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Um olhar franciscano sobre a Laudato Si’ e a vida dos outros

RC: 58870
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

GARCIA, Gilmar Muniz [1]

GARCIA, Gilmar Muniz. Um olhar franciscano sobre a Laudato Si’ e a vida dos outros. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 08, Vol. 11, pp. 132-142. Agosto de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/teologia/olhar-franciscano

RESUMO

O Papa Francisco elevou a discussão ecológica a um novo patamar. Em sua carta encíclica Laudato Si’ trata de uma ecologia integral na qual nos mostra que tudo está interligado, que a Terra, nossa casa comum, não possui mais capacidade de se regenerar garantido a sobrevivência de todas as espécies que vivem sobre ela, sendo urgente e necessário uma nova relação com o ambiente inteiro. Apesar dos avanços propostos na encíclica, há uma lacuna deixada pela Teologia Ecológica, o que, apenas uma Teologia da Libertação Animal é capaz de pensar com profundidade. Buscando superar o especismo, de tal modo que, os animais não humanos, não sejam vistos apenas como os outros seres que estão à serviços do animal humano. O presente artigo busca fazer uma reflexão sobre a relação do homem com os animais não humanos e a nossa casa comum, abrindo caminho para uma nova postura do homem com relação a tudo que existe, alcançando assim, uma verdadeira ecologia integral, esta, guiada pela espiritualidade de São Francisco de Assis.

Palavras-chave: Franciscanismo, Laudato Si, ecologia, animais não humanos.

INTRODUÇÃO

Uma das maiores discussões da atualidade encontra-se entre a Pegada Ecológica e a Biocapacidade do planeta em se regenerar. Essa discussão, no entanto, se mantém exclusivamente em torno da extração dos recursos naturais de nossa casa comum e sua biocapacidade de regeneração. Olhar para a atualidade exclusivamente nesta perspectiva é uma forma simplista de ver e julgar o momento pelo qual estamos passando. Precisamos de um novo paradigma no qual possamos todos – animais humanos, animais não humanos e a terra, nossa casa comum – coexistir pacífica e harmoniosamente, diante de uma nova relação do ser humano para com toda a comunidade de vida (BOFF, 2020).

O Papa Francisco lança novas luzes sobre a questão ecológica a partir da carta encíclica Laudato si’, tirando-a da periferia da doutrina social da igreja, tornando-a um tema central e sistematicamente elaborada (ZAMPIERI, 2016). Isso não quer dizer que outros pontífices não deram importância para a discussão ecológica. Desde os anos 1970 a ecologia vem sendo debatida no meio teológico, pois o ser humano traz consigo o princípio da responsabilidade e deve agir de tal forma que as consequências de sua ação sejam compatíveis com a permanência da vida humana sobre a terra (JONAS, 1980 apud GIBELLINI, 2012).

A ecoteologia exerceu papel importante na discussão para a preservação e construção de um novo comportamento para com o meio ambiente. No entanto, a ecoteologia fez pouco progresso em direção ao debate que distingue meio ambiente e animais não humanos, desconhecendo o drama particular que estes enfrentam e que não é o mesmo do meio ambiente. Ainda se trata, na ecoteologia, os animais como se fossem meio ambiente ou fazendo parte de um ecossistema, desde a perspectiva sistêmica e, no caso das espécies em extinção, vendo os animais mais como parte do todo do que seu suposto direito de vida individual, quando a espécie não está ameaçada, como é o caso dos bilhões de animais da indústria da carne, ovos e leite. Nesse aspecto, a ecoteologia precisa incorporar o que já foi alcançado na discussão no interior do campo ético e jurídico, tanto do pondo de vista do bem-estarismo quanto do valor inerente dos animais, com correspondente direitos a serem garantidos e defendidos.

