHOEM passa a desenvolver sistematicamente estudos sobre o tema.

Esse artigo sobre a disciplina “Narrativas como fontes para a pes­quisa em ensino de Ciências e Matemática: metodologias qualitativas de pesquisa, análise crítica, fundamentos e procedimentos”, reforçará sua importância para a formação de futuros pesquisadores e orientadores de pesquisas no campo da educação para a ciência. Principalmente, para aqueles professores que nunca tiveram contato com essa metodologia de pesquisa. Não só por vir a conhecer essa metodologia, mas, também, por vir a ter a possibilidade de conhecer diversos trabalhos que se utilizaram dessa metodologia e que trouxeram experiências fantásticas sobre possibilidades de pedagogias diferenciadas ocorridas no passado recente da educação brasileira, tão importantes na análise da atual situação educacional do país. Como será visto nos temas abordados na disciplina.

2. TEMAS ABORDADOS NA DISCIPLINA

2.1 METODOLOGIA, PESQUISA, ABORDAGEM QUALITATIVA E ENSINO DE CIÊNCIAS

As discussões temáticas na disciplina começam com o texto “A arte de pesqui­sar: Como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais” da Goldenberg (2003). Há uma exposição das várias formas de se fazer pesquisa qualitativa, com destaques para as entrevistas, em que são apresentadas algumas qualidades essenciais que o pesquisador deve possuir para obter êxito nas entrevistas. Para a autora o pesquisador deve ter

interesse real e respeito pelos seus pesquisados, flexibilidade e criati­vidade para explorar novos problemas em sua pesquisa, capacidade de demonstrar compreensão e simpatia por eles, sensibilidade para saber o momento de encerrar uma entrevista ou “sair de cena” e, como lembra Paul Thompson[2], principalmente, disposição para ficar calado e ouvir (GOLDENBERG, 2003, p. 57).

Não é de se entender que haja um único método científico, a ciência se de­senvolveu a partir de observações da realidade e da experimentação, exatamente por haver diversos métodos científicos. Como exemplo, a teoria da relatividade foi formulada e aceita pela comunidade científica da época sem ter nenhuma evidência empírica. Ela não teria acontecido se tivesse que seguir o método científico empírico indutivo. Somente tempos depois surgiram as primeiras evidências empíricas. Portanto, há diversas maneiras de se produzir ciência, é possível surgir novos conhecimentos científicos dentro de debates, como por exemplo, nos debates dentro do meio acadê­mico. Dentro dessa visão, destaca-se a pesquisa qualitativa que se faz importante na compreensão de fenômenos que uma abordagem quantitativa não alcança. Segundo Garnica:

Ter o mundo como estrutura pronta à mão e, portanto, a pesquisa como o estudo desse mundo, talvez seja um dos principais equívocos dos paradigmas que regem o fazer clássico em pesquisa. Ainda que haja várias situações em que isso se verifique, certamente essa visão não abarca – como se pensou por longo tempo – a totalidade e variedade das experiências humanas. (GARNICA, 2001, p. 6).

Deve-se ficar claro que escolher pesquisa qualitativa, quantitativa ou ambas não deve ser questão de ideologia, mas sim de sensibilidade ao fenômeno estudado. Não é questão de se defender positivismo, empirismo, estruturalismo, dialética da natureza, totalidade, sistemismo, discutibilidade, falibilidade das teorias, dentre outras, mas sempre respeitar o interesse dos pesquisadores em níveis específicos da realidade.

O texto do Veiga-Neto (2002) traz uma discussão entre o pensamento iluminista e o pós-modernista, salientando a diferença entre as formas como a realidade é vista. Percebe-se mais uma vez uma determinada tendência por assumir determinada posição, o que deveria ficar claro é que o olhar é determinante na observação da realidade e, portanto, mostra realidades distintas para indivíduos distintos, já que cada ser é uma subjetividade. E, desta forma, perde-se o sentido em buscar uma verdade absoluta, pois a mesma não existe. O próprio Veiga-Neto (2002) corrobora essa visão “… todos os entendimentos sobre o mundo (e, de novo, mundo principalmente social) se dão em combinações flutuantes entre olhares e enunciados, entre visão e palavra, entre formações não-discursivas e formações discursivas” (VEIGA-NETO, 2002, p. 33).

Outra contribuição dessa disciplina foi o estudo do texto da Clareto (2004) sobre Etno­grafias e Pesquisas Interpretativas. Conhecer a pesquisa etnográfica como outra forma de pesquisa é uma experiência muito gratificante para quem só esteve envolvido com o campo das pesquisas de ciências dita “duras”. Saber que a pesquisa etnográfica surgiu na antropologia social devido à necessidade de se compreender as relações socioculturais, os comportamentos, os ritos e as práticas de sociedades, de culturas, até então, desconhecidas, ajuda a entender outra dimensão da realidade. A etnografia vem sendo adaptada a problemas comuns da sociedade. É um estudo de observação bastante importante, porque não basta fazer perguntas em pesquisas. É preciso observar o que as pessoas fazem, suas relações e como é o seu dia a dia. Graças a esses novos conhecimentos é possível perceber o porquê de as grandes corporações investirem tanto em pesquisas etnográficas. Isso mostra que a pesquisa etnográfica tem um alcance maior do que é imaginado. Mais importante do que as discussões sobre as crises da modernidade e enfrentamentos dos seus impactos é saber que existem campos de estudos que não podem ser realmente explorados sem uma forma de pesquisa tão específica e importante como as pesquisas etnográficas. O texto da Clareto (2004) destaca a importância da pesquisa interpretativa, pois

Tal denominação encontra apoio na noção de conhecimento como ati­vidade humana comprometida, ou seja, o conhecimento não é neutro, não se distingue em uma esfera totalmente isolada do universo humano: ela está impregnada de emoções, paixões, ódios, preconceitos, vonta­des, crenças… O conhecimento não é uma busca de adequações de verdades a realidades, mas uma interpretação (CLARETO, 2004, p. 1).

