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Recusa injustificada à vacinação contra a COVID-19 e a extinção do contrato de trabalho

RC: 110360
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/saude/recusa-injustificada

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SOUSA, Isabelle Cristina Mesquita Bitar de [1]

SOUSA, Isabelle Cristina Mesquita Bitar de. Recusa injustificada à vacinação contra a COVID-19 e a extinção do contrato de trabalho. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 04, Vol. 03, pp. 136-156. Abril de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/saude/recusa-injustificada, DOI : 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/saude/recusa-injustificada

RESUMO

As relações trabalhistas no Brasil vêm enfrentando uma crise de solução normativa quanto à licitude ou ilicitude da dispensa do empregado que se recusa injustificadamente a vacinar-se contra a COVID-19. De um lado, há atos legislativos (Leis e Portarias) conflitantes quanto ao assunto e, de outro, decisões da Justiça do Trabalho que divergem sobre a correta disciplina da situação. Nesse contexto, o presente estudo se norteia pelo problema do adequado tratamento jurídico-trabalhista da recalcitrância injustificada do empregado à vacinação, levantando a seguinte indagação: a recusa injustificada à imunização contra a COVID-19 se amolda a alguma hipótese prevista na legislação trabalhista como idônea a ensejar a demissão por justa causa do empregado? O objetivo geral deste estudo é examinar os parâmetros normativos aplicáveis a esse problema e estabelecer o adequado enquadramento dogmático da controvérsia. Metodologicamente, este ensaio consiste em uma pesquisa qualitativa e explicativa, valendo-se da revisão bibliográfica e do estudo de documentos (normas jurídicas e decisões judiciais existentes sobre o tema) para encontrar as proposições mais pertinentes ao problema de pesquisa apresentado. A principal conclusão deste estudo é a de que a recusa injustificada do empregado à sua vacinação constitui hipótese de rescisão por justa causa do contrato de trabalho por indisciplina, tendo em vista a violação do dever de observar e colaborar para a saúde e segurança no ambiente de trabalho, enquadrando-se tecnicamente na hipótese do art. 482, inciso “h”, da CLT.

Palavras-chave: Contrato de Trabalho; Extinção; Empregado; Recusa; Vacinação.

1. INTRODUÇÃO

O mundo vem passando, desde o final de 2019, por profundas alterações nas dinâmicas sociais, tendo em vista o surgimento da Pandemia da COVID-19, a qual impôs, até como forma de sobrevivência e diminuição dos impactos sociais e econômicos do vírus, a adoção de medidas como o isolamento e distanciamento social, utilização de máscaras e outras práticas de higiene e, do que é mais importante para o presente estudo, políticas públicas de vacinação.

Depois da superveniência no Brasil de, pelo menos, 03 (três) ondas de contaminação em massa, já é possível perceber que a vacinação constitui, hoje, a principal política de enfrentamento do vírus e suas variantes.

Com efeito, segundo dados do Ministério da Saúde (BRASIL, 2022), o Brasil conta com 29.350.134 casos confirmados e 654.945 óbitos confirmados pelo novo coronavírus. Desse acumulado, contudo, percebe-se que, embora na história brasileira a data de notificação com mais casos confirmados tenha sido 03 de fevereiro de 2022, com 298.408 casos; nessa mesma data houve 1.041 óbitos notificados por COVID-19, número bastante inferior ao pico do histórico, que foi 08 de abril de 2021, com 4.249 óbitos, quando paralelamente houve apenas 86.652 novos casos confirmados.

Esses dados históricos, uma vez associados com os dados de evolução da vacinação no Brasil também do Ministério da Saúde (BRASIL, 2022), mostram que a vacinação é a grande responsável pela derrubada dos óbitos por COVID-19 no Brasil, ainda que os novos casos de contaminação tenham aumentado vertiginosamente.

Essa relevância da vacinação, outrossim, também impacta as relações de trabalho. Atualmente, verifica-se verdadeira controvérsia a respeito de se a recusa injustificada à vacinação constitui ou não evento apto a deflagrar uma demissão por justa causa, bem como, em caso afirmativo, qual seria o correto enquadramento da situação nas hipóteses de rescisão previstas na legislação trabalhista.

O debate é relevante e conta, hoje, não apenas com atos legislativos divergentes sobre o tema, como também com decisões conflitantes em diversas esferas da Justiça do Trabalho, o que exibe a proeminência do tema para a atualidade.

Assim, o presente estudo orbita em torno do problema da caracterização (ou não) da recusa injustificada à vacinação contra a COVID-19 como hipótese tipificada de rescisão do contrato de trabalho por justa causa, assim como da correta subsunção do fato às hipóteses previstas na lei. Posto de outra forma, o problema de pesquisa deste estudo se traduz na seguinte indagação: a recusa injustificada à imunização contra a COVID-19 se amolda a alguma hipótese prevista na legislação trabalhista como idônea a ensejar a demissão por justa causa do empregado?

O presente trabalho tem o objetivo geral de examinar os parâmetros normativos aplicáveis à hipótese de recusa do empregado à sua vacinação contra a COVID-19, buscando estabelecer o adequado enquadramento dogmático da matéria.

Como uma pesquisa qualitativa e explicativa, este estudo se desenvolverá por meio do método dedutivo, buscando examinar as normas jurídicas gerais e abstratas para erigir proposições sobre o caso específico da recalcitrância do empregado à sua vacinação contra a COVID-19.

