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Análise crítica da venda casada sob o prisma constitucional

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

CALAND, Lucas Alves Silva [1]

CALAND, Lucas Alves Silva. Análise crítica da venda casada sob o prisma constitucional. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 03, Vol. 01, pp. 18-32. Março de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/venda-casada

RESUMO

A prática ilegal de determinar vendas de produto ou serviço acoplado a uma segunda aquisição. O trabalho pretende analisar as questões pertinentes aos aspectos que estão diretamente ligados à denominada venda casada. Observar-se-á os conceitos inerentes à relação consumerista e seus atributos, como o fornecedor, o consumidor e o objeto da relação comercial. Traz-se à baila o entendimento doutrinário sobre a venda casada, sua vedação legislativa e os posicionamentos jurisprudenciais do mais conceituados Tribunais pátrios, de forma que através de tais indagações e interpolações poder-se-á descrever as vias mais graves que os fornecedores utilizam na perspectiva de indução do consumidor em adquirir o segundo produto que estará acoplado ao produto principal. De igual forma, busca-se no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, a baliza legislativa primária para que seja devidamente combatida a prática lesiva em desfavor do consumidor quando da aplicabilidade do modus venda casada. Na conclusão, reforçam-se os posicionamentos delineados no interior do artigo.

Palavras-chave: Venda casada, Direito do Consumidor, Análise Constitucional.

1. INTRODUÇÃO

O oferecimento de mercadoria na forma casada, de muito tem proporcionado danos aos consumidores os quais na busca de adquirir o produto primário, terminam sendo praticamente obrigados ao consumo de um segundo produto, neste sentir o artigo se propõe refletir, com bases nas análises jurídica e doutrinaria, situações que envolvem a relação comercial denominada de venda casada, modus que se traduz em profunda lesão ao consumidor, posto leva-lo a adquirir algo que não possuía a pretensão de comprar, além de perfazer lesão a livre iniciativa comercial.

A questão demanda relevância sociojurídica em razão de que tal prática envolve questões sociais, como aquela que diz que se torna mais fácil o exercício da venda casada nas classes menos favorecidas em razão da pouca possibilidade de alcançar outros fornecedores; como, de igual forma no patamar jurídico, ao dizer que em se concretizando como prática comum a citada modalidade de venda tem-se ferimento gravoso ao princípio da dignidade da pessoa humana, já que expõe o consumidor a inúmeras situações que lhe toma o domínio do próprio querer, sendo vitimado pela falta de transparência das relações que se pautam por este meio de negociação.

Na busca de melhor apresentar o artigo, tratar-se-á de historizar, conceitualizar e caracterizar a denominada relação de consumo ou relação consumerista, de onde se tem a pretensão de estabelecer as diferenciações entre os conceitos de consumidor e fornecedor, demonstrando que o primeiro é devidamente reconhecido como a parte mais frágil da relação comercial. No mesmo toque, será analisada a prática comercial, conceituando-a e observando suas principais características, dando enfoque especial para o desenvolver das práticas abusivas na visão do Código Consumerista, de forma a efetivar-se a relação que existe entre a prática abusiva comercial e a conceituada venda casada, reforçando-se, assim, que tal prática (quase sempre velada), não é de fácil detectar, motivo pelo qual o exercício do combate e fiscalização se fazem mais que necessários.

Serão trabalhados os princípios essenciais para a mais ampla e irrestrita relação consumerista (princípio da transparência, princípio da interpretação favorável ao consumidor e princípio da vinculação pré-contratual), de forma a facilitar o entender de que o Direito Consumerista estabelece princípios inarredáveis da sua formação e que quando lesionados ecoam como danos a todos.

O artigo científico pretende formar-se com duas frentes de investigação, a primeira seria a denominada de bibliográfica, sempre com bases na doutrina e jurisprudência mais abalizada.

Ao final, traçam-se as devidas considerações intuindo demonstrar e indicar posicionamentos que recomendam como agir no sentido de tornar eficaz e eficiente a devida reprimenda quanto à aplicabilidade da venda casada nas relações consumeristas.