Essas combinações flutuantes acerca de todos os entendimentos sobre o mundo traz a necessidade de se pensar o uso das narrativas como uma importante ferramenta para o desenvolvimento de pesquisas que a metodologia de pesquisa científica usual não consegue alcançar, pois não percebe a realidade com os vários olhares a que esta está sujeita.

2.2 NARRATIVAS

Nessa disciplina o professor Vicente apresenta com extrema propriedade o universo das narrativas. Fica evidente em suas aulas o poder das narrativas como um instrumento de pesquisa. Fica clara a presença das narrativas na vida humana em diferentes épocas. Toda atividade humana envolve o uso da linguagem expressa de diversas formas, seja por meio da linguagem visual, teatral, verbal, entre outras. As narrativas estão presentes nas lendas, na mitologia, nos contos, nas fábulas, nas novelas, na história, em comédias, em dramas, em conversações, nos cinemas, nas histórias em quadrinhos, nas notícias e em obras de arte, como apresentadas pelo professor Vicente

Nas artes plásticas, de início, a criação de narrativas orais a partir das narrativas pictóricas (exercícios como os que já vi sendo feitos em museus, com crianças como que hipnotizadas frente aos quadros, criando suas histórias e descrevendo cenários, às vezes de forma es­pontânea, às vezes a partir de perguntas criteriosamente orquestradas por um guia) aos poucos vai tornando natural uma imersão mais sis­tematizada, mais racional, sobre o tempo, o momento retratado, os processos que tornam possível a fixação da obra em seu suporte, e algumas circunstâncias históricas que envolvem a composição e sua circulação (GARNICA, 2015a, p. 7).

Além disso, narrativas são vistas em todos os lugares, em todas as sociedades, desde que homem é homem.

Nessa mesma aula, o professor Vicente também apresentou o conceito de historiografia, onde se pode entender como sendo o estudo de como se deu a grafia da história ou a escrita da história ou, ainda, a narrativa histórica produzida pelo historiador. Não se pode deixar de perceber que as verdades históricas mesmo que resultantes de métodos e processos rigorosos e bem descritos são pontos de vistas possíveis do pesquisador, ou seja, são interpretações possíveis. Sobre conceitos envolvidos na historiografia, destaca-se a seguinte afirmação: “Narrativas orais tornadas narrativas escritas são fontes historiográficas” (GARNICA, 2013, p. 4).

A disciplina destaca a importância da história oral como metodologia utilizada para escrever a história atualmente. Ela se aplica muito à história do tempo presente, mas é lógico que ela também ajuda a discutir a história dos tempos passados, discutindo mais as representações do que as pessoas fazem dos fatos passados do que propriamente, seus conteúdos especificamente. A história oral permite que todas as pessoas possam escrever a história, seja a história do seu bairro, da sua associação de moradores ou até mesmo a história de um movimento social que a pessoa tenha participado. Ou seja, a história oral democratiza a historiografia. Ao se falar em história oral, fala-se necessariamente em memória. Nesse sentido, em história oral a memória tem uma referência direta com o passado, através do que as pessoas pensam, guardam, lembram e representam de um passado, seja pela convivência direta, ou seja, pela convivência através das pessoas que vivenciaram o fato. O conceito de subjetividade também está presente na metodologia história oral, pois a história oral lida essencialmente com os sujeitos, as pessoas, no sentido de lidar com emoções. A subjetividade incorpora a história de vida com as relações sociais. Para responder à pergunta: Mas o que a história oral traz para o mundo acadêmico e, especificamente, para a Educação Matemática? O professor Vicente escreve, em um de seus textos: “De um modo geral, se pode dizer que a história oral, ao impor as narrativas como fontes legítimas para a pesquisa, cuida de reconduzir a subjetividade para dentro das práticas científicas” (GARNICA, 2015c, p. 3).

2.3 PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA

A disciplina também apresenta o conceito de pesquisa autobiográfica que será entendida como sendo uma prática investigativa que acena em busca de uma aproxi­mação das lentes da ciência à vida cotidiana e, principalmente, aos sujeitos que nela transitam e existem. Nesse sentido, existe a possibilidade de se aproximar e se relacio­nar a história de vida de um sujeito envolvido com a educação matemática e a própria educação matemática. Mais uma vez justificando que certas dimensões da realidade não seriam atingidas pelo método de pesquisa científica tradicional, referindo-se ao das ciências “duras”. Para justificar isso, é apresentado em um texto, trabalhado na disciplina, trechos das autobiografias de Bertrand Russell (1872- 1970) herdeiro da aristocracia inglesa e de Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant (1880-1970) uma menina de Minas Gerais, cuja família enfrentou dificuldades finan­ceiras durante sua infância e adolescência, trechos que segundo a autora são “textos nos quais se evidenciam duas experiências de educação matemática no final do século XIX” (GOMES, 2012, p. 118).

Em outro texto que trata desse tema, os autores trazem algumas considerações e definições sobre a autobiografia, a saber:

La autobiografia representa un género particular dentro de la narrativa (autonarraciones) o, mejor, de las <<escrituras del yo>> (memorias, diarios íntimos, cartas, confesiones, autorretratos, historias personales etc.). En el Diccionario de María Moliner se dice que <<es biografia de sí mismo>>, y Julio Casares precisa que es la <<vida o historia de una persona, escrita por ella misma>> (BOLÍVAR; DOMINGO; FERNÁNDEZ, 2001, p. 30).

Dessa forma, fica clara mais uma dimensão das narrativas e consequente importância para o campo das pesquisas qualitativas.