Para tanto, será realizada a revisão bibliográfica dos conceitos jurídicos inerentes à rescisão do contrato de trabalho, assim como o estudo de documentos, tais como a Consolidação das Leis do Trabalho, Normas Regulamentadoras e decisões judiciais da Justiça do Trabalho.

Eis a metodologia que guiará o presente estudo, com o objetivo de viabilizar conclusões qualitativas que contribuam para o desenvolvimento do tema e para a própria resolução do problema de pesquisa.

2. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Como visto, o presente estudo tem por escopo analisar a (i)licitude e o regime jurídico da demissão do empregado que se recusa injustificadamente à vacinação.

Antes de abordar o tema, convém pontuar que duas premissas guiarão as proposições deste ensaio, as quais, contudo, não obstante relevantes, não serão objeto de maiores incursões e exame, por escaparem ao objeto estrito de estudo e reclamarem análises próprias.

A primeira é a de que a vacinação, no ordenamento jurídico brasileiro, é obrigatória como política pública de enfrentamento à COVID-19, podendo ser, inclusive, imposta compulsoriamente pelo Estado à população, desde que mediante medidas coercitivas indiretas não violentas, tais como a imposição de multas e restrição de acesso a determinados estabelecimentos.

De um lado, essa premissa decorre da previsão do art. 3º, inciso III, alínea “d”, da Lei nº 13.979/2020 (BRASIL, 2020), o qual previu, para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, a possibilidade de as autoridades adotarem a medida de “determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas”.

Essa previsão foi ratificada pela Lei nº 14.124/2021 (BRASIL, 2021), cujo art. 13 instituiu o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, elaborado, atualizado e coordenado pelo Ministério da Saúde (2022), o qual, por sua vez, prevê a obrigatoriedade da vacinação como regra, exceto para crianças de 05 a 11 anos de idade e outros casos médicos.

Ademais, o caráter compulsório da vacinação foi considerado constitucional pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (2020) no julgamento conjunto, em 17 de dezembro de 2020, das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.586/DF e 6.587/DF e do Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.267.879/SP (com repercussão geral reconhecida), oportunidade em que foram fixadas as seguintes teses:

É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar.[2]

(I) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, porquanto facultada sempre a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e (i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, (ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, (iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas, (iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade e (v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente; e (II) tais medidas, com as limitações acima expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência.[3]

À luz dessas considerações, conclui-se que a vacinação é obrigatória e constitui estratégia nacional de imunização, a qual, por satisfazer interesses coletivos, se sobrepõe a interesses particulares.

A segunda premissa é a de que a recusa individual à vacinação, seja por motivos filosóficos, políticos, religiosos ou afins, está inserida no âmbito da liberdade de consciência, a qual é reconhecida como direito fundamental pela Constituição da República (BRASIL, 1988), conforme art. 5º, incisos VI e VIII[4].

Como direito fundamental, contudo, o direito à liberdade de consciência não é absoluto, balanceando-se, para os fins deste estudo, com os também direitos fundamentais à vida, previsto no art. 5º, caput (BRASIL, 1988); à saúde, previsto nos arts. 6º[5] e 196[6] (BRASIL, 1988); e à preservação da saúde, higiene e segurança no ambiente de trabalho, previsto no art. 7º, inciso XXII[7] (BRASIL, 1988).

Assim, sem querer emergir nas nuances normativas desses direitos fundamentais, o que fugiria dos limites deste estudo; a recusa à vacinação exclusivamente por motivos filosóficos, políticos, religiosos, enfim, no exercício da liberdade de consciência; sem qualquer justificativa médico-científica que impeça ou de alguma forma não recomende a vacinação para determinada pessoa, o que obviamente somente será possível aferir no caso concreto; será considerada uma recusa injustificada para fins trabalhistas, tendo em vista a necessidade de preservação e promoção da vida, saúde e segurança no ambiente de trabalho, direitos esses que, por tutelar interesses coletivos, têm primazia diante do direito individual de liberdade de consciência.

3. REGIME JURÍDICO GERAL DA RESCISÃO POR JUSTA CAUSA

No Direito brasileiro, vige a regra jurídica básica de que o contrato de trabalho pode ser extinto por consenso entre as partes, hipótese denominada “resilição bilateral”; ou por iniciativa individual de uma das partes, hipótese denominada “resilição unilateral” (MARTINEZ, 2020, p. 1157).

A resilição unilateral por iniciativa do empregador, por sua vez, pode ocorrer sem justa causa, hipótese em que serão devidas ao empregado as verbas rescisórias correspondentes ao aviso prévio, saldo de salário, 13º salário proporcional, férias vencidas ou proporcionais e depósitos e multa de 40% do FGTS (LEITE, 2020, p. 1123); ou por justa causa, hipótese em que serão devidas ao empregado apenas as verbas referentes a saldo de salários e férias vencidas (LEITE, 2020, p. 1127-1128).

Considerando essa distinção entre os reflexos patrimoniais advindos da rescisão do contrato de trabalho sem justa causa e por justa causa, saber se a recusa injustificada à vacinação se enquadra em uma ou outra categoria é questão das mais relevantes.

Essa definição é ainda mais pertinente para as hipóteses de contratos de trabalho por prazo indeterminado, vale dizer, “o que se realiza sem fixação prévia de sua duração” (LEITE, 2020, p. 817); uma vez que sua dissolução se dá sempre de maneira anormal, isto é, por causas não previstas no ato da contratação e, portanto, supervenientes a ela.