2. RELAÇÃO DE CONSUMO

De forma a facilitar a questão do entendimento sobre a responsabilidade pelas questões causadas quando da denominada “venda casada”, é que se faz necessário o mais amplo e correto entender da funcionabilidade do atual Código de Defesa do Consumidor (CDC), para tanto deve-se traçar um paralelo com o estatuído na Carta Política de 1988, valendo ressaltar que o Poder Constituinte originário ao dizer da importância em legislar sobre a questão da mais ampla proteção do direito consumerista, disse de logo da hipossuficiência da parte consumidora, posicionamento que teve origem no movimento estadunidense consumerista do século XIX (GRINOVER et al, 2006).

No Brasil, a questão da relação de consumo é de muito uma situação que se busca o exercício da isonomia entre as partes envolvidas, porém, esta relação não ocorria de forma amena, sendo necessário a promulgação leis, tendo como primeira a denominada de “Lei de Economia popular” (Lei nº 1.521/51), esta possuía essência no tutelar das condições necessárias para evitar a questão das fraudes por parte dos fornecedores (quantidade/qualidade dos bens postos ao fornecimento).

A Constituição Federal de 1988, veio singida no espírito de designar e resguardar os direitos fundamentais do homem, freiando situações que muito figuraram no cenário ditatorial brasileiro. Nesta posição, este constituinte asseverou no artigo 170, inciso V, a necessidade do explícito Direito do Consumidor (DANTAS, 2016).

De forma a consubstanciar o dito, merece relevo o posicionamento de Garcia (2015, p. 11) ao dizer que “como principio fundamental que passou a ser, a garantia constitucional de proteção e defesa do consumidor é considerada cláusula pétrea, impossível de ser suprimida ou restringida pelo legislador”.

Assim, em cumprimento ao mandamento constitucional, o legislador infraconstitucional apresenta a Lei nº. 8.078/90, visando compilar os direitos e deveres da relação consumerista[2], até mesmo em razão de que a tutela oferecida não conseguia responder com precisão aos reclamos dos consumidores que quase sempre eram colocados como dependentes dos fornecedores que faziam as suas próprias regras de consumo.

Segundo observa Garcia (2015, p. 8), em atendimento ao Mandamento Constitucional, foi elaborado o Código de Defesa do Consumidor com o desígnio de intervir nas relações de consumo para a proteção do sujeito vulnerável, desigual na relação com o fornecedor, de modo a manter o equilíbrio e a igualdade nas contratações.

Ressalte-se, quanto ao tema que diz da venda de produtos na modalidade casada, tem-se que, não é incomum a exposição de produtos, mas que quando o adquirente busca a efetivação da compra, se depara com a necessidade de adquirir um segundo produto. Portanto, da análise composta no texto, verifica-se que o CDC não é uma lei estabelecida apenas com intuito pleno de regular a relação consumo, mas sim com a razão evidente de ampliar os direitos, as garantias e atribuir máxima proteção ao consumidor, como parte vulnerável da relação.

3. VENDA CASADA COMO PRÁTICA ABUSIVA NO CDC SOB A ÓTICA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Já foi dito que a relação consumerista é toda relação onde pelo menos duas partes estão envolvidas no sentido de que uma recebe serviços ou produtos enquanto a outra se compromete em entregar os produtos da citada relação.

A doutrina entende como prática comercial, todo procedimento, seja mecanismo ou método “utilizados pelos fornecedores para, mesmo indiretamente, fomentar, manter, desenvolver e garantir a circulação de produtos e serviços até o destinatário final” (BENJAMIN, 2016, p. 4). De forma que, quando o fornecedor torna disponível a circulação de produtos intuindo o adquirir por parte do consumidor, tem-se uma prática de natureza comercial que pode ocorrer de forma correta ou errônea (lesiva).