Susin e Zampieri (2015), ao elaborarem uma teologia da libertação animal, propõem tirar a causa animal da periferia, trazendo-a para o centro da discussão da ecologia integral, mostrando a urgência de uma nova sensibilidade e um novo trato teórico. É preciso, dizem os autores, um novo “olhar e escutar”. Olhar com atenção e sensibilidade e escutar, de tal forma a afinar o ouvido para perceber os sons de alegria e de dor, da realidade da vida dos animais, instigando o surgimento de uma nova sensibilidade, propondo uma reflexão profunda na mística franciscana que chamava a todos irmãos e irmãs (SUSIN; ZAMPIERI, 2015).

Mas, antes de julgar e agir, é fundamental ver com atenção a realidade que nos cerca, tanto do meio ambiente, quanto dos animais.

1. O QUE ESTÁ ACONTECENDO COM A CASA COMUM E COM OS ANIMAIS

A terra é um organismo vivo, que se auto regula e colabora para que todas as formas de vida que repousam sobre ela também sobrevivam. Nós humanos carregamos o princípio da responsabilidade/cuidado para com a terra e para com todos os outros animais não humanos. O problema é que esquecemos de nossa responsabilidade até para com nós mesmos, descuidamos da nossa mãe terra; negamos direitos morais aos animais não humanos não levando em consideração o seu direito à vida, ao corpo e a liberdade e negando direitos morais essenciais que deveriam ser inerentes a qualquer ser vivo (SUSIN; ZAMPIERI, 2015), modificando e interferindo em todas as formas de vida e colocando em risco nossa própria existência.

O Papa Francisco chama atenção para a rapidez na forma de vida que estamos levando, considerando que a biodiversidade não possui a mesma eficiência na sua evolução e regeneração (LS 18); havendo uma consciência das questões ambientais por parte de poucos e um grande desinteresse para com a nossa casa comum por muitos. Outro fator preocupante é a crise do cuidado para com o outro e para com tudo o que existe, esse descuido para com tudo e com todos, levou o animal humano ao ápice do capitalismo, implantando a cultura do descarte até mesmo nas relações humanas; aprendemos a descartar tudo e não buscar consertar nada, relações, amigos, família, objetos, sempre a busca pelo novo. Na realidade, rebaixamos as pessoas e os animais ao status de coisas. A cultura do descarte produz uma quantidade enorme de lixo e o Francisco chama atenção para essa cultura e para a produção de toneladas de resíduos, muitos deles tóxicos e não biodegradáveis fazendo com que a “terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo” (LS 21).

A Encíclica Laudato Si’ reflete o panorama em que a nossa casa comum se encontra atualmente, no entanto, não é somente a terra que clama por socorro. Susin e Zampieri (2015) levantam a reflexão da humanidade para pensar, “pensar a dor e pensar refletir, o clamor da causa da libertação animal”. O Papa Francisco se atém a discutir uma teologia ecológica acerca do aquecimento global, dos dejetos tóxicos e dos pobres que sofrem as consequências do descuido humano, enquanto Susin e Zampieri (2015), nos mostram o grito de socorro dos animais não humanos – os outros da terra –  que, dotados de senciência compartilham conosco o princípio de igual interesse ou seja, de sentir-se bem e não sentir dor e sofrimento.

1.1 A PEGADA ECOLÓGICA E A BIOCAPACIDADE DO PLANETA EM SE REGENERAR

O site norte americano Footprint Network divulga, anualmente, os dados da Pegada Ecológica e também da biocapacidade do planeta de forma sistematizada. Se temos uma pegada que equivale a 1 e a biocapacidade igual, o planeta está se regenerando minimamente. O grande X da questão é que, segundo dados do site, desde 1970 entramos no “cheque especial” da biocapacidade de nossa casa comum, ou seja, a nossa irmã e mãe terra está velha e doente, incapaz de se regenerar de forma a garantir a existência das novas gerações. Para ser mais específico, no ano de 2018 a terra conseguiu produzir biocapacidade apenas até o dia 1 de agosto – dia da sobrecarga – essa é a data em que consumimos mais recursos e serviços ecológicos do que a terra pode regenerar em um ano. A partir dessa data até o dia 31 de dezembro são necessários recursos naturais que não serão regenerados e que se encontram cada vez mais escassos, o que segundo o cálculo da pegada, hoje precisamos de 1,7 planetas terra para sobreviver.