Sem desconsiderar as demais causas possíveis, como o acordo entre as partes, o desaparecimento dos sujeitos (morte do empregado, morte do empregador ou extinção da empresa), a ocorrência de força maior (incêndio, enchente etc.) e a iniciativa do empregado (demissão, rescisão indireta e aposentadoria), para este estudo convém explorar com maior vagar as hipóteses de dispensa com justa causa.

A dispensa por justa causa do empregado consiste na extinção do contrato de trabalho por iniciativa do empregador e em razão da quebra da confiança ou da execução faltosa do contrato, isto é, quando o empregado pratica um ato grave; alguma conduta tida como ilícita que viole, implícita ou explicitamente, determinada obrigação legal ou contratual (MARTINEZ, 2020, p. 1218-1219).

Conforme ensina DELGADO (2019, p. 821-822), dois são os principais sistemas que regulam a justa causa, quais sejam, o genérico e o taxativo. No primeiro, não há especificação das hipóteses ensejadoras da justa causa, prevendo o legislador apenas uma regra geral e abstrata, o que acaba por potencializar situações de arbitrariedades. Já o sistema taxativo pressupõe que as hipóteses de justa causa sejam tipificadas em Lei, somente admitindo-se tal espécie de rescisão quando o empregado incorrer em alguma das hipóteses enumeradas.

Ainda que existam, excepcionalmente, hipóteses de casuísmos da justa causa previstas em artigos e leis destinadas a categorias específicas de trabalhadores[8], o Brasil adota o sistema taxativo para a sua configuração, pois entende a doutrina majoritária (DELGADO, 2019, p. 822) que o legislador teve a intenção de esgotar suas possibilidades quando arrolou no art. 482 da CLT as situações que ensejam a dispensa por justa causa pelo empregador.

Vale ressaltar que, para a justa causa se aperfeiçoar, além da conduta do empregado estar enquadrada em uma das suposições elencadas no artigo mencionado, é imprescindível que a sua aplicação esteja informada por certos requisitos essenciais à sua efetiva configuração. Esses requisitos, no ensinamento de Delgado (2019, p. 1423), são descritos como elementos subjetivos, objetivos e circunstanciais:

Objetivos são os requisitos que concernem à caracterização da conduta obreira que se pretende censurar; subjetivos, os que concernem ao envolvimento (ou não) do trabalhador na respectiva conduta; circunstanciais, os requisitos que dizem respeito à atuação disciplinar do empregador em face da falta e do obreiro envolvidos.

Como elemento subjetivo figura a culpa ou dolo do empregado, pois o aperfeiçoamento da justa causa depende necessariamente de que a ação do empregado seja intencional (com dolo), ou tenha, pelo menos, agido com culpa, ou seja, com negligência, imperícia ou imprudência (DELGADO, 2019, p. 1425).

Já os elementos objetivos contemplam a gravidade do comportamento do empregado (DELGADO, 2019, p. 1424), que deve ser capaz de produzir prejuízo objetivo ao empregador, quebrando a sua confiança.

Para prosperar a justa causa é necessário, também, que haja nexo causal (DELGADO, 2019, p. 1426). Isso significa dizer que a dispensa do empregado deve ser resultado de uma conduta imediata (relação de causa e efeito), uma vez que a aplicação da justa causa não pode aproveitar a falta recém cometida para englobar uma infração cometida em data pretérita.

A imediatidade na aplicação da justa causa também é vital (DELGADO, 2019, p. 1426), devendo o empregador adotar providência assim que tomar conhecimento da ação ou omissão do obreiro, visto que, agindo assim, não haverá falar-se em perdão tácito. Nesse sentido, valiosos são os ensinamentos de Carlos Henrique Bezerra Leite (2020, p. 531-532):

Falta praticada pelo empregado e não punida pelo empregador é falta perdoada. Assim, se o empregador, ciente da falta cometida pelo empregado, deixar de exercer o seu poder disciplinar, aplicando a penalidade correspondente, haverá presunção de que a falta foi perdoada, caracterizando o perdão tácito. (…). A sanção disciplinar deve guardar imediatidade com a falta perpetrada, uma vez que o retardamento na aplicação da pena autoriza presunção de renúncia patronal ao direito de impor sanção. Tal presunção, entretanto, somente deve ser levada em conta a partir do momento em que o empregador toma ciência da falta cometida pelo obreiro.

A singularidade é outro requisito que deve ser observado (DELGADO, 2019, p. 1426), que significa a impossibilidade da aplicação de uma punição dupla ao obreiro pelo mesmo ato (non bis in idem), ou seja, uma vez imputada uma punição ao empregado, não será permitido ao empregador aplicar outra punição pela mesma falta, tampouco substituir a primeira por uma mais severa.

E, por fim, o requisito considerado mais importante por grande parte da doutrina: a proporcionalidade (DELGADO, 2019, p. 1426). Essa condição assevera que a penalidade atribuída ao empregado deve ser proporcional à falta cometida, então, a aplicação de advertência, suspensão ou justa causa tem que ser proporcional à ação ou omissão do obreiro, sob pena de ser considerada nula. Consoante ensina Carlos Henrique Bezerra Leite (2020, p. 524):

A punição deverá ser proporcional à falta cometida, não podendo o juiz dosar a pena pelo empregador. Vale dizer, o órgão julgador restringe-se a declarar a nulidade ou não da pena aplicada, não podendo, por exemplo, converter uma justa causa em suspensão, ou vice-versa. Dessa forma, o juiz examina se a pena aplicada pelo empregador foi proporcional ou não à falta cometida pelo empregado.

