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2. Aplicação terapêutica das células-tronco na medicina veterinária

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Enrico Jardim Clemente Santos [1]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/1640

INTRODUÇÃO

Os constantes avanços clínicos e laboratoriais na área da medicina veterinária vêm propiciando aos animais uma maior longevidade. O aumento da expectativa de vida tende a resultar em uma maior incidência de patologias, assim como o surgimento de novas doenças até o momento não existentes ou de baixa frequência. Atualmente, a manutenção da qualidade de vida dos animais na terceira idade é um dos principais desafios no âmbito da medicina veterinária. Perante o presente quadro, constantes estudos científicos básicos, pré-clínicos e clínicos vêm sendo desenvolvidos tendo por meta a implementação de tratamentos inovadores para enfermidades nas quais as terapias convencionais têm se mostrado insuficientes ou ineficazes. Dentre estes, um dos que têm se mostrado mais promissores é a terapia celular com células-tronco, a qual pode ser definida como arte de se administrar células vivas ao corpo de um receptor objetivando o tratamento de uma condição médica específica.

DESENVOLVIMENTO

O presente estudo caracteriza-se por ter sido realizado a partir de uma pesquisa bibliográfica de cunho exploratório e descritivo junto a bases científicas de dados indexadas nas bases Google Acadêmico, Scientific Electronic Library Online (Scielo), Literatura Latino-Americana do Caribe em Ciência da Saúde (LILACS) e Medical Literature Analysis and Retrievel System Online (MEDLINE). Para a busca, foi realizado o recorte temporal de publicações entre os anos de 2005 a 2023, utilizando as seguintes palavras-chaves: células-tronco, medicina veterinária e terapia celular.

Embora a medicina veterinária tradicional a qual envolve cirurgias, drogas, produtos químicos ou radiação esteja sendo aplamente utilizada no mercado, a aplicação novas terapias vêm se fazendo necessarias para o tratamento de inúmeras doenças. No transcorrer dos ultimos anos diferentes abordagens terapêuticas vêm sendo desenvolvidas e aplicadas na medicina veterinária clínica com sucesso dentre as quais temos a acumputura, ozonioterapia, fitoterapia, homoeopatia, laserterapia, ozonioterapia e cromoterapia, dentre outras. Mais recentemente uma abordagem terapêutica extremamente promissora surgiu no mercado veterinário: a terapia com células-tronco.

As células-tronco podem ser definidas como células indiferenciadas capazes de se auto-renovarem e diferenciarem morfológica e funcionalmente em diferentes tipos celulares e que, mediante estímulos específicos, podem se diferenciar, dando origem a diversos tipos celulares morfologicamente e fisiologicamente maduros e funcionais.

Na literatura podemos identificar, com base em sua origem, três tipos distintos de células-tronco os quais são denominados de células-tronco embrionárias (CTEs) isoladas a partir da massa celular interna do blastocisto, células-tronco adultas (CTAs) isoladas a partir de tecidos adultos como gordura, medula óssea, sangue periférico, cordão umbilical, polpa dentária e músculo e as células-tronco pluripotentes induzidas (CTPIs) células adultas modificadas geneticamente de forma adquirirem as características das CTEs. Devido ao potencial das CTEs e CTPIs darem origem a teratocarcinomas, apenas as CTAs vêm sendo utilizadas terapeuticamente na medicina veterinária.

A terapia com células-tronco vem sendo aplicada com sucesso na medicina veterinária, visando o tratamento de uma variedade de condições clínicas que acometem tanto os pequenos como grandes animais. Dentre estas temos a doença renal (SANTOS, 2018a), sequela neurológica de cinomose (SANTOS, 2019a), gengivite estomatite felina (ASSIS, 2017), lesões inflamatórias intestinais (PÉREZ-MERINO, 2015), lesões oculares (VILLATORO, 2015), lesões dermatológicas (VILLATORO, 2018), lesões tendíneas (SMITH, 2005), laminite (MENDES, 2021), osteoartrites (BLACK, 2007), trauma medular (MUKHAMEDSHINA, 2019), hipoplasia e aplasia medular (GATTI, 2014; BRAGA, 2020) e asma (SANTOS, 2023). Atualmente, inúmeras outras patologias vêm sendo alvo de estudos, apresentando resultados promissores. Entretanto convém ressaltar que o correto diagnóstico é de fundamental importância para o sucesso da terapia.

Figura 1. Doenças tratadas por meio da terapia com células-tronco

Fonte: Laboratório CELLTROVET.

