Eliane Silva Souza [1]
Mary Valda Souza Sales [2]
Este capítulo apresenta um estudo em andamento[2] no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), vinculado à linha de pesquisa Educação, Currículo e Processos Tecnológicos do curso de doutorado. Trata-se de uma pesquisa desenvolvida no âmbito do projeto Laboratório de Tecnologias Educacionais e Práticas Inovadoras (LabTEPI) do Grupo de Pesquisa Formação, Tecnologias, Educação a Distância e Currículo (ForTEC).
A pesquisa é um desdobramento de uma atuação docente implicada que vem propiciando questionamentos no âmbito relacional dos processos formacionais e tecnologias digitais na Educação Básica. Neste sentido, apoia-se em um conjunto precedente de experiências constituídas pela imersão no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), codocência em Estágio Supervisionado de licenciandos em Pedagogia, e experiências formacionais com professores da Educação Básica, dentre outros.
Este campo experiencial impulsionou a imersão na formação stricto sensu com o desenvolvimento de uma pesquisa envolvendo App-learning e formação continuada de professores no contexto da Educação de Jovens e Adultos (SOUZA, 2020; 2021). Juntamente à etapa final desse processo, iniciou-se a pandemia de Covid-19. Com o fechamento das instituições de ensino, em virtude da necessidade de distanciamento físico, testemunhou-se a constituição de uma miríade de soluções envolvendo as tecnologias digitais para a continuidade dos processos educacionais.
Por conseguinte, toma-se o contexto pandêmico como uma janela de percepção que propicia a captação de uma série de fenômenos relacionados à Educação, sobretudo aqueles relacionados à Educação na Cultura Digital. É na possibilidade dessa mirada que os desafios vivenciados no contexto da Educação Básica com a pandemia de Covid-19 e as experiências elaboradas com as tecnologias digitais, visando assegurar a continuidade dos processos educativos, ascendem como elementos constitutivos da problemática deste estudo.
A participação direta nesse contexto gerou a possiblidade de problematizar a aplicação pedagógica das tecnologias digitais e a formação continuada de professores enquanto subsídio desse processo na Educação Básica em um contexto educacional com demandas de políticas efetivas e consistentes de formação desta natureza. Na condição de elemento nuclear dessa problematização, as experiências docentes com as tecnologias digitais são tomadas enquanto possíveis propulsoras de aprendizagens pedagógicas.
No momento mais recrudescido da pandemia, a demanda para a continuidade dos processos educativos foi respondida sem tempo para planejar ou questionar os subsídios formacionais ausentes ou insuficientes. Desta demanda compulsória aos professores, derivou-se um conjunto amplo de respostas dentro do que era possível a cada sujeito, a cada grupo, a cada contexto envolvendo as tecnologias digitais.
Assim, busca-se a constituição do estudo em torno da formação continuada de professores da Educação Básica envolvendo as experiências com as tecnologias digitais. A questão de como as experiências resultantes da reconfiguração do trabalho docente com as tecnologias digitais produzem aprendizagens pedagógicas de professores dos anos iniciais do ensino fundamental na Rede Pública de Ensino de Salvador, Bahia, é levantada como fio condutor.
Mobiliza-se, com tal questão, a reflexão sobre as experiências docentes como elementos propulsores de processos formacionais e sobre a escola como lugar de formação (NÓVOA, 2002) que se constitui na indissociável relação teoria-prática. Falar de formação continuada na escola não se limita a deslocar o lugar da formação. Envolve “[…] um novo enfoque para redefinir os conteúdos, as estratégias, os protagonistas e os propósitos da formação.” (IMBERNÓN, 2011, p.85). Constitui-se espaço para pensar a formação continuada fundamentada na colaboração daqueles aos quais se destina.
No contexto pandêmico, observa-se que as melhores respostas são produzidas a nível de escola através do protagonismo docente. Nesse sentido, “Não precisamos de inventar nada. Precisamos apenas, e já não é pouco, de conhecer o que se faz, de enunciar o trabalho de professores nos mais diversos lugares, de debater, de partilhar, de nos envolvermos coletivamente na produção de futuros.” (NÓVOA; ALVIM, 2022, p.52).