Como observado, a denominada prática consumerista é em síntese o elo que faz com que haja por parte do consumidor a possiblidade de adquirir algum produto ou serviço que esteja colocado a venda. É através desta prática que ocorre uma espécie de facilitação para o exercício da relação comercial.

Ao colocar o produto ou serviço no mercado, o fornecedor deseja que o consumidor adquira o produto causando-lhe a venda (que pode ser do objeto ou do serviço), criando-se assim uma relação sobretudo de confiabilidade entre as partes, onde o princípio da boa-fé deve prevalecer, daí que dispôs o art. 39, do CDC (grifo nosso):

É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:

I – condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;

[…] (GARCIA, 2015, p.11)

Sabiamente, o legislador do CDC utilizou a locução: “… entre outras práticas abusivas…” (art. 39, caput), de forma que observando a impossibilidade de listá-las (todas) sem incorrer em grave erro, optou pela simplicidade de deixar a norma aberta para um melhor julgamento. Contudo, de logo disse em seu primeiro inciso que é vedada (com todas as suas letras) a possibilidade da venda ou fornecimento de serviços em razão de outro, o que se passou a denominar como sendo a venda casada.

Ao dizer que esta possibilidade de relação comercial se faz contrária à Norma Consumerista, pontuou que esta prática – em razão da vulnerabilidade do consumidor ‑ perfaz sobre o mesmo, efeito lesivo e por isso necessário de repressão.

É importante consignar que a expectativa em torno da aplicação do dispositivo do CDC a respeito da venda casada ou venda condicionada era de tudo uma reinvindicação do mercado consumeiro. Entretanto, mesmo com o advento da referida lei, a expectativa da parte vulnerável ainda não se esgotou. Esta situação se dá ainda, em virtude de que a falta de melhores esclarecimentos deixa o consumidor sem conhecer os mecanismos de proteção que dispõe e, por não possuir conhecimento mais amplo sobre tal vedação, termina – diante de sua necessidade – adquirindo produtos que em sua livre iniciativa não os teria contraído.

Assim, o requisito primário para qualificar a relação consumerista abusiva, é a condição de induzir o público de maneira efetiva a contrair um segundo produto em relação ao primeiro, bastando que potencialmente se faça necessária a compra de um em relação ao outro (CHAMONE, 2012).

Deve-se dizer que para Lucca (2016, p. 68), práticas abusivas são caracterizadas, a priori, como condutas desleais ao consumidor. Verbis:

Deste modo, as práticas comerciais abusivas são condutas desleais que acarretam vantagens desproporcionais em favor do fornecedor, as quais desestabilizam a harmonização e o equilíbrio dos interesses dos participantes nas relações consumeristas (consumidor e fornecedor de produtos e serviços), princípio basilar da Política Nacional das Relações de Consumo, insertas pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, do CDC).

Por certo, outra não pode ser a análise se não aquela que demonstra com claridade que qualquer que seja a prática abusiva, dentre elas a venda casada, terminam por lesionar o consumidor causando-lhe inferioridade no equilíbrio necessário à relação.

A questão chegou às barras dos Tribunais, os quais de forma uníssona na via de proteção do consumidor, pontuam que:

Ementa: PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DEFESA DO CONSUMIDOR. TEORIA DA APARÊNCIA. PRESUNÇÃO DE TRATAR-SE DE UMA ÚNICA INSTITUIÇÃO. PROTEÇÃO AO DIREITO CONTRA PRÁTICAS ABUSIVAS DO FORNECEDOR. 1. CORRETA A DECISÃO ATACADA QUE APLICOU A TEORIA DA APARÊNCIA. COMO AFIRMA A PRÓPRIA AGRAVANTE, AS LOJAS SITUADAS EM BRASÍLIA, EMBORA TERCEIRIZADAS, UTILIZAM SUA LOGOMARCA E, SENDO O LOCAL ONDE OS CONSUMIDORES ADQUIREM OS SERVIÇOS, SE PRESUME TRATAR-SE DE UMA ÚNICA INSTITUIÇÃO. 2. A DECISÃO ATACADA NÃO MERECE REPAROS POSTO QUE A TEORIA DA APARÊNCIA TEM POR OBJETIVO PRESERVAR A BOA-FÉ DAS RELAÇÕES JURÍDICAS, ATRIBUINDO EFEITOS JURÍDICOS ÀS SITUAÇÕES APARENTES, PARA PROTEGER O CONSUMIDOR CONTRA AS PRÁTICAS ABUSIVAS DOS FORNECEDORES, QUE DIFICULTAM SOBREMANEIRA A DEFESA DOS SEUS DIREITOS. 3. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO (TJDF – AGRAVO DE INSTRUMENTO AI 70974120078070000 DF 0007097-41.2007.807.0000. REL. GILBERTO DE OLIVEIRA. DJU 13/02/2018, GRIFO NOSSO).

Pela leitura da sentença colacionada, pode-se perceber que o julgamento visa prioritariamente a defesa do consumidor contra as prática abusivas cometidas pelos fornecedores – as quais são efetivadas de várias formas – na busca de lesionar aqueles vulneráveis necessitados dos produtos ou serviços.

Com efeito, dentre as práticas comerciais denominadas de abusivas, a venda casada se configura como uma das mais graves, posto ser por meio dela que o fornecedor ‑ observando a necessidade do consumidor em adquirir o primeiro produto ‑ termina por obrigar o comprador a contrair o segundo produto.

Conceituando o que venha a ser a venda casada, a Secretaria de Acompanhamento Econômico, ligada ao Ministério da Fazenda Nacional (2009), afirma que venda casada é:

Prática comercial que consiste em vender determinado produto ou serviço somente se o comprador estiver disposto a adquirir outro produto ou serviço da mesma empresa. Em geral, o primeiro produto é algo sem similar no mercado, enquanto o segundo é um produto com numerosos concorrentes, de igual ou melhor qualidade. Dessa forma, a empresa consegue estender o monopólio (existente em relação ao primeiro produto) a um produto com vários similares. A mesma prática pode ser adotada na venda de produtos com grande procura, condicionada à venda de outros de demanda inferior (Disponível em: https://www.passeidireto.com/arquivo/56820616/venda-casada. Acesso em 02.01.2020).

Aduz-se pela leitura da expressão do órgão público, que a venda casada se torna uma preocupação a nível nacional, já que a necessidade de adquirir o produto que não se faz comum ao mercado, terminando por levar o consumidor a contrair compra de produto que não está necessitando, apenas como forma de possibilitar a aquisição do produto principal. Por certo, este modelo de prática comercial – atualmente muito comum no mercado brasileiro – se faz lesiva ao consumidor em vários aspectos.

No dizer de Posner (apud BENJAMIM, 2018, p. 5), a venda casada é

a conduta por meio da qual um agente acopla a venda de um bem ou a prestação de um serviço (produto principal ou subordinante) à venda de outro bem ou à prestação de serviço diverso (produto vinculado ou subordinado), é latente a insuficiência de tal definição.

Como já delineado, esta prática comercial tem vedação expressa no artigo 39 do CDC como uma forma de prática abusiva, e por isso merecedora de reprovação pelos órgãos que protegem o consumidor. Assim, este modelo de prática comercial abusiva, impede ao consumidor que exerça com austeridade a devida escolha do produto ou serviço, levando-o a uma espécie de compra forçada, sendo caracterizada toda vez que uma compra esteja condicionada a outra, posto retirar do consumidor o princípio primeiro do CDC que é a sua livre escolha em adquirir ou não determinado produto ou serviço.

Observe-se a leitura da decisão colacionada oriunda do Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde o ministro Luis Fux se posiciona sobre a demanda:

EMENTA OFICIAL: ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. APLICAÇÃO DE MULTA PECUNIÁRIA POR OFENSA AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. OPERAÇÃO DENOMINADA ‘VENDA CASADA’ EM CINEMAS. CDC, ART. 39, I. VEDAÇÃO DO CONSUMO DE ALIMENTOS ADQUIRIDOS FORA DOS ESTABELECIMENTOS CINEMATOGRÁFICOS.