A utilização terapêutica deve seguir alguns princípios básicos para que o resultado desejado seja obtido de forma satisfatória. Dentre este temos a seleção dos animais doadores, os quais devem estar isentos de doenças infecciosas assim como outro agentes que possam transmitir algum risco para o animal receptor; as células devem ter sua qualidade comprovada por meio da descrição de sua origem, potencial antes e após serem submetidas ao processo de criopreservação, condições de armazenamento e rastreabilidade além de comprovar que se encontram livres de possíveis contaminações por fungos, bactérias, leveduras, micoplasma, vírus e endotoxinas; segurança e eficácia comprovada demonstrada antes e após serem expostas ao processo de criopreservação e relato de possíveis reações adversas clínicas ou laboratoriais.

No ambito da medicina veterinária as fontes teciduais mais utilizadas são a medula óssea, tecido adiposo e sangue de cordão umbilical. A medula óssea apresenta dois tipos distintos de CTAs denominadas de células-tronco hematopoiéticas (CTHs) e células-tronco mesenquimais (CTMs). Está embora esteja presente em menor número, é responsável pela manutenção da homeostase do ambiente. Em cavalos a coleta tende a ser realizada na região do esterno ao passo que em cães e gatos a coleta da medula é realizada nonfêmur, tíbia ou cabeça umeral, sendo a última a mais utilizada devido ao fato de ser menos traumática (SMITH, 2005; FRIMBERGER, 2006). A coleta do sangue do cordão umbilical deve ser realizada imediatamente após o parto por meio da uma punção venosa utilizando-se uma agulha de 16 g acoplada a um bolsa de coleta contendo um anticoagulante. Embora seja um processo pouco invasivo, o número de CTMs obtido a partir do sangue do cordão umbilical é inferior em comparação ao coletádo da medula óssea (KOCH, 2007). Em comparação às demais fontes, o tecido adiposo se apresenta como uma fonte que permite a obtenção de uma maior concentração de CTMs estando normalmente associados a rede de capilares presentes na gordura (VARMA, 2005). O processo de obtenção do tecido adiposo é realizado por meio de incisão cirúrgica na região  inguinal, abdominal ou da parede torácica em cães e gatos e na região glútea em cavalos (VIDAL, 2007; SANTOS, 2018a). As amostras são encaminhadas ao laboratório de forma que o processo de obtenção das CTMs seja realizado de acordo com os protocolos específicos para cada fonte (SANTOS, 2019b).

Em 2006 a Sociedade Internacional de Terapia Celular estabeleceu os critérios para a definição das CTMs. Dentre estes temos a capacidade das células se aderirem superfícies poliméricas, elevado potencial de proliferação, capacidade de se diferenciar em linhagens osteogênica, condrogênica e adipogênica e expressarem um perfil de expressão de marcadores celulares (DOMINICI, 2006).

Embora a segurança e eficácia terapêutica das CPAMs, também conhecida na literatura científica como CTMs, venha sendo constantemente comprovada, os mecanismos de ação ainda não estão completamente compreendidos. Existem evidências que demonstram o envolvimento de diversos processos. Dentre estes temos o efeito autócrino por meio do qual o tecido exerce influência sob CPAMs de forma a direcioná-las a dar origem a fatores de interesse do ambiente tecidual. Já o efeito parácrino se caracteriza pelas ações exercidas pelas CPAMs sob os tecidos como os efeitos imunomodulatórios, anti-inflamatórios, angiogênico, antiapopitótico, antifibrótico, angiogênico, homing, diferenciação e trófico de forma a estimular as CPAMs intrínsecas a atuar no processo de reparação do tecido lesionado (SHEN, 2015; KRAWCZENKO, 2022).

Para a obtenção de um resultado terapêutico satisfatório, por meio da terapia com células-tronco, a via de infusão a ser utilizada é de fundamental importância. Para definirmos a melhor via devemos levar em consideração características básicas como ser de fácil realização, pouco invasiva e traumática, causar mínimos efeitos colaterais apresentando a maior taxa de retenção e sobrevivência de células infundidas. É importante ressaltar que fatores adicionais como diagnóstico e prognóstico da doença, localização da região injuriada e extensão da lesão devem ser levados em consideração (SANTOS, 2019b).

A via de administração endovenosa é a mais utilizada devido a ser pouco invasiva, de fácil e rápido acesso, pouco traumática, não requerendo suporte médico avançado para sua utilização, ser de fácil difusão pelo organismo além de proporciona a possibilidade de múltiplas aplicações, com o mínimo de efeitos colaterais. Durante o processo de infusão, tanto a velocidade como a concentração celular devem ser levadas em consideração de forma a evitar a formação de aglomerados celulares e consequentemente geração de trombos. A infusão pela via endovenosa propicia uma ampla distribuição das células-tronco no organismo receptor propiciando a atuação da mesma, por meio de diferentes mecanismos celulares em uma grande variedade de tecidos (SANTOS, 2019b).