Portanto, “[…] a formação do professor deve adotar uma metodologia que fomente os processos reflexivos sobre a educação e a realidade social através das diferentes experiências.” (IMBERNÓN, 2011, p.119-120). Assim, o sentido que se vincula à formação continuada se distancia de processos prescritivos e se encaminha como um processo materializado com o protagonismo docente, desenvolvido de forma situada, baseado na indissociável relação teoria-prática e na compreensão da escola como um lugar privilegiado de formação.
As experiências com as tecnologias digitais são elaboradas com base nos dispositivos materiais e teóricos da Cultura Digital. Trata-se de uma categoria que envolve elementos estruturantes como colaboração, criatividade, interatividade, imaterialidade, aprendizado contínuo (LÉVY, 1999; 2012), conectividade, transformação da relação entre pessoas e instituições, na forma de acessar e interagir com o conhecimento, de expressar, de participar (GERE, 2010), e envolve implicações a nível social, econômico, político, ético, pois as tecnologias digitais são cada vez mais participantes da cultura e, também, mais invisíveis.
Nesse sentido, é importante pensar criticamente para que se possa entender os desafios que a Cultura Digital impõe à escola (NONATO; SALES, 2020). Ademais, é imprescindível encaminhar processos interventivos a partir das possíveis construções fundamentadas em relações dialógicas e comunicativas (GOMEZ, 2015) capazes de favorecer o desenvolvimento de aprendizagens.
O estudo é desenvolvido no sentido de compreender a inter-relação entre três elementos: a reconfiguração do trabalho docente com as tecnologias digitais impulsionada pela pandemia de Covid-19; as experiências elaboradas nas práticas nos anos iniciais do ensino fundamental; e o desenvolvimento de aprendizagens pedagógicas de professores com as tecnologias digitais. Encaminha-se no sentido de produzir um movimento interpretativo compreensivo da inter-relação de tais elementos na busca por pistas/vestígios da construção de uma Cultura Digital Escolar.
Adota-se a multirreferencialidade (ARDOINO, 2012) como perspectiva epistemológica, considerando-se a importância de acolher as contribuições advindas da abordagem do objeto de estudo a partir de diferentes ângulos. Entende-se que cada leitura derivada de distintos sistemas de referência são sempre o limite da outra. Nesse sentido, nenhuma contém em si a capacidade de apreensão total do objeto.
A Pesquisa-formação (JOSSO, 2004; SANTOS, 2019) é o método acolhido, tendo em vista que se trata de uma Pesquisa em Educação, onde se prima pela sua produção ‘com’ professores da Educação Básica. Ademais, a Pesquisa-formação enquanto método oferece subsídios epistêmicos e propicia arranjos capazes de sustentar a dimensão formacional da pesquisa. Nesse sentido, articula-se uma pesquisa com a participação interventiva dos professores, e não apenas sobre eles, onde suas experiências são legitimadas como elementos articuladores da produção de saberes e de conhecimentos.
No que concerne à perspectiva de análise das informações produzidas com o estudo, opta-se pela descrição densa interpretativa (GEERTZ, 2008) como um método promissor para elaborar o caminho interpretativo compreensivo que se tenta estruturar. Reside nesta perspectiva o potencial da abordagem microscópica encaminhada no sentido de uma compreensão ampla do objeto de estudo a partir dos elementos que a ele estão densamente enlaçados. Ademais, opta-se pela hermenêutica (RICOEUR, 2013; 2019) como chão epistêmico desse processo.
A dinâmica do estudo se desenvolve a partir de três dispositivos: Encontros Dialogais Online (EDO), dispositivo principal da pesquisa; Grupo Dialogal Online, dispositivo suplementar constituído para manter a continuidade do diálogo entre os participantes e a pesquisadora nos intervalos entre os EDO; e Diário de Pesquisa Online, produzido pela pesquisadora visando inscrições referentes ao acompanhamento dos processos constituídos no curso da pesquisa, bem como oportunizando a retomada e reflexão acerca daquilo que foi visto, vivido e produzido.