Estabelecidos os requisitos gerais e essenciais para a configuração da justa causa, deve-se advertir que a despedida do empregado sem a incidência de uma das hipóteses previstas no art. 482 da CLT e sem que concorram os requisitos informadores da sua aplicação, importa na configuração da injustiça na despedida do empregado. Como ensina João de Lima Teixeira Filho (apud SÜSSEKIND, 2005, p. 641) a despedida injusta é exatamente “aquela motivada por uma falta imputada ao trabalhador (art. 482 da CLT), mas improvada judicialmente”.

Enfim, apresentado o regime jurídico geral da rescisão por justa causa do contrato de trabalho, cumpre investigar se a recusa injustificada à vacinação se amolda ou não a alguma hipótese do art. 482 da CLT.

4. AS ALÍNEAS “B” E “H” DO ART. 482 DA CLT

A partir de uma aproximação sintático-semântica das hipóteses arroladas pela Consolidação das Leis do Trabalho, duas são as alíneas que, em uma leitura mais perfunctória, poderiam levar o intérprete a cogitar de possível enquadramento da recusa injustificada à vacinação. São eles a alínea “b”, que prevê a “incontinência de conduta ou mau procedimento” e a alínea “h”, que prevê o “ato de indisciplina ou de insubordinação” (BRASIL, 1943).

De um lado, entende a doutrina que a incontinência de conduta está ligada ao desregramento do empregado na sua vida sexual (DELGADO, 2019, p. 1431; LEITE, 2020, p. 1129). Enquadra-se o obreiro nesta hipótese quando se comporta de forma incompatível com a moral sexual, gerando incômodo e constrangimento no ambiente de trabalho.

Logo, recai nesta situação o empregado que, olvidando-se da moralidade-média, bons costumes e especialmente da harmonia indispensável no ambiente de trabalho, prática contra o empregador, seus colegas de trabalho e clientes da empresa obscenidades, assédio sexual, pornografias etc.

Já o mau procedimento consiste na situação mais abrangente do art. 482 da CLT (BRASIL, 1943)[9], pois qualquer ato faltoso do empregado que afete o bom ambiente de trabalho e não esteja presente nas demais hipóteses do dispositivo pode enquadrar-se no mau procedimento. Como ensina Luciano Martinez (2020, p. 1221):

O “mau procedimento” é uma ação que abarca uma pletora de práticas negativas, constituindo um evidente conceito jurídico indeterminado. Para argumentar que um empregado teve um “mau procedimento” o empregador deverá não apenas sustentar a ocorrência do tipo previsto na segunda parte do art. 482, b, da CLT, mas também, indispensavelmente, apresentar detalhamentos da conduta comissiva ou omissa do operário, contrária à legalidade ou aos bons costumes. Afirma-se isso porque todos os comportamentos previstos no art. 482 podem, em rigor, ingressar no figurino do “mau procedimento”. Assim, o “mau procedimento” pode ser conceituado como a conduta ilegal ou imoral, não contemplada em outras graves faltas trabalhistas, capaz de produzir prejuízos ou desconfortos para o empregador ou para terceiros com os quais este mantém relações jurídicas.

Segundo o Superior Tribunal do Trabalho, o mau procedimento se traduz em um “comportamento displicente” (BRASIL, 2021), ou “ato injurioso grave” em relação a um cliente (BRASIL, 2020), sobretudo quando a conduta prejudica a reputação ou causa prejuízo à empresa.

Assim, qualquer procedimento incorreto do obreiro, como o tráfico ou o uso de drogas em local de trabalho, o uso ou o empréstimo do veículo da empresa em dia de folga, ou o reiterado descumprimento do regulamento interno da empresa poderá ensejar justa causa.

Importante destacar que as duas hipóteses legais, embora reunidas em uma mesma alínea, não se confundem, tendo em vista que a incontinência está sempre ligada a um ato de natureza sexual, enquanto o mau procedimento é uma atitude incorreta do empregado.

Por outro lado, a indisciplina e a insubordinação constituem uma violação ao dever de obediência, sendo a primeira a desobediência de ordens gerais de serviço e a segunda a desobediência de ordens específicas.

Em definição mais esclarecedora (LEITE, 2020, p. 1142-1143), entende-se por indisciplina o descumprimento pelo empregado de normas de caráter geral estabelecidas pelo empregador, a fim de regulamentar as atividades e funções exercidas na empresa. Essas normas de ordem geral devem estar expressamente contidas no regulamento da empresa, circulares, portarias, ordens de serviço e sempre tornado público seu conteúdo para que tais regras de conduta dentro da empresa sejam cumpridas por todos que ali trabalham, evitando-se, assim, a alegação de desconhecimento das proibições ou obrigações ditadas pelo empregador.

A insubordinação, por sua vez, configura-se quando o empregado se omite deliberadamente no cumprimento de uma ordem específica dada pelo empregador (DELGADO, 2019, p. 1436).

Neste caso, não se trata de inobservância de ordens gerais, mas de desobediência a ordens pessoais de serviço, ou seja, comandos determinados pelo empregador ou superior hierárquico a um empregado específico, sobre uma obrigação igualmente específica.

Analisando os tipos jurídicos da alínea “h” do art. 482 da CLT, benemérita acolhida a lição de Luciano Martinez (2020, p. 1228):

A indisciplina é uma falta caracterizada pelo descumprimento de regras gerais produzidas pelo poder organizacional do empregador. Nessa espécie de violação o empregado não afronta o chefe ou superior hierárquico, mas sim um comando abstrato. A insubordinação, por sua vez, é falta caracterizada pelo descumprimento de um comando específico, egresso diretamente de um superior hierárquico.