Não podemos continuar consumindo bens e serviços de nossa casa comum de forma predatória e desenfreada ou iremos ao encontro de um cenário que os cientistas reconhecem como catastrófico para a biodiversidade. As nações pouco fazem para controlar ou mudar isso, não são capazes ou não possuem o mínimo interesse em conservar o ambiente inteiro, olham para a pegada ecológica como se seu país não fizesse parte de um todo, como se o que ocorre em um determinado lugar do mundo não interferisse no ecossistema de outra parte do planeta.

Muitos países já se encontram com déficit de biocapacidade, como é o caso de Cingapura 9.890% (nove mil oitocentos e noventa por cento), nesse caso importam biocapacidade em forma de bens e serviços de outros que possuem reserva. O Brasil possui uma reserva de biocapacidade de 188% com relação a pegada ecológica, todos sabemos que nosso país é um agroexportador, neste caso, o que realmente mandamos para fora é nossa biocapacidade já exaurida por outras nações e nem sequer acrescemos aos bens e serviços o valor de investimento para a regeneração de nossa pegada ecológica.

Segundo o site, o Brasil acompanhou a crise mundial de biocapacidade que seguiu a década de 1970, sendo que nesse período a pegada ecológica no Brasil era de 2,4 GHA e a biocapacidade de 17,9 GHA, em 1975 a biocapacidade era de 15,5 GHA e daí caindo vertiginosamente. Parece até coincidência, mas não é justamente na década de 70 foi o período em que o governo incentivou a pecuária na Amazônia que ainda se encontrava quase intacta? Desta forma podemos afirmar que a pecuária é uma das grandes, senão a maior vilã, de nossa perda de biocapacidade, não só pela devastação da floresta, mas também pela quantidade de água e alimento consumido para gerar um quilo de carne.

1.2 OS ANIMAIS NÃO HUMANOS, OS OUTROS QUE SOFREM

A criação de animais para as diversas formas de consumo é um fator determinante da pegada ecológica que exercemos sobre a nossa casa comum. Combater simplesmente o desmatamento e a abertura de campos para pecuária na Amazônia não é tão importante quanto refletir sobre as condições em que vivem os animais não humanos que habitam tais campos após o desmatamento. É necessário agir para que não se avance na degradação dos recursos naturais da nossa casa comum, como também que se dê um basta na forma de tratamento dispensado aos animais não humanos, visto que os mesmos possuem valor em si próprios, não se tratando de mero recurso natural. Os animais não humanos, não são coisas e recursos naturais, mas “são alguém com olhos que nos olham e nos lançam um apelo ético e religioso” (ZAMPIERI, 2016, p. 5).

Como é impossível saber quem são e quantos são os animais não humanos, Susin e Zampieri (2015, pp. 27-28), fazem uma abordagem com referência a todos os animais de forma geral, elencando a situação vivida por eles em cinco campos de concentração: “estimação, entretenimento, instrumentos de pesquisa, utensílio e alimentação”. Cabe salientar, que a relação do homem para com os animais não humanos em todos os casos elencados, é o de propriedade, ou seja, uma relação de objeto, de mercado capitalista. Dentro dessa perspectiva o Papa Francisco chama atenção para a responsabilidade dos seres humanos, para com o descanso dos animais (LS 68), que o poder humano tem limites e não cabe ao homem causar sofrimento e dispor da vida dos animais indiscriminadamente (LS 130), no entanto, trata a questão de forma unilateral, o que Zampieri classifica como uma postura ainda antropocêntrica da carta encíclica, mesmo que em um antropocentrismo responsável (2016).