2.4 EXPERIÊNCIA E SUBJETIVIDADE

Nesse tema um dos textos trabalhados foi “O Narrador” de Walter Benjamin (1994). O texto inicia-se com a observação de que o “Narrador” não consegue mais ser plenamente eficaz na sua proposta de narrar. Para Benjamin (1994), com o passar do tempo e com a chegada dos tempos modernos, foi-se deixando de existir a ‘capacidade’ de contar história. De acordo com Benjamin (1994), ao se perder essa capacidade, surge a incapacidade de se trocar experiências. Como exemplo, Benjamin (1994) cita a Guerra como responsável por trazer experiências desmoralizadas, jamais vividas antes. A partir dessa conclusão, ele apresenta dois grupos de narradores arcaicos que, segundo afirma, existiam antes do período da Guerra. São eles: O camponês sedentário que mantém as tradições e o marinheiro comerciante que traz a novidade.

“Quem viaja tem muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições (BENJAMIN, 1994, p. 2).

Para Walter Benjamin (1994) as melhores narrativas escritas eram aquelas que mais se aproximavam das histórias orais contadas por inúmeros narradores anônimos. Benjamin (1994) percebe em Leskov características próximas ou similares àquelas existentes nos narradores arcaicos. O filósofo alemão considera o advento da informação como demonstração da morte da narrativa. Essa forma de “Narrativa” existiu como um meio “artesanal” de comunicação que não resistiu às mudanças da modernidade. Na perspectiva de Benjamin (1994) existem incompatibilidades inconciliáveis entre a narrativa e a informação. A primeira oferece reflexão, espanto e nunca se exaure e a segunda surge de forma efêmera e somente tem validade enquanto novidade.

Outro texto trabalhado sobre esse tema foi “20 Minutos na Fila: sobre expe­riência, relato e subjetividade em Imre Kertész” de Jorge Larrosa Bondía[3]. Nele o autor relaciona experiência e subjetividade através da experiência de vida de Imre Kertész[4] Nesse texto, destaca-se a interpretação de Larrosa sobre o pensamento de Imre Kertész referente à relação existente entre a experiência e a subjetividade do ser humano. Para ele,

Dir-se-ia que Kertész nomeia aqui a relação clássica entre experiência e formação: a experiência é o que nos passa e o que, ao nos passar, nos forma ou nos transforma, nos constitui, nos faz como somos, marca nossa maneira de ser, configura nossa pessoa e nossa personalidade. O que Kertész parece dizer é que a história produziu as experiências que determinaram sua personalidade. Ele é o que é pelas experiências que viveu, pelo modo como viveu o que seu tempo lhe deu a viver, lhe obrigou a viver (LARROSA, 2014, p. 724).

Ainda sobre esse tema, discute-se o texto “Literatura, experiência e formação” também do Jorge Larrosa Bondía. Nele tem-se uma entrevista do Larrosa a Alfredo Veiga-Neto. Onde se destaca de que modo a leitura como formação relaciona o conhe­cimento com a subjetividade. Para Larrosa: “Pensar a leitura como formação supõe cancelar essa fronteira entre o que sabemos e o que somos, entre o que passa e o que nos passa” (LARROSA, 2002, p. 136).

2.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA

Em “História: A Arte de Inventar o Passado”, o autor utiliza-se de um romance de Gustave Flaubert[5] para através das aventuras dos protagonistas Bouvard e Pécuchet fazer considerações sobre a História. Destaca-se, inicialmente, uma referência aos personagens para apontar que mesmo mais de um século depois, vive-se o mesmo drama de Bouvard e Pécuchet, pois

Se para eles a modernidade trouxera a vontade de saber, a vontade de verdade, que os fazia nomadizar entre um saber e outro, uma es­pecialidade e outra, uma identidade e outra, descobrindo, com dor e dilaceramento, o caráter relativo dos saberes e as incertezas da ciência, nós, hoje, temos que conviver, não apenas com a relatividade dos dis­cursos, com a relatividade do saber histórico, mas com a relatividade da própria realidade (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 55).

Outro ponto importante apresentado pelo autor em seu texto é a referência à realidade virtual, onde os homens vivem situações de simulação e de escolhas rápidas. Coloca a História não mais a serviço da memória, mas, sim, do esquecimento. Percebe-se a finitude do homem e de todas as coisas. Dá justificativas para a História, como metanarrativa, está em crise. E após relatos sobre o estabelecimento da História como ciência, finaliza com um alívio pela pesquisa em História ter, enfim, se libertado dos princípios de pesquisas das Ciências da Natureza.

Em “História, Literatura e Ficção na Educação Matemática: aproximações com as ideias de Hayden White” de Fernando Guedes Cury e Heloísa da Silva (2015) apresenta as ideias de Hayden White[6] na sua adaptação das categorias originadas no campo da teoria literária para a análise da historiografia. White associa a história a uma forma de arte. Para ele, a história é um trabalho artístico, onde as narrativas são manifestações verbais de ficção, cujos conteúdos são tão inventados, quanto descobertos. Ou seja, tem mais de literatura do que de ciência. Para justificar esse ponto de vista, White afirma que é exatamente porque a narrativa é um modo de representação tão natural à consciência humana, tão integrada à fala cotidiana e ao discurso comum, que seu uso em qualquer campo de estudo que aspire à condição de ciência deveria ser questionado. Para ele, o que distingue os relatos “históricos” dos “ficcionais” são, em essência, os conteúdos, mais do que a sua forma de apresentá-los, pois o conteúdo dos relatos históricos refere-se a acontecimentos reais, coisas que ocorreram e, porque pesquisados pelos historiadores, trata-se de um conteúdo descoberto. No entanto, na passagem do estudo dos documentos para a composição do discurso narrativo escrito, o historiador necessariamente emprega as mesmas estratégias da figuração linguística utilizadas pelos escritores imaginativos e, nesse sentido, o conteúdo do relato histórico é caracterizado como invenção. Críticas às ideias de White surgiram e foram prontamente refutadas por ele.

Nesse texto trabalhado em aula, os autores apresentam alguns trabalhos em educação matemática que mostram características próximas às ideias de White. Con­cluindo que:

Podemos afirmar que o campo da história da educação matemática tem se beneficiado dessa aproximação entre história, ficção e literatura, e permitido exercícios teóricos profícuos, críticos, imaginativos, bem hu­morados e comprometidos com as áreas envolvidas, como exemplificam os trabalhos aqui apresentados (CURY; SILVA, 2015, p. 176).