Também Carlos Henrique Bezerra Leite distingue os institutos examinados como sendo, o ato de indisciplina, o “descumprimento de ordens gerais de serviço, contidas em portarias, códigos de ética, instruções gerais da empresa, regulamentos etc.” (2020, p. 1142-1143); ao passo que o ato de insubordinação se caracteriza pelo “descumprimento de ordens legais, pessoais e diretas feitas pelo empregador” (2020, p. 1144).

Dessa maneira, caberá justa causa ao empregado que deixar de manter-se em conformidade com as diretrizes gerais ou específicas que lhes forem dirigidas, somente não denotando indisciplina ou insubordinação se a ordem atentar contra a moralidade ou legalidade. Afinal, como adverte Maurício Godinho Delgado (2019, p. 1436), “tanto as diretrizes gerais como as ordens diretas têm de ser lícitas, não abusivas, não escapando dos limites que o Direito e o próprio contrato impõem ao poder de comando do empregador”.

5. A RECUSA INJUSTIFICADA À VACINAÇÃO COMO HIPÓTESE DE JUSTA CAUSA

Feitos os apontamentos de ordem teórica, cumpre examinar se a recusa injustificada à vacinação contra a COVID-19 se amolda ou não a alguma das alíneas do art. 482 da CLT elencadas acima.

Como visto, a primeira hipótese de justa causa arrolada pela alínea “b” do aludido dispositivo prevê a “incontinência de conduta”, a qual, contudo, traduz um comportamento inadequado de viés sexual. O conteúdo da norma, portanto, não permite qualquer aproximação com a recusa à vacinação, que obviamente não possui qualquer dimensão sexual.

Por sua vez, a segunda hipótese arrolada pelo mesmo dispositivo, o “mau procedimento”, consiste em conceito jurídico indeterminado e de aplicação residual, somente incidindo no caso concreto se a conduta verificada não se enquadrar em alguma das outras hipóteses disciplinadas pelo art. 482 da CLT e se possuir gravidade suficiente a justificar a medida drástica de dissolução do vínculo empregatício.

É preciso, portanto, saber se a conduta examinada é compreendida ou não por outra hipótese de justa causa para saber se é possível ou não cogitar de mau procedimento.

E as demais hipóteses arroladas pela norma em questão são, conforme alínea “h”, o “ato de indisciplina ou de insubordinação”, às quais, repise-se, denotam a situação em que o empregado pratica ou deixa de praticar um ato que está em desconformidade, respectivamente, com as diretrizes gerais ou específicas de serviço.

Segundo entende este estudo, a isonomia de tratamento que deve imperar no ambiente de trabalho não permite enxergar a vacinação contra a COVID-19 como uma ordem individual e específica de serviço ou conduta no ambiente de trabalho. Como as razões que justificam a importância da vacinação são de ordem coletiva, sua exigência não deve ser feita em caráter parcial ou individual de um ou alguns dos empregados, mas, sim, como política geral de manutenção do ambiente de trabalho saudável.

Esse ponto é importante porque, caso o empregador seja omisso quanto à adoção da vacinação como política empresarial ou negligencie a vacinação de seus empregados, eventual rigor na sua exigência em face de empregado específico pode dar azo a uma dispensa discriminatória e, portanto, ilegal.

Contudo, uma vez que o empregador tenha ostensivamente divulgado a exigência, como política interna e geral, da vacinação contra a COVID-19; a recusa injustificada de qualquer empregado a submeter-se à vacinação segundo os parâmetros etários e temporais ditados pelas autoridades de saúde constitui, para além de qualquer dúvida razoável, posição que está em desconformidade com tal diretriz geral de serviço, caracterizando ofensa a uma norma de saúde e segurança no trabalho.

Não se pode olvidar que, conforme ensina Luciano Martinez (2020, p. 620), as normas de saúde, higiene e segurança laboral passaram a ocupar “um espaço central nas relações de emprego”, uma vez que “o empregador não apenas [é] responsável pela contraprestação salarial dos seus operários, mas também pela manutenção da sua higidez no decurso do vínculo contratual”.

Este estudo compreende, inclusive, que a exigência da vacinação prescinde de qualquer oficialização em regulamento interno ou ordem de serviço; bastando, para tanto, que a imposição da postura seja coletiva e não implique qualquer surpresa ao empregado[10].

Diz-se isso porque, como o vírus da COVID-19 é um agente biológico capaz de gerar agravo à saúde das pessoas, logo, também do empregado e demais pessoas com quem ele se relaciona no ambiente de trabalho; é dever comum assim do empregador como do empregado observar e promover a segurança e saúde no trabalho, conforme disciplinam os arts. 157 e 158 da CLT (BRASIL, 1943). O descumprimento desse dever por parte do empregado, portanto, sujeita-o à despedida por justa causa.

Luciano Martinez (2020, p. 1229-1230) adota posição semelhante, segundo o qual:

Percebe-se, assim, que os patrões estão, por força de lei, obrigados a expedir comandos genéricos indicativos das cautelas que hão de ser tomadas pelos empregados para evitar lesões de natureza ocupacional. Aos operários, por sua vez, cabe, nos termos do art. 158, I, da CLT, a obediência às normas de segurança e medicina do trabalho, inclusive às instruções expedidas pelos empregadores, decorrentes do poder patronal de organização, quanto às precauções a serem tomadas para evitar acidentes do trabalho.