1. A intervenção do Estado na ordem econômica, fundada na livre iniciativa, deve observar os princípios do direito do consumidor, objeto de tutela constitucional fundamental especial (CF, arts. 170 e 5º, XXXII).

[…]

4. Ao fornecedor de produtos ou serviços, consectariamente, não é lícito, dentre outras práticas abusivas, condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço (art. 39,I do CDC).

5. A prática abusiva revela-se patente se a empresa cinematográfica permite a entrada de produtos adquiridos na suas dependências e interdita o adquirido alhures, engendrando por via oblíqua a cognominada ‘venda casada’, interdição inextensível ao estabelecimento cuja venda de produtos alimentícios constituiu a essência da sua atividade comercial como, verbi gratia, os bares e restaurantes.

[…]

9. Recurso especial improvido (STJ. REsp. 744.602. REL. MIN. LUIS FUX. 23.11.2009).

Assim, o condicionamento de produtos ou serviços a um outro é modelo de relação comercial lesiva, causadora de danos.

Segundo ensina Lucca (2016, p. 91), a venda casada pode ocorrer em duas modalidades: a primeira é tipificada como venda casada stricto sensu, enquanto a segunda é denominada de venda casada lato sensu.

A venda casada stricto sensu é aquela em que o consumidor fica impedido de consumir, a não ser que consuma também outro produto ou serviço.

Na venda casada lato sensu, por sua vez, o consumidor pode adquirir o produto ou serviço sem ser obrigado a adquirir outro. Todavia, se desejar consumir outro produto ou serviço, fica obrigado a adquirir ambos do mesmo fornecedor, ou de fornecedor indicado pelo fornecedor original.

Na primeira modalidade, que seja a venda casada stricto sensu, o consumidor somente poderá adquirir o produto que possui necessidade se, e somente se, também, comprar um segundo produto. Ou seja, quando da venda casada (estritamente dita), o consumidor é lesado diretamente por várias vias. A priori, lhe é negado o direito de contrair um produto em razão de não ter necessidade de obter o outro produto que se encontra condicionado ao primeiro. E este modelo de compra casada aparece geralmente quando o primeiro produto ou serviço se faz prioridade para o consumidor, posto que o fornecedor observando a citada necessidade, termina por estabelecer condições para este obter.

No que concerne a questão suscitada, Alves (2018, p. 9) afirma que o CDC estabelece a vedação a este modelo de prática abusiva, dizendo que:

Quer-se evitar que o consumidor, para ter acesso ao produto ou serviço que efetivamente deseja, tenha de arcar com o ônus de adquirir outro, não de sua eleição, mas imposto pelo fornecedor como condição à usufruição do desejado.

Esta usufruição que fala o autor é conceituada por Kotler (2010), citado por Carvalieiri Filho (2013, p. 78), como sendo uma forma de aplicabilidade de marketing lateral. Com efeito, é possível compreender que quando da venda casada na modalidade stricto sensu, o fornecedor exerce um modelo de propaganda sobre o segundo produto, fazendo com que o consumidor tome conhecimento da presença de outro produto e levando-o à compra do mesmo.

Corroborando o entendimento já prelecionado no bojo do artigo, em decisium o Superior Tribunal de Justiça disse que:

Venda casada de imóvel e seguro habitacional para o mutuário é ilegal.