Em “Da duração situada: um estudo sobre historiografia, espaço e Educação Matemática” destaca-se o entendimento da História (mais propriamente a Historio­grafia) como o estudo da duração, a investigação sobre como, na temporalidade, os sujeitos vivem em relação com outros sujeitos, em comunidade. O foco dos autores com esse texto é trazer investigações historiográficas que trazem a espacialidade à cena, defendendo sua potencialidade para o campo de pesquisa da Educação Ma­temática, no geral, e o campo da História da Educação Matemática, em particular. Em relação à problematização da espacialidade, os autores trazem trabalhos que estudam: momentos que podem caracterizar mudanças significativas nas relações entre os modos de experimentação corporal e os espaços ocupados pelos sujeitos; a paisagem não sendo apenas algo capturado pelas vias oculares do sujeito, mas, mais que isso, sendo obra da mente, composta tanto do material, do visível, quanto de lembranças; as funções da arquitetura escolar, abordando a função que os espaços desempenham para representar, valorando, determinadas ações; os contextos das políticas, das relações sociais, das mudanças estruturais dos espaços, bem como as relações entre essas mudanças e as intenções que as motivaram, as divisões e os privilégios de alguns espaços em detrimento de outros que resultam, ao fim e ao cabo, em novas configurações urbanas; os modos de produção global num mundo dividido entre dois espaços dicotômicos, oriente e ocidente, uma divisão resultante da expansão, ocupação e dominação europeias sobre as regiões do leste, como eram então conhecidas; o espaço do outro, um espaço imaginário, posto que é por meio da imaginação, do “maravilhoso” – segundo o autor –, que os europeus assimilam e se apropriam do Novo Mundo; dentre outros. De encontro aos interesses do GHOEM,

pensar região como um espaço costurado pela historicidade e pelas sensibilidades dos que vivem onde afirmam viver e transitar (criando, inventando, assim, uma região). Isso permite, por exemplo, que numa narrativa os narradores constituam suas regiões, seus espaços, suas linhas de deslocamento, suas coreografias, formando uma delimitação espacial e temporal que não pode ser apreendida pelos critérios clássi­cos, sejam eles os da Geografia, ou os da Economia, os da Demografia, ou da Política (MORAIS; GARNICA, 2016, p. 82).

Com esse domínio garantido e levando-se em conta o caráter interdisciplinar da matemática, conclui-se que a história oral como metodologia para pesquisas em Educação Matemática se fortalecerá ainda mais.

2.6 TEMPO E MEMÓRIA

Desde a antiguidade grega o tempo sempre foi um problema para a compreen­são dos homens, que estavam sempre em busca de formas para fazer o ser humano escapar do caráter passageiro do tempo. Para os antigos a eternidade era a verdadeira realidade do tempo e a ideia de que os homens vieram da eternidade e a ela retorna­riam, sempre foi uma ideia muito forte no pensamento do homem. A concepção de que justamente o tempo é aquele em que as coisas existem, depois não existem mais, elas mudam, deixam de ser como eram, passam a ser de outra forma e até mesmo desaparecem veio para substituir a antiga compreensão do tempo. Hoje se tem a oportunidade de pensar o tempo, de viver o tempo de uma maneira mais existencial do que simplesmente como uma ideia ou uma concepção. Dessa forma, o homem torna-se liberto das ideias metafísicas sobre o tempo. Sendo assim, já que a substância da existência humana passa a ser o tempo, a memória passa a ter uma importância extra­ordinária. O homem é um ser mais de memória do que de presente, ou seja, possui mais passado do que presente, portanto, o que o constitui são as lembranças. Sendo assim, tudo está a cargo da memória, até mesmo o próprio presente. A memória ajuda o entendimento do presente, caso contrário, nada seria compreendido se existisse apenas o momento instantâneo. Portanto, a memória é quem faz do homem um sujeito, um humano, ela é a maior parte da consciência do homem. Conclui-se que é o tempo e a memória que constituem a realidade.

Ampliando o conceito de memória, Galzerani (2006), em seu texto “Memória, História e Tempo: perspectivas teórico-metodológicas para a pesquisa em Ensino de História”, conclui:

Portanto, Benjamin nos oferece um dado conceito de memória, capaz de ampliar a dimensão de ser sujeito – tanto sob o ponto de vista social tanto sob o ponto de vista psicológico. Conceito de memória capaz de dina­mizar a visão de produção de conhecimentos, entrecruzando diferentes espaços, diferentes temporalidades, diferentes sujeitos, diferentes vi­sões do mundo (a da criança e a do filósofo, por exemplo) (GALZERANI, 2006, p. 21).

Em Delgado, “Tempo, memória, espaço e história caminham juntos. Inúmeras vezes, através de uma relação tensa de busca de apropriação e reconstrução da memória pela história.” (DELGADO, 2003, p. 10)

Em Le Goff, destaca-se que: “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje”. (LE GOFF, 1996, p. 476)

“Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas da memória, cavar fundo em suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta” (THOMPSON, 1992, p. 197).