Para Zampieri (2016, p. 9) é “indescritível e até inimaginável o sofrimento silencioso e anônimo por que passam os animais tratados como objetos, reduzidos a algo”, não sendo reconhecidos como alguém dotado de vontade, que interage com o meio e que possui valor em si; pois se é algo, é um objeto e objeto não dispõe de dignidade própria, sendo “permitindo moralmente” aos seus proprietários privá-los de sua vida, de seu corpo e de sua liberdade. É urgente e necessário um novo olhar para com nós mesmos, para com a natureza e principalmente com os animais não humanos. No entanto, para desenvolver esse novo olhar, deveria ser abandonado o modelo antropocêntrico e adotado um modelo biocêntrico diferenciado (ZAMPIERI, 2016) ou de forma mais inclusiva e correta, a adoção de um antropocentrismo ordenado, no sentido de que o homem seja um administrador responsável e cuidadoso para com todos (ZAMPIERI, 2016). Somente assim poderemos compreender, respeitar e preservar todas as formas de vida reconhecendo nos animais não humanos um valor em si mesmos por serem sujeitos de uma vida, dotados de vontade própria e com dignidade que lhes é inerente.

2. O QUE HÁ DE FRANCISCANO NA LAUDATO SÍ’  E NA VIDA DOS OUTROS

Há uma vasta bibliografia narrando o cuidado que São Francisco tinha para com tudo o que existe. A mística do cuidado serviu de inspiração para muitos movimentos de sua época e também contemporâneos a nós, entre estes, a Ecologia Integral, da Laudato Si´, totalmente ligada à mística de São Francisco de Assis, que louvava a Deus por meio de todas as suas criaturas, o que se demonstra no Cântico das Criaturas (FF 104).

Frei Tomás de Celano, descreve a mística do cuidado para com tudo o que existe, desde o cuidado para com todos, especialmente os leprosos, “servindo com o maior cuidado a todos por amor de Deus” (1 Cel 7, 17) até no abandono da vida secular, realizando uma aliança com a pobreza, em uma vida de humildade e amor fraterno com que tratava todos os seus irmãos (1 Cel 15, 38). Celano nos mostra a compaixão de Francisco por todas as criaturas, ao pregar para as aves, ao acolher e proteger a lebre que havia sido capturada em uma armadilha, assim como foi movido por compaixão, zelo e cuidado para com os peixes, os abençoando, soltando e “ordenando que se precavessem para não serem capturados de novo” (1 Cel 21, 58-61); até mesmo com as minhocas São Francisco tinha cuidado, as tirava do caminho para que não fossem pisoteadas e para com as abelhas, lhes servindo mel ou bom vinho no inverno para que não morressem no rigor do frio (1 Cel 29, 80).

Para o Papa Francisco, São Francisco de Assis é o grande modelo de excelência pelo cuidado para com tudo o que é frágil e para com a uma ecologia integral, sendo clara a sua preocupação para com os pobres, a paz interior e a natureza (LS 10).

Susin e Zampieri (2015), por sua vez, reconhecem que São Francisco foi o exemplo de não apropriação e modelo de fraternidade universal. Não se apropriar é deixar as coisas, os animais e as pessoas serem o que são, sem serem para mim, enquanto seu dono e proprietário. Na relação de propriedade, as coisas, os animais e as pessoas são na medida da sua relação com o proprietário que lhe determina, desde fora, o seu destino, função e seu ser.

2.1 MODELO DE CUIDADO E A SOBRIEDADE FELIZ

Para o Papa Francisco, São Francisco de Assis é um modelo a ser seguido, considerando-o “exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade” (LS 10). Seu testemunho mostra sua preocupação para com a natureza, intuindo que todas as criaturas de Deus, eram suas irmãs, e “sentia-se chamado para cuidar de tudo o que existe” (LS 11). Para compreender a intuição de São Francisco é necessário abrir o coração para o mundo e lançar um novo olhar sobre toda a obra do criador, não com um olhar de dominação[2], mas com um sentimento de igualdade e de responsabilidade para com o outro.