[…]. Em seu voto, a ministra Nancy Andrighi considerou que o seguro habitacional é vital para a manutenção do SFH, especialmente em casos de morte ou invalidez do mutuário ou danos aos imóveis. O artigo 14 da Lei n. 4.380, de 1964, e o 20 do Decreto-Lei 73 de 1966, inclusive, tornaram-no obrigatório. ‘Entretanto, a lei não determina que o segurado deva adquirir o seguro do fornecedor do imóvel’, destacou. A ministra considerou que esse fato seria uma ‘venda casada’, prática vedada pelo artigo 39, inciso I, do CDC. A relatora considerou, ainda, que deixar à escolha do mutuário a empresa seguradora não causa riscos para o SFH, desde que ele cumpra a legislação existente. Por essa razão, a ministra não conheceu do recurso STJ. REsp 804202 (DISPONÍVEL EM: HTTP://WWW.STJ.GOV.BR/PORTAL_STJ/PUBLICACAO/ENGINE.WSP?TMP.AREA=398&TMP.TEXTO=88819.2018. ACESSO EM 02.01.2020).

Como plausível de observação, ainda na questão da seguridade estabelecida por meio de seguro habitacional, ser essência para o desenvolver da seguridade do mutuário, ainda assim, existe a venda de determinado produto acoplado ao primeiro. De logo se pode dizer que se configura como venda casada no modelo stricto sensu, e por isso vedada pelo CDC.

Aquele modelo de relação comercial diferencia-se da venda casada lato sensu, posto que esta ocorre quando o fornecedor – mesmo que não determine a compra do segundo produto em razão do primeiro ‑ estabelece condições necessárias para que o adquirente dê continuidade a outros produtos. Este modus de venda casada se faz presente, geralmente, quando o consumidor necessita de adquirir outros produtos da mesma empresa, e esta lhe condiciona a continuidade das compras à outra aquisição.

Salutar dizer que a Legislação Consumerista ao fitar em seu artigo 39 que a venda casada se caracteriza como lesão ao direito do consumidor e, por isso, ferindo a sua dignidade do consumidor (preceito constitucional), não se fez de forma uníssona como previsão legal inquestionável, sendo alvo de várias críticas e interpretações. Tanto assim, que outras leis buscaram tratar do mesmo assunto “venda casada” por vias diferentes, é o caso da Lei Antitruste (2011).

Segundo a expressão de Badin (2012, p. 5), quando o assunto é venda casada, a sua presença deve ser analisada de forma bem coesa, posto que nem todas as vendas casadas sejam prejudiciais ao consumidor, fato que deve traduzir a lesão à parte hipossuficiente.

[…] Essa ubiquidade, antes de oferecer maior proteção ao bem-estar do consumidor, gera antinomia de difícil solução pela dogmática jurídica. Enquanto para a doutrina de defesa do consumidor a venda casada é considerada um ilícito ‘per se’, para a defesa da concorrência sua ilicitude é analisada pela ‘regra da razão’, que no direito brasileiro se traduz pela necessidade da demonstração dos efeitos […] e da análise das eficiências. O reconhecimento da venda casada como prática abusiva ‘per se’ pela defesa do consumidor, independentemente da análise dos efeitos e razões do empresário, além de criar verdadeiro conflito entre as duas normas (norma mais restritiva esvazia norma menos restritiva), pode levar ao absurdo de sancionar prática ou informar políticas públicas que sejam mais benéficas para o próprio consumidor. […] Assim, para que se caracterize a infração do art. 39, I, do CDC, é preciso: (i) existência de cláusulas contratuais ou condições de oferta que imponham a aquisição conjunta dos bens ou serviços; (ii) existência de poder de mercado no produto vinculante; (iii) ausência de justificativas econômico-jurídicas para a prática.

Em observação ao delineado alhures, ainda que se entenda a preocupação do legislador consumerista em defender o consumidor, e com isso dá o devido equilíbrio a relação comercial, não se pode de primeiro – sem as devidas observações – efetivar contrariedade a qualquer modelo de venda aparentemente casada, obviamente que quando de sua utilização não demandar prejuízo ao consumidor, não haverá a lesão, e não ocorrendo tal fato não haverá como se falar em defesa deste. Como já dito, para a ocorrência da venda casada como lesão ao consumidor ou mesmo à ordem econômica, esta venda deve ser distinguida por requisitos necessários para a tipificação da conduta, quais sejam dentre outros, a correção e o poder de mercado.