2.7 HISTÓRIA ORAL COMO METODOLOGIA DE PESQUISA

Considere-se a história oral como a história do tempo presente, pois implica a percepção do passado como algo que tem continuidade hoje, e cujo processo histórico não está acabado. É uma forma de captação de experiências de pessoas dispostas a falar sobre sua vida, mantendo um compromisso com o contexto social. E essa forma de captação de experiências se dará pelas narrativas. A história oral enquanto método é utilizada em trabalhos que têm como objetivos a formulação de documentação histórica e reflexão social por meio do resgate da memória individual ou coletiva. Ela também age como uma possibilidade de ampliação do conhecimento sobre o passado, tomando como ponto privilegiado de análise a questão da narrativa, não apenas como o relato de uma ação no tempo, mas também como o trabalho da linguagem em produzir racionalidades. Como modalidades de história oral têm-se:

  • História oral de vida: relato de um narrador sobre sua existência ao longo do tempo, com mais autonomia do sujeito para dissertar o mais livremente possível sobre sua experiência pessoal;
  • História oral temática: maior objetividade. Detalhes da vida pessoal do narrador só interessam se revelarem aspectos úteis à informação temática central;
  • Tradição oral: narrativas de fatos que o narrador presenciou ou sobre os quais detém informações. Foco na permanência dos mitos, a visão de mundo de comunidades cujos valores são filtrados por estruturas mentais asseguradas em referências do passado remoto que se manifestam no folclore e na transmissão geracional.

A base da história oral é o depoimento gravado; portanto, os três elementos que constituem a condição mínima da história oral são: o entrevistador (que pode ser mais de um), o entrevistado (que pode ser um ou mais) e a aparelhagem de gravação (apenas som, ou som e imagem). As entrevistas em história oral consistem em um processo de conversação entre o pesquisador e o narrador, no qual o indivíduo é a fonte de dados. A matéria-prima para o trabalho do pesquisador é a narrativa do indivíduo entrevistado. Ao contar suas experiências, o entrevistado seleciona e organiza os acontecimentos de acordo com os seus referenciais do tempo presente, imprimindo-lhes um sentido e transformando em linguagem aquilo que foi vivenciado. A entrevista de história oral deve ser vista como uma das etapas do projeto. A partir da definição do tema e da realização de uma pesquisa bibliográfica sobre o assunto, deve-se elaborar um roteiro geral, mas temático, amplo e abrangente, para ser utilizado em todas as entrevistas. A entrevista é dividida em três pontos:

  • Pré-entrevista: corresponde à etapa de preparação do encontro com o entrevis­tado, na qual o pesquisador irá se apresentar, irá expor as informações sobre o projeto de pesquisa e de como o entrevistado irá colaborar com essa pesquisa. Deve-se deixar claro como se chegou à pessoa que será entrevistada, do acesso, do contato, de quem a indicou. Nessa etapa a entrevista será agendada de acordo com a conveniência da pessoa que será entrevistada, definindo locais para ocorrerem as entrevistas, horário e data. Deve-se, ainda, consultar a pessoa que será entrevistada sobre a possibilidade de gravação. Pois a gravação é uma ferramenta muito importante que possibilita ao pesquisador revisitar inúmeras vezes o material para poder refletir com mais calma sobre o conteúdo que foi narrado.
  • Entrevista: Na entrevista propriamente dita o pesquisador deve novamente informar sobre o projeto de pesquisa e de como o entrevistado irá colaborar com essa pesquisa, deixando o entrevistado totalmente à vontade para não falar sobre qualquer tema que não o deixe confortável, inclusive deixando claro para ele que a qualquer momento ele poderá solicitar o desligamento do gravador para não registrar algo que não esteja deixando-o confortável. O pesquisador deve iniciar a entrevista registrando a data, o horário de início, o local, o nome do entrevistado e o título do projeto. Ao final da entrevista o pesquisador deve solicitar a autorização ao entrevistado para a transcrição desse material, seja na própria gravação ou em documento apropriado. Deve-se também levar em conta o tempo da entrevista para poder decidir em conjunto se haverá a necessidade de mais de um encontro.
  • Pós-entrevista: Momento de transcrição e análise do material gravado. A trans­crição é a etapa do processo da história oral que corresponde à mudança do estado de gravação oral para a escrita. A transcrição pode ser literal ou editada, no caso da editada deve-se deixar clara a interferência do pesquisador.

Em “História oral em educação matemática: um panorama sobre pressupostos e exercícios de pesquisa”, o autor conta como a história oral começou a ser utilizada como metodologia de pesquisa na educação matemática, o autor ressalta que não se deve confundir a educação matemática com a matemática. Enquanto os pesquisadores em matemática produzem matemática, os pesquisadores em educação matemática “se preocupam em compreender os modos como a matemática ocorre nas situações em que estão envolvidos ensino e aprendizagem” (GARNICA, 2015b, p. 36).

Ainda nesse texto, o autor discorre sobre a formação do Grupo História Oral e Educação Matemática – GHOEM, seus membros, seus interesses e atividades. E devido às diversas nuances da pesquisa em educação matemática, o autor defende a história oral como uma metodologia de pesquisa indispensável e poderosa para se produzir pesquisas onde a pesquisa científica não daria conta.

Em “História Oral: uma relação dialógica”, o autor apresenta a história oral como uma arte da escuta baseada em um conjunto de relações: relação entre entrevistados e entrevistadores através do diálogo entre eles; relação entre tempo em que o diálogo acontece e o tempo histórico discutido na entrevista proporcionada pela memória; relação entre a esfera pública e a privada, entre autobiografia e história e relação entre oralidade da fonte e a escrita do historiador. Segundo o autor:

O que há de mais importante sobre a natureza dialógica do trabalho de história oral é que ele não termina com a entrevista, ou mesmo com a publicação: ele precisa encontrar maneiras de ser útil aos indivíduos e às comunidades envolvidas. Este é o processo conhecido pelos rótulos genéricos de “restituição” e “disseminação” (PORTELLI, 2016a, p. 21).

Em “A História Oral na Pesquisa em Educação Matemática”, as autoras desta­cam a dissociação de abordagens frequentes na pesquisa historiográfica tradicional e o surgimento de uma concepção de uso e tratamento de entrevistas na pesquisa qualitativa com a finalidade de sentir-se induzida a ampliar discursos.

As autoras concluem que:

Reconhecendo a historicidade inerente ao humano e estudando, com ouvidos atentos, seus heróis e marginais, percebemos que estes se dão menos a conhecer que a própria sociedade que os gerou. Acessar versões existentes e produzir fontes que expressem outras versões potencializa as possibilidades de aproximação com as relações es­tabelecidas nas mais diversas áreas, especificamente na Educação Matemática (SILVA; SOUZA, 2007, p. 157).