Na ecologia integral, deve-se incluir tudo o que existe, tanto material quanto imaterial, visto que tudo está conectado e as esferas de influência de um determinado fator, são forças de ação e consequência para outros fatores. Será necessário buscar um novo modelo para a nossa sociedade, que é fruto da cultura do descartável e artificial, tornando-se uma obrigação discutir e reavaliar nosso modo de produção e consumo, sob o aspecto de que somos irmãos universais de todas as formas de vida, tanto no aspecto biológico quanto espiritual (LS 137-8).

Cada criatura por mais insignificante que pareça tem seu papel no ambiente inteiro, se relacionando entre si, mesmo que de forma silenciosa e invisível. Nós, por sermos seres de cultura não podemos nos enxergar de forma separada dos outros – meio ambiente e animais não humanos – mas incluídos no conjunto de ecossistemas. Nós pertencemos à natureza e não o contrário, sendo que a natureza nos presta inúmeros serviços que nem sequer os agradecemos (LS 139-140).

É necessário transpor a consciência da crise ecológica e social em novos hábitos, não sendo suficiente apenas ter conhecimento da situação em que se encontra nossa casa comum, e mesmo assim continuar consumindo tudo o que o mercado nos oferece (LS 209). Não é suficiente apenas informar, como fez por muito tempo a educação ambiental, nem tão somente fazer uma crítica bem sistematizada se não há uma conversão no modo de ser e agir, pois, além de ser nobre o dever de cuidar de toda a criação (LS 210-211), é uma questão de ética.

O Papa nos instiga a buscar uma relação harmoniosa com o ambiente inteiro, reconhecendo nossos erros, pecados, e arrepender-se de coração para mudar a partir de dentro (LS 218). Mudar a nós mesmos é o primeiro passo, no entanto é preciso agir no consciente coletivo de nossa sociedade, o que segundo Francisco, o papa, implica em várias atitudes: a) gratidão e gratuidade, de tal modo que devemos compreender o mundo como um dom recebido do pai, e em consequência disso, provocar ações de renúncia e gestos generosos, mesmo que ninguém os veja ou agradeça; b) consciência amorosa de não estar separado das demais criaturas, mas em uma comunhão universal (LS 220).

A espiritualidade cristã propõe uma forma de vida capaz de proporcionar alegria sem estar obcecado pelo consumo, em um crescimento na sobriedade e na capacidade de se alegrar com o que é necessário[3]. “É um regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos, nem entristecermos por aquilo que não possuímos” (LS 222).

Não é fácil desenvolver a humildade e uma sobriedade feliz, se excluirmos Deus de nossas vidas fazendo o nosso eu ocupar o seu lugar (LS 224). De tal modo que ninguém pode amadurecer em uma sobriedade feliz se não estiver em paz consigo mesmo, pois a paz interior das pessoas tem muito a ver com a ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida, reflete-se num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida (LS 225).

2.2 A NÃO APROPRIAÇÃO COMO MODELO DE FRATERNIDADE UNIVERSAL

Antes mesmo de São Francisco, em Israel na era axial (900 a 200 a. C.), os profetas buscavam o fim do sacrifício de animais não humanos, propondo como alternativa ao sacrifício de sangue, a convivência mútua entre animais humanos e não humanos (SUSIN; ZAMPIERI, 2015). Assim como se moviam de compaixão para todos os “outros”, tais como mulheres, estrangeiros e pobres, em busca de uma ética sem fronteiras e uma compaixão sem medidas (SUSIN; ZAMPIERI, 2015). As narrativas bíblicas da criação apontam para uma tríplice comunhão entre humanos, animais não humanos e meio ambiente, sendo o pecado responsável por quebrar essa aliança e tornar o homem o algoz de toda criação (ZAMPIERI, 2016).