A indisciplina ou a insubordinação quanto ao cumprimento das medidas de segurança conduzirão à aplicação de penas disciplinares, observada, segundo dosimetria do empregador, uma gradação pedagógica, podendo, em casos extremos, culminar na resolução contratual por culpa operária.

A rigor, a exigência da vacinação contra a COVID-19 constitui medida voltada à preservação do próprio direito à vida de todas as pessoas no ambiente de trabalho, o qual, na lição de MELO (2002, p. 13-14), constitui “suporte para existência e gozo dos demais direitos, sendo necessário, para sua proteção, assegurar-se os seus pilares básicos: trabalho digno e saúde”.

Essa conclusão, aliás, é corroborada pela Norma Regulamentadora – NR nº 01 do Ministério do Trabalho (BRASIL, 2020), a qual prevê a adoção de medidas de prevenção a fatores de risco à saúde dos trabalhadores como dever dos empregadores, ao qual deve colaborar também o empregado.

O conteúdo normativo dos dispositivos citados, portanto, é suficiente para uma vez incorporada à política interna da empresa, alçar a exigência de vacinação contra a COVID-19 à condição de norma geral de segurança e saúde no serviço. E, como tal, respeitados os demais requisitos da rescisão por justa causa (imediatidade, proporcionalidade[11] etc.), a recusa injustificada à vacinação contra a COVID-19 se enquadra como ato de indisciplina, viabilizando a rescisão do contrato de trabalho por justa causa, por força da alínea “h” do art. 482 da CLT.

Não se pode olvidar, outrossim, que o parágrafo único do art. 158 da CLT (BRASIL, 1943) é categórico ao afirmar que constitui ato faltoso do empregado a recusa injustificada à observância das instruções de segurança e saúde no trabalho[12], o que corrobora a proposição de que a recalcitrância à vacinação constitui ato de indisciplina passível de sancionamento, inclusive, com a demissão por justa causa.

Essa conclusão encontra eco, inclusive, em recentes decisões do Poder Judiciário.

Assim decidiu, por exemplo, o Juízo da 30ª Vara do Trabalho de São Paulo na Reclamação Trabalhista de autos nº 1001359-61.2021.5.02.0030 (SÃO PAULO, 2022), na qual a Empregada, demitida por justa causa pela falta de apresentação de comprovante de vacinação, tentou reverter a justa causa e enquadrar o ato da empregadora como dispensa imotivada, com todos os seus reflexos.

Diante da “recusa injustificada em apresentar o comprovante de vacinação contra a COVID-19” e das ponderações de que não há direitos fundamentais absolutos e que a medida serviria como medida de proteção à saúde coletiva e também individual da própria empregadora, a aludida decisão confirmou o enquadramento da conduta como hipótese de justa causa (SÃO PAULO, 2022).

Das razões de decidir (rationes decidendi) dessa decisão colhe-se ainda os fundamentos de que, de um lado, o zelo pela manutenção da saúde e segurança no trabalho é um dever do empregador, sob pena de incorrer em culpa in vigilando; e, de outro, que a recusa à vacinação se equipara, por analogia, à recusa ao uso de equipamentos de proteção individual (SÃO PAULO, 2022).

Segundo entende este estudo, contudo, embora a conduta debatida efetivamente constitua hipótese de justa causa, o enquadramento mais rigoroso entre as causas típicas previstas no art. 482 da CLT é o que classifica a recusa injustificada à vacinação como hipótese de ato de indisciplina (inciso “h”), e não como mau procedimento (alínea “b”), como o fez a decisão.

Como estabelecido anteriormente, a hipótese da alínea “b” (mau procedimento) traduz enunciado genérico e residual, que somente tem espaço quando as demais hipóteses previstas na norma não se aplicam ao caso. Por outro lado, como o dever legal do empregado de observar as normas de saúde e segurança no trabalho integram o conteúdo normativo da relação de trabalho, eventual recalcitrância do obreiro à vacinação contra a COVID-19 consiste em ato de indisciplina, subsumindo-se à hipótese da alínea “h” do art. 482 da CLT.

Outra decisão recente sobre o tema foi o acórdão da 13ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região no julgamento do recurso ordinário nº 1000122-24.2021.5.02.0472 (SÃO PAULO, 2021), o qual, à unanimidade dos seus membros, negou provimento ao recurso para manter a conclusão da sentença da 2ª vara do trabalho de São Caetano do Sul/SP de que a recusa da empregada à vacinação configurou a hipótese de dispensa por justa causa do art. 482, inciso “h”, da CLT.

Desse acórdão é possível pinçar como fatos materiais (material facts[13]), isto é, aqueles considerados essenciais para a conclusão jurídica; que a empresa empregadora adotou protocolos internos de conscientização e exigência da vacinação, cuja inobservância pela empregada ensejou a aplicação de advertência e, pela reincidência, dispensa por justa causa.

Assim, entendeu o órgão fracionário (SÃO PAULO, 2021) que, como o interesse individual à não sujeição à vacina não poderia sobrepor-se ao interesse coletivo de preservação dos direitos à vida e saúde, o comportamento da empregada se amoldou ao conceito de ato de indisciplina previsto pelo cogitado inciso “h” do art. 482 da CLT, aplicando-se corretamente a justa causa.