2.8 HISTÓRIA ORAL COMO METODOLOGIA DE PESQUISA – ENTREVISTAS

Esse momento do curso foi dedicado às apresentações, por parte dos gru­pos estabelecidos pela professora Ednéia, dos textos que tinham como foco o uso de entrevistas.

Em “Para além da entrevista: uma etnografia da minha prática”, o autor destaca que a entrevista para o entrevistador não tem a mesma dimensão de importância que tem para o entrevistado, que considera um momento significativo para se expressar e cujo significado resiste para além do tempo do encontro. O autor já descreveu a entrevista de história oral como um “experimento de igualdade” no qual dois indivíduos, separados por classe, idade, gênero, etnia, educação ou poder, fazem um esforço para falar um com o outro como se todas essas desigualdades estivessem suspensas e os seres humanos pudessem conversar uns com os outros em um mundo utópico de igualdade e diferenças. Para o autor a “História oral não é uma coisa que se faz como profissão” (PORTELLI, 2016b, p. 43).

Em “Reflexões sobre fontes orais através da desconstrução do depoimento de Jorge Oscar de Mello Flôres”, o autor busca de certa forma fazer um debate político usando pano de fundo o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPÊS) no período de 1961 a 1971, portanto antes e depois da tomada de poder por parte dos militares, mas será destacado apenas, nesse texto, como parte no trabalho da disciplina, a possibilidade de se usar as narrativas como forma de se realizar um exercício de desconstrução de discurso, apelando-se para um formato diferente dos comumente usados com os autores da entrevista, o que se permite preservar o sentido original e, no mesmo instante, agregar considerações por ocasião da confrontação. Dessa forma, “a entrevista em história oral se define como uma circunstância de conflito potencial, onde ambas as partes, por meio de diferentes estratégias, cooperam em uma situação controversa” (RAMÍREZ, 2008, p. 267).

Em “A educação negada: introdução ao estudo da educação brasileira contemporânea”, os autores trazem uma série de entrevistas com educadores envolvidos com a educação brasileira contemporânea, onde concluem, ao finalizar o trabalho de compi­lação dessas entrevistas, que “a verdade que mais se destacou é a de que, apesar dos esforços, dos projetos e dos sonhos dos educadores, a educação, neste século XX, foi negada ao povo brasileiro” (BUFFA; NOSELLA, 2001, p. 13), o que ficou claro na entrevista com Jarbas Passarinho, um dos nomes fortes do regime militar. Nessa entrevista, percebe-se o quanto a educação brasileira não passa de projetos políticos momentâ­neos, recheados de interesses econômicos, cheios de interferências de todo tipo de ideias, sem estrutura definida, em geral, cópias de outras realidades. Resumindo, sem qualidade e, como consequência, deixando a clara contestação de que aos educandos foi-lhes negada uma verdadeira educação.

2.9 HERMENÊUTICA DE PROFUNDIDADE

O Grupo História Oral e Educação Matemática – GHOEM, com o objetivo de es­tudar história da educação matemática, passa a reunir um acervo de livros didáticos an­tigos. A partir deste acervo, com alguns livros raros e todos em edições originais, busca formas de investigar a cultura escolar. Quando Fábio Donizeti de Oliveira estava tra­balhando em sua dissertação de mestrado, ele percebeu não haver, nos trabalhos estudados, um procedimento metodológico próprio e claro que servisse de subsídio às análises desenvolvidas por cada um dos autores e trabalhos inventariados. A falta desse procedimento passou a incomodar Oliveira, que encontrou na Hermenêutica de Profundidade (HP) uma possibilidade de suprir suas inquietações. Para compre­ender o referencial da HP, deve-se antes compreender o conceito de Hermenêutica, assumindo os autores:

Hermenêutica como se referindo, de modo geral, a uma classe de te­orias que têm por objetivo estudar e propor sistematizações (teóricas) sobre o que é interpretar e como se interpreta. Assim, hermenêutica passa a ser também um adjetivo dado a teorias nas quais a interpreta­ção ocupa um lugar central (OLIVEIRA; ANDRADE; SILVA, 2013, p. 121).

A tradição hermenêutica surge ainda na Antiguidade com a finalidade de inter­pretar textos sagrados e leis. Para esse fim, criam-se regras de leitura e elaboração textual que supostamente fixavam uma forma correta, unívoca de interpretação. Mas essas regras fracassaram e as hermenêuticas contemporâneas não apenas aban­donaram essa busca à interpretação unívoca como se ocupam, agora, de defender a potencialidade da multiplicidade de interpretações para compreendermos textos, “criando mundos” com as interpretações.

Além da mudança de postura quanto às possibilidades de interpretação, as hermenêuticas contemporâneas têm ampliado seu campo de atuação para além dos textos escritos, considerando como texto todo conjunto de símbolos passível de inter­pretação. Mas é com Paul Ricoeur[7] que a hermenêutica parece assumir sua forma mais definitiva: a hermenêutica ricoeuriana, partindo da noção de texto, pretende abarcar toda a experiência humana.

Com base na hermenêutica ricoeuriana, a metodologia de interpretação pro­posta por John B. Thompson[8], o Referencial Metodológico da Hermenêutica de Pro­fundidade, estrutura-se em três “fases”, interligadas e concomitantes, que podem ser sinteticamente chamadas de Análise Sócio-histórica, Análise Formal ou Discursiva e Interpretação/Reinterpretação.

No texto “A Hermenêutica em Educação Matemática: Compreensões e Pos­sibilidades”, as autoras apresentam a hermenêutica filosófica como uma alternativa à racionalidade positivista no modo de fazer pesquisas. A “concepção de universa­lidade da hermenêutica fenomenológica traz implicações metodológicas em que a verdade não é alcançada metodicamente, mas estruturada dialeticamente” (MONDINI; MOCROSKY; BICUDO, 2016, p. 320).