Susin e Zampieri (2015) realizam uma profunda reflexão sobre o Gênesis 1,26 e 1,28, com relação a hermenêutica até então realizada pelos humanos sobre o reinar e dominar, que foram intencionalmente interpretadas pelo homem de modo a colocar todo restante da comunidade de vida, inclusive a mulher e outros humanos em situação de desvantagem e propriedade. A hermenêutica do texto deve ser realizada por meio de uma análise do contexto histórico em que o mesmo foi produzido. Em Israel o rei não tinha um poder absoluto sobre o povo e somente na responsabilidade de bem governar para com todos é que o homem pode ser considerado a imagem e semelhança de Deus (SUSIN; ZAMPIERI, 2015). Ao pensarmos o princípio do cuidado para com o outro, também devemos pensar em como o homem deve proceder para desempenhar esse carisma franciscano, sendo que “uma vez criado, o humano é colocado na terra para cultivar e cuidar do jardim” (SUSIN; ZAMPIERI, 2015, p. 202). Cuidar e cultivar, é dar as devidas condições para que a vida se desenvolva, é estar ao lado, vivendo como irmãos universais. Não basta só cultivar, é preciso cuidar do jardim. A lógica do mercado supõe mais o produzir do que o cuidar e preservar. Nesse aspecto a espiritualidade bíblica e franciscana se opõe à lógica do mercado. São Francisco entendia bem o que é deixar livre e cuidar, pois não tomava como seu nem mesmo objetos, tudo era de uso comum e não se podia prover da vida de outra criatura como bem entendesse. Francisco os nomeava irmãos e irmãs, sendo que, nomear é trazer para dentro da vida cotidiana e moral, aquele que se encontra “selvagem”, do lado de fora, visto que domesticar é criar laços, não adestrar e servir-se destes, é criar uma aliança de vida e de reciprocidade, considerando a responsabilidade humana de cuidar de toda a criação (SUSIN; ZAMPIERI, 2015).

Entender que nada é de nossa propriedade, que os animais não humanos têm valor em si mesmos, essa é essência da fraternidade universal que São Francisco alcançou, mesmo que de forma radical, primeiro libertando-se a si mesmo das amarras seculares da vida, para então poder levar a mesma liberdade de espírito e carne para todos os seus irmãos (SUSIN; ZAMPIERI, 2015). Ter consciência do valor que a vida animal possui, é compreender que os animais não humanos são seres de convivência, que participam da biodiversidade, assim como as flores e os bosques, estando reunidos numa comunidade de vida. Ter esta compreensão da vida animal é entender a narrativa bíblica (SUNSIN; ZAMPIERI, 2015).

São Francisco na Regra não bulada, ordena que de modo algum, clérigos e leigos, “tenham qualquer animal nem consigo nem com outrem nem de qualquer maneira. Nem lhe seja permitido andar a cavalo, a não ser que sejam premidos pela enfermidade ou por grande necessidade” (RnB XV). Susin e Zampieri (2015) reafirmam tal posicionamento completando que o desejo do santo era de uma total renúncia da posse e do uso indiscriminado de animais. Permitir que os animais vivam de forma livre, usufruindo de seu pleno desejo de bem viver, seria uma mudança radical em nossa cultura tão acostumada a privá-los de todos os seus direitos, sobretudo na indústria de alimentos, vestimentas e divertimento. Há uma conversão ecológica e conversão animal a ser feita se quisermos continuar merecendo o nome de franciscanos ou inspirados por ele.

CONCLUSÃO

São muitos os expoentes em defesa do meio ambiente, no entanto poucos de uma ecologia integral, ou seja, do ambiente inteiro. A ecologia integral implica em um princípio de cuidado para com tudo o que existe, iniciando pelo cuidado para com o outro, nessa perspectiva o nosso outro mais próximo são os animais não humanos, sendo insuficiente tratar de ecologia sem ao menos refletir e buscar constituir uma nova postura em relação aos animais não humanos. Tratar o meio ambiente e principalmente os animais não humanos de uma outra forma, que não a lógica do mercado, seria uma grande mudança na estrutura de nossa cultura e pensamento. Ou fazemos essa mudança, ou corremos o risco de sermos amaldiçoados por nossas gerações futuras, pois não restará mais meio ambiente e nem vida animal, pois nossa casa comum encontra-se devastada, inúmeros animais já foram extintos, tantos outros em extinção, sendo que a grande maioria dos animais apenas vivem para a morte.