Os Encontros Dialogais Online são estruturados como o dispositivo da Pesquisa-formação. Têm o encontro e o diálogo como elementos estruturantes e potencialmente relevantes para abordar as experiências dos professores a partir de uma estrutura que compreende acolhimento, diálogos, considerações e encaminhamentos. No fluxo desses encontros, intercala-se a operação com os demais dispositivos (FIGURA 1).
Figura 1 – Fluxo dos Encontros Dialogais Online (EDO) na pesquisa
O Google Meet é utilizado como suporte para a realização dos encontros que são gravados e transcritos visando a composição de informações da pesquisa. Nos Encontros Dialogais Online, as experiências dos professores com as tecnologias digitais são socializadas e dialogadas. Esses encontros são produzidos em coautoria com os professores participantes da pesquisa, assegurando um princípio fundamental: a não objetificação dos professores. Pauta-se, portanto, na atuação interativa e interventiva do grupo com a socialização das experiências, construção dos diálogos, tessitura de considerações e encaminhamentos coletivos.
Figura 2 – Encontros Dialogais Online: contextos e experiências socializadas
Com a realização de sete encontros (FIGURA, 2) e desenvolvimento de uma leitura preliminar das informações produzidas é possível mapear alguns elementos relativos ao contexto e experiências socializadas, conforme apontamentos a seguir.
- O grupo participante da pesquisa, constituído por professores de artes e pedagogos, atuam em diversos contextos interligados à Educação Básica na Rede Pública de Ensino de Salvador, Bahia: escola regular, escola hospitalar, Centro de Atendimento Educacional Especializado e escola no contexto da socioeducação em privação de liberdade.
- Estes professores atuaram de forma interventiva e propositiva para a continuidade dos processos educativos durante o período mais recrudescido da pandemia de Covid-19 utilizando as tecnologias digitais, elemento que os une, processo que propiciou a elaboração das experiências focalizadas no estudo.
- As experiências produzidas envolvem aulas desenvolvidas por professoras de artes e por professoras pedagogas em turmas regulares; aulas de artes na TV desenvolvidas para a Rede de Ensino; aulas desenvolvidas por professores pedagogos em salas de Atendimento Educacional Especializado na escola regular e em Centro de Atendimento Educacional Especializado; aulas desenvolvidas por professora pedagoga que atua com o Atendimento Pedagógico Domiciliar através da escola hospitalar domiciliar; aulas desenvolvidas por professora pedagoga que atua na escola do contexto da socioeducação em privação de liberdade.
Observa-se, a partir dos diálogos desenvolvidos nos encontros, que as experiências elaboradas pelos professores são derivadas de processos interventivos e criativos apoiados nas possibilidades da Cultura Digital. Compreendem uma diversidade de possiblidades, a exemplo de aulas síncronas e assíncronas, criação de roteiros e gravação de aulas para serem transmitidas na TV, interações em grupos criados em aplicativos de mensagem instantânea, vídeo aulas, podcast, e-book, transmissão em canal de vídeo, blogs e material impresso.
A partir da imersão nas informações produzidas, espera-se identificar pistas das possíveis aprendizagens pedagógicas com as tecnologias digitais, derivadas das experiências elaboradas pelos professores. Ademais, será empreendido esforços no sentido de mapear as características da reconfiguração do trabalho docente com as tecnologias digitais impulsionada pela pandemia de Covid-19.
Com o cumprimento destes empreendimentos, espera-se produzir um movimento interpretativo compreensivo em torno de pistas/vestígios da construção de uma Cultura Digital Escolar. Os resultados do estudo podem contribuir com a produção de conhecimento para a área de Educação, bem como colaborar com o fortalecimento da formação continuada de professores da Educação Básica.