2.10 APRESENTAÇÃO DOS SEMINÁRIOS

O último bloco da disciplina foi reservado para a apresentação dos seminários referentes a teses e dissertações que utilizaram a história oral como metodologia de pesquisa. Conforme a tabela abaixo:

Tabela 1 – Seminários

Seminários
Ordem de Apresentação Tipo Autor – Título – Local – Ano
Tese FERNANDES, F. S. A Quinta História: composições da Educação Matemática como área de pesquisa. Rio Claro, 2014.
Dissertação GALETTI, I. P. Educação Matemática e Nova Alta Paulista: orientação para tecer paisagens. Rio Claro, 2004.
Tese SOUSA, V. L. Histórias de vida e narrativa como possibilidades de escuta de si. Presidente Prudente, 2016.
Tese LUCIANO, G. S. Educação para o manejo e domesticação do mundo: entre a escola ideal e a escola real: os dilemas da educação escolar indígena no alto Rio Negro. Brasília, 2011.
Tese MORAIS, M. B. Se um Viajante… Percursos e Histórias Sobre a Formação de Professores de Matemática no Rio Grande do Norte. Rio Claro, 2017.
Tese NAKAMURA, M. E. F. P. Ginásios Vocacionais: estudo narrativo sobre uma proposta educacional da década de 1960. Rio Claro, 2017.

Fonte: Autor.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho serviu para comprovar o quanto disciplinas pensadas para atender objetivos específicos em programas de doutorado acabam por tomar uma dimensão de importância bem maior. Há uma parcela considerável de recém-ingressos em progra­mas de doutorado que já atuam como professores em instituições superiores de ensino. Muitos ainda não fazem parte de programas de pós-graduação em suas instituições de origem e, por isso, podem jamais terem tido contato com as diversas metodologias de pesquisas da atualidade. Ou até, acharem que as únicas formas de se fazer pesquisa sejam através do método científico tradicional ou usando teorias axiomáticas. Levando-se em conta que há a possibilidade de muitos dos doutorandos, vinculados a instituições de ensino e pesquisa superiores, retornarem às suas instituições de origem e serem convidados a participar de programas de pós-graduação em andamento ou, até mesmo, de completarem corpos de pesquisadores capaz de criar novos programas, faz com que, só por isso, já se justifique uma disciplina como esta.

Nessa disciplina, o doutorando teve a oportunidade de obter novos conhecimentos, tais como: a história oral como metodologia de pesquisa, as narrativas como um instrumento poderoso de pesquisa, a pesquisa autobiográfica, os conceitos de experiência e subjetividade e as relações entre eles, muitas considerações sobre a história, o conceito de historiografia, os conceitos de tempo e memória e as relações entre eles, o poder das entrevistas na construção dos dados, argumentos, desenvolvimento e conclusão de uma pesquisa, conceito de hermenêutica de profundidade, dentre outros. Além da oportunidade de conhecer trabalhos dos grandes estudiosos e estruturadores de vários con­ceitos estudados na disciplina, tais como: Paul Thompson, Walter Benjamin, Hayden White, Paul Ricoeur, John Brookshire Thompson, dentre outros. E como não poderia deixar de ser, reforça-se a importância do professor Antonio Vicente Marafioti Garnica como grande responsável pela história oral, na consolidação dessa metodologia em pesquisas sobre temas da educação matemática.

E a importância da disciplina não para por aí. Graças à oportunidade dada pela professora Maria Ednéia Martins Salandim, para que os alunos apresentassem seminários sobre teses ou dissertações que tivessem trabalhado com narrativas, foi possível conhecer a magnífica experiência dos ginásios vocacionais paulistas da década de 1960 através da tese recentemente defendida pela Maria Eliza Furquim Pereira Nakamura, intitulada “Ginásios Vocacionais: estudo narrativo sobre uma proposta educacional da década de 1960”, indicada pelo aluno Jean Sebastian Toillier. O conhecimento dessa experiência educacional paulista da década de 1960 valeu por si só, como justificativa para que essa disciplina tivesse sido feita por cada doutorando ou mestrando que carregue consigo título de professor, pois é uma experiência que coloca qualquer docente em uma outra dimensão de conhecimento profissional.

É nesse tipo de experiência que a verdadeira educação emancipadora é trabalhada, onde destaca-se uma formação que não atenda a expectativas de nenhuma corrente ideológica, mas apenas a formação ética, moral e profissional de verdadeiros cidadãos, onde o respeito ao próximo é cultivado em toda sua plenitude. As verdadeiras lições de democracia, de igualdade e de respeito às diferenças eram efetivamente ensinadas, sem nada de doutrinação política. E se não bastasse, tudo trabalhado em torno de um currículo interdisciplinar aplicado de maneira eficiente e harmônica. Mas, infelizmente, como já comentado anteriormente, terminando por intermédio de decisões políticas equivocadas e justificando mais uma vez uma experiência de educação negada ao povo brasileiro. Por tudo isso, a disciplina se justifica. Espera-se que, assim como essa, outras continuem proporcionando novas experiências. Nenhum conhecimento é demais. E se forem ensinados com liberdade, sempre serão úteis por toda a vida.

REFERÊNCIAS

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BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197 – 221.

BOLÍVAR, Antonio, DOMINGO, Jesús, FERNÁNDEZ, Manuel. La investigación biográfico-narrativa em educación: enfoque y metodologia. Madrid: La Muralla, 2001. p. 13 – 122.

BUFFA, Ester; NOSELLA, Paolo. A educação negada: introdução ao estudo da educação brasileira contemporânea. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001. (Coleção Biblioteca da Educação. Série 1. Escola; v. 17). p. 29-34; 106-110; 125- 127;153-161; 189-191 (Entrevista com Jarbas Passarinho).