É urgente e necessário tratar o outro com cuidado, com um olhar da espiritualidade, do sentir Deus no outro como o sentimos em nós. Assim fazia São Francisco de Assis, que louvava todas as criaturas como sacramentos de Deus, pois dentro deles, escondido, está Deus dizendo faça-se e dentro de cada ser Deus está nascendo, o pai está gerando o filho, pela força do espírito santo, pois cada ser – animal humano ou animal não humano –  é um templo de Deus (1 Cor 3, 16-17). Deus está dentro de cada ser e não cabe a um ser usufruir do outro como meio para um fim, pois a única diferença entre o humano e o animal não humano é o compromisso do cuidado para com o outro, o que implica na responsabilidade de suas ações, pois o animal não humano não tem responsabilidade por suas ações, é apenas vida que deseja continuar vivendo, que merece ser cuidada, que tem direito a um olhar diferente do qual ocorre hoje.

O que São Francisco de Assis intuía em sua mística há 800 anos, chamando a todos de irmãos e irmãs universais, nós chamamos hoje por conhecimento biológico, pois todas as formas de vida são compostas de 20 aminoácidos e de 4 bases fosfatadas, sendo esses os elementos essenciais para a vida, o que diferencia uma criatura da outra é a combinação desses aminoácidos com as bases fosfatadas, isso é o que dá as características de individualidade de cada espécie (BOFF, 2019, online). É urgente uma nova postura para com os animais não humanos, nossos irmãos, mas também para com a terra que é a nossa mãe e irmã, tratando ambos com amor, com zelo e cuidado.

REFERÊNCIAS

BÍBLIA DE JERUSALÉM. 11 impressão. São Paulo: Paulus, 2016.

BOFF, Leonardo. Onde está o nó da questão ecológica (I)?. Disponível em: <https://goo.gl/K1fxcn> Acesso em: 14 de janeiro de 2020.

_____________. La flecha e la evolución no es el ser humano sino la vida. Disponível em: < https://goo.gl/keXkLP > Acesso em: 25 de novembro de 2019.

Fontes Franciscanas e Clarianas. 3ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

FRANCISCO, Papa. Laudato Si´: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

FOOTPRINT NETWORK. Plataforma de dados abertos. Disponível em: <http://data.footprintnetwork.org/#/> Acesso em: 25 de novembro de 2019.

GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

SUSIN, Luiz Carlos; ZAMPIERI, Gilmar. A Vida dos Outros: Ética e Teologia da Libertação Animal. São Paulo: Paulinas, 2015.

ZAMPIERI, Gilmar. A Encíclica Laudato Si’ e os animais. Cadernos teologia pública. UNISINOS, Ano XIII, Vol. 13, n, 110, p. 2-17, 2016. Disponível em: <https://goo.gl/NdEtsM> Acesso em: 11 de dezembro de 2019.

APÊNDICE – REFERÊNCIAS DE NOTA DE RODAPÉ

2. Reforço a ideia da má interpretação de Gênesis, onde se entende “dominar” como subjugar a criação e não como um princípio de responsabilidade, pois aquele que foi criado a semelhança de Deus traz consigo tal compromisso.

3. Papa Francisco usa a palavra pouco. A felicidade pode ser com o que é estritamente necessário, com o que é essencial para uma qualidade de vida que esteja ao alcance de todos e não um padrão de vida que só pode ser alcançado por alguns.

[1] Pós-Graduado em Espiritualidade Franciscana pela Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – ESTEF, Pós-graduado em Docência no Ensino Superior pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI, Graduado em História pela Universidade de Passo Fundo – UPF.

Enviado: Maio, 2020.

Aprovado: Agosto, 2020.

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Gilmar Muniz Garcia

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