Por fim, convém pontuar, pela relevância e até transcendência das razões, que o próprio Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2021) possui importante decisão da lavra do Ministro Luís Roberto Barroso, proferida no julgamento monocrático de pedido de tutela cautelar nas Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 898, 900, 901 e 905; segundo a qual a recusa injustificada à vacinação contra a COVID-19 pode ensejar, sim, a despedida por justa causa.

Tendo como objeto de análise o art. 1º, caput e §§ 1º e 2º, o art. 3º, caput, e art. 4º, caput, incisos I e II, da Portaria nº 620, de 1º de novembro de 2021, expedida pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social, os quais, de modo geral, classificavam como prática discriminatória e proibiam aos empregadores de exigir comprovante de vacinação como critério para a contratação ou manutenção do emprego do trabalhador; a decisão ainda se valeu de dados estatísticos da realidade pandêmica no Brasil e considerou as consequências práticas da solução da questão com efeitos vinculantes e gerais de âmbito nacional. No ponto que interessa, entendeu a decisão (2021, p. 7-8) que:

[É] razoável o entendimento de que a presença de empregados não vacinados no âmbito da empresa enseja ameaça para a saúde dos demais trabalhadores, risco de danos à segurança e à saúde do meio ambiente laboral e de comprometimento da saúde do público com o qual a empresa interage. (…). Além disso, é dever do empregador assegurar a todos os empregados um meio ambiente de trabalho seguro (CF/1988, art. 225), com base em medidas adequadas de saúde, higiene e segurança. Do mesmo modo, os empregados têm direito a um meio ambiente laboral saudável (CF, art. 7º, XXII) e o dever de respeitar o poder de direção do empregador, sob pena, no último caso, de despedida por justa causa (CLT, art. 482, “h”).

Assim, a importante decisão do Supremo Tribunal Federal estabeleceu três proposições jurídicas relevantes para este estudo.

A primeira, que a exigência do comprovante de vacinação não constitui prática discriminatória, já que, diferentemente das decisões laborais baseadas em sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade ou gravidez; a primeira interfere diretamente no direito à saúde ou à vida dos demais empregados da companhia ou de terceiros (BRASIL, 2021).

A segunda, que há justificativas legítimas e de caráter científico que não recomendem a vacinação, as quais estão “previstas no Plano Geral de Operacionalização da Vacinação contra a COVID-19 (Plano Nacional de Vacinação) e dizem respeito a situações em que a vacinação apresenta risco relevante para a saúde do empregado” (BRASIL, 2021, p. 10); de tal modo que as recusas que escapam dessas justificativas são consideradas ilegítimas.

E, por fim, a terceira, que a recusa injustificada à vacinação constitui potencial evento deflagrador da justa causa, respeitada sempre a proporcionalidade e o valor social do trabalho (BRASIL, 2021).

Para o propósito deste estudo, é importante pontuar que a decisão, embora não tenha examinado detidamente o ponto, referiu que a recusa à vacinação se assemelha ao descumprimento do poder diretivo do empregador, dando azo à dispensa por justa causa prevista no art. 482, alínea “h”, da CLT (BRASIL, 2021).

Enfim, é possível concluir que, embora subsista alguma timidez interpretativa na jurisprudência acerca do correto enquadramento da situação fática nas hipóteses típicas arroladas pelo art. 482 da CLT, vale dizer, se como “mau procedimento” (alínea “b”) ou “ato de indisciplina ou insubordinação” (alínea “h”); fato é que já se percebe razoável consenso a respeito da configuração da justa causa.

Um maior debruçamento sobre o assunto, contudo, revela que essa controvérsia não resiste a uma análise com maior rigorismo teórico, uma vez que o conteúdo normativo das hipóteses em questão permite associar a recusa injustificada à vacinação como ato de indisciplina (alínea “h”), o que afasta a possibilidade de seu enquadramento como mau procedimento.

Longe de constituir questão de menor importância ou de relevância apenas conceitual, o apuro técnico proposto seguramente contribui para um melhor esclarecimento da questão e para o próprio desenvolvimento do Direito quanto ao ponto, uma vez que, com a correta localização da matéria no repertório científico do Direito do Trabalho, serão evitadas digressões cognitivas inofensivas e que, pior, causem qualquer confusão nos próprios destinatários das normas e institutos em apreço.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo enfrentou o problema da rescisão por justa causa do contrato de trabalho em razão da recusa injustificada do empregado à vacinação, questão a respeito da qual, como exposto, existem atos legislativos e decisões judiciais conflitantes e até divergentes, inclusive no que toca à correta correspondência do fato às hipóteses taxativas de justa causa previstas no art. 482 da CLT.

Para tanto, procedeu-se a uma abordagem crítica das leis e normas relativas à política nacional de vacinação, assim como do regime jurídico geral da rescisão do contrato de trabalho, dos enunciados teóricos do art. 482 da CLT e das decisões judiciais mais importantes existentes sobre o tema; tudo a partir do levantamento e da revisão bibliográfica quanto aos principais conceitos inerentes ao assunto.

Como resposta ao problema que inspirou esta pesquisa, chegou-se às conclusões de que a recusa injustificada do empregado à vacinação contra a COVID-19 consubstancia descumprimento às diretrizes gerais de saúde e segurança no ambiente de trabalho (CLT, art. 158, incisos I e II), constituindo, portanto, ato de indisciplina passível de sanção pela rescisão por justa causa do contrato de trabalho, na esteira do art. 482, alínea “h”, da CLT.