REFERÊNCIAS
ARDOINO, Jacques. Pensar a multirreferencialidade. In: MACEDO, Roberto Sidnei; BARBOSA, Joaquim Gonçalves; BORBA, Sérgio (orgs.). Jacques Ardoino & a educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
GERE, Charlie. Algunes reflexions sobre la cultura digital. Digithum, n. 12, maio 2010. Disponível em: https://openaccess.uoc.edu/handle/10609/8804 Acesso em: 25 abr. 2023.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
GOMEZ, Margarita Victoria. Pedagogia da virtualidade: redes, cultura digital e educação. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e incerteza. São Paulo: Cortez, 2011.
JOSSO, Marie-Christine. Experiência de vida e formação. Tradução de José Cláudio e Júlia Ferreira. São Paulo: Cortez, 2004.
LÉVY, Pierre. A Construção da Cultura Digital: Estética de uma Nova Sociedade. 1 ed. Festival R.I.A (Reflexão, Interação e Ação). São Paulo: Fundação Telefônica | Vivo, Itaú Cultural e Centro Ruth Cardoso. 2012.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
NONATO, Emanuel do Rosário Santos; SALES, Mary Valda. Hipertextualidades, multiletramentos e cultura digital: perspectivas na educação contemporânea. In: SALES, Mary Valda. (Org.). Tecnologias digitais, redes e educação: perspectivas contemporâneas. Salvador: EDUFBA, 2020.
NÓVOA, António. Formação de professores e trabalho pedagógico. Lisboa: EDUCA, 2002.
NÓVOA, António; ALVIM, Yara. Os professores depois da pandemia. In: NÓVOA, António. Escolas e professores: proteger, transformar, valorizar. Salvador: SEC/IAT, 2022. Colaboração de Yara Alvim. p. 32-52.
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação, o discurso e o excesso de significação. Tradução de Artur Morão. Lisboa, Portugal: Edições 70. 2019.
RICOEUR, Paul. Hermenêutica e ideologias. Tradução de Hilton Japiassu. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
SANTOS, Edméa. Pesquisa-formação na cibercultura. Teresina: EDUFPI, 2019.
SOUZA. Eliane Silva. App-learning na EJA em socioeducação: possibilidades e ressonâncias do APP Banco de Aulas Zuppa do Saber na formação continuada das professoras. 2020. 231f. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Educação, Universidade do Estado da Bahia: Salvador, 2020.
SOUZA, Eliane Silva. App-learning na formação continuada de professores. Redoc. v. 5, n. 3, Rio de Janeiro, p. 293-303, Set./Dez. 2021. https://doi.org/10.12957/redoc.2021.59147
SOUZA, Eliane Silva; SALES, Mary Valda Souza. Experiências com as tecnologias digitais e processos formacionais docentes na Educação Básica. In: VI Seminário do ForTEC: Tecnologias, Cultura Digital e Perspectivas para Formação Presencial e a Distância. Anais […], Salvador: UNEB, 2022. p.168 -183. Disponível em: https://www.forplet.com.br/_files/ugd/41c13d_cfabb5da52d5402bbd763e05e73d667a.pdf Acesso em: 25 abr. 2023.
APÊNDICE – NOTA DE RODAPÉ
2. Para o desenvolvimento do estudo, adota-se os procedimentos éticos relativos à pesquisa envolvendo seres humanos, a exemplo de inclusão de participantes somente após esclarecimentos prévios e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Anteriormente a esta etapa, o projeto foi submetido à avaliação ética e foi aprovado pelo CEP, conforme parecer nº 5129042, em 26 de novembro de 2021.
[1] Doutoranda em Educação e Contemporaneidade; Mestra em Educação de Jovens e Adultos; Especialista em Educação, Processos Tecnológicos e Práticas Inovadoras. Especialista em Metodologia do Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação; Licenciada em Pedagogia. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-8203-6255. CURRÍCULO LATTES: https://lattes.cnpq.br/4699766250558338.
[2] Orientadora. Pós-Doutora em Educação e Tecnologia; Doutora em Educação; Mestra em Educação e Contemporaneidade; Especialista em Supervisão Escolar e Empresarial; Especialista em Metodologia do Ensino Superior; Licenciada em Pedagogia. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9488-0103. CURRÍCULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/2940371926284212.