CLARETO, Sônia Maria. Etnografias e pesquisas interpretativas: crises da modernidade e enfrentamentos de seus impactos. In: Anais do II Seminário Internacional de Pesquisa e Estudos Qualitativos. [S.l.: s.n.], 2004. p. 1 – 20.

CURY, Fernando Guedes; SILVA, Heloísa da. História, Literatura e Ficção na Educação Matemática: aproximações com as ideias de Hayden White. Zetetiké, FE/UNICAMP & FEUFF, v. 23, n. 43, p. 155 – 177, jan/jun 2015.

DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História oral e narrativa: tempo, memória e identidades. História Oral, n. 6, p. 9 – 25, 2003.

GALZERANI, Maria Carolina Bovério. Memória, História e Tempo: perspectivas teórico-metodológicas para a pesquisa em Ensino de História. Cadernos do CEOM, ano 21, n. 28, p. 15 – 31, 2006.

GARNICA, Antonio Vicente Marafioti. Ceci n´est pas un article: impressões fragmentadas sobre Arte e Educação Matemática. Zetetiké (online), v. 23, p. 15 – 39, 2015a. Disponível em: DOI: https://doi.org/10.20396/zet.v23i43.8646551. Acesso em: 19 ago. 2022.

                . História oral em educação matemática: um panorama sobre pressupostos e exercícios de pesquisa. História Oral, v. 18, n. 2, p. 35 – 53, jul/dez 2015b. Disponível em: https://revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/download/559/pdf/1787. Acesso em: 19 ago. 2022.

                . O pulo do sapo: narrativas, História Oral, Insubordinação e Educação Matemática. In: Vertentes da Subversão na Produção Científica em Educação Matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015c. v. 1, p. 181 – 206.

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                . Sobre historiografia: fragmentos para compor um discurso. REMATEC – Revista de Matemática, Ensino e Cultura (UFRN), v. 8, p. 51 – 65, 2013. Disponível em: http://www.rematec.net.br/index.php/rematec/article/view/411/341. Acesso em: 19 ago. 2022.

GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. 7. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

GOMES, Maria Laura Magalhães. Escrita Autobiográfica e História da Educação Matemática. Bolema, Rio Claro, v. 26, n. 42A, p. 105 – 137, abr 2012. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/2912/291223573007.pdf. Acesso em: 19 ago. 2022.

LARROSA, Jorge. 20 minutos na fila: sobre experiência, relato e subjetividade em Imre Kertész. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 49, p. 717 – 743, ago 2014.

                . Literatura, experiência e formação. In: Caminhos Investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 133 – 160. (Entrevista cedida a Alfredo Veiga-Neto).

LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. p. 423 – 483.

MONDINI, Fabiane; MOCROSKY, Luciane Ferreira; BICUDO, Maria Aparecida Viggiani. A Hermenêutica em Educação Matemática: Compreensões e Possibilidades. REVEMAT, Ed. Filosofia da Educação Matemática, Florianópolis, v. 11, p. 317 – 327, 2016. Disponível em: DOI: https://doi.org/10.5007/1981-1322.2016v11nespp317. Acesso em: 19 ago. 2022.

MORAIS, Marcelo Bezerra de; GARNICA, Antonio Vicente Marafioti. Da duração situada: um estudo sobre historiografia, espaço e Educação Matemática. REVEMAT, Ed. Filosofia da Educação Matemática, Florianópolis, v. 11, p. 77 – 95, 2016. Disponível em: DOI: 10.5007/1981-1322.2016v11nespp77. Acesso em: 19 ago. 2022.

OLIVEIRA, Fábio Donizeti de; ANDRADE, Mirian Maria; SILVA, Tatiane Tais Pereira da. A Hermenêutica de Profundidade: possibilidades em Educação Matemática. ALEXANDRIA – Revista de Educação em Ciência e Tecnologia, v. 6, n. 1, p. 119 – 142, abr 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/alexandria/article/download/37934/28962/0. Acesso em: 19 ago. 2022.

PORTELLI, Alessandro. História Oral: uma relação dialógica. In: História Oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016a. p. 9 – 25.

                . Para além da entrevista: uma etnografia da minha prática. In: História Oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016b. p. 27 – 44.

RAMÍREZ, Hernán. Reflexões sobre fontes orais através da desconstrução do depoimento de Jorge Oscar de Mello Flôres. História Oral, v. 11, n. 1-2, p. 245 – 272, jan/dez 2008. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/332799172_Reflexoes_sobre_fontes_orais_atraves_da_desconstrucao_do_depoimento_de_Jorge_Oscar_de_Mello_Flores. Acesso em: 19 ago. 2022.

SILVA, Heloisa da; SOUZA, Luzia Aparecida de. A história oral na pesquisa em Educação Matemática. Bolema, n. 28, p. 139 – 162, 2007. Disponível em: https://www.periodicos.rc.biblioteca.unesp.br/index.php/bolema/article/view/1535. Acesso em: 19 ago. 2022.

THOMPSON, Paul. A memória e o eu. In: A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 197 – 216.

VEIGA-NETO, Alfredo. Olhares… In: Caminhos Investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 23 – 38.

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. Hoje uma das autoridades mundiais na reflexão e na utilização da História Oral para o registro histórico.

3. Professor de Filosofia da Educação na Universidade de Barcelona.

4. Romancista e ensaísta húngaro de ascendência judaica, sobrevivente dos campos de concentração nazista e prêmio Nobel de Literatura em 2002.

5. Escritor francês.

6. Historiador norte americano conhecido por suas críticas epistemológicas à historiografia.

7. Paul Ricoeur, professor e filósofo francês, nasceu em Valence em 1913 e faleceu em Paris no dia 20 de maio de 2005. Juntamente com Heidegger e Gadamer, estabeleceu uma base até hoje considerada sólida à hermenêutica moderna.

8. John Brookshire Thompson é um sociólogo e professor da Universidade de Cambridge.

[1] Doutor em Educação para a Ciência.

Enviado: Maio, 2022.

Aprovado: Setembro, 2022.

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