Viu-se, igualmente, que o proposto rigorismo no tratamento do assunto não possui relevância apenas acadêmica ou conceitual, uma vez que a melhor interpretação e aplicação do instituto da rescisão do contrato de trabalho contribui para um melhor desenvolvimento do assunto, que jamais deixa de ser um tema da pauta jurídica nacional e vem, no contexto da Pandemia da COVID-19, assumindo posição de verdadeiro protagonismo no Direito e na prática das relações de trabalho.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974. Dispõe sobre o Trabalho Temporário nas Empresas Urbanas, e dá outras Providências. Brasília: Congresso Nacional, 1974. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6019compilado.htm. Acesso em: 16 mar. 2022.

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BRASIL. Lei nº 14.124, de 10 de março de 2021. Dispõe sobre as medidas excepcionais relativas à aquisição de vacinas e de insumos e à contratação de bens e serviços de logística, de tecnologia da informação e comunicação, de comunicação social e publicitária e de treinamentos destinados à vacinação contra a covid-19 e sobre o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19. Brasília: Congresso Nacional, 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14124.htm. Acesso em: 16 mar. 2022.

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BRASIL. Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a COVID-19. 12ª ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/publicacoes-tecnicas/guias-e-planos/plano-nacional-de-operacionalizacao-da-vacinacao-contra-covid-19.pdf. Acesso em: 13 mar. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 898, 900, 901 e 905. Min. Luís Roberto Barroso. Brasília, 12 nov. 2021. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15348691686&ext=.pdf. Acesso em: 19 mar. 2021.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.267.879/SP. Min. Luís Roberto Barroso, 17 dez. 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755520674. Acesso em: 13 mar. 2022.

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DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18ª ed. São Paulo: LTr, 2019.

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MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the Rule of Law: A Theory of Legal Reasoning. Oxford: Oxford University Press, 2010.

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MELO, Raimundo Simão de. Proteção Legal e Tutela Coletiva do Meio Ambiente do Trabalho. In: Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho. Meio Ambiente do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Painel de casos de doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19) no Brasil, 2022. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 16 mar. 2022.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Painel da vacinação contra a COVID-19 no Brasil, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/vacinacao/. Acesso em: 16 mar. 2022.

SÃO PAULO. 30ª Vara do Trabalho. Reclamação Trabalhista nº 1001359-61.2021.5.02.0030. Juíza Maria Fernanda Zipinotti Duarte, 09 fev. 2022. Disponível em: https://pje.trt2.jus.br/ consultaprocessual/detalhe-processo/1001359-61.2021.5.02.0030/1#014b053. Acesso em: 19 mar. 2022.

SÃO PAULO. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Recurso Ordinário nº 1000122-24.2021.5.02.0472. Des. Roberto Barros da Silva, 19 jul. 2021. Disponível em: https://pje.trt2. jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/1000122-24.2021.5.02.0472/2#08282c6. Acesso em: 19 mar. 2022.

SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de Direito do Trabalho. Vol. 1, 22ª ed. São Paulo: LTR, 2005.

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. Tese fixada no julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.267.879/SP (BRASIL, 2020).

3. Tese fixada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.586/DF (BRASIL, 2020).

4. Eis o texto normativo: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (…) VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (BRASIL, 1988).

5. Eis o texto: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988).

6. Eis o texto: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988).

7. Eis o texto: “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (BRASIL, 1988).

8. Sobre as hipóteses vocacionadas a categorias específicas, confira-se, por exemplo, o art. 240, parágrafo único, da CLT (BRASIL, 1943) e o art. 13 da Lei nº 6.019/74 (BRASIL, 1974).

9. A vagueza do tipo trabalhista em análise leva Carlos Henrique Bezerra Leite (2020, p. 1131) a conceituá-lo como “qualquer ato que fira a moral e os bons costumes dentro da empresa, no sentido lato do termo”.

10. Não ser imprescindível não significa que a previsão expressa da vacinação contra a COVID-19 como política interna da empresa não seja útil. Pelas razões apresentadas neste estudo, a oficialização em comunicado interno e oficial da empresa não pode ser erigida à condição de requisito indispensável à exigência da vacinação. Todavia, é de todo recomendável, como boa prática de gestão de riscos e porque a postura possui o condão de divulgar e estimular a prática de saúde desejada, que a exigência da vacinação seja veiculada em ordem de serviço interna.

11. A renovada menção aos requisitos gerais da justa causa não é despropositada: como forma de garantir que o empregado tenha exata ciência de que sua recusa injustificada à vacinação vai de encontro às normas gerais da empresa, é prudente que a sua recalcitrância seja objeto, primeiro, de advertência ou suspensão, até como forma de conferir-lhe a oportunidade de, diante da sanção, readequar sua conduta e passar a observar a norma antes descumprida. O foco deve ser sempre a conformidade da conduta às normas; não a demissão.

12. Maurício Godinho Delgado (2019, p. 822-823) endossa essa conclusão: “[d]e fato, o art. 158, parágrafo único, da Consolidação, considera ato faltoso do obreiro sua recusa injustificada à observância das instruções expedidas pelo empregador quanto à saúde e segurança do trabalho”.

13. Por todos, confira-se MACCORMICK (2010).

[1] Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera-UNIDERP, em parceria com a Rede LFG e o Instituto Calvet, Graduada em Direito pela Universidade da Amazônia. ORCID: 0000-0002-3016-5215.

Enviado: Março, 2022.

Aprovado: Abril, 2022.

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Isabelle Cristina Mesquita Bitar de Sousa

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