Interessante para a análise científica a explicação apresentada por Crane (apud BENJAMIN, 2016, p. 49, grifo nosso), a respeito da caracterização coercitiva na venda casada, posto que conforme explicita o autor, não será necessariamente na forma de pagar-se por dois produtos em separado que se fará presente a venda casada, por vezes esta modalidade de venda está implícita em um “pacote”:

É importante ressaltar ainda que a coerção não se apresentará necessariamente na forma de um vínculo entre dois ou mais produtos que o adquirente se vê obrigado a comprar contra a sua vontade. Isso porque se os produtos forem ofertados tanto em conjunto quanto separadamente (o chamado mixed bundling[3]), mas o preço por eles cobrado quando adquiridos individualmente for demasiadamente alto se comparado ao acréscimo suportado pelo vendedor em função da separação dos produtos, estar-se-á diante de uma coerção econômica. O mixed bundling se transformará, então, em uma venda casada. Isso porque neste caso, o consumidor pode sentir-se constrangido a adquirir os produtos em conjunto para evitar o prejuízo decorrente da compra separada do produto que lhe interessa. O efeito coercitivo necessário à configuração da venda casada é o mesmo, ainda que obtido por via diversa.

Conforme expressado pela citação, a coerção – característica da venda casada – não raro se apresenta na forma velada, podendo a princípio não demandar a presença do ilícito, o qual irá se caracterizar quando da observação mais aprofundada sobre os valores e modus exercidos quando da venda do produto em separado.

4. CONCLUSÃO

A relação comercial estabelecida em nível nacional tem suas raízes baseadas naqueles modus que foram originados do pacto colonial, onde aquele que detinha o poder do mando era em tudo privilegiado na citada relação, modelo que perdurou, com pouquíssimas mudanças até o apresentar-se de um novo modelo social asseverado pela promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual disse da necessidade de proteção ao ser humano quando estipulou como preceito constitucional, dentre outros, o princípio da dignidade da dignidade da pessoa humana.

Vale dizer que esta proteção tem como pré-requisito a mudança ocorrida no sistema de produção, o qual deu origem à indústria moderna e ao processo de concentração econômica que teve seu início no último quartel do século XIX.

Através da mudança legislativa constitucional, o Estado Brasileiro passou a ter um dos seus compromissos o de efetivar a proteção do consumidor, agora identificado como parte mais frágil da relação consumerista.

O advento da Constituição Federal, estabeleceu a necessidade do legislado infraconstitucional apresentar lei que normalizasse a relação de consumo, de forma a combater as lesões ocorridas em desfavor do consumidor, o qual via de regra ficava a mercê do fornecedor e das estipulações por este apresentadas na citada relação.

O denominado Código de Defesa do Consumidor (CDC) (Lei nº 8.078/1990), seguindo o mandamento constitucional previsto nos artigos 5º, XXXII, artigo 129, III; 170 V., se apresenta como um corpo de normas que visam a proteção direta do consumidor, dentre as quais merece relevo a possibilidade da revisão dos contratos; a possibilidade do controle do Poder Judiciário sobre os contratos; o controle legislativo prévio; a proteção judicial contra as cláusulas abusivas; o controle administrativo e judicial das cláusulas e modus gerais do contrato.

Como se deflui, do dito em concorrência com o exposto no trabalho, o modelo de prática de vender mercadoria em combinação unilateral com outro produto, é considerada pelo legislador do CDC como lesão aos direitos primários do consumidor (artigo 39, I).

A venda casada é talvez uma das lesões sofridas pelo consumidor que mais dificuldades em ser detectada apresenta, não só por razões óbvias de haver um mascaramento por parte do fornecedor que viabiliza implementar a venda de um segundo produto acoplado ao primeiro, como de igual forma, apresenta este modelo de vender, como se houvesse necessidade expressa de ocorrer naquela forma.