A via de administração local propicia a direta liberação do concentrado celular na área lesionada resultando em uma maior retenção de células no local injuriado contribuindo mais efetivamente para o efeito parácrino e de diferenciação celular. Embora necessite de conhecimento anatômico e perícia cirúrgica, uma vez que é uma via altamente invasiva e potencialmente traumática, a aplicação local apresenta-se como a mais recomendada (SANTOS, 2019b). Dentre as vias locais utilizadas temos a intra-articular, intramedular, epidural, intratendinea, intraocular, intracraneana e intratecal. Dependendo da condição clínica do paciente e doença a ser tratada, uma ou mais vias podem ser utilizadas simultaneamente.

Terapeuticamente duas abordagens distintas vêm sendo utilizadas. O transplante de células-tronco autólogas e alogênicas. A terapia celular autóloga se caracteriza pela obtenção da amostra, isolamento e reintrodução das CPAMs no próprio animal. Na terapia celular alogênica a amostra é de um animal geneticamente diferente do receptor, porém da mesma espécie. Sua utilização é viável devido a característica das CPMAs de não serem reconhecidas pelo sistema imunológico do receptor uma vez que as CPAMs são capazes de regular a resposta imune, inibindo a maturação das células dendríticas, bem como suprimir a proliferação e função dos linfócitos T e B e células natural killer. Com isso as CPAMs apresentam uma baixa expressão do complexo de histocompatibilidade classe II (MHC-II) e co-estimulação de moléculas em sua superfície celular, necessárias para a ativação de célula T, tornando-as invisíveis para o sistema imunológico. Além da terapia autóloga e alogênica, existe também a terapia celular xenogênica na qual o animal doador e receptor são de espécies distintas. Esta abordagem é utilizada basicamente na pesquisa científica (CHEN, 2006; CASTRO-MANRREZA, 2015).

No transcorrer dos últimos a utilização da terapia com células-tronco, visando a recuperação da qualidade de vida dos animais, vêm se tornando uma realidade na medicina veterinária. Inúmeras empresas têm disponibilizado esta abordagem terapêutica de forma comercial dentre as quais temos a VetStem (Estados Unidos da América), Stem Cell Vet (Inglaterra), Vetherapy (Portugal) e CELLTROVET (Brasil). Portanto, esta nova abordagem terapêutica já é uma realidade no mercado veterinário mundial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A aplicação terapêutica das células-tronco na medicina veterinária vem surgindo como opção extremamente promissora no tratamento de patologias que acometem tanto os pequenos como grandes animais, independente da espécie, sexo, raça ou idade. Esta nova abordagem terapêutica tem por objetivo melhorar a qualidade de vida dos animais reduzindo drasticamente as taxas de morbidade e mortalidade.

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES

[1] Enrico Jardim Clemente Santos

Doutor. ORCID. https://orcid.org/0000-0003-0869-3342. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/3625817369504094.

REFERÊNCIAS

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BLACK, Linda et. al. Effect of adipose-derived mesenchymal stem and regenerative cells on lameness in dogs with chronic osteoarthritis of the coxofemoral joints: a randomized, double-blinded, multicenter, controlled trial. Veterinary Therapeutics: Research in Applied Veterinary Medicine, 8(4):272-84, 2007.

BRAGA, Camila Landim et. al. Medvep – Revista Científica de Medicina Veterinária – Pequenos Animais e Animais de Estimação, Edição 50 – Vol IV – 126-132, 2020.

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DOMINICI, Massimo et. al. Minimal criteria for defining multipotent mesenchymal stromal cells. The International Society for Cellular Therapy position statement. Cytotherapy, 8, 315–7, 2006.

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KOCH, Thomas et. al. Isolation of mesenchymal stem cells from equine umbilical cord blood. BMC Biotechnology, 7, 1472–6750, 2007.

KRAWCZENKO, Agnieszka et. al.Adipose Tissue-Derived Mesenchymal Stem/Stromal Cells and Their Contribution to Angiogenic Processes in Tissue Regeneration. International Journal of Molecular Sciences vol. 23,5 2425, 2022.

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MUKHAMEDSHINA, Yana et al. Mesenchymal Stem Cell Therapy for Spinal Cord Contusion: A Comparative Study on Small and Large Animal Models. Biomolecules vol. 9,12 811, 2019.

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Enrico Jardim Clemente Santos

Enrico Jardim Clemente Santos

Doutor. ORCID. https://orcid.org/0000-0003-0869-3342. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/3625817369504094.

Uma resposta

  1. Muito bom o material professor Enrico. Excelente fonte, com certeza indicarei aos meus alunos.

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