A vedação consumerista estabelece que a venda casada deve ser combatida in totum, mas os órgãos de proteção – em razão de inúmeras situações – terminam por não exercerem tal aplicação protetiva, deixando assim o consumidor sob o domínio do fornecedor.

A aplicabilidade da legislação vigente através dos mecanismos disponibilizados pelo legislador, somente encontrarão a devida ressonância se, e somente se, ter-se a presença de uma fiscalização eficaz e que se faça eficiente no momento que exerça as medidas necessárias para coibir tal abuso, além do pleno exercício pedagógico da informação ao consumidor.

A questão merece relevo, pois refere-se a um modelo de lesão que se aproveita da necessidade por parte do consumidor em adquirir determinado produto, por isso sendo induzido a adquirir outro na busca de ter o primeiro. Com efeito, não carece um imenso debelar para entender que o consumidor – em acontecendo o relato – está sob o domínio do fornecedor que retira daquele que consome o poder da escolha levando acreditar que outra via não há se não aquela apresentada pelo fornecedor, por isso ferindo o princípio da transparência da relação comercial eleita pelo legislador.

O trabalho longe de querer apresentar uma solução inquestionável sobre a questão da reprimenda e punibilidade da modalidade venda casada, pretendeu ser um mais instrumento de aguçamento das questões que envolvem esta modalidade de lesionamento que fere os aspectos sociais e jurídicos de toda a sociedade.

REFERÊNCIAS

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BANDIN, Arthur. Venda Casada: interface entre a defesa da concorrência e do consumidor. Rio de Janeiro: RENOVAR, 2012.

BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos E. Lei n° 8.078 de 11 de setembro de 1990: das práticas comerciais. Rio de janeiro: Renovar, 2016.

______. Superior Tribunal de Justiça. RECURSO ESPECIAL Nº 744.602-RJ. Rel. Min. Luiz Fux. 23.11.2009.

______. ______. in: <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=88819>. Acesso em 02.01.2020.

______. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Agravo de Instrumento. 70974120078070000 DF 0007097-41.2007.807.0000. Rel. Gilberto de Oliveira. DJU 13/02/2018.

CARVALIERI FILHO, Sérgio. A equidade no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: JC, 2013.

CHAMONE, Marcelo Azevedo. A relação jurídica de consumo: conceito e interpretação. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1456, 27.jun. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10069>2007. Acesso em: 02.01.2020.

CHRESTANI , Valeska da Cunha. As vendas casadas sob a perspectiva do teorema de coase. Paraná: Universidade Federal do Paraná, 2012.

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GARCIA, Leonardo de Garcia. CÓDIGO COMENTADO DE DIREITO DO CONSUMIDOR. Niterói: Impetus. 2015.

GRINOVER, Ada Pelegrine Et All,. Código de Defesa do Consumidor: interpretado e comentado por seus autores . São Paulo: Atlas, 2006.

https://www.passeidireto.com/arquivo/56820616/venda-casada. Acesso em 02.01.2020.

LUCCA, Newton de. Direito do consumidor. São Paulo: RT, 2016.

POSNER, Richard A. Antitrust law. Chicago: The University of Chicago Press. Tradução e comentários: BENJAMIM, Antonio Herman de Vasconcelos E. São Paulo: Método, 2018.

APÊNDICE – REFERÊNCIAS DE NOTA DE RODAPÉ

2. Assevera Chamone (2007, p. 5) que relação de consumo é “toda relação jurídico-obrigacional que liga um consumidor a um fornecedor, tendo como objeto o fornecimento de um produto ou da prestação de um serviço”.

3. Segundo Garcia (2015, p. 58), Mixed bundling é como se denomina a forma estratégica de fixação de preços onde aquele que vende oferece um desconto quando da compra um pacote de itens vendidos separadamente.

[1] Mestrando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Portucalense, Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Faveni e em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Estácio de Sá. Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Piauí.

Enviado: Janeiro, 2021.

Aprovado: Março, 2021.

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Lucas Alves Silva Caland

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